Existe um entendimento corrente de que o pregão seria uma modalidade excepcional de licitação, somente utilizada nas hipóteses taxativamente enumeradas no Decreto 3.555/2000, que regulamentou a Lei 10.520/2002, dispondo a respeito do pregão presencial.
De fato, existem casos de bens ou serviços que não estão incluídos nessa lista mas são adquiridos por meio de pregão. Porém, os que assim entendem cometem erro crasso ao afirmar que isso inviabiliza a utilização do pregão como licitação antecedente a esse tipo de contrato, como será demonstrado.
O processo licitatório brasileiro tem-se revelado extremamente burocrático e moroso. Os inúmeros detalhes da Lei 8.666/93 tornam por demais complexa a atividade do administrador consciencioso de seus deveres. Ao mesmo tempo, não foi possível evitar a ruidosa profusão de atos ilícitos praticados em licitações, setor que é reconhecido como o maior foco de corrupção na Administração Pública.
Com base nessa percepção, foi editada a Medida Provisória 2.026/2000, que institui a nova modalidade de licitação denominada pregão. Posteriormente, a MP foi convertida na Lei 10.520/2002, regulamentada pelos Decretos 3.555/2000 (pregão presencial) e 5.450/2005 (pregão eletrônico).
Devido a seu procedimento mais célere e objetivo, o pregão tornou-se, depois de pouquíssimo tempo, a modalidade de licitação mais utilizada pela Administração. Esse também é o entendimento de Marçal Justen Filho:
“A União implementou, a partir da introdução da figura do pregão, um projeto de alteração geral da legislação sobre licitações. Trata-se de substituir a disciplina tradicional consagrada na Lei n° 8.666 por instrumentos licitatórios mais ágeis e rápidos. (...) ”
“Em suma, pode-se esperar que, ao longo do tempo, a Lei n° 8.666 torne-se um diploma cuja única utilidade normativa será a veiculação de princípios gerais. A disciplina concreta das licitações será efetivada por meio de diplomas específicos. E um papel fundamental caberá à figura do pregão.”[1] (grifou-se)
Nesse sentido, o pregão tem se tornado habitual antecedente de várias espécies de contratos administrativos. Mas não de todas as espécies. A lei e seus regulamentos são claros em exigir que o objeto da licitação seja bem ou serviço comum, que são definidos no art. 1°, parágrafo único da Lei 10.520/2002, como “aqueles cujo padrão de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.
Trata-se, indubitavelmente, de um conceito jurídico indeterminado, categoria cuja delimitação exata depende de cada caso específico. Porém, devem ser obedecidos seus parâmetros:
a) o padrão de desempenho e qualidade do bem ou serviço deve ser objetivamente definido pelo edital;
b) essa definição possa se realizar por meio de especificações usuais do mercado.
Ora, verifica-se que a lei concedeu grande liberdade ao administrador público, pois a configuração do que é “usual” e “comum” depende da realidade específica de cada entidade. Nesse sentido, é o magistério de Joel de Menezes Niebuhr:
“Partindo do pressuposto de que os vocábulos comum e usual encerram conceitos indeterminados, é forçoso reconhecer que a avaliação do que é comum ou usual depende da perspectiva do interlocutor, ou melhor, do agente administrativo que deve decidir se a licitação pode ou não ser feita através da modalidade pregão. Isso porque, o comum e o usual dependem da experiência, da vivência, da atividade do interlocutor em relação ao mercado”.[2]
Alguns querem fazer crer que o pregão, por utilizar o tipo de licitação “menor preço”, não poderia habilitar ou inabilitar os licitantes, mas apenas verificar qual deles ofereceu realizar o contrato pelo menor valor. Esse argumento é simplesmente absurdo, pois a habilitação dos licitantes é uma fase da licitação expressamente prevista na Lei 10.520/02 e nos decretos que a regulamentam. Pretender que a Administração Pública deixe de verificar a idoneidade dos documentos apresentados pelos licitantes é o mesmo que requerer o descumprimento da lei exatamente por aquela entidade que tem a função de cumpri-la de ofício. Além de ilegal, essa omissão no cumprimento da lei seria uma afronta ao princípio da indisponibilidade do interesse público.
A objeção largamente utilizada por aqueles que são inabilitados ou desclassificados no pregão é que o serviço ou produto por eles oferecido não é bem ou serviço comum, pelo simples fato de não constar da enumeração do Anexo II do Decreto 3.555/2000, é totalmente improcedente, pois a citada lista é meramente exemplificativa e não taxativa, como já salientou a doutrina:
“Essa lista deve ser concebida como espécie de referência aos agentes agente administrativos, que, em caso de dúvida, devem buscar apoio nela. Nessa linha, a lista de bens e serviços qualificados como comuns deve ser considerada de caráter meramente exemplificativo. Melhor explicando: o fato de outros bens e serviços de natureza comum não terem sido lembrados pelo Presidente da República na lista do Decreto n° 3.555/00 não lhe retira essa qualificação e não impede a Administração de licitá-los por meio da modalidade pregão. Perceba-se que a Lei n° 10.520/02 autoriza a adoção da modalidade pregão para a licitação de bens e serviços de natureza comum, independentemente de qualquer outra condição, como, por exemplo, ser lembrado no Decreto Federal pelo Presidente da República. O que importa, a rigor, é que o bem e o serviço realmente se revistam de natureza comum .” [3]
“Não se afigura cabível interpretar em termos rígidos o elenco contido no Anexo II. A ausência de rigidez manifesta-se sob dois aspectos. Em primeiro lugar, o elenco não é exaustivo. Qualquer outro objeto qualificável como comum, ainda que não constante do rol do Anexo II, pode ser contratado através de pregão. Sob esse ângulo, a relação contida no Anexo II envolve um elenco mínimo, exemplificadamente indicado no regulamento federal. ” [4]
Essa espécie de alegação mantém-se infundada mesmo que, apenas por hipótese, a enumeração constante do Anexo II do Decreto 3.555/00 fosse taxativa. Em primeiro lugar, a jurisprudência tem entendido que esse decreto foi revogado pelo Decreto 5.450/05, que regulamentou o prego eletrônico e não previu nenhuma lista de bens e serviços comuns, fato elogiado pela melhor doutrina[5]. Nesse sentido, é o recentíssimo julgado do Tribunal Federal da 1ª Região:
“ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. PREGÃO PARA CONTRATAÇÃO DE SERVIÇO COMUM DE INFORMÁTICA. POSSIBILIDADE. LEI 10.520/2002 E DECRETO 5.450/2005. DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA DA ADMINISTRAÇÃO. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO.
1. O pregão está previsto no artigo 45 da Lei 8.666/93 e no artigo 1º, parágrafo único da Lei 10.520/2002 que autoriza essa modalidade de licitação para bens e serviços comuns.
2. Serviços comuns são aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser definidos pelo edital por meio de especificações usuais do mercado (Decreto 5.450/2005).
3. A Lei 10.520/2002 outorgou à Administração discricionariedade técnica para definir, em cada caso concreto, o que é serviço comum, sendo a regulamentação anterior revogada pelo Decreto 5.450/2005.
(...)
5. Cuidam-se de serviços comuns porque podem ser oferecidos por qualquer empresa de informática, ou seja, são verdadeiros ‘produtos de prateleira’, com vários fornecedores.
6. Agravo de instrumento improvido.” (grifou-se) (AG 2007.01.00.004749-3/DF, julgado em 21.11.2007)
Em segundo lugar, mesmo que o Decreto 3.555/00 ainda estivesse em vigor e sua lista fosse taxativa, mesmo assim não seria admissível sua aplicação nas entidades da Administração Indireta, tem capacidade de auto-organização. Assim, o referido decreto tem vigência apenas no interior da Administração Pública Direta, como explicitado por Niebuhr:
“As entidades da Administração Indireta, compreendendo as autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União não se subordinam às ordens do Presidente da República, que sobre elas não exerce qualquer ascendência de caráter hierárquico, na medida em que as mesmas gozam de autonomia administrativa. A relação entre a União e as entidades da Administração Indireta, ainda que federais, denomina-se de supervisão ministerial, em que os poderes do Presidente da república sobre elas não se presumem, mas devem ser expressos.”
“Por via de conseqüência, cumpre afirmar, com clareza, que tais entidades não devem qualquer espécie de obediência a decretos baixados pelo Presidente da República, entre os quais o Decreto Federal n° 3.555/00, salvo expressa disposição legal em contrário ou salvo se eles aquiescerem com o referido Decreto, isto é, se quiserem, por vontade própria, adotá-lo.” [6]
Nesse sentido, as entidades da Administração Indireta não estão vinculadas a qualquer regulamentação da União, mas apenas às suas normas âmbito interno. Vide o caso do Banco Central do Brasil, que, com acerto, não prevê nenhuma lista taxativa a ser seguida, in verbis:
“Consideram-se bens e serviços comuns, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser concisa e objetivamente definidos no objeto do edital, em perfeita conformidade com as especificações usuais praticadas no mercado, compreendendo os bens e serviços constantes do documento”.[7]
Percebe-se que essa Autarquia também adota uma enumeração, mas claramente a considera exemplificativa, ao dispor que os bens e serviços comuns compreendem aqueles enumerados. Assim, bens e serviços comuns abrangem, incluem, contém, aqueles constantes da enumeração, mas, de forma nenhuma, resume-se a eles. Vê-se que esta conclusão é a mesma a que chegou a doutrina abalizada a respeito da enumeração constante do decreto supracitado.
Por fim, é relevante perceber comportamento, no mínimo, contraditório dos licitantes que utilizam os argumentos atacados acima. Se o pregão não é a modalidade de licitação prevista para esse tipo de contrato, por que participar dele? É estranho à boa-fé que alguém só passe a considerar um processo como ilícito depois de ter sido nele preterido. Em vários casos, parece que a ilicitude “varia” de acordo com a conveniência do licitante, que, comumente, já participou e ganhou outros pregões. Ressalte-se que esse comportamento, no sentido de impugnar a licitude do pregão por ausência do objeto na lista do citado decreto, é de utilização bastante comum por aqueles que, de alguma forma, não se sagram vencedores nessa modalidade de licitação.
[1] Pregão. Comentários à legislação do pregão comum e eletrônico, p. 9. São Paulo: Dialética, 2005.
[2] Pregão presencial e eletrônico, p. 54. Curitiba: Zênite, 2005.
[3] Idem, p. 59-60.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 32-33.
[5] “O Regulamento do Pregão Comum fez referência, à propósito da definição de bem ou serviço comum, a um rol anexo (que constitui o Anexo II do Decreto n° 3.555/00. O Regulamento do Pregão Eletrônico não adotou essa solução, o que merece aplausos.” (idem, p. 226)
[6] Op. cit., p. 29.
[7] Cf. Manual de Serviço do Patrimônio (MPA), Título 2, Capítulo 3.
Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip). Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo nos cursos Objetivo e Pró-Cursos. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Co-autor do livro "Direito Penal Acadêmico". Home Page: http://www.alexandremagno.com
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. Pregão realizado por entidade da Administração Indireta: possibilidade de contratação de bem ou serviço não enumerado no Anexo do Decreto 3.555/00 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 dez 2009, 07:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/19056/pregao-realizado-por-entidade-da-administracao-indireta-possibilidade-de-contratacao-de-bem-ou-servico-nao-enumerado-no-anexo-do-decreto-3-555-00. Acesso em: 23 dez 2024.
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