A Constituição da República Federativa do Brasil assegura, como princípio do Estado Democrático de Direito, a separação entre os poderes constituídos, a fim de que não haja abusos por parte de um Poder em relação aos cidadãos, proibindo a interferência de um poder em outro, como já observava, há muito, Montesquieu, em sua obra “Do Espírito das Leis”. Tal princípio, em resumo, assim pode ser definido:
“O Poder Público, no cumprimento do dever-poder de fazer atuar o Estado, concretiza sua atuação por meio de atos administrativos, legislativos e jurisdicionais, conforme as funções próprias de cada poder constituído. Compete, precipuamente, ao Poder Legislativo criar as leis, ao Poder Executivo executar os mandamentos normativos, e ao Poder Judiciário julgar a legitimidade das atuações legislativa e executiva, invalidando o que for destoante do ordenamento jurídico”.¹
Não é possível ao Judiciário rever o mérito, o conteúdo de um ato administrativo, no que diz respeito à conveniência e oportunidade, registrando-se que alguns admitem a revisão, quando haja afronta aos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade, observada ainda a regra da Reserva do Possível (mas essa amplitude ainda não encontra respaldo que a conforte em análise com a doutrina clássica e majoritária). A avaliação do mérito do ato administrativo (conveniência e oportunidade) é privativa do administrador público. Entretanto, o Poder Judiciário pode examinar o ato administrativo quanto ao seu aspecto de legalidade e se há obediências às normas e princípios constitucionais.
Nesta esteira está o ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho:
“O que é vedado ao Judiciário, como corretamente têm decidido os Tribunais, é apreciar o que se denomina normalmente de mérito administrativo, vale dizer, a ele é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e oportunidade dos atos, que são privativos do administrador público. Já tivemos a oportunidade de destacar que, a se admitir essa reavaliação, estar-se-ia possibilitando que o juiz exercesse também função administrativa, o que não corresponde obviamente à sua competência. Além do mais a invasão de atribuições é vedada na Constituição em face do sistema de Tripartição dos Poderes (art. 2º)” ²
O Judiciário não pode adentrar no exame do conteúdo do mérito administrativo, analisando se uma decisão administrativa está certa ou errada.
No caso, como o Judiciário pode e deve fazer avaliações quanto à legalidade do ato administrativo, pode considerar, por exemplo, se a questão dada em prova de concurso está dentro dos limites impostos no conteúdo programático constante do edital.
Nessa linha de raciocínio, o Superior Tribunal de Justiça- STJ- decidiu recentemente no RMS 19.353- RS (Informativo nº 311). Confirmou a posição que os atos discricionários da banca examinadora de concurso público para provimento de cargos só podem ser analisados pelo Judiciário nos limites das regras constantes do edital e do Princípio da Legalidade. Entendendo ainda que o mérito de avaliar a nulidade de questões formuladas foge ao controle judicial.
“CONCURSO PÚBLICO. LEGALIDADE. VINCULAÇÃO. EDITAL. PODER JUDICIÁRIO. LIMITES.
A Turma reiterou seu entendimento de que o exame pelo Judiciário dos atos discricionários de banca examinadora de concursos públicos limita-se aos princípios da legalidade e da vinculação das normas do edital. Tratando-se de pretensão visando à nulidade de questões formuladas na prova preliminar objetivaRMS 19.353-RS, Rel. Min. Denise Arruda, julgado em 28/2/2007. (eliminatória) aplicada no certame para ingresso no serviço de notários e registradores, tal mérito escapa ao controle judicial, verificada a observação dos requisitos pela banca examinadora, para fins de alteração da aferição de pontos. Precedentes citados do STF: RE 434.708-RS, DJ 9/9/2005; do STJ: RMS 19.043-GO, DJ 27/11/2006; AgRg no RMS 20.515-RS, DJ 21/8/2006, e RMS 19.304-MT, DJ 17/10/2005.
A idéia preponderante na atualidade é que o edital é a lei que rege o certame e há concordância com os seus termos no ato da inscrição pelo candidato. O Judiciário não fica excluído na apreciação de questões relacionadas a concurso público, sob pena de ofensa ao Princípio da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF), mas deve cingir-se a verificar se o edital estabelece regras ilegais ou inconstitucionais e se a comissão responsável pelo concurso atendeu às regras constantes do edital, já que é a lei a ser aplicada ao caso concreto.
Em obediência ao Princípio da Separação dos Poderes, o Poder Judiciário não pode substituir a Banca Examinadora, fazendo a correção de questões de provas ou mudando a pontuação estabelecida pela Banca/Comissão. Tal postura viria ainda a ferir o Princípio da Isonomia entre os candidatos, uma vez que normalmente a Banca/Comissão utiliza os mesmos critérios para a correção das provas de todos os candidatos e a análise da prova pelo Judiciário, em desatenção aos critérios até então estabelecidos, seria realizada apenas em relação a alguns candidatos, aqueles que provocaram o Poder Judiciário para essa apreciação.
A discricionariedade com que a Banca Examinadora avalia as provas dos candidatos, é matéria que não compete ao Poder Judiciário, não cabe, por ele, revisão da resposta do candidato quanto ao seu mérito, ao seu acerto ou erro.
De acordo com o que até agora foi exposto, também se mostra a linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal, como se percebe nos termos do julgado abaixo indicado:
“EMENTA: Concurso público: controle jurisdicional admissível, quando não se cuida de aferir da correção dos critérios da banca examinadora, na formulação das questões ou na avaliação das respostas, mas apenas de verificar que as questões formuladas não se continham no programa do certame, dado que o edital - nele incluído o programa - é a lei do concurso. Precedente (RE 434.708, 21.6.2005, Pertence, DJ 09.09.2005)”. (RE-AgR 526600/SP/SÃO PAULO RE-AgR526600 / SP - SÃO PAULOAG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 12/06/2007.Órgão Julgador: Primeira Turma)
De toda forma, a decisão dada em eventual Mandado de Segurança segue as regras gerais quanto à extensão dos efeitos subjetivos da coisa julgada, prevista no art. 472, do Código de Processo Civil, no entendimento de que a decisão judicial faz coisa julgada às partes envolvidas na relação processual onde a decisão foi proferida, não beneficiando nem prejudicando terceiros estranhos a essa relação processual, ainda que se trate de terceiros juridicamente interessados. Essa posição está em consonância com o Princípio da Demanda e da Inércia da Jurisdição, que deve ser provocada pela parte interessada.
Assim, a priori, a decisão dada no Mandado de Segurança impetrado por um candidato não surtirá efeitos em relação a outros candidatos que não questionaram a legalidade da questão cobrada.
Entretanto, deve-se registrar o entendimento, atendendo ao Princípio da Isonomia, de que o caso apresenta uma situação de litisconsórcio necessário em virtude da natureza da relação jurídica, em que eventuais decisões judiciais devem produzir efeitos sobre todos os sujeitos da relação jurídica, tornando indispensável a presença de todos no processo (Alexandre Freitas Câmara, Lições de Direito Processual Civil, Volume I; 2004, pg. 167) e também de litisconsórcio unitário , onde a decisão será uniforme a todos.
Nesta consideração, o magistrado deverá mandar citar os demais interessados para que integrem o processo na qualidade de litisconsortes, podendo, neste caso, serem afetados pelos efeitos da decisão.
Há de se registrar ainda a possibilidade de formação ulterior de litisconsórcio voluntário, embora haja doutrina que não o admite, uma vez que os intervenientes ulteriores estariam escolhendo o Juízo, em afronta ao Princípio do Juiz Natural, o que é mais comum ocorrer após a manifestação do juiz que defere a tutela, no sentido favorável a esses interessados que inicialmente não integravam o processo.
Notas:
¹ CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Algumas considerações acerca do controle jurisdicional do mérito administrativo . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 802, 13 set. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7258>.
² FILHO, José dos santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. Editora Lumen Juris. 14ª edição. Rio de Janeiro, 2005, pág. 809.
Servidora Pública do Poder Judiciário do Estado de Pernambuco, pós graduada pela UNISUL-Universidade do Sul de Santa Catarina, ex-advogada e professora do Acta-Curso preparatório para concursos<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Anna Paula de Freitas. Limites à revisão pelo Poder Judiciário de questões relativas a concurso público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2008, 14:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/16171/limites-a-revisao-pelo-poder-judiciario-de-questoes-relativas-a-concurso-publico. Acesso em: 26 dez 2024.
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