Novamente ganha pauta no debate nacional o tema do aborto, dessa vez por força da ideia de criminalizar toda e qualquer pratica abortiva, quando realizada após 22 semanas de gestação.
O tema do aborto já integrou, desde indevida pauta do debate eleitoral à acaloradas discussões entre representantes religiosos, mas, há um detalhe importante que normalmente tem passado ao largo da discussão do tema, os aspectos efetivamente técnicos que conduzem a que uma ampla parcela de juristas defenda, até mesmo, a integral descriminalização da matéria, com a sua regulamentação.
Tratar da temática sob viés religioso, é absolutamente possível e legítimo no plano da fé individual, mas, por certo, não pode ser o fator orientador das políticas de Estado, quando diante do modelo republicano, em que as bases estruturais devem ser as de natureza racional e científica.
Nesse diapasão, a primeira questão a considerar é a possibilidade do abortamento a partir da solicitação da gestante, sem a indicação de qualquer motivo específico, procedimento atualmente admitido, como direito, em 67 países do mundo, sendo, regra geral, aceita essa modalidade, quando o abortamento é realizado até 12 semanas de gestação, a partir dos dados científicos que apontam ser este o momento a partir do qual os órgãos do feto, efetivamente começam a se formar.
Com isso, a partir das 12 semanas de gestação, seria possível visualizar, em tese, na prática do aborto, ofensa a um bem jurídico penal, no caso, a vida humana em formação, o que não estaria presente na etapa gestacional anterior, ante a não formação dos órgãos que permitem a vida humana.
O projeto de lei atualmente em discussão no Brasil, traz aspecto diverso, ao estabelecer o limite de 22 semanas, o qual se baseia em uma recomendação da gestão anterior do Ministério da Saúde, a qual orientava para que todas as modalidades de abortamento fossem evitadas após esse lapso temporal, isso porque a partir deste momento já haveria viabilidade fetal, conseguindo o feto viver fora do útero.
Ocorre que, conforme alerta do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, a idade gestacional é apenas um dos fatores que irá influenciar na viabilidade fetal, razão porque, o sistema baseado na definição das autorizações para a realização do procedimento abortivo, somente com lastro nesse elemento, tende a ser falho e estruturado ilusoriamente, o que explica a opção de várias nações, pela fixação do direito geral à realização do aborto até a 12 semana de gestação, pois, então, não haveria ofensa a bem jurídico penal, por ainda não se poder falar de vida humana em formação.
A questão do bem jurídico, vida humana em formação, é muito significativa, pois, atua diretamente na não tipificação criminal do aborto quando o feto é anencéfalo, justamente, porque, embora haja a geração de estrutura orgânica no útero, a anencefalia faz seguro não se poder falar da efetiva existência do desenvolvimento de uma vida humana.
A nuance está nas hipóteses de aborto autorizados pela legislação, no caso brasileiro para a garantia da vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez é resultante de violência sexual (aborto emocional ou sentimental).
No que tange ao aborto terapêutico, o Brasil está inserido entre os 39 países com posicionamento restritivo na matéria, pois, somente a situação de necessidade para salvar a vida da própria gestante autoriza a medida, sendo que os países de posição mais liberal, 56 no total, admitem o abortamento para a preservação da saúde da mulher, entendida em aspecto completo, considerando o bem estar físico e mental, não somente o risco de produção da morte, caso a gravidez tenha continuidade.
Indiscutível que, em relação à prática abortiva para salvar a vida da gestante, há bens jurídicos legítimos em choque, de um lado a vida da própria gestante e de outro a vida humana em formação em seu útero, sendo típica hipótese de estado de necessidade, não se vinculando, portanto, a qualquer prazo, pois a inviabilidade de exigir-se o sacrifício do bem jurídico representado pela vida da gestante, independente do momento da gestação, torna qualquer tentativa de fixação de prazo, desprovida de sustentação lógico-racional mínima, complementarmente disforme com a estrutura dogmático-penal, ou seja, ainda que corporificada em lei, não vale.
No aborto emocional, a violência sexual sofrida pela mulher faz surgir o direito de escolha sobre interromper ou continuar com a gravidez resultante da violência, sendo a hipótese de causa de justificação, ou seja, é produzido o afastamento do caráter ilícito do fato, por se considerar que, embora a conduta possa de ajustar a descrição formal que a lei faz de um delito, não há reprovabilidade incidente sobre ela.
A questão é de certa obviedade, não tendo o Estado a capacidade de impedir seja a mulher vítima do ato violador de sua liberdade sexual, não dispõe de legitimidade para impor à vítima a obrigação de suportar as consequências da agressão sofrida, não havendo base republicana mínima em habilitar a estrutura do poder punitivo para punir quem é vítima de um crime, por não desejar sofrer processo de contínua revitimização.
Em todas as causas de justificação, sua ocorrência está balizada pela existência de determinada condição fática, assim é com a legítima defesa, com o estado de necessidade e com o exercício regular de um direito, sendo que o aborto praticado pela vítima de violência sexual equivale a essas justificantes, com a simples distinção de estar na parte especial do Código Penal e não em sua parte geral.
Com isso, fica muito evidente não se poder negar o direito à prática do aborto sentimental, quando ocorrida a circunstância fática que o justifica, qual seja, a gravidez proveniente de violência sexual, sendo retirada qualquer possibilidade de o Estado estabelecer prazo para a realização do abortamento, assim como, no aborto terapêutico, recaindo a fixação de prazos, na total ausência de sustentação racional e lógica, em direto confronto com a estrutura dogmático-penal, portanto, caso existisse, seria uma regra inválida.
Claramente, o Brasil adota posicionamento bastante restritivo na matéria do aborto, não o admitindo para a preservação da saúde da gestante, mas, somente quando há risco para a sua vida e, ainda, havendo insegurança jurisprudencial em afirmar que não ocorre o delito, quando o abortamento se dá até 12 semanas de gestação, hipótese de evidente inexistência de bem jurídico penal.
Com efeito, caso aprovado fosse projeto de lei que tentasse limitar ainda mais o sistema já restritivo do Brasil, fixando prazo para a realização do abortamento, nas hipóteses em que ele está autorizado, careceria de racionalidade mínima, sendo inaplicável, ante seu confronto direto com a estrutura dogmático-penal influente na matéria.
O que se constata, é ser questão, em verdade, moral e religiosa, portanto, incapaz de ser imposta como legislação estatal a disciplinar a pauta comportamental de toda a sociedade, sob pena de estar se convertendo o Estado republicano em um Estado teocrático, portanto, habilitando o exercício autoritário e concentrado do poder por aqueles que professam determinado credo.
Em definitivo, não compete ao Estado disciplinar quais são os valores morais e religiosos aceitos e quais não o são, sendo sua função, apenas, atuar nas hipóteses de conflito, visando frear a ofensa aos bens jurídicos legítimos e adotar as medidas adequadas em relação aos que os ofenderam.
Assim, na temática do aborto: a) não há crime, quando realizado na gravidez de até 12 meses, embora a Jurisprudência brasileira relute em afirmar categoricamente essa realidade, decorrente na inexistência do bem jurídica vida humana em formação, com isso admitindo a punição penal, de forma irracional e descontrolada, em situações em que a pessoa não ofendeu qualquer bem jurídico; b) não há crime no abortamento de feto anencefálico, pela inexistência de ofensa ao bem jurídico, vida humana em formação; c) é justificada prática do aborto quando a gravidez resulta de violência sexual, não havendo desvalor na conduta, independente do momento gestacional em que se realize a prática abortiva; d) há estado de necessidade quando ocorre o aborto terapêutico, portanto, também não há crime e a permanência do risco para a vida da gestante, faz também com que não se possa vincular a prazos.
Em resumo, tentar estabelecer um marco temporal, considerando a fase gestacional, para permitir a prática abortiva é desprovido de base racional e lógica, sem qualquer fundamentação juridicamente válida que lhe dê suporte, estando diante de projeto de lei natimorta.
Advogado em Curitiba (PR). Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador Geral do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TASSE, Adel El. A disciplina juridicamente possível do aborto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2024, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3714/a-disciplina-juridicamente-possvel-do-aborto. Acesso em: 26 dez 2024.
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