1. O legislador infraconstitucional, em louvável iniciativa, editou a Lei nº 11.448, de 15 de janeiro de 2007, que alterou o rol de legitimados à propositura da ação civil pública para neles incluir a Defensoria Pública, instituição constitucionalmente vocacionada à orientação jurídica e à defesa, em todos os graus, “dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”, da Constituição da República.[1]
2. O novel diploma legislativo, a um só tempo, disponibilizou à população um relevante mecanismo de acesso à justiça e contribuiu para que a reconhecida sobrecarga de trabalho do Judiciário brasileiro possa vir a ser reduzida, já que milhares de ações individuais poderão ser substituídas por algumas poucas ações coletivas.
3. A questão que se põe é saber se a Defensoria Pública se transformou numa espécie de legitimado universal à propositura da ação civil pública ou se sua atuação deve sofrer um balizamento que permita ajustá-la aos objetivos constitucionais dessa nobre Instituição. Prestigiando-se a literalidade do art. 5º, II, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, com a redação dada pelo art. 2º da Lei nº 11.448/2007,[2] será inevitável a adesão à primeira propositura. Afinal, a lei de regência do processo coletivo não impõe qualquer restrição a tal atuação.
4. Com a devida vênia daqueles que prezam a literalidade e interpretam a parte dissociada do todo, vício que se sobressai quando desconsiderada a preeminência do texto constitucional, não há a menor dúvida de que a Defensoria Pública não foi erigida à condição de legitimada universal para a propositura da ação civil pública.
5. A ordem jurídica constitucional reflete uma unidade sistêmica alicerçada nos referenciais de supremacia normativa e coerência lógica. É avessa a antinomias reais e busca organizar as estruturas estatais de poder de modo a viabilizar a consecução do bem comum, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.
6. No âmbito das funções essenciais à justiça, foram incluídos (1) o Ministério Público, (2) a Defensoria Pública, (3) a Advocacia Pública e (4) a Advocacia Privada. A primeira dessas instituições foi incumbida da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, terminando por abarcar um rol de atribuições, efetivo ou potencialmente outorgável pela legislação infraconstitucional, de indiscutível amplitude. A segunda, por sua vez, vale dizer, a Defensoria Pública, foi incumbida da orientação jurídica e da defesa dos necessitados. Enquanto o Ministério Público somente poderá defender os necessitados quando possível o enquadramento na norma-quadro que delineia suas atribuições, a Defensoria Pública tem sua atividade finalística restrita à defesa dessa camada da população.
7. É importante realçar a absoluta coerência lógica do modelo constitucional, criando uma certa especialização de funções de modo a evitar que uma Instituição viesse a absorver a outra. No entanto, o que fez o legislador infraconstitucional na literalidade da Lei nº 11.448/2007? Equiparou atribuições, permitindo que o intérprete coloque em dúvida a já referida coerência lógica do sistema constitucional.
8. Note-se que o vício aqui identificado não reside na atribuição, à Defensoria Pública, de legitimidade ativa para o ajuizamento da ação civil pública. É perfeitamente factível a previsão de uma legitimidade disjuntiva e concorrente, de modo que (1) a Administração Pública direta e indireta, (2) as Funções Essenciais à Administração da Justiça e (3) algumas pessoas jurídicas de direito privado possam manejar as ações coletivas. O que se afirma, de forma simples e objetiva, é a necessidade de preservar a coerência do sistema constitucional ao prever a existência de duas instituições, o Ministério Público e a Defensoria Pública, e indicar a esfera de atribuição de cada qual.
9. Ainda em relação à Defensoria Pública, é importante frisar que o texto constitucional não se limitou a enunciar uma atribuição geral, sem excluir a possibilidade de outorga de atribuições específicas. O art. 134, caput, da Constituição da República, como já salientamos, é expresso ao dispor que as atribuições da Defensoria Pública seriam exercidas “na forma do art. 5º, LXXIV”. E o que diz esse preceito? Diz que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
10. A atuação da Defensoria Pública, assim, pressupõe o preenchimento de dois requisitos essenciais: que seja direcionada aos necessitados e que estes comprovem a insuficiência de recursos. A comprovação da carência de recursos, como se sabe, tem sido realizada com a só declaração do interessado (art. 4º, caput, da Lei nº 1.060/1950), medida de todo adequada a uma sociedade civilizada e que valoriza a palavra do ser humano. Com isto, já se pode afirmar que a Defensoria Pública somente poderá atuar quando individualizados ou individualizáveis os interessados, todos imperiosamente necessitados.
11. As ações coletivas, como se sabe, estão voltadas à tutela de três espécies de interesses: difusos, coletivos e individuais homogêneos. Nos termos do art. 81 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que normatizou a posição então sedimentada no âmbito da doutrina e da jurisprudência especializadas, tais interesses podem ser definidos da seguinte forma:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.
12. Essa breve referência aos conceitos incorporados à legislação infraconstitucional permite concluir que é absolutamente injurídica a defesa de interesses difusos pela Defensoria Pública. A razão de ser é simples: como a Instituição somente pode defender os necessitados e os interesses difusos são caracterizados pela indeterminação dos titulares do direito (v.g.: direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado), a conclusão não pode ser outra senão a negativa. A tutela dos interesses difusos, aliás, foi expressamente outorgada ao Ministério Público pelo texto constitucional (art. 129, III). Conquanto seja exato que tal legitimidade não é exclusiva, sua outorga a outras instituições exige a estrita observância do disposto na “Constituição e na lei”.[3] A lei, à evidência, deve estar em harmonia com a Constituição.
13. No que diz respeito aos interesses coletivos e individuais homogêneos, mostra-se incabível uma avaliação prévia, in abstracto, da legitimidade da Defensoria Pública. Tal há de ser feito em harmonia com as circunstâncias fáticas e jurídicas subjacentes ao caso concreto.
14. Nessa linha, impõe-se um novo questionamento: se o art. 5º, II, da Lei nº 7.347/1985, com a redação dada pelo art. 2º da Lei nº 11.448/2007, destoa da Constituição, qual a solução? Reconhecer-lhe a invalidade, alijando a Defensoria Pública do processo coletivo? À evidência que não. A única solução que se harmoniza com o sistema e os mais comezinhos padrões de justiça é dispensar ao preceito uma interpretação conforme a Constituição.
15. Como consectário lógico da unidade do sistema jurídico, a atividade interpretativa é necessariamente direcionada pela ordenação das fontes do direito, que sobre ela exercem uma influência maior ou menor conforme o seu grau de importância. Em conseqüência do escalonamento das fontes, ainda que prestigiada uma perspectiva sistêmica de análise, a posição de primazia sempre será atribuída à ordem constitucional.
16. Corolário natural da supremacia das normas constitucionais, a interpretação conforme a Constituição indica que todo e qualquer preceito jurídico deve ser interpretado de modo a identificar o sentido compatível com a Constituição, excluindo, em conseqüência, aquele que não o seja. O operador do direito, ao separar a interpretação conforme a Constituição daquela que considera inconstitucional, preserva a disposição, mas limita ou estende o alcance da norma, neutralizando as violações constitucionais. O texto impugnado, na conhecida sentença de Biscaretti di Ruffia,[4] “não é inconstitucional só enquanto” ou “na medida em que” atribua à disposição o significado indicado pelo Tribunal.
17. A Constituição, por ocupar uma posição de preeminência no ordenamento jurídico, deve ser concebida como o fio condutor de sua unidade, evitando ou, mesmo, solucionando as antinomias porventura existentes. A unidade, por sua vez, somente será alcançada se as demais normas, infraconstitucionais ou oriundas do poder reformador, forem concebidas e interpretadas de modo a harmonizá-las com a Constituição. Nessa linha, pode-se conceber a unidade do ordenamento jurídico como um dos fundamentos da interpretação conforme a Constituição.
18. Conclui-se, assim, pela necessidade de se conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 5º, II, da Lei nº 7.347/1985, de modo a excluir a possibilidade de a Defensoria Pública promover a defesa de interesses difusos.
[1] Art. 134, caput, da Constituição da República.
[2] Eis o inteiro teor da Lei nº 11.448/2007: “Art. 1º - Esta Lei altera o art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, legitimando para a sua propositura a Defensoria Pública. Art. 2º - O art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (...)’. Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
[3] Art. 129, § 1º, da Constituição da República.
[4] Diritto Costituzionale, 15ª ed., Napoli: Jovene Editore, 1989, p. 677.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. A Legitimidade da Defensoria Pública para o Ajuizamento da Ação Civil Pública: Delimitação de sua Amplitude. Breves Apontamentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2009, 08:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/18986/a-legitimidade-da-defensoria-publica-para-o-ajuizamento-da-acao-civil-publica-delimitacao-de-sua-amplitude-breves-apontamentos. Acesso em: 23 dez 2024.
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