A qualidade do serviço público e o serviço público como opção de carreira
O serviço público se sustenta, basicamente, na qualidade de seus servidores. Os meios materiais, a legislação, os processos de gestão – tudo é secundário comparado ao potencial que os servidores em si possuem. Qualquer livro ensina isso: quem muda a realidade, quem executa materialmente as decisões do poder é, no final das contas, o homem. Um quadro de servidores competentes e dispostos, motivados e empenhados, é o maior patrimônio que pode ter a Administração Pública ou qualquer governo. Apenas bons servidores podem atender aos valores da eficiência, legalidade, impessoalidade e moralidade. Qualquer mudança no serviço público, na eliminação da imagem (e dos resultados) ruins que ainda temos, depende prioritariamente da qualidade dos servidores em atuação. Como já foi dito, é possível ter justiça com bons juízes e uma legislação ruim, mas, com juízes ruins, nem mesmo uma boa legislação garantirá justiça. O mesmo se pode dizer dos servidores, qualquer que seja o Poder onde atuem ou as funções desempenhadas.
A obtenção e manutenção de um bom quadro de servidores depende de inúmeras ações e políticas, sendo a seleção por concurso público apenas uma delas. Apenas uma, mas nem por isso menos crucial e basilar. Sem o concurso isto fica dramaticamente mais difícil, em especial em um país com a nossa cultura de compadrio, bondade com o chapéu alheio (da viúva, em geral) e leniência, nepotismo e fisiologismo. Apenas o concurso, contudo, não assegura muita coisa.
Ao concurso deve ser somada uma mais eficiente aplicação do estágio probatório. Mais que isso: devem ser aperfeiçoados os sistemas de eliminação dos quadros aqueles servidores que não se mostrem eficientes, educados, competentes. Sim, o concurso não existe para o benefício dos mais competentes, mas da população. Assim, um candidato muito capaz, inteligente, preparado, que não queira trabalhar corretamente, que não queira cumprir as funções que lhe competem, não deve permanecer no serviço público. Nesse passo, o resumo é simples: precisamos limpar nossos quadros, eliminando não apenas os corruptos e incompetentes, mas também os competentes preguiçosos.
O serviço público é bom “empregador” se comparado à iniciativa privada. Não faz sentido deixarmos de ter os melhores para atender ao interesse público. E os melhores não são os mais capazes, mas sim aqueles que apresentem a melhor equação entre capacidade, educação, honestidade e dedicação à causa pública. Se alguém não quer mais o cargo público, isso é um direito da pessoa que o está exercendo. E o direito, em contrapartida, da Administração é buscar outro cidadão que se entusiasme e satisfaça com o encargo e suas responsabilidades e vantagens.
Ao lado disso, vale acrescer que boa parte dos problemas dos servidores não acontece nem quando do concurso, nem ainda do estágio probatório. Boa parte dos vícios do servidor acontece depois, quando a estabilidade pode se transformar em acomodação, e quando as vantagens do serviço público ficam menos evidentes por já serem “patrimônio adquirido”. Nessas horas, pode ser que o servidor esqueça que fez uma opção; esqueça que pode mudar de opção, e queira manter as vantagens do serviço público e, com prejuízo dos seus deveres, buscar outros desafios. Nessa hora, cabe à Administração Pública formar, motivar, orientar mas, em último caso, demandar do servidor público uma conduta coerente com sua escolha ao fazer o concurso... ou, se não for o caso, eliminar dos quadros aquele que não atende ao que lhe cabe.
O lugar do exame psicotécnico nos concursos públicos
Assim como o concurso é um dos instrumentos da qualidade no serviço público, o exame psicotécnico é um dos instrumentos da qualidade do concurso público. Tanto o concurso, para o serviço público, quanto o psicotécnico, para o concurso, não são a panacéia dos males e nem podem ser desprezados ou tidos como opcionais.
Embora considerado com negatividade por muitos, afirmo inicialmente meu entendimento no sentido de que os exames psicotécnicos têm seu lugar reservado na seleção para cargos públicos: simplesmente não podemos abrir mão deles. Um dos maiores problemas do concurso público é que examina bem a quantidade de conhecimento adquirido pelo candidato, mas é pouco eficiente para medir caráter, ética, honestidade e outros valores inequivocamente mais importantes do que a competência técnica. A matéria do programa se aprende. Ser honesto, equilibrado, decente... isso é mais complicado. Os exames psicotécnicos têm, para as carreiras que há previsão legal de sua exigência, a virtude de ao menos contribuir para proteger o serviço público, e consequentemente a população, de pessoas desequilibradas ou que, por portar problema de saúde mental ou emocional, não estão suficientemente aptas para servir ao público.
Registrada minha admiração pelo exame, devo registrar algumas de suas falhas. Sim, as falhas existem e elas fazem parte do sistema. Apesar de complexo, o exame psicotécnico não pode ser eliminado apenas por sua dificuldade de execução. Se fosse ser assim, os concursos e as licitações também deveriam deixar de existir (e voltaríamos à vetusta e infeliz opção pelos amigos, parentes e cabos eleitorais). Concursos, licitações e exames psicotécnicos têm seus desafios, dão “trabalho”, mas igualmente têm suas vantagens, muito superiores às dificuldades que apresentam. Em vista disso, cabe à Administração Pública aprender a lidar com os instrumentos de seleção e de democratização do acesso aos cargos e contratos com a Administração Pública.
Digo isso não apenas como professor e especialista em políticas públicas, mas também como magistrado que decide inúmeras questões relacionadas aos exames psicotécnicos. Os exames psicotécnicos, nos concursos em que são admitidos, devem se pautar nos princípios orientadores da Administração Pública, sob pena de ser anulado pelo Poder Judiciário. Não entendo boa solução diminuir o número de concursos públicos onde o exame psicotécnico é exigido, mas sim aperfeiçoar sua aplicação. E, na busca por seu aperfeiçoamento, cabe enfrentar uma das falhas que ainda ocorrem nos psicotécnicos dos concursos públicos.
Os exames psicotécnicos e sua paulatina evolução qualitativa nos concursos
É sabido que as carreiras policiais exigem, como condição para assumir o cargo, que os candidatos sejam aprovados em exame psicotécnico, visto que, após se investirem na função, portarão armas de fogo, sendo, portanto, razoável analisar o perfil psicológico destas pessoas. Até esse ponto é justificável e, inclusive, tal exigência consta nas leis que disciplinam tais carreiras. Na verdade, boa parte dos servidores, com arma de fogo ou não em suas mãos, detém uma quantidade de poder estatal suficiente para gerar a razoabilidade da exigência do exame psicotécnico prévio. Não se pode imaginar um fiscal, um auditor, um policial, um médico, enfermeiro, juiz, promotor ou professor que não tenha sido submetido a exame.
Naturalmente, o exame psicotécnico só poderá ser realizado nos casos em que a lei prevê sua aplicação. De lege lata, onde existe a previsão, a aplicação é ato vinculado; onde não há previsão, é ato ilegal. De lege ferenda, entendemos que é recomendável, ao invés de se reduzir, aumentar o número de atividades submetidas a exame psicotécnico.
Além dos servidores públicos, outros profissionais possuem gama de poder suficientemente grande para justificar que a lei determine a submissão a exame psicotécnico prévio ou periódico. José Manuel Duarte Correia, advogado especialista em Direito Administrativo, comentou comigo, certa feita, com extrema propriedade, que um advogado que não saiba exercer sua profissão não deveria ter “identidade funcional”, mas “porte de arma”. Um profissional incompetente causa, em geral, mais danos do que um homem armado. Portanto, a bem do interesse coletivo, os exames psicotécnicos deveriam ser aplicados em um maior número de certames.
Não apenas os servidores possuem tanto poder. Em tempos onde se discute o Exame da OAB – que, ao meu ver, é indispensável atualmente –, vale discutir a conveniência do exame psicotécnico para algumas atividades que, embora privadas, possuem grande relevância social. As atividades que normalmente exigem o psicotécnico são atividades fim do Estado, não se admitindo delegação à iniciativa privada, razão pela qual sabemos que propugnar exames psicotécnicos para atividades privadas é incomum. Apenas pedimos que o leitor leve em consideração qual é o norte de nossa opinião: proteger as pessoas que serão atendidas pelos profissionais. Não faz sentido que as faculdades e o Exame da OAB avaliem se o candidato tem capacidade técnica e não avaliem suas condições psicológicas. Também não se pense que a intenção é apenas eliminar. Não, a intenção é também, identificando algum problema, haver a oportunidade de tratamento de seu portador, antes que haja agravamento ou algum evento danoso.
Os exames psicotécnicos apenas não podem ser aplicados, como foi durante muitos anos, em caráter sigiloso, de forma imotivada, sem possibilidade de recursos, em método completamente arbitrário e incompatível com o Estado de Direito regente.
A matéria chegou por diversas vezes aos Tribunais, sendo hoje ponto pacífico que o exame psicotécnico deve ser baseado em critérios científicos, objetivos, motivados, públicos e com possibilidade de recurso por parte do candidato.
O Superior Tribunal de Justiça há muito pacificou que[1]:
“A mais relevante característica do exame psicotécnico é a objetividade de seus critérios, indispensável à garantia de sua legalidade, enquanto afasta toda e qualquer ofensa aos princípios constitucionais da impessoalidade e da isonomia e garante a necessária publicidade e recorribilidade do exame. 3. A publicidade e a revisibilidade do resultado do exame psicotécnico estão diretamente relacionadas com o grau de objetividade que deve presidi-lo, constituindo-se, em verdade, em suas conseqüências necessárias”
Em outro julgamento, relatado pelo douto Ministro Fernando Gonçalves, ficou assentado que “é nula de pleno direito a disposição editalícia, contendo previsão de exame psicotécnico sigiloso, irrecorrível e subjetivo”[2].
O Supremo Tribunal Federal, chamado a se manifestar sobre a matéria, pontificou que “o exame psicotécnico, especialmente quando possuir natureza eliminatória, deve revestir-se de rigor científico, submetendo-se, em sua realização, à observância de critérios técnicos, que propiciem base objetiva, destinada a viabilizar o controle jurisdicional da legalidade, da correção e da razoabilidade dos parâmetros norteadores da formulação e das conclusões resultantes dos testes psicológicos, sob pena de frustrar-se, de modo ilegítimo, o exercício, pelo candidato, da garantia de acesso ao Poder Judiciário, na hipótese de lesão a direito.”[3]
Felizmente, as Bancas Examinadoras, de forma louvável, têm observado alguns desses parâmetros, adaptando-se ao que vem decidindo o Poder Judiciário. Isso poupa a todos de (o) desperdício de tempo e dinheiro: às próprias bancas, aos candidatos e à máquina pública, tanto a do Executivo quanto a do Judiciário. Ao não arriscar a validade do concurso, as entidades organizadoras mostram que é possível ir aperfeiçoando o sistema e este artigo faz parte, ainda que modestamente, da tentativa de darmos mais um passo na direção correta.
O próximo erro a ser enfrentado: a ausência de estipulação prévia dos critérios que serão julgados no exame psicotécnico
Se por um lado houve um elogiável avanço, por outro, os órgãos responsáveis pela realização dos concursos, ou suas terceirizadas, têm atualmente incidido erro que exclui indevidamente muitos candidatos dos concursos, bem como compromete a validade do certame. Não é um erro novo, mas antigo. O que existe de novo é podermos percebê-lo a partir das evoluções já proporcionadas pela submissão do tema aos areópagos pátrios.
Trata-se da omissão em editais quanto à apresentação previa dos critérios que serão levados em conta no momento da análise do perfil psicológico dos candidatos. Não se apresentam os critérios, o que será levado em conta, o que tecnicamente é considerado apto ou inapto; é omisso em relação às respectivas pontuações, ferindo assim o sacramental princípio da segurança jurídica.
A prova desse equívoco foi levantada com elogiável precisão pelo advogado administrativista Alessandro Dantas Coutinho, que também é professor e escritor da matéria. Em meu constante acompanhamento do assunto, tive a oportunidade de tomar conhecimento de ação judicial onde o referido professor, na qualidade de advogado, representou candidata eliminada em exame dessa natureza. O objetivo da ação interposta foi o de cancelar o exame psicotécnico aplicado pelo CESPE, em certame promovido pelo Ministério da Justiça – Departamento de Polícia Rodoviária Federal, para vagas no Estado do Mato Grosso e Pará.
O referido advogado obteve êxito conseguindo decisão antecipatória, que tornou sem efeito o psicotécnico e obrigou o CESPE a promover outro, porém, dessa vez, informando antecipadamente os critérios que serão levados em consideração para a análise do perfil psicológico de sua cliente. A referida decisão foi confirmada pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 2a Região, com sede no Estado do Rio de Janeiro.
Interessei-me em abordar o caso para, primeiro, concitar as bancas a desde já respeitarem os princípios constitucionais aplicáveis, de natureza cogente. Com isso, imagino quantos candidatos não serão prejudicados, quantas ações não serão ajuizadas. Imagino quanto tempo e recursos públicos serão poupados e o quanto caminharemos para melhorar o sistema “concurso público”. Todos ganharão com isso, inclusive os advogados administrativistas, que terão mais tempo para dedicar a outros problemas de mais complicado desenlace. Em segundo lugar, escrevo para alertar e instruir meus alunos e amigos a fim de que estejam atentos ao direito de esperar que seja explicitado, antecipadamente, o arcabouço que será exigido no tão importante exame psicotécnico a que devem se submeter.
É muito comum, nos concursos para a carreira policial, que a parte do edital que trata do exame psicotécnico se resuma, de forma semelhante ou idêntica, ao que constou nas regras do último concurso promovido pela Polícia Rodoviária Federal.
Em seu Capítulo 9 constam as seguintes regras sobre a avaliação psicológica:
9.1 – Somente serão submetidos a esta fase os candidatos aprovados e classificados na 1ª fase até 3 vezes o número de vagas oferecidas no estado para o qual estejam concorrendo, respeitados os casos de empate na última posição.
9.2 – A convocação para a avaliação psicológica será feita por meio de edital específico.
9.3 – A avaliação psicológica, de caráter eliminatório, consistirá na aplicação e na avaliação de baterias de testes psicológicos, de aptidão, de nível mental e de personalidade, visando aferir se o candidato possui um perfil adequado ao exercício das atividades inerentes à função de Policial Rodoviário Federal, incluindo o porte de arma de fogo, conforme o perfil profissiográfico do cargo.
9.3.1 – Os dados referentes ao perfil profissiográfico do cargo de Policial Rodoviário Federal serão divulgados em edital específico.
9.4 – Na avaliação psicológica, o candidato será considerado APTO ou INAPTO.
9.5 – O candidato considerado INAPTO na avaliação psicológica será eliminado do concurso público.
9.6 – Demais informações a respeito da avaliação psicológica constarão de edital específico de convocação para esta fase.
Percebe-se, pela leitura do Edital, que em momento algum é dito de forma objetiva quais os critérios que serão levados em consideração para aferição do perfil psicológico do candidato.
Posteriormente foi publicado o edital complementar n°. 07/2008, que teria o objetivo de apresentar os critérios que seriam utilizados para aferir o perfil psicológico dos candidatos; porém, da mesma forma que o primeiro, o mesmo manteve-se omisso quanto aos referidos critérios, o que gera grande insegurança jurídica ao candidato que não sabe o que está sendo avaliado, quais critérios de avaliação etc.
Ficou assentado no item 7 do referido edital que:
7.1 A avaliação psicológica, de presença obrigatória e de caráter eliminatório, será realizada pelo CESPE/UnB nas datas e horários estabelecidos no edital.
7.2 Na avaliação psicológica, o candidato será considerado apto ou não-apto.
7.3 Será considerado não-apto e, consequentemente, eliminado do concurso o candidato que não apresentar os requisitos psicológicos necessários ao exercício do cargo.
7.4 Não será admitido, em hipótese alguma, o ingresso de candidato no local de realização da avaliação psicológica após o horário fixado para o seu início.
7.5 Nos dias de realização da avaliação psicológica, o candidato deverá comparecer nas datas, no local e nos horários predeterminados no edital, munido de documento de identidade original e de caneta esferográfica de tinta preta, fabricada em material transparente.
7.6 – Não haverá segunda chamada para a realização da avaliação psicológica. O não comparecimento nessa fase implicará a eliminação automática do candidato.
7.8 – Nos dias de realização da avaliação psicológica não será permitida a entrada de candidatos portando armas e/ou aparelhos eletrônicos.
7.9 – É recomendado que o candidato durma bem à noite anterior ao dia de realização da avaliação psicológica, alimente-se adequadamente, não beba e não ingira nenhum tipo de substância química, a fim de estar em boas condições para a realização da referida fase.
7.9.1 – Não será fornecido lanche aos candidatos nem haverá lanchonete disponível no local de realização da avaliação, sendo permitido ao candidato levar seu próprio lanche.
Passo a me valer, a partir de agora, das observações e lições do colega Alessandro Dantas Coutinho:
“Nota-se flagrante omissão do edital quanto aos critérios que seriam utilizados para a análise do estado psicológico dos candidatos, sendo que, in casu, os mesmos foram arbitrariamente impostos no momento da avaliação, subtraindo dos candidatos a possibilidade de questioná-los – muitas vezes por inadequados, ou por outro motivo qualquer. Tal prática viola induvidosamente os princípios da vinculação ao instrumento convocatório, vez que os critérios utilizados não estavam previamente estabelecidos no edital e foram impostos arbitrariamente. Soma-se a isso o vilipêndio ao princípio da segurança jurídica (não surpresa no julgamento) em razão de os candidatos serem avaliados, em prova de caráter eliminatório, da qual não se sabe o que será analisado, o que gera inabilitação, quais fatores serão levados em conta, como é o julgamento etc.
Ainda há violação do devido processo legal e contraditório, vez que foi subtraído aos candidatos a possibilidade de impugnar este ponto do edital, caso tais critérios estivessem previamente demonstrados. Não houve a publicidade dos critérios que seriam levados em consideração na análise do perfil psicológico dos candidatos, o que torna seu critério sigiloso, vez que não se sabe previamente o que e como foram feitas as avaliações.
Assim, está configurada de forma cristalina a lesão ao princípio da publicidade, estando evidenciado que, quando da edição do edital, os critérios de julgamentos foram sigilosos, sendo por isso completamente ilegal.”
Os argumentos técnicos são estes, não é preciso repisá-los nem, até por economia não processual, mas do tempo do leitor, neles se aprofundar. Ao lado disso, vale trazer à colação a pacífica jurisprudência de nossos Tribunais Superiores que vem em socorro da tese:
“I - Apesar de ser constitucional a exigência de exame psicotécnico para a aprovação no concurso para Delegado de Polícia Federal, o mesmo não pode se revestir de sigilo quanto aos critérios de avaliação, nem seu resultado pode ser irrecorrível. Violação aos princípios da ampla defesa, do contraditório e da publicidade no processo administrativo configurados. Precedentes. I”. (TRF3ª R. - AC 97.03.063192-4 - 1ª T. - Rel. Juiz Casem Mazloum - Unânime - DJU 27.04.1999).”
“Segurança concedida em parte para anular o exame psicotécnico realizado e determinar a realização de novo teste, baseado em critérios objetivos e previamente determinados, sendo o resultado, ainda, passível de recurso. (STJ - RMS 17103 - SC - 5ª T. - Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima - DJU 05.12.2005)”
“2. A mais relevante característica do exame psicotécnico é a objetividade de seus critérios, indispensável à garantia de sua legalidade, enquanto afasta toda e qualquer ofensa aos princípios constitucionais da impessoalidade e da isonomia, e garante a necessária publicidade e recorribilidade do exame. 3. A publicidade e a revisibilidade do resultado do exame psicotécnico estão diretamente relacionadas com o grau de objetividade que deve presidi-lo, constituindo-se, em verdade, em suas consequências necessárias. (STJ - EDcl no REsp 479214 - BA - 6ª - Rel. Min. Vicente Leal - DJU 06.10.2003, p. 341)”
Aos que tiverem interesse, a ação mencionada foi ajuizada na Justiça Federal do Estado do Espírito Santo, tombada sob o no 2009.50.01.000.858-4. Como professor também, antes do que como colega de magistratura, tive a alegria de ler a brilhante decisão proferida pela Juíza Federal Maria Cláudia de Garcia Paula Allemand, a qual, por sua clareza e precisão, transcrevo em parte:
“Como se vê, o edital menciona, no subitem 9,3.1, que os dados referentes ao perfil profissiográfico do referido cargo constariam do edital de convocação para a respectiva fase do certame. Todavia, da análise daquele instrumento, constante às fls. 76/133, verifico que tais informações não foram divulgadas, havendo somente disposições acerca dos horários de realização e comparecimento dos candidatos (fls. 132/133).”
O que verifico, portanto, do cotejo de tais instrumentos editalícios, é que neles foram apresentadas as características (aptidão, nível mental e personalidade) que seriam avaliadas no exame psicológico, bem como estipulado que a incompatibilidade com o perfil profissiográfico do cargo em questão reverberaria na reprovação do candidato do certame, por se tratar de fase eliminatória. Mas em momento algum há a indicação, ainda que mínima, dos critérios que seriam utilizados em tal avaliação, impossibilitando aos candidatos conhecer, previamente, quais os tipos de testes que seriam realizados nessa etapa.
“Importante frisar que não se está a sustentar, aqui, que não possa haver, em tal exame, a utilização de critérios técnicos, compreendidos em profundidade apenas pelos profissionais da área de Psicologia. Apesar disso, deve haver a divulgação de balizas mínimas que possibilitem, à compreensão mediana, conhecer o que está por vir, de modo a prestigiar a transparência e a igualdade na aplicação dos exames, requisitos de todo e qualquer certame levado a efeito pela Administração.”
No caso em comento, o edital apenas se refere a “aplicação e avaliação de baterias de testes psicológicos”, destinados a analisar a “aptidão, o nível mental e a personalidade” dos candidatos, sem dar a conhecer, entretanto, de que forma e com base em que critérios isso se daria.
Tais exigências restariam atendidas, em meu sentir, se houvesse, verbi gratia, no edital, que o nível mental do candidato seria avaliado por meio de testes de raciocínio lógico-dedutivo, nos quais o aproveitamento esperado corresponderia a determinado percentual de acertos nas proposições lógico-matemáticas apresentadas.
Ou, ainda, se o edital deste certame reproduzisse, de forma semelhante, a regulamentação do referido exame constante no instrumento editalício coligido às fls. 189/202, referente à seleção para o cargo de Delegado da Polícia Civil do Estado do Mato Grosso do Sul, em que restam expostos, de forma exemplar, os critérios e a forma de avaliação dos candidatos, sem qualquer prejuízo à eficácia do exame em comento (vide, em especial, as fls. 195/196).
(...)
Indico, a título exemplificativo, o gráfico constante à fI. 157, referente ao Inventário dos Cinco Fatores de Personalidade Reduzido — ICFP-R. Nele, há a indicação dos percentuais obtidos pela Autora nos critérios avaliados. Mas não se mostra, todavia, o motivo determinante para que, no item “conscienciosidade”, o percentual obtido tenha sido 30”, e não “40”, que é considerado o adequado para o cargo em questão.
Essa insuficiência de motivação, é relevante salientar, inviabiliza uma avaliação escorreita, por parte deste Juízo, da legitimidade e legalidade do proceder adotado pela Administração.
(...)
III. Conclusão
Ante o exposto, DEFIRO, EM PARTE, O PLEITO ANTECIPATÓRIO para, reconhecendo a ausência de prévia identificação da Autora dos critérios objetivos que norteariam o exame psicotécnico a que se submeteu no concurso em tela, determinar aos Réus realizem nova avaliação do demandante, informando, de forma clara e objetiva, como explicitado na fundamentação, os critérios que serão utilizados para a referida avaliação psicológica.”
Mais uma vez, não é preciso acrescentar nada. A questão é clara e já está bem posta pelas mãos de um operoso Advogado e de uma competente Juíza Federal. Os tribunais já se manifestaram suficientemente sobre o tema. No caso concreto, a decisão inicial foi devidamente cumprida e, em consequência, aplicada à candidata uma nova avaliação na qual os critérios foram previamente apresentados. O TRF da 2a Região, analisando recurso da União, em face da decisão antecipatória, manteve a decisão da primeira instância.
Ao meu ver, se os próximos concursos não respeitarem o princípio da segurança jurídica nesse particular, haverá uma chuva de decisões favoráveis em primeira instância e que serão confirmadas, a seu tempo, pelas cortes. Todo esse desperdício pode ser evitado.
Princípio a ser aplicado: segurança jurídica, legalidade ou razoabilidade?
Alerto que menciono o princípio da segurança jurídica, mas, sobre isso, pode haver divergência. Nesse passo, quem entender o princípio da segurança jurídica em um sentido mais estrito, poderá considerar haver alguma impropriedade na referência ao mesmo, pois, nesse sentido, ele remete mais propriamente ao respeito a regras já estabelecidas como garantia de previsibilidade de resultados jurídicos. Para estes, peço que leiam este arrazoado considerando o princípio da legalidade. Ele assegura que regras mais precisas e inteligíveis devem ser estabelecidas como critérios de aferição da idoneidade psicológica do candidato, já que se trata ali da prática de ato vinculado, que demanda o estabelecimento de regras prévias.
Cito o princípio como sendo o da segurança jurídica pois considero seu espectro como sendo mais largo. Na minha opinião, o ordenamento jurídico deve ter um mínimo de segurança, de previsibilidade. Assim, a previsibilidade não seria apenas dos resultados jurídicos. E, ainda que não seja assim, não podemos descartar também o princípio da razoabilidade.
Se formos falar em razoabilidade, vale mencionar Humberto Ávila, em especial quando cita o terceiro sentido do postulado da razoabilidade, o qual "exige uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona". Assim, não sem alertar sobre essas eventuais discussões sobre qual o princípio mais adequado ao caso, peço vênia para afirmar que, independentemente de qual seja o princípio tido como correto, a questão essencial é a mesma: o candidato tem direito a saber qual a medida adotada pelo examinador e quais critérios dimensionarão sua aptidão ou não para o cargo.
Em resumo, estou utilizando o princípio da segurança jurídica meramente em seu sentido amplo, quando o mesmo assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de pessoa ou situação fática.
José Afonso da Silva nos oferece uma singela definição da função protetora da segurança jurídica asseverando que “certo é que um direito inseguro é, por regra, um direito injusto, porque não lhe é dado assegurar o princípio da igualdade. Assim, a segurança legítima do direito é apenas aquela que signifique garantia contra arbitrariedade e contra injustiças”. Nessa linha, acrescento que ser avaliado sem saber o critério é arbitrariedade, ou seja, quando digo que fere o princípio da segurança jurídica, o cito em seu sentido lato, como ideal de justiça, uma vez que este tem como primado tutelar, proteger e garantir direitos.
Vale citar as palavras do magistrado Mauro Nicolau Junior: “a segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar, e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes”. (Couture Eduardo, Fundamentos Del Derecho Processal Civil, Buenos Aires: Depalma, 1974, n°263, p.405, apud Mauro Nicolau Junior, op. Cit., p. 21)
Conclusão
Para finalizar, menciono que o Conselho Federal de Psicologia, no uso das atribuições legais e regimentais que lhe são conferidas pela Lei nº 5.766/71, editou a Resolução 01/2002, que regulamenta a Avaliação Psicológica em Concurso Público e processos seletivos da mesma natureza, sendo que em seu artigo 3º está prescrito que: “o Edital deverá conter informações, em linguagem compreensível ao leigo, sobre a avaliação psicológica a ser realizada e os critérios de avaliação, relacionando-os aos aspectos psicológicos considerados compatíveis com o desempenho esperado para o cargo.”
Por todos estes motivos, não há razão para os exames continuarem a pecar neste ponto, comprometendo a validade do certame. Envio, portanto, ao CESPE, FCC, ESAF, CESGRANRIO e NCE/UFRJ cópia da presente e modesta anotação sobre o assunto, na expectativa de que, ao realizar exames psicotécnicos, o façam da forma mais adequada. Também dou ao artigo a possível publicidade para que chegue ao conhecimento de outras instituições organizadoras de concursos públicos e, em especial, aos candidatos, asseverando-lhes a segurança e previsibilidade que tornam o sistema mais justo e razoável.
Acredito nos concursos, acredito no serviço público, acredito que nosso país, por conta do esforço de todos, um dia alcançará o grau mínimo de justiça, igualdade e democracia que todos desejamos.
Juiz Federal, Titular da 4ª Vara Federal de Niterói - Rio de Janeiro; Professor Universitário; Mestre em Direito, pela Universidade Gama Filho - UGF; Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo - EPPG/UFRJ; Bacharel em Direito, pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ; Professor Honoris Causa da ESA - Escola Superior de Advocacia - OAB/RJ; Professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas - EPGE/FGV; Membro das Bancas Examinadoras de Direito Penal dos V, VI, VII e VIII Concursos Públicos para Delegado de Polícia/RJ, sendo Presidente em algumas delas; Conferencista em simpósios e seminários; Autor de vários livros. Site: www.williamdouglas.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOUGLAS, William. A qualidade do serviço público, o exame psicotécnico e o princípio da Segurança Jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2009, 07:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/17545/a-qualidade-do-servico-publico-o-exame-psicotecnico-e-o-principio-da-seguranca-juridica. Acesso em: 25 dez 2024.
Por: Benigno Núñez Novo
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Por: Fábio Gouveia Carneiro
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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