O Ministério Público Federal, no final do ano passado, ajuizou Ação Civil Pública contra a ex – ministra e atual Senadora, Damares Alves, bem como contra a própria União, pleiteando indenização de cinco milhões de reais porque a primeira fez denúncias públicas acerca de abusos sexuais e tráfico de pessoas (mais especificamente crianças) para fins de exploração sexual na Ilha de Marajó. As afirmações de Damares Alves foram rotuladas como “fake News”. [1]
Desde aquela época já era de se estranhar a atuação do MPF já que denúncias de abusos sexuais, crueldades contra menores e tráfico de crianças existem em todo o país e até mesmo em todo o globo terrestre, de forma que as afirmações de Damares Alves não deveriam causar espanto a ninguém e jamais serem rotuladas como o estrangeirismo indefinido de “fake news”. Muito menos em se tratando de órgão que deveria ser consciente dessas condutas criminais sabidamente existentes, e mais, estar devidamente empenhado em seu combate efetivo e não em constranger qualquer um que as denuncie.
A reação de parte da sociedade sobre a questão, na época, também foi de negação psicológica e/ou ideológica, mobilizando as chamadas “celebridades” e artistas e submetendo Damares Alves a críticas duríssimas e até mesmo ao escarnio público e pedido de cassação da parlamentar. [2]
É de se indagar como foi possível chamar de “criação de pânico moral” e “histeria” a denúncia de abusos que são fato notório no Brasil e no mundo inteiro. O abuso sexual, exploração e tráfico de pessoas, especialmente menores e mulheres, é indiscutível e até mesmo objeto de tratados internacionais para seu combate, sendo o Brasil signatário! [3] As críticas, que chegaram a ser ilustradas com charges obscenas e altamente ofensivas exigiam provas de detalhes acerca da forma como são tratadas as crianças exploradas, sobre as espécies de crueldades praticadas, como se esse fosse o real foco da questão e não a exploração, abuso e violência a que as crianças estão sujeitas, independentemente das formas adotadas para explorá-las. Será que se não houvesse a retirada dos dentes mencionada pela parlamentar ou a alimentação pastosa, seriam a exploração, o abuso e o tráfico humano admissíveis!? O desvio do foco da essência do problema para a exigência de comprovação das meras formas de crueldade perpetradas escancara uma cegueira deliberada político – ideológica que permite considerar que 2093 páginas de relatórios de 3 CPIs não servem para comprovar a magnitude do problema denunciado pela parlamentar. [4]
Agora, após viralização de música intitulada “Evangelho de Fariseus” da cantora Aymeê Rocha, que também denuncia o abuso, exploração e tráfico de crianças em Marajó, diversas “celebridades” e artistas se mobilizam para como que “abraçar a causa”, obviamente muito em razão da exposição que podem obter com isso. Comprova-se, assim, que qualquer questão, por mais gravosa e séria que seja, geralmente só obtém apoio e interesse midiático com fins autopromocionais e na dependência do espectro político – ideológico. [5]
E Damares Alves? Ela volta a denunciar, como parlamentar, os fatos ocorridos e, incrivelmente, sofre novas críticas de parcela da mídia porque não teria provado as formas de exploração que anteriormente mencionou, inobstante não mais se questionar a notória existência do fato concreto e essencial do tema, que é a efetiva exploração, abuso e tráfico de crianças para fins sexuais e até mesmo para retirada de órgãos. [6]
Há uma estranha preocupação com eventual prejuízo ao “turismo” na região de Marajó devido às denúncias. Mas, a que espécie de “turismo” se referem tais pessoas? Seria o “turismo sexual”, tendo por objeto crianças e adolescentes? Porque outros turistas não têm relação com essas denúncias!
Fala-se em “estignatização da região”, quando a exploração sexual, abuso e tráfico de crianças é algo que ocorre em todo o mundo e a denúncia de casos pontuais, seja em Marajó ou outras localidades quaisquer não é “estigmatização”, mas apenas o início, o impulso para o combate a essa espécie de criminalidade. Trata-se, juridicamente falando, da primeira providência para uma apuração criminal, a chamada “notitia criminis”, sem a qual nada se faz. É obrigação funcional das autoridades apurar os casos noticiados e obrigação moral e legal dos cidadãos comunicar as autoridades e expor essas situações inadmissíveis. Só numa sociedade no seio da qual os chamados “gatilhos” emocionais e psicológicos se sobrepõem às realidades e seus necessários enfrentamentos é que se pode criticar a denúncia de fatos conhecidos que merecem acatamento e devida apuração.
Nesse quadro lamentável é que se veem as autoridades constituídas voltarem-se contra o mensageiro ao invés de receberem a mensagem e tomarem as devidas providências, exigindo provas ao invés de cumprirem seu dever de obter tais provas, de apurar e investigar os casos noticiados.
Diante das denúncias expostas por Damares Alves, o Ministério Público poderia instaurar o seu tão acalentado “Procedimento Investigatório Criminal” (PIC), acolhendo a parlamentar como testemunha informante ou, pelo menos, requisitar o devido Inquérito Policial, seja na esfera federal ou estadual, dependendo da abrangência dos crimes que podem ter caráter internacional ou transnacional. Ao invés disso, energia foi gasta com uma Ação Civil Pública contra a mensageira, contra a informante! Dela (Damares) ou outros denunciantes se pode solicitar esclarecimentos em oitivas formais, pedir apresentação de provas que tenham, mas a obrigação de investigar e apresentar provas, responsabilizando os infratores jamais será dos denunciantes, das testemunhas e nem das vítimas (salvo em ações penais privadas, o que não é o caso), mas do Estado por meio de seus órgãos de persecução penal. A esses órgãos não é dado “irritar-se” ou “indignar-se” com denúncias que lhes chegam às mãos, mas tão somente cabe-lhes o dever funcional de investigar e punir os responsáveis pelas condutas criminosas narradas. Tudo o mais (exigências, coações e ações contra denunciantes, testemunhas ou vítimas) é exemplo trágico de vitimização secundária, que se caracteriza pelas respostas inadequadas formais e informais obtidas pelas pessoas, as quais acabam produzindo novos danos para além daquele já sofrido com a prática criminosa. [7]
Façamos um exercício “ad absurdum” e imaginemos que as Autoridades Policiais e o Ministério Público em todo o Brasil passem a exigir das vítimas, informantes e testemunhas a apresentação de provas de todas as suas alegações, ao invés de irem buscar tais provas no exercício de suas funções (melhor ainda, de suas obrigações funcionais). Em não apresentando de pronto as tais provas, as pessoas seriam submetidas a ações civis de indenização, quem sabe até mesmo de indenização dos suspeitos! Quem iria se arriscar a registrar um simples Boletim de Ocorrência de furto? Em outro contexto, o Papa Gregório IX já fazia menção àqueles que “transformam em cauda a cabeça e obrigam a rainha a servir à escrava”. [8] Em linguagem mais popular, querem que “o rabo abane o cachorro” e não o contrário.
Já passou da hora da criação de uma Força – Tarefa para a devida apuração desses fatos e punição dos criminosos (seja por ação ou omissão). Não é possível admitir mais a real estigmatização e coação dos denunciantes enquanto a impunidade reina entre os criminosos e as vítimas padecem sem qualquer proteção ou com uma “proteção insuficiente” que agride a Constituição no que se refere ao chamado “garantismo total positivo” integrante do “Princípio da Proporcionalidade e Razoabilidade”. E quando se fala em estigmatização aqui, não se trata de dar vazão aos caprichos e pusilanimidades de uma sociedade frágil, incapaz de encarar e enfrentar seus problemas porque palavras e narrações de fatos “traumatizam”. Não se trata de aderir aos chamados “gatilhos” do politicamente correto, mas sim da constatação concreta de que a mensageira inicial das denúncias foi submetida a uma Ação Civil Pública e à esculhanbação generalizada visando seu hoje chamado “cancelamento”.
Então, aproveitando que muitos, negligenciando a liberdade religiosa e de expressão, bem como a tão propalada tolerância e o Estado Laico (que não é Estado Ateu), gostam de ridicularizar a parlamentar Damares Alves, tendo em mira sua crença, encerremos este texto, lembrando o que o Apóstolo Pedro, Primeiro Papa da Igreja Católica, respondeu quando o prenderam e pretendiam impor-lhe e aos demais cristãos “um silêncio criminoso”: “Non enim possumus quae vidimus et audivimus no loqui” (“Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido”). [9] Não poderia a parlamentar realmente se calar e, na verdade, não podemos nenhum de nós (populares ou autoridades constituídas), seja por obrigação legal (constitucional – artigo 227, “caput”, CF) [10] ou moral.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mariana. MPF pede R$ 5 mi de Damares e União após fake News de abusos no Marajó. Disponível em https://www.metropoles.com/brasil/mpf-pede-r-5-mi-de-damares-e-uniao-apos-fake-news-de-abusos-no-marajo , acesso em 24.02.2024.
BERISTÁIN, Antonio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Maia Neto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
CANÇÃO denuncia exploração sexual de crianças em Marajó e famosos iniciam campanha. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/02/22/cancao-denuncia-exploracao-sexual-de-criancas-em-marajo-e-famosos-iniciam-campanha.ghtml , acesso em 24.02.2024.
COUTINHO, Mateus. Sem ter provado supostas denúncias, Damares volta a falar sobre abuso sexual no Marajó. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2024/02/23/sem-ter-provado-supostas-denuncias-damares-volta-a-falar-sobre-abuso-sexual-no-marajo , acesso em 24.02.2024.
FEITOSA, Diógenes Freire. Ilha de Marajó: Políticos e Artistas Zombaram de Denúncia e Pediram Cassação de Damares. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ilha-de-marajo-politicos-e-artistas-zombaram-de-denuncia-e-pediram-cassacao-de-damares/ , acesso em 24.02.2024.
PINHEIRO, Joel. Damares tira denúncia de esgoto on line da extrema – direita que promove pânico moral e histeria. Disponível em https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/10/13/damares-esgoto-panico-moral/ , acesso em 24.02.2024.
PIO X, Papa São. Pascendi Dominici Gregis – sobre as doutrinas modernistas. Trad. Catuí Corte – Real Soares. São Paulo: Santa Cruz, 2022.
SILVA, César Dario Mariano da. O Brasil Está Cumprindo Tratados Sobre Tráfico de Pessoas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-out-17/cesar-dario-brasil-cumprindo-tratados-trafico-pessoas/ , acesso em 24.02.2024.
[1] Cf. ANDRADE, Mariana. MPF pede R$ 5 mi de Damares e União após fake News de abusos no Marajó. Disponível em https://www.metropoles.com/brasil/mpf-pede-r-5-mi-de-damares-e-uniao-apos-fake-news-de-abusos-no-marajo , acesso em 24.02.2024.
[2] FEITOSA, Diógenes Freire. Ilha de Marajó: Políticos e Artistas Zombaram de Denúncia e Pediram Cassação de Damares. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ilha-de-marajo-politicos-e-artistas-zombaram-de-denuncia-e-pediram-cassacao-de-damares/ , acesso em 24.02.2024.
[3] “Dentre outros tratados internacionais, o Brasil tornou-se signatário do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial de Mulheres e Crianças, que foi adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000. O Protocolo foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio de Decreto Legislativo 231/2003, e determinada sua execução através do Decreto 5.017/2004” (grifo nosso). Cf. SILVA, César Dario Mariano da. O Brasil Está Cumprindo Tratados Sobre Tráfico de Pessoas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-out-17/cesar-dario-brasil-cumprindo-tratados-trafico-pessoas/ , acesso em 24.02.2024.
[4] Para ter uma ideia do nível baixíssimo das críticas e das suas ilustrações: PINHEIRO, Joel. Damares tira denúncia de esgoto on line da extrema – direita que promove pânico moral e histeria. Disponível em https://portalcioranbr.wordpress.com/2022/10/13/damares-esgoto-panico-moral/ , acesso em 24.02.2024.
[5] CANÇÃO denuncia exploração sexual de crianças em Marajó e famosos iniciam campanha. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/02/22/cancao-denuncia-exploracao-sexual-de-criancas-em-marajo-e-famosos-iniciam-campanha.ghtml , acesso em 24.02.2024.
[6] Apenas um exemplo deplorável: COUTINHO, Mateus. Sem ter provado supostas denúncias, Damares volta a falar sobre abuso sexual no Marajó. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2024/02/23/sem-ter-provado-supostas-denuncias-damares-volta-a-falar-sobre-abuso-sexual-no-marajo , acesso em 24.02.2024.
[7] BERISTÁIN, Antonio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Maia Neto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 103.
[8] Apud, PIO X, Papa São. Pascendi Dominici Gregis – sobre as doutrinas modernistas. Trad. Catuí Corte – Real Soares. São Paulo: Santa Cruz, 2022, p. 43.
[9] Op. Cit., p. 22.
[10] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) (grifo nosso).
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. “Non Possumus”: Damares, a “louca” sã e a Ilha de Marajó Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 mar 2024, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3682/non-possumus-damares-a-louca-s-e-a-ilha-de-maraj. Acesso em: 21 nov 2024.
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