Há muito se acompanha, nos países da América Latina, perigoso fenômeno de ordinarização da prisão processual.
Esse fenômeno é particularmente sensível no Brasil, em que a presença de grande conflituosidade social, somada ao elevado quantitativo populacional, faz com que a violência urbana apresente números consideráveis, o que contribui na sensação de pânico social, passando os integrantes da sociedade a reacionar de forma violenta, inserindo-se o uso da prisão como uma das mais usuais formas de violência institucional.
Como parte das respostas ineficazes, mas dotadas de elevada popularidade para a questão da violência urbana, foram ocorrendo liberalizações nos mecanismos de controle da prisão anterior à condenação, ou seja, da prisão processual, passando a ocorrer sua utilização com caráter de generalidade, quando, na verdade, deveria encontrar-se limitada aos casos de extremada necessidade, calcados na demonstração objetiva de que o acusado apresente perigo para a ordem pública, para a ordem econômica, esteja atuando a prejudicar a instrução criminal ou demonstre risco de ser frustrada a aplicação da lei penal, registrando-se que mesmo nestas hipóteses não se pode estender a cautela incidente sobre a liberdade da pessoa por prazo desmedido.
O Estado Democrático de Direito tem como uma de suas características mais marcantes a interpretação das leis em permanente acordo com os direitos e garantias estabelecidos no Texto Constitucional, surgindo deste aspecto, inclusive, o chamado “ativismo judicial”, em que o Magistrado corrige ataques normativos aos direitos e garantias do cidadão no dia a dia da operacionalização do sistema jurídico.
É conveniente observar que a Constituição brasileira, fruto de discussões imediatamente posteriores ao término do regime ditatorial militar, é sensível para com a questão do aprisionamento, em especial por haver contado, em sua elaboração, com a contribuição de pessoas que conheceram o cárcere na condição de criminosos políticos e, então, vivenciaram a realidade do sistema prisional, convivendo com presos comuns e conhecendo suas histórias, observando a desumana condição a que se encontravam submetidos.
A partir desses dados é que a Carta Política estruturou-se em prol da defesa da liberdade, tornando a admissão da prisão medida de cunho absolutamente excepcional. A propósito é esta a exegese imposta, por exemplo, pelos incisos do seu artigo 5º, dos quais provém o devido processo legal e o estado de inocência, respectivamente, com a redação abaixo:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Embora a certeza da filiação constitucional brasileira ao regime de proteção das garantias e das liberdades e repulsa ao modelo prisional, a resistência encontrada para tornar esta idéia efetiva sempre foi muito grande, em clara conexão com o acima referido sentimento de pânico social e com o fenômeno da violência urbana.
Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a Carta Magna nacional impõe a interpretação de utilização excepcional da prisão, o sentimento de pânico social faz com que as pessoas desejem seu incremento continuamente crescente, havendo maior sensibilidade para com este reclamo que para com as diretrizes constitucionais.
A amarração constitucional da excepcionalidade do aprisionamento foi bastante rígida, pois desenvolvida no campo das cláusulas pétreas, ou seja, de conteúdo não passível de reforma, o que fez com que a estratégia desenvolvida para flexibilizar a Lei Maior seja a de gerar exceções ao seu universo de aplicação, ainda que não tendo a coragem de assumir de maneira franca que o que se faz é a promoção de discurso defensor de quadros diferenciados, para em verdade afastar a incidência constitucional para um grande número de casos.
O mais evidente exemplo da política referida no parágrafo acima foi o que passou a ser adotado com relação aos crimes hediondos e aos a eles equiparados, em que se construiu um discurso muito semelhante ao inicialmente utilizado para o combate à heresia durante a inquisição e o combate aos anti-nacionais durante o nazi-fascismo, ou seja, que haveria um campo diferenciado nas hipóteses delitivas tratadas como hediondas ou equiparados, o que faria surgir diversa interpretação com relação ao sistema de penas, ao desenvolvimento processual e aos mecanismos cautelares, entre os quais se insere a prisão processual.
Claro que a inicial descrição de crimes tidos como hediondos e equiparados sofreu continuo aumento, em processo interminável de inclusão de novas figuras típicas no catálogo inicial previsto.
Interessa observar que durante a inquisição não foi diferente, primeiro foram criadas as regras de exceção para combater a heresia cátara. Assassinados os cátaros, novas figuras de heresia foram concebidas, até que quase tudo passou a ser considerado prática herética, incrementando consideravelmente o poder dos que controlavam o sistema. No nazi-fascismo, as pessoas consideradas anti-nacionais também foram continuamente aumentadas, da inicial previsão de que elas seriam os membros ou simpatizantes do partido social-democrata, para, ao término do regime, o universo de possibilidades ter aumentado consideravelmente para incluir, por exemplo, muçulmanos, eslavos, ciganos, negros, deficientes físicos, deficientes mentais, entre vários outros que passaram a ser catalogados como anti-nacionais.
O que há na atualidade é apenas uma repetição da estratégia histórica de dominação, ou seja, a criação de campos excepcionais, que começam a admitir desrespeitos aos direitos e garantias, para, no momento seguinte, ampliar o campo excepcional até que ele se torne a regra.
Importante decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, no dia de 22 março de 2010, mais que resolver o caso concreto a que se refere, reforça sonoro alerta que vem sendo reiteradamente manifestado para toda a sociedade e para a Magistratura em especial.
Na análise do Habeas Corpus 101.357, originário do Estado de São Paulo, foi concedida liminar a acusado de homicídio qualificado, detido preventivamente e que aguardava há anos a oportunidade de ser julgado pelo Tribunal do Júri.
Todas as instâncias anteriores, no que se insere inclusive o Superior Tribunal de Justiça, haviam negado o pleito liberatório ao argumento bastante utilizado de que os prazos para a prisão processual devem ser analisados com razoabilidade, comportando flexibilização, notoriamente diante da hipótese versada de crime hediondo.
O Relator, Ministro Celso de Melo, ao analisar a questão, rechaçou de forma serena a argumentação acima, reafirmando que a acusação por crime hediondo não retira a condição humana da pessoa, portanto não sendo possível negar-lhe os direitos e garantias estampados no texto constitucional.
A esse respeito, a decisão em comento destacou a dignidade humana, prevista no artigo 1º, da Lei Maior, como valor-fonte, ou seja, como valor do qual deve confluir toda interpretação do sistema jurídico.
Por certo a submissão de pessoa à prisão processual sem que sejam observadas as hipóteses excepcionais em que ela se admite ou os prazos definidos em lei para o final julgamento de quem se encontra cerceado de sua liberdade, independente da natureza da infração sobre a qual recai a acusação conflita com a dignidade humana.
Nesse sentido há importante precedente do pleno do Supremo Tribunal Federal em que pode ler:
“O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.
- Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.
- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.
- A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.
- O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.”
(RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
Assim é que a Corte Constitucional tem reafirmado que manter alguém preso processualmente por prazo acima dos limites razoáveis da lei, choca-se com o “valor-fonte” da estrutura constitucional brasileira, ou seja, agride a dignidade da pessoa humana e não pode ser aceito pela sociedade de um País democrático, menos ainda ratificado pelo Poder Judiciário.
Lembre-se que a não admissão do abuso prisional estende-se a toda e qualquer acusação, inclusive a de crimes hediondos ou com eles equiparados, não havendo, portanto, qualquer justificativa para a flexibilização dos comandos constitucionais em razão da acusação contra a pessoa ser por um ou outro delito.
Com efeito, a decretação ou manutenção da custódia prisional processual depende necessariamente da existência de fortes razões, de que livre o acusado represente concretamente prejuízo para o processo.
Não é suficiente a presença de repulsa social para com o fato do qual a pessoa é acusada, ou que ele esteja inserido em catálogo legislativo de hipóteses tidas como mais graves, posto que justamente com lastros nestas premissas surge a atual política de “prisionalização processual” no Brasil e que é confrontante com a Carta Maior, representando perigosa autorização para o incremento da intervenção do Estado sobre as liberdades individuais.
É de BECCARIA a lembrança que se deve ter nos momentos em que o pânico social conduz ao desejo cego de incremento excessivo do poder estatal, quando em seu Dei delliti e delle pene afirma: “não existe liberdade onde as leis permitem que, em determinadas circunstâncias, o homem deixe de ser pessoa e se converta em coisa.”
A liberdade dos cidadãos é predicado inafastável da estrutura democrática de Estado, portanto, a ninguém pode ser negada a condição humana e exacerbar na prisão processual é fazê-lo e, em última análise, representa abdicar dos atributos democráticos essenciais, portanto trilhar os caminhos tortuosos que sempre conduziram ao mesmo destino: a implementação do Estado autoritário.
Advogado em Curitiba (PR). Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes instituições de ensino superior. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador Geral do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TASSE, Adel El. Inaceitabilidade da manutenção da prisão processual por prazo excessivo em crimes hediondos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr 2010, 00:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/577/inaceitabilidade-da-manutencao-da-prisao-processual-por-prazo-excessivo-em-crimes-hediondos. Acesso em: 26 dez 2024.
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