São comuns os pleitos de restituição do ICMS formulados por consumidores finais ou tomadores de serviços, com cujo ônus alegam haver suportado, incorporado que teria sido ao custo da mercadoria adquirida ou ao valor do serviço prestado.
Em ações dessa natureza avulta de importância a correta identificação da parte processualmente ativa para ação, tema que se inscreve no elenco dos pressupostos para o provimento sobre o mérito, que ao juiz, em qualquer grau de jurisdição, cumpre conhecer espontaneamente e cuja presença cabe-lhe preliminarmente sindicar (REsp 808.536), visto que a inobservância dos requisitos que neles se expressam compromete o próprio exercício da jurisdição, segundo autorizadas manifestações doutrinárias.
E não é de estranhar que assim seja, pois, segundo a dogmática processual, parte na relação jurídica controvertida (res in judicium deducta) corresponde a uma situação de direito material - na medida em que de direito material é a pretensão que constitui objeto do processo. Disso decorre que, dada a estreita conexidade existente entre os conceitos de parte legítima e parte de direito material, somente têm legitimidade ativa e passiva para a causa aquelas mesmas pessoas que sejam titulares da relação jurídica substancial posta como objeto do juízo (Cândido Rangel Dinamarco, “Litisconsórcio” - Malheiros Editores - 3a. edição pág. 25).
É que o direito processual civil apresenta sensível vocação para a solução de situações jurídicas intersubjetivas, tendência essa que se evidencia pela tradicional exigência de que o interesse de agir seja pessoal e direto em relação a “ei qui agit” e, bem assim, que a legitimação para a causa derive da coincidência entre a titularidade da pretensão de direito material e a pessoa que a pretende fazer valer, através do exercício do direito de ação, observa o ilustre processualista.
Pois bem. Para a Teoria Geral do Direito, a relação jurídica é definida como o vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação (Paulo de Barros Carvalho, “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, 4ª edição, p. 190).
Na seara tributária, a relação jurídica estabelece-se, em face do que resulta da leitura conjunta dos artigos 119 e 121, ambos do CTN, entre a entidade política competente para instituir e exigir o tributo e a pessoa que, por manter relação direta com o respectivo fato gerador, está obrigada a seu pagamento.
Isso significa que a obrigação de pagar o tributo nasce com o surgimento do fato descrito na lei tributária como idôneo para determinar o vínculo tributário. Ocorrendo, então, o fato gerador, há incidência do tributo ou da regra jurídica sobre o fato, desencadeando-se, como efeito típico, o surgimento da obrigação tributária para uma pessoa determinada, pois a relação entre o fato gerador e a pessoa determina o vínculo da obrigação a seu sujeito passivo.
Contribuinte do ICMS, a seu turno, segundo a lei complementar a quem a Constituição confiou a uniforme disciplina do imposto, é, então, a pessoa que realiza operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (LC 87/96, art. 4º), isto é, a pessoa que realiza o pressuposto da incidência tributária.
Eis porque, no campo da relação jurídico-tributária, a obrigação nasce, desenvolve-se e extingue-se, não pelo modo que os particulares tenham determinado, mas pela forma que a lei tenha disposto, tenha regulado, vale dizer, a obrigação tributária é uma obrigação “ex lege”: nasce entre dois sujeitos e extingue-se com seu cumprimento, ou por uma das hipóteses do artigo 156 do CTN.
A pessoa escolhida pelo legislador para figurar no pólo passivo da relação tributária, o devedor do tributo, é, pois, o contribuinte legal, ou contribuinte de direito (de jure).
Entretanto, nem sempre, sob o ponto de vista financeiro, o sujeito passivo é gravado, definitivamente, pelo tributo, por resultado da repercussão econômica, que, segundo Souto Maior Borges, “processa-se geralmente através dos mecanismos de formação de preços, aos quais se incorpora a parcela correspondente ao tributo, nas diversas etapas dos ciclos de produção, industrialização e comercialização do bem” (in “Teoria Geral da Isenção Tributária”, Malheiros, 3ª edição, 2ª tiragem, p. 185 e seguintes). A repercussão ou translação é, portanto, a transferência do ônus tributário do contribuinte de direito (de jure) para o contribuinte de fato (de facto).
Há que se distinguir, então, segundo Souto Maior Borges, a incidência jurídica da incidência econômica:
"A incidência jurídica do tributo pressupõe a inclusão de determinado fato no campo da regra jurídica da tributação. Ocorrendo o fato gerador, há incidência do tributo ou da regra jurídica sobre o fato e, pois, desencadeia-se como efeito típico o surgimento da obrigação tributária para uma pessoa determinada".
“O conceito de incidência jurídica corresponde a uma vinculação jurídica entre o sujeito ativo e o sujeito passivo da obrigação tributária: é a sujeição, de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, ou pessoa física, à obrigação de prestar o tributo, por encontrar-se na situação legalmente prevista como necessária e suficiente para a formação do vínculo obrigacional tributário”.
Entretanto,
...”Economicamente, a carga tributária pode ser suportada por pessoa distinta do contribuinte de direito. A incidência econômica do tributo é sobre a pessoa que suporta em definitivo o ônus monetário. O contribuinte percutido pode eventualmente suportar em definitivo a incidência econômica do tributo. Mas, pode acontecer que o contribuinte percutido faça repercutir a carga tributária sobre outrem. (...)
“Nas diversas fases do processo de repercussão econômica do tributo, haverá um momento em que, esgotadas as possibilidades de translação, a carga tributária recairá sobre alguém. A este momento, corresponde a incidência econômica do tributo. O patrimônio ou a renda desse alguém estará definitivamente submetido ao ônus fiscal. O fenômeno da incidência econômica do tributo é um problema afeto à economia financeira”.
As noções de incidência jurídica e incidência econômica dos tributos correspondem, então, a conceitos inconfundíveis.
Nessas circunstâncias, em tema de tributos que comportam a transferência do respectivo encargo financeiro, denominados indiretos, assume especial relevância jurídica a correta identificação do sujeito passivo da obrigação tributária, uma vez que o direito tributário somente se interessa pelo contribuinte de jure, pessoa que a lei escolhe para suportar na ordem jurídica o ônus do tributo.
E assim é, efetivamente, pois basta ver que, do consumidor, nada exige a lei, porque ausente o indispensável vínculo jurídico. Sendo assim, a obrigação de pagar o imposto devido, à ocorrência do fato gerador, faz de quem realiza o fato gerador o único sujeito ativo do correspondente direito de postular a restituição do que pagou indevidamente. Desde que o contribuinte, pólo passivo dessa relação, cumpre a sua obrigação, de modo satisfatório, extingue-se a relação jurídico-tributária.
O tributo é o objeto da prestação jurídica e, uma vez satisfeita a prestação, a relação jurídica tributária se extingue. O que acontece depois, por desdobramento do cumprimento da obrigação que dava consistência material ao imposto, acontece em momento posterior e em outra relação jurídica, esta de natureza comercial, privada, portanto.
Evidenciado, então, que o translado do encargo financeiro, no primeiro momento suportado pelo solvens, é posterior ao cumprimento da prestação imposta pela lei, consubstanciam-se, então, diferentes relações jurídicas, uma tributária, pública, portanto; outra, privada, resultante da incorporação, ao valor do negócio jurídico celebrado ou do serviço prestado, dos custos e despesas incorridos, inclusive fiscais.
Ainda que o contribuinte do imposto transfira-lhe o respectivo encargo, que o consumidor supõe indevido na origem, nem por isso estará legitimado a acionar o sujeito ativo da obrigação, satisfeita que foi por outrem, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, pois, a quem se impõe a obrigação do pagamento, defere-se o poder de exigir, correspondentemente, sua restituição, quando a exigência fiscal se mostre ao desamparo da lei.
A seu turno, sujeito ativo e credor da prestação, recebedor do pagamento extintivo da obrigação tributária, o Estado é quem responde pelo que foi pago indevidamente, tornando-se, por uma inversão dos pólos da relação jurídica, o sujeito passivo da pretensão do pagante em repetir o indébito.
Com efeito, o poder de criar a obrigação tributária e o poder-dever de exigir sua satisfação, à ocorrência do fato gerador, fazem da entidade política competente para instituir o imposto o primeiro, senão o único, sujeito passivo da correspondente obrigação de restituir, se existente esta. Seu o ato, dela, obviamente, o ônus da demanda.
Nessa linha de raciocínio, registra Zelmo Denari que existe uma relação jurídica tributária de índole publicística, que se instaura entre fisco e contribuinte, com vistas à realização do crédito e da respectiva obrigação tributária. Mas há, por outro lado, uma relação jurídica que se trava entre contribuinte e consumidor. De fato, a aquisição da mercadoria é ato de compra e venda mercantil e a relação jurídica dela decorrente tem caráter privatístico (“Repetição de Indébito”, in Cadernos de Direito Tributário, nº 8, ERT, 1983).
“Bem observado, o consumidor – quer se trate de simples particular ou operador econômico – é um tertius estranho à relação jurídica tributária que instaura entre fisco e contribuinte, mas, de todo modo, partícipe de uma relação jurídica distinta da relação de direito público”, anota.
Por conseguinte, pretensão visando afastar a incidência do imposto só pode ser deduzida pelo sujeito passivo da obrigação e não pelo consumidor, que, alheio à relação que vincula o sujeito ativo da obrigação a quem é dela devedora, não exibe legitimidade ativa ad causam e nem interesse jurídico a ser tutelado.
Não obstante, não se pode ignorar a existência de inúmeras decisões, oriundas exatamente do órgão jurisdicional a quem a Constituição confiou a aplicação do direito federal – e que tem informado as decisões dos tribunais inferiores - no sentido de que, em se tratando de uma operação relativa ao fornecimento de energia elétrica, a concessionária apenas repassa à Fazenda Pública o numerário obtido, razão pela qual, “nas ações que versam sobre a contratação de energia elétrica sob a sistemática de demanda reservada de potência, o consumidor final é o sujeito passivo da obrigação tributária, na condição de contribuinte de direito e, ao mesmo tempo, de contribuinte de fato; portanto, é parte legítima para demandar visando à inexigibilidade do ICMS” (AgRg no REsp 857.543, Relator Min. Francisco Falcão; REsp 809.753, Relator Min. Teori Albino Zavascki; REsp 806.467, Relator Min. Luiz Fux e EREsp 279.491, Relator Min. Peçanha Martins, inter plures).
Esse entendimento, pelo que se infere dos votos condutores dos acórdãos em que externado, formou-se a partir do magistério de prestigiada doutrina, segundo a qual a distribuidora de energia elétrica não pode ser equiparada a um comerciante atacadista, que revende ao varejista ou, mesmo, para o consumidor final, mercadorias de seu estoque, pois a energia elétrica não pode ser estocada, para ulterior revenda aos possíveis interessados.
Segundo quem assim pensa, a distribuidora, ao entregar a energia elétrica a seu adquirente, assume a condição de mera responsável pelo recolhimento do ICMS, devido por este último, porque, a rigor, não pratica qualquer operação mercantil, mas apenas a viabiliza, uma vez que se limita a interligar a fonte produtora ao consumidor final. O fato gerador somente ocorreria, então, com o consumo efetivo da energia elétrica, sendo o consumidor final o sujeito passivo da obrigação tributária, na condição de contribuinte de direito e, ao mesmo tempo, de contribuinte de fato.
E, “na medida em que o sujeito passivo (contribuinte de direito) é o consumidor final da energia elétrica, segue-se, por imperativo lógico, que, se este for imune à tributação, dele não poderá ser cobrado o ICMS, salvo na hipótese do art. 150, § 3º” (cfr. Roque Antonio Carrazza, “ICMS”, Malheiros, 7ª edição, p. 180).
Entretanto, não parece que assim seja.
Com efeito, contribuinte é quem realiza o pressuposto da incidência, no caso, a fornecedora da energia elétrica e não o consumidor, sendo certo, ademais, que, segundo Ulhôa Canto, (in “Direito Tributário Aplicado, Pareceres”, Forense Universitária, pág. 110/129), face às peculiaridades de que se reveste a operação de circulação da energia elétrica, somente sua distribuição se revela materialmente adequada para subsumir-se ao fato gerador do ICMS, que se aperfeiçoa, à vista do que dispõe o art. 116, do CTN, com sua entrega no ponto de conexão da rede elétrica da unidade consumidora com o sistema elétrico de distribuição, tal como definido pela agência reguladora.
A leitura dos artigos 34, § 9º, do ADCT, 8º, I, 9º, 1º, II, e 13, I e § 1º, II, “a” e “b”, todos da LC 87/96, revela que o valor da operação realizada pela distribuidora, que é a base de cálculo do ICMS – cumule ela ou não a condição de contribuinte com a de responsável tributário pelas operações antecedentes - deve compreender também o valor agregado em todas as etapas anteriores, pois, todas as operações com energia elétrica são fatos geradores do ICMS, mesmo que, por razões de praticidade, a cobrança se dirija apenas contra um dos agentes envolvidos em sua circulação (Sacha Calmon N. Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi, in “Pareceres – Direito Tributário da Energia”, Forense, 2004, p. 175). A energia consumida é apenas um componente da expressão financeira da materialidade da hipótese de incidência do imposto.
Portanto, a distribuidora, quando fornece ou simplesmente transporta a energia elétrica, é, sim, sujeito passivo da obrigação tributária, mas por débito próprio e não substituto tributário do consumidor; à sua custa e por conta própria, é o imposto por ela recolhido, comprova-o a nota fiscal/fatura, em que ela debita-se do ICMS devido pela operação ou pela prestação do serviço, não obstante não seja a produtora da energia elétrica por ela fornecida ou transportada. Nesse sentido, aliás, é o magistério dos ilustres juristas:
“Se cada uma das sucessivas operações é fato gerador, é claro que será contribuinte de direito o respectivo promotor, malgrado a constatação de que o ônus financeiro do tributo é integralmente transferido para o consumidor final. A circunstância não é exclusiva para o setor de energia elétrica, e é a própria razão de ser da distinção entre o contribuinte de direito (aquele que responde perante o Estado) e o contribuinte de fato (aquele que arca com o peso do tributo). Contribuintes de direito do ICMS são as pessoas definidas no art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, dentre as quais não comparece o consumidor final da energia elétrica” (ob. cit., p. 176).
Por outro lado, mesmo quando o consumidor é uma entidade pública, nem por isso está a operação amparada pela imunidade tributária, precisamente porque, como se verá, não sendo o contribuinte de jure do ICMS, o imposto é devido por outrem, pela distribuidora, e não por ela, não obstante possa vir a amargar o ônus que lhe foi trasladado.
Aliás, a única hipótese em que o consumidor da energia elétrica figura como contribuinte do ICMS dá-se quando a energia é por ele adquirida, para consumo próprio, em operação interestadual (LC nº 87/96, art. 4º, IV), hipótese em que o imposto é devido quando de sua entrada no território do Estado (LC 87/96, art. 2º, § 1º, III), com o que se criou um saudável mecanismo fiscal distributivo de rendas, pois possibilita a transferência de receitas públicas das unidades federativas produtoras e exportadoras para as consumidoras do produto. Estabeleceu a Constituição, em suma, o princípio da tributação no destino, vale dizer, o tributo que poderia ser arrecadado na origem, passou a ser arrecadado no destino. Tal é a exegese que se deve extrair do art. 155, § 2º, X, “b”, da Constituição Federal, segundo decidiu o Pleno do STF (RE nº 198.088/SP, Relator Min. Ilmar Galvão).
É bem de ver que o entendimento que se reputa incorreto rompe, ademais, com toda dogmática jurídica construída em torno do tema e com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando ainda competente para dizer por último sobre a aplicação do direito federal - embora não se tenha conhecimento de qualquer alteração introduzida na legislação aplicável.
Com efeito, segundo o STF, a relação jurídica de natureza tributária estabelece-se, apenas, entre o Poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando a repercussão econômica do imposto:
“Imposto de consumo. Não há imunidade do antigo imposto de consumo sobre produto vendido a pessoa jurídica de direito público, embora para seu próprio uso, eis que a relação tributária se estabelece, apenas, entre o poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando, para efeito de imunidade ou de isenção, a repercussão econômica do tributo. Precedentes, na jurisprudência do Supremo Tribunal, a partir dos embargos no RE 68.215, de 9.9.1970, Recurso Extraordinário conhecido e provido” (RE-72862/SP, Relator Min. Eloy da Rocha).
Em casos tais, “Não é possível opor a realidade econômica à formula jurídica para excluir uma obrigação fiscal precisamente definida em lei. O contribuinte de fato é estranho à relação tributária e não pode, alegar, a seu favor, a imunidade recíproca” (RE 71.300 - SP - Relator Min. Bilac Pinto). Nesse sentido é uníssona a jurisprudência daquela Corte (RE 114.977; RE 161.384; RE 113.149; RE 105.486/MG; RE 104.504/MG; RE 68.924; RE 67.814; RE 68.741 e RE 78.623, inter plures).
Por guardar estreita relação com a matéria examinada, não custa lembrar que, em tema de imunidade tributária, existe unanimidade de entendimento no âmbito de ambos os tribunais de sobreposição no sentido de que, sendo a concessionária do serviço o contribuinte de direito do ICMS, ao município e à entidade de assistência social, como consumidores ou tomadores do serviço, contribuintes de fato, portanto, faltaria até mesmo legitimidade ativa ad causam para postular o direito de fruição da imunidade tributária na aquisição de energia elétrica ou no uso do serviço de comunicação, dado tratar-se precisamente de consumidores finais, que, por isso mesmo, dela não se beneficiam (AI-AgR 671.412 Relator Min. Eros Grau; RE 255.673, Relator Min. Marco Aurélio; AC-MC 457, Relator Min. Carlos Britto; AI 488132, Relator Min. Marco Aurélio; AgRg no REsp 1.065.172, Relator Min. Francisco Falcão; RMS 19711, Relator Min. Humberto Martins; REsp 1000557, Relator Min. Castro Meira; RMS nº 7.044, Relator Min. Francisco Falcão e REsp 1033523, Relator Ministro Humberto Martins e RMS 26578, Relator Min. José Delgado).
Diversamente, se a entidade de assistência social realiza o pressuposto da incidência tributária, hipótese em que então poderia assumir, em tese, a condição de contribuinte de direito, goza de imunidade na produção de bens ou prestação de serviços, pois, aí sim, o imposto estaria incidindo realmente sobre seu patrimônio (RE 193.969, Relator Min. Carlos Velloso; Emb. Div. nos EDcl. no RE 186.175, Relatora Min. Ellen Gracie; AgRg no RE 225.571, Relator Min. Carlos Velloso; AgRg no RE 452.031, Relator Min. Sepúlveda Pertence e AgRg no RE 141.670, Relator Min. Nelson Jobim).
Não existe, então, razão aparente para o tratamento diferenciado que a jurisprudência do STJ dispensa às duas situações, em tudo e por tudo idênticas, à ótica jurídica.
Mostra-se, pois, de duvidosa procedência a jurisprudência que afirma a legitimidade ativa do consumidor final para acionar diretamente a Fazenda Pública em razão de um imposto que, seguramente, foi pago por terceiro pelas operações com ele realizadas, nas quais, decididamente, o adquirente da mercadoria não figurou como contribuinte de direito, como já teve oportunidade de decidir o Min. Moreira Alves (RE 113.149).
O terceiro – adquirente da mercadoria ou tomador do serviço – só paga “preço”, nunca tributo devido, pois a responsabilidade pelo pagamento do imposto, como obrigação própria, ainda que indevido, é sempre do sujeito passivo, nunca do consumidor final.
Embora a figura do consumidor não interesse ao direito tributário, o art. 166, do CTN, requisita sua participação, mas tão só, para a outorga de autorização para a repetição do indébito, na hipótese do contribuinte não comprovar ter absorvido em definitivo o ônus com o pagamento do imposto, pois, em desfavor deste último, milita a presunção, juris tantum, de transferência do respectivo encargo – essa é a regra do mercado.
Com isso, procurou o legislador evitar o locupletamento ilícito do postulante da repetição, “mas, de qualquer maneira, o relacionamento entre o contribuinte de direito e o contribuinte econômico sobre quem o tributo foi repercutido nada tem a ver com o direito tributário” (Gilberto de Ulhôa Canto, “Repetição de Indébito”, in Cadernos de Direito Tributário, nº 8, ERT, 1983).
Com efeito, se o art. 165, do CTN, confere ao sujeito passivo da obrigação tributária – e somente a ele – legitimidade ativa para o exercício da repetição contra o fisco, não se deve acolher exegese que partilhe essa legitimidade com pessoa não qualificada como sujeito passivo da obrigação tributária, embora não há como recusar-lhe legitimidade para, sob certas condições, exercitar a actio in rem verso contra o contribuinte, no âmbito de uma relação jurídica de direito privado, como observa Zelmo Denari (ob. cit.).
De resto, o fato de o solvens transferir o ônus financeiro do tributo não o exclui do pólo ativo da ação, única parte legítima que é, razão pela qual, provando em juízo ter assumido o encargo, ou, em caso contrário, estar autorizado a fazê-lo por aquele a quem transladou o respectivo ônus, estará atuando em defesa de um direito próprio e não de outrem.
Isso se deve a que, como a ação de repetição de indébito assume inequívoca feição condenatória, para que seja criado o título executivo judicial, há necessidade de que, no processo de conhecimento, o ilícito seja incidentalmente reconhecido e declarado.
A solução do problema da legitimação para agir na ação de repetição do indébito passa, então, pela definição legal, não só de quem figure como sujeito passivo de obrigação tributária posta em causa, como também pela adequada interpretação que se empreste ao art. 166 do Código Tributário Nacional.
Afasta-se, na forma exposta, qualquer dificuldade na solução correta para o tema da legitimação para agir na ação de repetição de indébito tributário, quando o objeto da ação é um imposto que comporta a transferência do respectivo encargo financeiro.
Prestigiando a tradicional orientação fixada em torno do tema e afastando-se da equivocada orientação hoje ainda predominante, acórdão recentemente tomado no REsp nº 983.814/MG, com inegável acerto, assim decidiu:
“RECURSO ESPECIAL. PROCESSO TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO. ICMS. TRIBUTO INDIRETO. CONSUMIDOR. "CONTRIBUINTE DE FATO". ILEGITIMIDADE ATIVA. APELO PROVIDO.
1. Os consumidores de energia elétrica, de serviços de telecomunicação e os adquirentes de bens não possuem legitimidade ativa para pleitear a repetição de eventual indébito tributário do ICMS incidente sobre essas operações.
2. A caracterização do chamado contribuinte de fato presta-se unicamente para impor uma condição à repetição de indébito pleiteada pelo contribuinte de direito, que repassa o ônus financeiro do tributo cujo fato gerador tenha realizado (art. 166 do CTN), mas não concede legitimidade ad causam para os consumidores ingressarem em juízo com vistas a discutir determinada relação jurídica da qual não façam parte.
3. Os contribuintes da exação são aqueles que colocam o produto em circulação ou prestam o serviço, concretizando, assim, a hipótese de incidência legalmente prevista.
4. Nos termos da Constituição e da LC 86/97, o consumo não é fato gerador do ICMS.
5. Declarada a ilegitimidade ativa dos consumidores para pleitear a repetição do ICMS.
6. Recurso especial provido”.
No julgamento, assentou a 2ª Turma do STJ, como já o fizera em outras oportunidades, que os consumidores de energia elétrica não possuem legitimidade ativa para pleitear a repetição de eventual indébito tributário do ICMS incidente sobre essas operações, pois contribuinte da exação é aquele que coloca o produto em circulação, ou quem presta o serviço oneroso de comunicação - vale dizer - a concessionária, que, num e noutro caso, concretiza a hipótese de incidência legalmente prevista.
“O contribuinte de fato - disse-o o voto condutor do acórdão - não pratica o fato gerador, não faz parte da relação jurídico-tributária que se estabelece com o Estado e, na verdade, nada tem de contribuinte, no sentido técnico da palavra e único que deveria ser utilizado”.
O substancioso voto proferido pelo eminente Min. Castro Meira, depois de transcrever manifestações doutrinárias da melhor expressão, deixou consignado:
“Os contribuintes do ICMS incidente sobre as operações com energia elétrica e sobre os serviços de comunicação são as respectivas concessionárias, que destacam o valor do imposto na emissão da nota fiscal. As autoras não participam da cadeia de circulação da energia elétrica ou dos serviços de comunicação. Apresentam-se única e exclusivamente como consumidoras finais. (...)
Fato incontroverso é que as autoras não concretizam a hipótese de incidência do ICMS. (...)
Arcando com o ônus financeiro do tributo na condição de consumidoras, as associações autoras não possuem legitimidade para repetir a exação a respeito da qual não são obrigadas a recolher para os cofres do Fisco, não se encontrando, por isso, na condição de contribuinte nem de responsável tributário, nos termos do art. 121 do CTN. (...)
Quem ocupa o lugar de sujeito passivo da obrigação – realizando a circulação de mercadorias e a prestação de serviços de comunicação e, por isso mesmo, podendo vir a ser executadas pelo não-recolhimento do tributo – são as concessionárias de energia e de telefonia, bem como aqueles que vendem os bens para o ativo fixo das autoras”.
Ainda recentemente, essa decisão foi invocada, embora obter dictum, nas razões de decidir os EDcl no RMS nº 21742, de que foi Relator o Min. Luiz Fux. No mesmo sentido, colhem-se as decisões tomadas no REsp nº 279.491, Relator o Min. Peçanha Martins e no RMS nº 19.921, Relator Min. Castro Meira, entre outros.
Incidência jurídica e incidência econômica do imposto são, portanto, fenômenos inconfundíveis, acarretando conseqüências jurídicas distintas, mas “infelizmente – e a advertência é de Souto Maior Borges - essas noções nem sempre foram estudadas pela doutrina (e nem pelos tribunais, pelo visto) com a necessária clareza, mesclando-se não raro conceitos econômicos e jurídicos, com o que se incorre numa indistinção conceitual danosa para o progresso do direito tributário”.
Por isso, a contaminação dos conceitos do direito tributário com os princípios que informam as ciências das finanças vem incrementando imprecisões terminológicas e conceituais, comprometendo, como afirmado, toda a dogmática construída em torno do tema, em prejuízo, ademais, de uma correta prestação jurisdicional, bastando ver que a orientação jurisprudencial predominante parece não se conformar com expressa e específica disposição legal, inscrita no art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, editada que foi para conferir especificidade à generalidade do enunciado do art. 121, do Código Tributário Nacional, lei complementar a quem a Constituição incumbiu de baixar normas gerais em matéria de legislação tributaria (CF, art. 146, III, “a”, in fine).
Não ostentando, então, o consumidor a condição de contribuinte – status jurídico esse que lhe negou o direito material - visto que reservada à empresa concessionária da energia elétrica, e em se julgando procedente a ação, da decisão proferida adviria um quadro curioso: afastada a exigência do ICMS, a concessionária, conquanto contribuinte do imposto devido pelo fornecimento da energia elétrica e obrigada a seu recolhimento - e terceiro em relação à lide - passaria, não obstante, a usufruir o direito postulado por outrem, forrando-se, por arrastamento, do pagamento do tributo, embora a sentença não possa beneficiar ou prejudicar quem não seja parte no processo (CPC, art. 472).
Decididamente, ao consumidor final, alheio à relação jurídica substancial e por não exibir a condição de pessoa legitimada para a ação, não é dado postular, em nome próprio, direito alheio, visto que, em caso afirmativo, estará atuando ao arrepio da vedação posta pelo art. 6º, do CPC.
Quando, então, na experiência concreta, figura no processo algum sujeito a quem falta a “legitimatio ad causam”, a conseqüência, em face do dever-ser inobservado, é a pronúncia de carência de ação (Dinamarco).
Finalmente, como a definição do contribuinte do ICMS constitui matéria sob reserva legal (CF, art. 155, § 2º, XII, “a”), provimento que afirme a legitimidade ad causam do terceiro encontra limitação absoluta no dogma constitucional da separação dos Poderes, uma vez que equivale a conferir ao órgão jurisdicional, desvestido da função legislativa, poderes que a própria Constituição negou-se a outorgar-lhe, segundo o magistério jurisprudencial, externado em contexto substancialmente idêntico, pelo eminente Min. Celso de Mello.
Por conseguinte, deve ser vista com reserva, do ponto de vista doutrinário, a orientação jurisprudencial atualmente predominante, não obstante a autoridade do órgão jurisdicional de que provém.
Procurador do Estado (MG). Ex-Procurador-Geral da Fazenda Estadual (MG)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIRANDA, José Benedito. Repetição de indébito tributário - legitimidade ativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2008, 21:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/15192/repeticao-de-indebito-tributario-legitimidade-ativa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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