1 INTRODUÇÃO
A Polícia Militar é um dos órgãos componentes do sistema brasileiro de segurança pública, sendo os seus integrantes responsáveis pela execução das atividades de polícia ostensiva e preservação da ordem pública.
No momento da ocorrência dos delitos é o policial militar, geralmente, o primeiro representante estatal a socorrer o cidadão que está sendo violentado pelos criminosos, sendo que muitas vezes se exige uma resposta enérgica do militar estadual, tendo que responder com violência aos atos violentos praticados pelos delinqüentes.
Nesse contexto, não raras vezes poderão ser causados danos a terceiros, como se noticia diariamente na mídia, onde pessoas acabam sendo lesionadas pela atuação policial. Assim, sempre que o policial militar, nessa qualidade, vier a causar danos a terceiros, responderá o Poder Público por estes danos, independentemente de culpa, podendo, contudo, ressarcir-se dos prejuízos sofridos com a referida indenização, por meio de ação regressiva, em desfavor do agente policial causador do dano, em caso de dolo ou culpa deste último.
A responsabilidade civil do Estado está assegurada em norma constitucional, como se verá.
Estudar-se-á a responsabilidade civil da Administração no crime de lesão corporal praticado por policial militar em serviço, bem como a obrigação do policial em ressarcir o ente estatal nos valores que este despendeu ao reparar o dano.
Em primeiro lugar, buscar-se-á expor um breve histórico da responsabilidade civil, analisando sua evolução desde os primórdios da civilização humana até os dias atuais. Ato contínuo, abordar-se-á a estrutura da responsabilidade civil, com a análise do seu conceito, elementos, fazendo-se, também, abordagem à responsabilidade civil do Estado: as teorias aplicáveis, seus fundamentos, previsão no direito brasileiro atual, bem como as excludentes da responsabilidade estatal.
Em seguida analisar-se-á o delito de lesão corporal, em toda sua essência, bem como os danos a serem reparados.
Por derradeiro, estudar-se-á alguns aspectos referentes à segurança pública na atual
Constituição. Demonstrar-se-á a responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal praticado em serviço, bem como as excludentes de sua responsabilidade, analisadas de forma individual, a responsabilidade no excesso punível, e a controvertida questão da denunciação da lide no bojo da ação indenizatória.
2 RESPONSABILIDADE CIVIL
2.1 Evolução da responsabilidade civil
Nas primeiras formas organizadas da sociedade humana, as pessoas não cogitavam da responsabilidade de quem causasse um dano; reinava nas relações sociais a vingança. O dano provocava a reação imediata, instintiva e brutal do ofendido. Nessa época não havia regras, nem limitações. Tampouco imperava o direito. Era a fase da vingança privada (GONÇALVES, 2009, p. 4), idéia que predominou até mesmo entre os romanos, que não se distanciaram, nesse instituto, das civilizações anteriores (PEREIRA, 2001, p. 2).
Sobre esse período, Alvino Lima (1999, p. 19-20) esclarece:
A responsabilidade civil no direito romano tem seu ponto de partida na vingança privada, forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal. É a vingança pura e simples, a justiça feita pelas próprias mãos da vítima de uma lesão, ou seja, a pena privada perfeita, no qualificativo de Hugueney, porque tudo depende do agressor.
Com o passar dos tempos, a aplicação natural e espontânea da vingança, fruto de um sentimento selvagem de revolta da vítima, passa a ser regulada pelo ordenamento jurídico. Segundo Lima (1999, p. 20) “o poder público passa a intervir no sentido de permiti-la ou de excluí-la quando injustificável.”
Como ensina Caio Mário da Silva Pereira (2001, p. 3):
Vem do ordenamento mesopotâmico, como do Código de Hamurabi, a idéia de punir o dano, instituindo contra o causador um sofrimento igual; não destoa o Código de Manu, nem difere essencialmente o antigo direito Hebreu.
E acrescenta:
Remontando à Lex XII Tabularum, lá se encontraram vestígios da vingança privada, marcada todavia pela intervenção do poder público, no propósito de discipliná-la de uma certa forma[...] Nesta fase da vindicta não se pode cogitar da idéia de culpa, dada a relevância do fato mesmo de vingar.
Era a fase da pena de Talião: “olho por olho, dente por dente”.
Em seguida, vem o período da composição voluntária entre a vítima e o ofensor, onde aquela, ao invés de aplicar uma medida de igual sofrimento ao causador do dano, recebia, a título de reparação, uma importância em dinheiro ou outros bens. A transação ainda não era obrigatória, e, na falta de um acordo, o mesmo mal sofrido pela vítima seria causado ao agente do dano (PEREIRA, 2001, p. 2).
Essa fase é sucedida pela da composição tarifada ou obrigatória, imposta pela Lei das XII Tábuas, que fixava, em casos concretos, o valor da pena a ser paga pelo ofensor. É a reação contra a vingança privada, que é assim abolida e substituída pela composição obrigatória. O Estado vedou a vítima fazer justiça com as próprias mãos. Ainda que subsista o sistema do delito privado, nota-se, entretanto, a influência da inteligência social, compreendendo-se que a regulamentação dos conflitos não é somente uma questão entre particulares (LIMA, 1999, p. 21).
Destaca Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 5): “o Estado assumiu, assim, ele só, a função de punir. Quando a ação repressiva passou para o Estado, surgiu a ação de indenização”.
Cabe ressaltar, a Lei das XII Tábuas que determinou um quantum para a composição obrigatória, regulava casos concretos, sem um princípio geral fixador da responsabilidade civil.
Na verdade, o direito romano não chegou a construir uma teoria da responsabilidade civil, como, aliás, nunca se deteve na elaboração teórica de nenhum instituto. Sua elaboração se deu muito mais pelo trabalho dos romanistas numa construção dogmática baseada no desenvolvimento das decisões dos juízes e dos pretores, pronunciamentos dos jurisconsultos e constituições imperiais (PEREIRA, 2001, p. 1; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 52).
É com a Lex Aquilia que se realiza a maior revolução nos conceitos jus-romanísticos em termos de responsabilidade civil (PEREIRA, 2001, p. 3), através dela que constrói o direito romano a estrutura jurídica da responsabilidade extracontratual.
De data incerta, salienta Silvio de Salvo Venosa (2005, p. 27):
A Lex Aquilia foi um plebiscito aprovado provavelmente em fins do século III ou início do século II a.C., que possibilitou atribuir ao titular de bens o direito de obter o pagamento de uma penalidade em dinheiro de quem tivesse destruído ou deteriorado seus bens. Como os escravos eram considerados coisas, a lei também se aplicava na hipótese de danos ou morte deles. Punia-se por uma conduta que viesse a ocasionar danos. A idéia de culpa é centralizadora nesse intuito de reparação. Em princípio, a culpa é punível, traduzida pela imprudência, negligência ou imperícia, ou pelo dolo. Mais modernamente a noção de culpa sofre profunda transformação e ampliação.
Sua importância foi tão grande que deu nome à nova designação da responsabilidade extracontratual: a responsabilidade aquiliana (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 53).
Era composta de três capítulos. Nas palavras de Alvino Lima (1999, p. 21-22):
O primeiro regulava o caso da morte dos escravos ou dos quadrúpedes, da espécie dos que pastam em rebanho; o segundo, o do dano causado por um credor acessório ao principal, que faz abatimento da dívida com prejuízo do primeiro; o terceiro, o dano por ferimento causado aos escravos e animais visados no 1º capítulo e a destruição ou deterioração de todas as outras coisas corpóreas. A lei Aquilia, embora se referisse, como a Lei das XII Tábuas, a casos concretos, já encerrava um princípio de generalização, regulando o damnum injuria datum, muito embora estivesse longe de fixar uma regra de conjunto, nos moldes dos preceitos do Direito moderno.
A parte mais importante da lei está contida no último capítulo, pois na sua aplicação, cada vez mais extensiva, que os jurisconsultos do período clássico, assim como os pretores, construíram a verdadeira doutrina romana da responsabilidade extracontratual. O damnum injuria datum (dano produzido pela injúria) consistia na destruição ou deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido a coisa corpore et corpori, sem direito ou escusa legal. Concedida, a princípio, somente ao proprietário da coisa lesada, é mais tarde, por influência da jurisprudência, concedida aos titulares de direitos e aos possuidores, como a certos detentores, assim como aos peregrinos; estendera-se também aos casos de ferimentos em homens livres, quando a lei se referia às coisas e ao escravo, assim, como às coisas imóveis e à destruição de um ato instrumentário (testamento, caução), desde que não houvesse outro meio de prova (LIMA, 1999, p. 22).
Alvino Lima (1999, p. 22-23) salienta outras características da lei:
A lei Aquilia não se limitou a especificar melhor os atos ilícitos, mas substituiu as penas fixas, editadas por certas leis anteriores, pela reparação pecuniária do dano causado, tendo em vista o valor da coisa durante os 30 dias anteriores ao delito e atendendo, a princípio, ao valor venal; mais tarde, estendeu-se o dano ao valor relativo, por influência da jurisprudência, de sorte que a reparação podia ser superior ao dano realmente sofrido, se a coisa diminuísse de valor, no caso prefixado.
A evolução da responsabilidade aquiliana deve muito ao direito francês, que aperfeiçoando pouco a pouco as idéias românicas, estabeleceu nitidamente um princípio geral da responsabilidade civil, abandonando o critério de enumerar os casos de composição obrigatória. Como relata Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 6):
Aos poucos foram sendo estabelecidos certos princípios, que exerceram sensível influência nos outros povos: direito à reparação sempre que houvesse culpa, ainda que leve, separando-se a responsabilidade civil (perante a vítima) da responsabilidade penal (perante o Estado); a existência de uma culpa contratual (a das pessoas que descumprem as obrigações) e que não se liga nem a crime nem a delito, mas se origina da negligência ou imprudência. Era a generalização do princípio aquiliano: In lege Aquilia et levíssima culpa venit, ou seja, o de que a culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar.
Com a evolução da humanidade, o progresso e o desenvolvimento de novas tecnologias, ganhou espaço o surgimento de novas teorias, com destaque para a teoria do risco, que assegura o direito à reparação, independentemente da existência da culpa, como adiante se verá.
2.2 O conceito de responsabilidade civil no âmbito geral
A vida organizada em sociedade faz necessária a existência de um conjunto de preceitos disciplinadores que estabeleçam as normas indispensáveis à convivência entre as pessoas que a compõem. Esse conjunto de regras, denominado direito positivo, deve ser obedecido e cumprido por todos os integrantes, devendo, ainda, estabelecer as sanções aos que violarem seus preceitos.
Toda pessoa que pratica um ato, ou incorre numa omissão de que resulte dano, deve suportar as conseqüências do seu procedimento. Trata-se de uma regra elementar de equilíbrio social, na qual se resume, em verdade, o problema da responsabilidade. Percebe-se, assim, que a responsabilidade é um fenômeno social (GONÇALVES, 2009, p. 3).
O vocábulo responsabilidade, em sentido geral, exprime uma obrigação de responder por alguma coisa, responsabilizar uma pessoa pelos atos danosos cometidos. Sobre o tema lecionam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 51):
[...] a noção jurídica de responsabilidade pressupõe a atividade danosa de alguém que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual), subordinando-se, dessa forma, às conseqüências do seu ato (obrigação de reparar).
Trazendo esse conceito para o âmbito do Direito Privado, e seguindo essa mesma linha de raciocínio, diríamos que a responsabilidade civil deriva da agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior de coisas.
O civilista Silvio Rodrigues (2002, p. 6), citando Savatier, conceitua a responsabilidade civil como “a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam.”
Verifica-se que a responsabilidade civil tem como fundamento a infração a um dever de conduta que pode ocorrer por ação ou omissão, em virtude de atos próprios ou de terceiros, ou ainda de coisas, pelas quais se tenha responsabilidade legal.
O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito das obrigações, sendo a reparação dos danos algo sucessivo à transgressão de uma obrigação, dever jurídico ou direito. O Código Civil hodierno prevê o tema em seus artigos 186 a 188 e 927 a 954.
Cabe ressaltar, contudo, que a responsabilidade pode ser de várias naturezas (civil, criminal, tributária, entre outras), embora, considerada ontologicamente, o conceito seja o mesmo.
Necessário se faz, ainda que brevemente, trazer a diferença entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal.
A responsabilidade é chamada de civil ou penal tendo em vista exclusivamente a norma jurídica que impõe o dever violado pelo agente.
Na responsabilidade penal, o agente infringe uma norma prevista na legislação penal, de direito público. O interesse lesado é o da sociedade.
Na responsabilidade civil, o interesse diretamente lesado é o privado. O prejudicado poderá pleitear ou não a reparação (GONÇALVES, 2002, p. 8).
Frisa-se, todavia, que um mesmo fato pode ensejar as duas responsabilidades, não havendo bis in idem (incidência duas vezes sobre a mesma coisa) em tal circunstância, justamente pelo sentido de cada uma delas e das repercussões da violação do bem jurídico tutelado (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 47). Nesse caso, fica o agente ao mesmo tempo obrigado civil (com o dever de indenizar o dano causado) e sujeito a uma pena prevista na lei penal.
É o que acontece, por exemplo, quando causada uma lesão corporal leve em alguém, onde o causador do dano deverá ser condenado à pena de detenção de três meses a um ano, nos termos do art. 129, caput, do Código Penal e, ainda, a reparar o prejuízo causado à vítima, pagando despesas e ressarcindo todos os danos.
Entretanto, caso não se achem presentes nos fatos de que resultou o dano os elementos caracterizadores da infração penal, o equilíbrio rompido se estabelece com a reparação civil, simplesmente (GONÇALVES, 2009, p. 20).
Desta forma, como principais pontos de distinção, pode-se destacar que na responsabilidade civil a finalidade principal é o restabelecimento do equilíbrio sofrido pelo dano, sendo este equilíbrio buscado através de uma indenização, a fim de repará-lo, ou como forma de amenizá-lo, no caso de um dano moral. Ao passo que na responsabilidade penal, a finalidade primordial é punir quem causa um crime, sendo essa punição aplicada através de uma pena.
Há outras diferenças entre a responsabilidade civil e penal. Todavia, o foco deste trabalho é a análise da responsabilidade civil, especialmente a responsabilidade civil do Estado e do policial militar.
2.3 Elementos da responsabilidade civil extracontratual
O Código Civil traz em seu art. 186, a regra de que todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo. Prevê o dispositivo:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Dissecando o dispositivo, que cuida da responsabilidade aquiliana, evidencia-se que quatro são seus pressupostos: conduta (ação ou omissão), culpa, relação de causalidade e dano.
Passa-se ao estudo de tais elementos.
2.3.1 Conduta
O elemento primário de todo ato ilícito é uma conduta humana e voluntária no mundo exterior (STOCO, 2007, p. 129). Inexistindo a conduta, seja ela positiva (ação) ou negativa (omissão), não há responsabilização do agente.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 69), conceituam como “[...] conduta humana, positiva ou negativa (omissão), guiada pela vontade do agente, que desemboca no dano ou prejuízo”.
O núcleo fundamental da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz.
Diante disso, não se pode reconhecer o elemento “conduta humana”, pela ausência do elemento volitivo, na situação do sujeito que, apreciando um raríssimo pergaminho do século III, sofre uma micro-hemorragia nasal e, involuntariamente, espirra, danificando seriamente o manuscrito. Seria inadmissível, no caso, imputar ao agente a prática de um ato voluntário. Restará, apenas, verificar se houve negligência da diretoria do museu por não colocar o objeto em um mostruário fechado, com a devida segurança, ou, ainda, se o indivíduo violou normas internas, caso em que poderá ser responsabilizado pela quebra desse dever, e não pelo espirro em si (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 69).
Da mesma forma, não há ação voluntária, por faltar domínio da vontade humana, quando o indivíduo age impelido por forças naturais invencíveis, como no caso da pessoa que, projetada pela força de um furacão, venha a atingir um veículo, causando danos neste.
Sem o condão da voluntariedade, não há que se falar em ação humana, e, em decorrência, tampouco em responsabilidade civil.
Cabe ressaltar, que não se insere como elemento da voluntariedade a vontade de causar o prejuízo. Esta é um elemento definidor do dolo (STOCO, 2007, p. 130). O que importa é ter o agente a consciência daquilo que está fazendo, ou seja, agir com sua livre capacidade de autodeterminação (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 70).
Para a configuração da responsabilidade por omissão é necessário que exista o dever jurídico de praticar determinado fato (de não se omitir) e que se demonstre que, com sua prática, o dano poderia ter sido evitado.
O dever jurídico de não se omitir pode ser imposto por lei (como no caso do bombeiro que não pode se omitir ao ver uma pessoa tendo parada cardíaca) ou resultar de convenção e até da criação de alguma situação especial de perigo.
2.3.2 Culpa
A doutrina clássica costuma apontar a culpa como um dos pressupostos da responsabilidade civil, ao lado da conduta, dano e nexo causal. Assim, como já explanado, seriam quatro os elementos da obrigação de indenizar. Defendem essa estrutura, entre outros, autores como Silvio Rodrigues (2002, p. 14), Washington de Barros Monteiro (1997, p. 392), Silvio de Salvo Venosa (2005, p. 17-18), Francisco Amaral (2003, p. 154), Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 33) e Rui Stoco (2007, p. 131). Por outro lado, entendendo que a culpa não seria elemento obrigatório da responsabilidade civil, pode-se encontrar civilistas como Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 67) e Vaneska Donato de Araújo (2008, p. 35).
Esta última corrente entende que a culpa não se encontra mais entre os pressupostos da responsabilidade civil, justamente pelo fato do Código hodierno, refletindo as mudanças sofridas pela sociedade humana, especialmente após as duas grandes guerras, ter priorizado muito mais a idéia da responsabilidade calcada na atividade de risco, prevendo, assim, hipóteses de responsabilidade sem culpa: a responsabilidade objetiva. Por esse entendimento, os pressupostos da responsabilidade civil seriam: a conduta, o dano e o nexo causal, tão somente.
Contudo, razão parece assistir a primeira corrente, ao defender a idéia de que a previsão da responsabilidade objetiva em algumas passagens do Codex atual trata-se de uma exceção, e não regra geral, que continua sendo a responsabilidade subjetiva. Tampouco se poderia falar em um sistema dualista. A regra geral estabelecida no art. 186 não deixa dúvidas ao estabelecer que o ato ilícito somente se materializa se for praticado em afronta à lei e que esse comportamento seja culposo, ou seja, mediante dolo ou culpa stricto sensu. Nas palavras de Rui Stoco (2007, p. 132): “as exceções em maior número e abarcando outras hipóteses fáticas não contrariam a regra. Ao contrário, a confirmam”.
Superada a discussão, passa-se ao conceito de culpa. Na lição de Savatier apud Arnoldo Wald (1989, p. 370), “culpa é a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar”.
Para José de Aguiar Dias (1979, p. 136):
A culpa é a falta de diligência na observância da norma de conduta, isto é, o desprezo, por parte do agente, do esforço necessário para observá-la, com resultado não objetivado, mas previsível, desde que o agente se detivesse na consideração das conseqüências eventuais de sua atitude.
A culpa pode ocorrer de duas formas. A culpa em sentido amplo, que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito. No dolo, o agente procura intencionalmente o resultado e na culpa em sentido estrito o ato se dá por negligência, imprudência ou imperícia. Em sede de indenização, porém, as conseqüências são idênticas (VENOSA, 2005, p. 33).
Arnoldo Wald (1989, p. 370) esclarece os dois sentidos em que pode ocorrer a culpa do agente:
Em sentido lato, a culpa abrange tanto o dolo como a culpa em sentido estrito. Dolo é a vontade consciente de violar o dever e, consequentemente, de lesar terceiros. Culpa é a conduta imprudente, negligente ou caracterizada pela imperícia, que enseja a violação de um dever jurídico ou técnico.
Pode-se dizer que no ato intencional, impregnado de dolo, o agente quer a ação e o resultado, enquanto na culpa ele só quer a ação, mas não deseja o resultado lesivo.
Caso não ocorra esse intento deliberado, proposital, vindo o prejuízo a surgir, por imprudência, negligência ou imperícia, existe a culpa em sentido estrito.
Exemplificando os conceitos e diferenças entre imprudência, negligência e imperícia, Rui Stoco (2007, p. 134) destaca:
A imprudência é a falta de cautela, o agir açodado ou precipitado, através de uma conduta comissiva, ou seja, um fazer (facere), como quando a pessoa dirige seu veículo com excesso de velocidade.
A negligência é o descaso, a falta de cuidado ou de atenção, a indolência, geralmente o non facere quod debeatur, quer dizer, a omissão quando do agente se exigia uma ação ou conduta positiva. Pode-se identificá-la na conduta do empregado que deixa de trancar a porta ou o cofre da empresa, que vem a ser assaltada, ou do tratador que esquece de fechar o canil, deixando soltos os animais e estes atacam e lesionam algumas crianças.
A imperícia é a demonstração de inabilidade por parte do profissional no exercício de sua atividade de natureza técnica, a demonstração de incapacidade para o mister a que se propõe, como o médico que, por falta de conhecimento técnico, erra no diagnóstico ou retira um órgão do paciente desnecessariamente ou confunde veia com artéria. Pode identificar-se a imperícia através de ação ou omissão.
A doutrina traz, ainda, vários graus de extensão de culpa, quais sejam: culpa lata ou grave, leve e levíssima. Na lição de Rui Stoco (2007, p. 135):
[...] na culpa grave [...] embora o comportamento não seja intencional, o autor do fato, sem querer causar o dano, comportou-se como se o tivesse querido [...]
Culpa leve é a falta de diligência média que um homem normal observa em sua conduta.
Culpa levíssima, a falta cometida em razão de uma conduta que escaparia ao padrão médio, mas que um diligentíssimo pater famílias, especialmente cuidadoso, guardaria.
O ordenamento pátrio desprezou a gradação da culpa, embora não a tenha abandonado por inteiro, pois a gravidade da culpa pode ser utilizada pelo juiz para reduzir, equitativamente, o valor da indenização (STOCO, 2007, p. 135).
Tal medida foi adotada pelo Código Civil atual, dispondo em seu art. 944 que: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. E no seu parágrafo único: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”.
Nesse diapasão, verifica-se, que para a fixação do valor da indenização, é importante a extensão do dano, bem como o grau de culpa.
A doutrina menciona, ainda, outras modalidades de culpa: culpa in eligendo, culpa in vigilando, culpa in committendo, culpa in omittendo.
Culpa in eligendo é a oriunda da má escolha do representante, ou do preposto. É o que ocorre, por exemplo, no fato de admitir ou manter a seu serviço empregado não legalmente habilitado, ou sem as aptidões requeridas (MONTEIRO, 1997, p. 393).
Culpa in vigilando é a que promana de ausência de fiscalização por parte do patrão, tanto em relação aos seus empregados, quanto no tocante à própria coisa. Cita-se como exemplos, a empresa de transportes que tolera a saída de veículos desprovidos de freios, dando causa a acidentes; ou do hoteleiro que não vigia as dependências do hotel, permitindo o acesso de ladrões que espoliam os hóspedes respectivos (MONTEIRO, 1997, p. 393).
Culpa in committendo caracteriza-se quando o agente pratica ato positivo (imprudência) ao passo que a culpa in omittendo decorre de ato omissivo, uma abstenção (negligência) e a culpa in custodiendo, quando falta cautela ou atenção em torno de alguma pessoa, de algum animal, ou de algum objeto, sob os cuidados do agente (MONTEIRO, 1997, p. 394).
Tem-se, ainda, a culpa in concreto, quando o agente falta à diligência que as pessoas são obrigadas a empregar nas próprias coisas e, a culpa in abstracto, quando o agente falta àquela atenção que um homem atento emprega na administração dos seus negócios, fazendo uso da inteligência com que foi dotado pela natureza (STOCO, 2007, p. 136).
A configuração da culpa só se mostra necessária nos casos de responsabilidade subjetiva, onde também terá que ser provado o dano, a conduta e o nexo causal. Na responsabilidade objetiva basta o lesado provar a conduta, o prejuízo sofrido e o nexo de causalidade, prescindindo-se da existência de culpa do agente.
2.3.3 Dano
De todos os pressupostos, o único que pode ser dispensado, em algumas situações, é a culpa. Os demais elementos, contudo, são imprescindíveis. Não se pode cogitar em responsabilidade civil ou em dever de indenizar se não houver dano (GONÇALVES, 2009, p. 595).
Assim, mesmo havendo violação de um dever jurídico e que tenha existido culpa por parte do agente, nenhuma indenização será devida se não for verificado o prejuízo.
Ao contrário do que ocorre no direito penal, que nem sempre exige um resultado danoso para estabelecer a punibilidade do agente (crimes formais e de mera conduta), no âmbito civil é a extensão ou o quantum do dano que dá a dimensão da indenização.
Vaneska Donato de Araújo (2008, p. 43), conceitua dano: “significa uma lesão ou diminuição do patrimônio de determinada pessoa por outra, ou, a diferença entre o estado atual do patrimônio que o sofre e o que teria se o fato danoso não se tivesse produzido”.
O conceito deixado por Arnoldo Wald (1989, p. 372) é esclarecedor: “dano é a lesão sofrida por uma pessoa no seu patrimônio ou na sua integridade física, constituindo, pois, uma lesão causada a um bem jurídico, que pode ser material ou imaterial”.
Para que o dano seja passível de indenização é necessária a configuração de alguns requisitos, que, de acordo com Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 82) são os seguintes: a) violação de um interesse jurídico-patrimonial ou moral; b) efetividade ou certeza; c) subsistência do dano no momento da reclamação do lesado.
Os civilistas supramencionados destacam ainda que “todos os outros aventados por respeitável doutrina, como a legitimidade do postulante, o nexo de causalidade e a ausência de causas excludentes de responsabilidade, posto necessários, tocam, em nosso entendimento, mais de perto a aspectos extrínsecos ou secundários à consideração do dano em si” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 82).
Cabe destacar, ainda, que nenhuma indenização será devida se o dano não for atual e certo. Isto porque nem todo dano é ressarcível, mas somente o que preencher os requisitos de certeza e atualidade, pois um dano futuro não justifica uma ação de indenização.
Não se admite, inclusive, indenização por dano hipotético, que seria aquele resultante de um possível agravamento da lesão.
O dano pode ser de ordem patrimonial, também dito material, ou de ordem moral, ou de ordem estética.
O dano patrimonial traduz lesão aos bens e direitos economicamente apreciáveis do seu titular. Assim ocorre quando a pessoa sofre um dano em sua casa ou em seu veículo. O dano patrimonial pode ser analisado sob dois aspectos:
1) o dano emergente – correspondente ao efetivo prejuízo experimentado pela vítima, ou seja, o que ela perdeu.
2) os lucros cessantes – correspondente àquilo que a vítima deixou razoavelmente de lucrar por força do dano, ou seja, o que ela não ganhou (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 83).
Por sua vez, o dano moral é aquele que atinge a honra, a imagem, a privacidade e outros atributos da personalidade. Como conceitua Rui Stoco (2007, p. 128):
O chamado dano moral corresponde à ofensa causada à pessoa à parte subjecti, ou seja, atingindo bens e valores de ordem interna ou anímica, como a honra, a imagem, o bom nome, a intimidade, a privacidade, enfim, todos os atributos da personalidade.
Quanto à diferença na indenização por dano material e moral, ensina o doutrinador, que no primeiro “[...] não sendo possível o retorno ao statu quo ante, se indeniza pelo equivalente em dinheiro, enquanto o dano moral, por não ter equivalência patrimonial ou expressão matemática, se compensa com um valor convencionado, mais ou menos aleatório” (STOCO, 2007, p. 128).
No dano moral não há ressarcimento, por ser praticamente impossível restaurar o bem lesado. O sofrimento, a dor, a vergonha, o constrangimento são irressarcíveis. A reparação do dano moral deve ter por objetivo possibilitar ao lesado uma satisfação compensatória e, ainda, servir de desestímulo a novas práticas lesivas daquele que causou o dano, prevenindo-se condutas semelhantes por parte do lesante e de toda a sociedade.
A reparação do dano não pode converter-se em fonte de enriquecimento da vítima, ou seja, com a reparação, a vítima não pode ficar numa situação econômica melhor que aquela em que se encontrava anteriormente ao ato delituoso.
Por fim, não se poderia esquecer do dano estético. Nas palavras de Vaneska Donato de Araújo (2008, p. 101):
O dano estético pode ser entendido como aquele que atinge o aspecto físico da pessoa humana, mediante modificação permanente ou duradoura em sua aparência, implicando em lesão à beleza física, traduzida na quebra de harmonia das formas externas de outrem, ou seja, em sua imagem, prejudicando ou não sua capacidade laborativa.
Conforme já sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, é pacífica a cumulação do dano material com o dano moral: “Súmula nº. 37 - São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.
Verifica-se controvérsia entre os experts no que se refere à cumulação do dano moral com o dano estético. Todavia, em casos concretos, a jurisprudência tem negado a cumulação (VENOSA, 2005, p. 51).
2.3.4 Nexo causal
Para que haja obrigação de indenizar, é necessária a existência de uma relação de causalidade entre o fato ilícito e o dano por ele produzido. Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 584) afirma que o art. 186, do Código Civil a exige expressamente, ao atribuir a obrigação de reparar o dano àquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causar prejuízo a outrem. O nexo causal é o vínculo entre a conduta e o resultado (STOCO, 2007, p. 150).
Nesse diapasão, antes mesmo de verificar se o agente do fato sob análise agiu com culpa, tem-se, como antecedente lógico, que examinar se foi ele quem deu causa ao resultado.
Muitas vezes é difícil de encontrar-se a origem do dano, pois podem surgir várias causas, que são classificadas como concausas, e que podem ser sucessivas ou simultâneas. Nas simultâneas ocorre apenas um dano, ocasionado por mais de uma causa ao mesmo tempo. Por sua vez, nas sucessivas, há um encadeamento de causas e efeitos, e nessas é que reside a dificuldade.
Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 586-588) explica as três teorias acerca das concausas sucessivas:
Três são as principais teorias a respeito: a da equivalência das condições, a da causalidade adequada e a que exige que o dano seja conseqüência imediata do fato que o produziu.[...]
Pela teoria da equivalência das condições, toda e qualquer circunstância que haja concorrido para produzir o dano é considerada uma causa. A sua equivalência resulta de que, suprimida uma delas, o dano não se verificaria.
[...] A segunda teoria, a da causalidade adequada, somente considera como causadora do dano a condição por si só apta a produzi-lo. Ocorrendo certo dano, temos de concluir que o fato, que o originou era capaz de lhe dar causa.
[...] A terceira teoria, a dos chamados danos diretos e imediatos, nada mais é do que um amálgama das anteriores, com certa amenização no que tange às extremas conseqüências a que se pudesse chegar na aplicação prática de tais teorias[...] Assim, “é indenizável todo dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano”.
Pela teoria da equivalência das condições, não se pode diferenciar entre causa, isto é, aquilo de que algo dependa para existir e condição, ou seja, o que permite que a causa produza seus efeitos. Se várias condições concorrem para o mesmo resultado, considera-se que todas possuem o mesmo valor, isto é, que se equivalem para a produção do dano (ARAÚJO, 2008, p. 47).
Registra Vaneska Donato de Araújo (2008, p. 47):
É no bojo dessa teoria que faz sentido a expressão conditio sine qua non, posto que aqui se indaga sobre as condições sem as quais o evento não teria se produzido. Para saber se uma determinada condição é causa do evento, procede-se mentalmente à sua eliminação. Se, com a eliminação da condição, o resultado desaparecer, aquela condição é causa do resultado; se persistir, não é.
A crítica que se faz à teoria da equivalência das condições é justamente o fato de considerar causa todo o antecedente que contribua para o desfecho danoso. A cadeia causal, seguindo esta linha de intelecção, poderia levar a sua investigação ao infinito.
Afirma Gustavo Tepedino (2001, p. 3): “a inconveniência desta teoria, logo apontada, está na desmesurada ampliação, em infinita espiral de concausas, do dever de reparar, imputado a um sem-número de agentes. Afirmou-se, com fina ironia, que a fórmula tenderia a tornar cada homem responsável por todos os males que atingem a humanidade”.
Explicam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2010, p. 129):
Nessa linha, se o agente saca a arma e dispara o projétil, matando o seu desafeto, seria considerado causa, não apenas o disparo, mas também a compra da arma, a sua fabricação, a aquisição do ferro e da pólvora pela indústria etc., o que envolveria, absurdamente, um número ilimitado de agentes na situação de ilicitude.
Devido a todos esses inconvenientes e imprecisões o legislador não adotou essa teoria.
De outro vértice, a teoria da causalidade adequada preceitua que causa é tão somente aquele antecedente mais adequado à produção do resultado. De todas as condições consideradas necessárias à produção do resultado, destaca-se aquela que é a mais apta: a causa. É a experiência comum que informa qual, dentre todas as condições concorrentes, é a mais idônea a produzir o evento (ARAÚJO, 2008, p. 48).
Da doutrina colhe-se alguns exemplos, como o caso da pessoa inconveniente que retém outra no aeroporto, de forma ilícita, fazendo-a se atrasar e perder um avião. Esta pessoa embarca no vôo seguinte, mas este avião cai, matando-a. Pela teoria da causalidade adequada, não se pode considerar a retenção indevida como causa da morte, pois, em abstrato, esse fato não seria causa adequada a produzir aquele evento. “Só há causalidade entre um fato e um dano quando aquele for considerado adequado a produzir este, segundo o curso normal e a experiência comum da vida” (ARAÚJO, 2008, p. 48).
Sobre a teoria dos danos diretos e imediatos, explica Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 587), que a interrupção do nexo causal ocorreria, toda vez que, devendo impor-se um determinado resultado como normal conseqüência do desenrolar de certos acontecimentos, tal não se verificasse pelo surgimento de uma circunstância outra que, com anterioridade, fosse aquela que acabasse por responder por esse mesmo esperado resultado. Tal circunstância outra se constituiria na chamada causa estranha.
Exemplifica o civilista (2009, p. 588):
O agente primeiro responderia tão-só pelos danos que se prendessem a seu ato por um vínculo de necessariedade. Pelos danos conseqüentes das causas estranhas responderiam os respectivos agentes. No clássico exemplo do acidentado que, ao ser conduzido em uma ambulância para o hospital, vem a falecer em virtude de tremenda colisão da ambulância com outro veículo, responderia o autor do dano primeiro da vítima, o responsável pelo seu ferimento, apenas pelos prejuízos de tais ferimentos oriundos. Pelos danos da morte dessa mesma vítima em decorrência do abalroamento da ambulância, na qual era transportada ao hospital, com o outro veículo, responderia o motorista da ambulância ou do carro abalroador, ou ambos. Mas o agente do primeiro evento não responderia por todos os danos, isto é, pelos ferimentos e pela morte.
O Código Civil adotou a teoria dos danos diretos e imediatos (GONÇALVES, 2009, p. 589), conforme prevê o art. 403, do mesmo estatuto, que disciplina:
Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
De tal modo, deve ficar comprovado que entre a ação ou omissão que causou o prejuízo, houve uma ligação, a fim de que haja a responsabilidade por parte do lesante.
2.4 Responsabilidade civil do Estado
No âmbito privado, a reparação de um dano patrimonial poderá resultar da infração das cláusulas de um contrato ou de obrigações gerais, que todos devam respeitar, referentes ao patrimônio e à incolumidade alheios. A primeira é a responsabilidade contratual, e a segunda, a responsabilidade extracontratual, ambas, modalidades da responsabilidade civil, de natureza distinta da responsabilidade penal, bem como da administrativa (MOREIRA NETO, 2009, p. 656).
Por outro lado, na órbita pública, o Estado, ao administrar direta ou indiretamente os interesses públicos a seu cargo, se sujeita igualmente a respeitar o patrimônio dos administrados e sua incolumidade pessoal. Portanto, uma atuação do Poder Público que os prejudique de fato é objetivamente injurídica e o torna, juntamente com seus delegatários de serviços públicos, responsáveis pelas perdas e danos causados (MOREIRA NETO, 2009, p. 656).
Diógenes Gasparini (2009, p. 1042) conceitua a responsabilidade civil do Estado como: "a obrigação que se lhe atribui de recompor os danos causados a terceiros em razão de comportamento unilateral comissivo ou omissivo, legítimo ou ilegítimo, material ou jurídico, que lhe seja imputável".
Marçal Justen Filho (2010, p. 1243) por sua vez, defini: “A responsabilidade civil do Estado consiste no dever de indenizar as perdas e danos materiais e morais sofridos por terceiros em virtude de ação ou omissão antijurídica imputável ao Estado”.
Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade civil exige sempre um ato ilícito, no âmbito do direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade. Nessa linha de raciocínio, a responsabilidade estatal pode decorrer de atos jurídicos, ilícitos, de comportamentos materiais ou de omissão do Poder Público. O fundamental é que haja um dano causado a terceiro por comportamento omissivo ou comissivo de agente do Estado (DI PIETRO, 2007, p. 595).
A responsabilidade estatal pode resultar de atos do poder executivo, legislativo ou judiciário. Aqui, tratar-se-á somente dos atos praticados por membros do poder executivo, no caso, dos policiais militares.
2.4.1 Evolução da responsabilidade estatal
No transcorrer dos séculos a responsabilidade civil do Estado recebeu diversos tratamentos, passando por várias fases, conhecendo-se as seguintes teorias:
a) Irresponsabilidade do Estado – Por tal teoria, não havia responsabilização do Estado ante os atos de seus agentes que fossem lesivos aos particulares. Vigorou, de início, em todos os Estados, mas alcançou sua maior notoriedade sob os regimes absolutistas (GASPARINI, 2009, p. 1044). Baseava-se na idéia de que o rei não cometia erros e não podia fazer mal – the king can do no wrong (o rei não erra) ou lê roi ne peut mal faire (o rei não pode fazer mal), expressões famosas na Inglaterra e França, respectivamente (MELLO, 2009, p. 991).
Deste modo, os agentes públicos, como representantes do próprio rei, não poderiam ser responsabilizados por seus atos, ou melhor, seus atos, na qualidade de atos do rei, não poderiam ser considerados lesivos aos súditos.
No ordenamento pátrio, nunca existiu previsão desta teoria (BASTOS, 2002, p. 294). Entretanto, a Constituição do Império de 1824 previa a reparação do dano pelo próprio servidor público no item 29, do art. 179, “ressalvado o Imperador, que não estava submetido a qualquer responsabilidade, nos termos do art. 99 dessa Lei maior” (GASPARINI, 2009, p. 1044).
Como ensina Hely Lopes Meirelles (2005, p. 630), esta teoria está inteiramente superada, haja vista, que as duas últimas nações que a sustentavam, Inglaterra e Estados Unidos da América do Norte, abandonaram-na, respectivamente, pelo Crow Proceeding Act, de 1947, e pelo Federal Tort Claims Act, de 1946.
b) Responsabilidade com culpa civil do Estado ou responsabilidade subjetiva do Estado – após pacificada a idéia genérica da responsabilização, a primeira solução que acudiu a legisladores e a julgadores foi fundada no Direito Civil colocando o Estado em igualdade de condições com os particulares e, por isso, se exigindo a prova da culpa, o que demandava ao já vitimado por um dano um acrescido ônus de comprovar a culpa do agente estatal diretamente causador do dano.
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 597-598):
Numa primeira fase, distinguia-se, para fins de responsabilidade, os atos de império e os atos de gestão. Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum.
Com o passar do tempo surgiu grande oposição a esta teoria, como assinala a administrativista (2007, p. 598):
Surgiu, no entanto, grande oposição a essa teoria, quer pelo reconhecimento da impossibilidade de dividir-se a personalidade do Estado, quer pela própria dificuldade, senão impossibilidade, de enquadrar-se como atos de gestão todos aqueles praticados pelo Estado na administração do patrimônio público e na prestação de seus serviços.
A aplicação da teoria civilista foi marcada por dois períodos: primeiro, a partir da distinção entre os atos de império (persistia a irresponsabilidade) e os atos de gestão (capazes de gerar a responsabilidade civil do Estado); segundo, o que admitia apenas a responsabilização subjetiva, fundada na culpa do agente, nos moldes do direito civil.
c) Teoria da culpa administrativa – Esta teoria representou o primeiro estágio da transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a responsabilidade objetiva, atualmente adotada pela maioria dos países ocidentais (MEIRELLES, 2005, p. 638).
Segundo esta teoria, o dever do Estado indenizar o dano sofrido pelo particular somente existe caso seja comprovada a existência da falta do serviço. Não se trata de perquirir da culpa subjetiva do agente, mas da ocorrência de falta na prestação do serviço, falta essa objetivamente considerada. A tese subjacente é que somente o dano decorrente de irregularidade na execução da atividade administrativa ensejaria indenização ao particular, ou seja, exige-se também, uma espécie de culpa, mas não culpa subjetiva do agente e sim uma culpa especial da administração à qual convencionou-se chamar de culpa administrativa.
Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 599):
Essa culpa do serviço público ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação da culpa do funcionário.
Sobre o tema, esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 993) que a responsabilidade por “falta de serviço”, “falha do serviço” ou “culpa do serviço” não é modalidade de responsabilidade objetiva, mas sim, responsabilidade subjetiva porque baseada na culpa ou dolo.
d) Teoria do risco administrativo – Por essa teoria, a obrigação de o Estado indenizar o dano surge, tão-só, do ato lesivo de que ele, Estado, foi o causador. Não se exige a culpa do agente público, nem a culpa do serviço. É suficiente a prova da lesão e de que esta foi causada pelo Estado. A culpa é inferida do fato lesivo, ou, vale dizer, decorrente do risco que a atividade pública gera para os administrados (GASPARINI, 2009, p. 1047). Basta que exista o dano, sem que para ele tenha concorrido o particular. Resumidamente, existindo o fato do serviço e o nexo de causalidade entre o fato e o dano ocorrido, presume-se a culpa da Administração.
Hely Lopes Meirelles (2005, p. 631), discorrendo sobre esta teoria, ensina:
A teoria do risco administrativo faz surgir a obrigação de indenizar o dano do só ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração. Não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem o concurso do lesado. Na teoria da culpa administrativa exige-se a falta do serviço; na teoria do risco administrativo exige-se, apenas, o fato do serviço. Naquela, a culpa é presumida da falta administrativa; nesta, é inferida do fato lesivo da Administração.
O Estado só se eximirá da obrigação de indenizar se comprovar a existência de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito e força maior. Se comprovar a culpa concorrente da vítima, terá atenuada sua obrigação.
Portanto, o Estado deverá indenizar o particular prejudicado, sendo prescindível a existência de culpa ou dolo de seus agentes. Em qualquer caso, o ônus de provar a existência de causas excludentes da obrigação de indenizar, cabe sempre à Administração.
e) Teoria do risco integral - A teoria do risco integral representa uma exacerbação da responsabilidade civil do Estado. Por esta teoria, basta a só existência do evento danoso e do nexo causal para que surja a obrigação de indenizar da Administração, não se admitindo excludentes de ilicitude. Não basta que o dano resulte de culpa exclusiva do particular, ou de um terceiro, caso fortuito ou força maior. Segundo Hely Lopes Meirelles (2005, p. 631):
A teoria do risco integral é a modalidade extremada da doutrina do risco administrativo, abandonada na prática, por conduzir ao abuso e à iniqüidade social. Por essa fórmula radical, a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Daí porque foi acoimada de “brutal”, pelas graves conseqüências que haveria de produzir se aplicada na sua inteireza.
Essa teoria não foi adotada pelo ordenamento jurídico pátrio. Contudo, a moderna doutrina vem defendendo sua aplicação em casos de responsabilidade por dano ambiental, devido às conseqüência que tais eventos causam para várias gerações. Defendendo a aplicação da teoria do risco integral nos danos causados ao meio ambiente, Édis Milaré (2009, p. 955) afirma:
Nada obstante acoimada de radical, parece fora de dúvida ter-se vinculado a responsabilidade objetiva, em tema de tutela ambiental, à teoria do risco integral, que atende à preocupação de se estabelecer um sistema o mais rigoroso possível, ante o alarmante quadro de degradação que se assiste não só no Brasil, mas em todo o mundo.
Aliás, antes mesmo da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente de 1981, Sérgio Ferraz, em pioneiro posicionamento, sustentava que, “em termos de dano ecológico, não se pode pensar em outra colocação que não seja a do risco integral. Não se pode pensar em outra malha que não seja a malha realmente bem apertada, que possa, na primeira jogada da rede, colher todo e qualquer possível responsável pelo prejuízo ambiental.”
Vale dizer: “O dever de indenizar se faz presente tão-só em face do dano, ainda nos casos de culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou de força maior.”
Diógenes Gasparini (2009, p. 1048) faz um apanhado geral sobre todas essas teorias:
Por fim, diga-se que, se tais teorias obedeceram a essa cronologia, não quer isso dizer que hoje só vigore a última a aparecer no cenário jurídico dos Estados, isto é, a teoria da responsabilidade patrimonial objetiva do Estado ou teoria do risco administrativo. Ao contrário, em todos os Estados acontecem ou estão presentes as teorias da culpa administrativa e do risco administrativo, desprezadas as da irresponsabilidade e do risco integral. Aquela (culpa administrativa) se aplica, por exemplo, para responsabilizar o Estado por danos decorrentes de casos fortuitos ou de força maior, em que o Estado indeniza se tiver se omitido em comportamentos impostos por lei. Esta (risco administrativo), nos demais casos.
Como se observa, várias foram as teorias adotadas durante a evolução da responsabilidade civil do Estado. Adiante se verá qual delas vigora com maior ênfase no ordenamento jurídico brasileiro atual.
2.4.2 Fundamentos que justificam a responsabilidade objetiva do Estado
Necessário se faz destacar a justificativa da existência da responsabilidade estatal, ou seja, a razão pela qual são estabelecidos os vários casos ensejadores da obrigação do Estado de reparar o dano.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 997, grifo do autor) afirma que o fundamento se biparte. Nas suas palavras:
a) no caso de comportamentos ilícitos comissivos ou omissivos, jurídicos ou materiais, o dever de reparar o dano é a contrapartida do princípio da legalidade. Porém, no caso de comportamentos ilícitos comissivos, o dever de reparar já é, além disso, imposto também pelo princípio da igualdade.
b) No caso de comportamentos lícitos, assim como na hipótese de danos ligados a situação criada pelo Poder Judiciário – mesmo que não seja o Estado o próprio autor do ato danoso -, entendemos que o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito.
Neste sentido, a fundamentação da responsabilidade estatal reside, principalmente, na busca de uma repartição igual do ônus proveniente de atos ou dos efeitos oriundos das atividades da Administração. Evita-se, com a repartição entre todos os cidadãos, do ônus financeiro da indenização, que somente alguns suportem os prejuízos ocorridos por causa de uma atividade desempenhada pelo Estado no interesse de todos. É a idéia fundamental: se todos seriam beneficiados pelos fins visados pela Administração, todos devem suportar igualmente os riscos decorrentes dessa atividade, ainda que essa atividade tenha sido praticada de forma irregular, porém em nome da Administração. É, em última análise, mais uma face do princípio basilar da igualdade.
Ainda nesse aspecto, verifica-se que a responsabilidade objetiva reconhece a desigualdade jurídica existente entre o particular e o Estado, decorrente das prerrogativas de direito público a este inerentes, prerrogativas estas que, por visarem à tutela do interesse da coletividade, sempre assegurarão a prevalência jurídica destes interesses ante os do particular.
Portanto, seria injusto que aqueles que sofrem danos patrimoniais ou morais decorrentes da atividade da Administração precisassem comprovar a existência de culpa da Administração ou de seus agentes para que vissem assegurado seu direito à reparação.
2.4.3 Responsabilidade civil do Estado no Direito brasileiro atual
A Carta Magna, em seu art. 37, § 6º, seguiu a linha traçada nas Constituições anteriores e manteve a responsabilidade civil objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo.
A adoção constitucional da teoria do risco administrativo, torna defesa a possibilidade de previsão normativa de quaisquer outras teorias, nem mesmo admitindo chegar-se aos extremos do risco integral (MEIRELLES, 2005, p. 634).
Dispõe o § 6º, do art. 37, da Constituição da República:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Da apreciação do dispositivo resta claro que a Constituição previu para todas as entidades estatais e seus desmembramentos administrativos a obrigação de indenizar o dano causado a terceiros por seus servidores, independentemente de prova de culpa no cometimento da lesão. Firmou, assim, o princípio objetivo da responsabilidade sem culpa pela atuação lesiva dos agentes públicos e seus delegados (MEIRELLES, 2005, p. 635).
Assim, basta a ocorrência do dano resultante da atuação administrativa, independentemente de culpa, sendo a norma constitucional aplicável à Administração direta e indireta, bem assim às prestadoras de serviço público, ainda que constituídas sob os domínios do direito privado.
O Estado é civilmente responsável por condutas administrativas de qualquer das pessoas jurídicas de direito público: União, Estados, Distrito Federal, Municípios, Territórios, autarquias e as fundações públicas de natureza autárquica; e por pessoas jurídicas de direito privado: empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações regidas pelo direito civil, que prestem serviços públicos, bem assim por atos decorrentes de prestadores de serviços públicos em regime de concessão ou permissão.
Frisa-se que as pessoas jurídicas de direito privado que não prestam serviço público, mas exploram atividade econômica, não são alcançadas pelo § 6º, do art. 37, da CRFB, mas ainda assim, poderão responder objetivamente por força de disposições legais infraconstitucionais, como o Código de Defesa do Consumidor e os arts. 927, parágrafo único e 931, do Código Civil:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.
Hely Lopes Meirelles (2005, p. 635) ressalta que a Constituição atual utilizou “acertadamente o vocábulo agente, no sentido genérico de servidor público, abrangendo, para fins de responsabilidade civil, todas as pessoas incumbidas da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório”.
Para a configuração da responsabilidade estatal, o agente deve aproveitar-se da situação de agente público, no cometimento do dano. O abuso, a arbitrariedade por parte do agente no exercício da função pública não exclui a responsabilidade da Administração.
No ensinamento de Hely Lopes Meirelles (2005, p. 636):
O abuso no exercício das funções por parte do servidor não exclui a responsabilidade objetiva da Administração. Antes, a agrava, porque tal abuso traz ínsita a presunção de má escolha do agente público para a missão que lhe fora atribuída. Desde que a Administração defere ou possibilita ao seu servidor a realização de certa atividade administrativa, a guarda de um bem ou a condução de uma viatura, assume o risco de sua execução e responde civilmente pelos danos que esse agente venha a causar injustamente a terceiros. Nessa substituição da responsabilidade individual do servidor pela responsabilidade genérica do Poder Público, cobrindo o risco da sua ação ou omissão, é que se assenta a teoria da responsabilidade objetiva da Administração, vale dizer, da responsabilidade sem culpa, pela só ocorrência da falta anônima do serviço, porque esta falta está, precisamente, na área dos riscos assumidos pela Administração para a consecução de seus fins.
Continua Hely Lopes Meirelles (2005, p. 636) exemplificando:
Por isso, incide a responsabilidade civil objetiva quando a Administração Pública assume o compromisso de velar pela integridade física da pessoa e esta vem a sofrer um dano decorrente da omissão do agente público naquela vigilância. Assim, alunos da rede oficial de ensino, pessoas internadas em hospitais públicos ou detentos, caso sofram algum dano quando estejam sob a guarda imediata do poder público, têm direito à indenização, salvo se ficar comprovada a ocorrência de alguma causa excludente da responsabilidade estatal.
Por essa regra, cometido o dano decorrente da conduta da Administração Pública, estará esta obrigada a indenizar, salvo se restar, no caso concreto, provada a presença de uma de suas excludentes de responsabilidade.
2.4.4 Causas excludentes da responsabilidade civil do Estado
Diferentemente da teoria do risco integral, que não admite a existência de causas excludentes da obrigação de indenizar, a responsabilidade fundada na teoria do risco administrativo, adotada pelo ordenamento jurídico-constitucional vigente, como já visto, não é absoluta, permitindo abrandamentos.
Não haverá responsabilidade civil do Estado sempre que ficar comprovado ter sido o dano causado por culpa exclusiva da vítima, força maior ou caso fortuito. Nessas hipóteses haverá o rompimento do nexo causal entre a atuação administrativa e o prejuízo sofrido pela vítima.
Como exemplos de força maior, pode-se mencionar os danos causados por uma multidão em tumulto, como ocorre nas confusões entre torcidas organizadas nos jogos de futebol. Caso fortuito haverá, por sua vez, quando ocorrerem danos provocados por forças da natureza, a exemplo dos furacões e das nevascas. Não são pacíficos na doutrina os conceitos de caso fortuito e força maior, bem como alguns estudiosos entendem que o caso fortuito não exclui a responsabilidade do Estado.
Contudo, elencaram-se aqui as circunstâncias que mais atendem aos fins sociais a que a norma constitucional se destina. Ademais, a jurisprudência vem consagrando o caso fortuito como excludente da responsabilidade estatal. Nesse sentido é o entendimento do Areópago Catarinense:
RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - ESTADO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - POLICIAIS MILITARES - ATUAÇÃO ARBITRÁRIA E ILEGAL - DANOS MATERIAIS E MORAIS
1 O Estado tem o dever de ressarcir os danos a que deu causa ou deveria evitar. A responsabilidade é objetiva (CF, art. 37, § 6º) e dela somente se exonera o ente público se provar que o evento lesivo foi provocado pela própria vítima, por terceiro, caso fortuito ou força maior (TJSC. Apelação Cível n. 2008.040409-9.
Rel.: Des. Luiz Cézar Medeiros. j. em 15-09-2008).
Em se tratando de culpa da vítima, somente restará excluída a responsabilidade do Estado se o prejuízo resultar de sua atuação culposa exclusiva. Na hipótese de concorrência de culpa entre a vítima e o Estado, como ensina Marçal Justen Filho (2010, p. 1259), haverá “o compartilhamento da responsabilidade civil, o que não significa afirmar que a indenização devida corresponderá a exatos 50% do valor estimado.” De qualquer forma, nesse último caso, a indenização será atenuada. O julgado adiante transcrito ilustra adequadamente como se dá a exclusão da responsabilidade estatal nos casos de culpa exclusiva da vítima:
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - ATROPELAMENTO - NEXO DE CAUSALIDADE NÃO DEMONSTRADO - CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA.
1. A responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no artigo 107 da Emenda Constitucional n.º 1/69 (e, atualmente, no § 6º do artigo 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou a omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a terceiros (RE n.º 130.764, Min. Moreira Alves).
2. Provado que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da vítima, não está o município obrigado a reparar os danos dele resultantes (TJSC. Apelação Cível n. 2001.021676-0. Rel. Des. Newton Trisoto. j. em 03-11-2003).
Um dos casos mais famosos e polêmicos de reconhecimento da excludente de culpa exclusiva da vítima foi o julgamento da ação de indenização pelas mortes causadas na invasão da Penitenciária do Carandiru pela Polícia Militar, em 1992, fato que ficou mundialmente conhecido como “O Massacre do Carandiru”, devido à morte de mais de uma centena de detentos. Restou afastada a responsabilidade civil do Estado de São Paulo, pela configuração dessa excludente. Eis a decisão do Areópago paulista:
1 – Não: Responsabilidade civil do Estado. Morte de detentos em rebelião, que eles iniciaram. Invasão da Penitenciária para impedir sua completa destruição, para garantir a segurança dos demais detentos não amotinados e para apagar o incêndio que se apontava como devastador. Atuação legítima da Polícia Militar. Invasão plenamente justificável e reação à atitude agressiva dos presos. Responsabilidade civil do Estado inexistente. Ação improcedente e recursos providos (TJSP. Apelação Cível nº. 240.511-1/7. Rel. originário Des. Antonio Villen. Rel. designado Des. Raphael Salvador. São Paulo, 03 de abril de 1996).
Portanto, haverá o rompimento do nexo causal entre a atividade estatal e o dano sofrido pela vítima, sempre que presentes a força maior, o caso fortuito e a culpa exclusiva da vítima.
3 A LESÃO CORPORAL
3.1 Conceito de lesão corporal
De antemão, faz-se necessária uma breve abordagem histórica do crime de lesão corporal, antes de se adentrar nas espécies e nos danos a serem indenizados. Para tanto, impossível não se recorrer ao Direito Penal, braço onde se sustenta toda a estrutura jurídica do crime de lesão corporal.
O Código Criminal do Império, influenciado pelo Código Francês de 1810, punia as perturbações à integridade física (art. 201), atribuindo ao crime o nomen iuris (título do crime) “ferimentos e outras ofensas físicas”. Já o Código Penal da República de 1890 utilizava a terminologia “lesões corporais” (art. 303) e punia a ofensa física, com ou sem derramamento de sangue, incluindo no crime também a dor (BITENCOURT, 2003, p. 177).
Por sua vez, o Código Penal hodierno excluiu a dor da definição do crime de lesões corporais, optando por criminalizar a “ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem”.
A Exposição de Motivos do Código Penal define o delito de lesão corporal como a “ofensa à integridade corporal ou saúde, isto é, como todo e qualquer dano ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental.”
Fernando Capez (2010, p. 166) conceitua: “consiste, portanto, em qualquer dano ocasionado à integridade física e à saúde fisiológica ou mental do homem, sem contudo o ânimus necandi”.
O criminalista Cezar Roberto Bitencourt (2003, p. 177) traz um conceito abrangente de lesão corporal:
Lesão corporal consiste em todo e qualquer dano produzido por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou saúde de outrem. Ela abrange qualquer ofensa à normalidade funcional do organismo humano, tanto do ponto de vista anatômico quanto do fisiológico ou psíquico. Na verdade, é impossível uma perturbação mental sem um dano à saúde, ou um dano à saúde sem uma ofensa corpórea. O objeto da proteção legal é a integridade física e a saúde do ser humano.
O Código Penal, em seu art. 129, tipifica o delito:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano”.
Com a tipificação do delito, visa a lei proteger a integridade física ou psíquica do ser humano, bem individual e social (MIRABETE, 2009, p. 67). Nos termos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto nº. 678, de 6-11-92, “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”.
3.2 Principais características da lesão corporal
Configura-se a lesão corporal quando ocorre um dano à integridade corporal, à saúde física ou mental. São exemplos de lesão corporal por ofensa à integridade física: os danos aos tecidos internos ou externos do corpo, como as escoriações, as feridas, mutilações, equimoses (tecidos externos), bem como escoriações de útero e rins (tecidos internos). Quanto à saúde, esta pode ser dividida em saúde física ou mental. Nesse caso, são exemplos a paraplegia (saúde física) e as convulsões, desmaios ou doenças mentais resultantes da agressão por parte do criminoso (BARROS, 2009a, p. 91).
Questão interessante é a possibilidade da vítima consentir que lesões corporais sejam causadas sobre o próprio corpo. Historicamente, a doutrina sempre entendeu que o consentimento da vítima autorizando lesões à sua integridade física é irrelevante (BITENCOURT, 2003, p. 177).
Júlio Fabbrini Mirabete (2009, p. 68) entende que existe o crime ainda quando haja o consentimento da vítima, pois a integridade fisiopsíquica constitui bem indisponível. No mesmo entendimento, Flávio Augusto Monteiro de Barros (2009a, p. 93-94) entende que se configura o crime ainda que a vítima tenha esboçado o seu consentimento ao dano sofrido, tratando-se a lesão corporal de um bem jurídico indisponível, salientando, ainda, que à vida humana, assegurada no art. 5º, caput, da Constituição, integra-se o direito à integridade físico-corporal.
De outro lado, Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 614) considera o consentimento da vítima como causa supralegal de exclusão da ilicitude, entendendo que na sociedade atual não cabe mais ao Estado imiscuir-se na vida privada das pessoas que muitas vezes se expõem a riscos propositados e até mesmo a lesões desejadas, como, por exemplo, lesões corporais consentidas, cometidas durante a prática de ato sexual desejado entre adultos.
Por sua vez, Fernando Capez (2010, p. 166-167) destaca que embora se tenha considerado por muito tempo indisponível a integridade física do indivíduo, essa indisponibilidade tornou-se relativa com o advento da Lei 9.099/95 que passou a exigir representação da vítima para que se proceda à ação penal nos crimes de lesão corporal leve e lesão culposa. Argumenta o autor:
O bem jurídico em tela sempre constituiu um bem público indisponível, dado o interesse social em sua preservação. O Estado sempre zelou pela integridade física e saúde dos indivíduos, ainda que estes consentissem na sua lesão, tornando-se, inclusive, o Ministério Público o titular exclusivo da ação penal nos crimes de lesão corporal. Tal concepção absolutista que considerava a integridade física do indivíduo como um bem público indisponível sofreu, contudo, abrandamento com o advento da Lei 9.099/95, que instituiu a ação penal condicionada à representação da vítima nos crimes de lesões corporais culposas e lesões leves, ou seja, incumbe à vítima decidir se quer ver o autor do crime processado ou não pelo Estado. Trata-se, aqui, portanto, de uma hipótese de disponibilidade do bem jurídico pela vítima.
A autolesão não é punida no direito brasileiro, pelas mesmas razões de política criminal que não se pune a tentativa de suicídio. Porém, com a autolesão o agente pode cometer o delito de fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro (art. 171, §2º, V, do CP) ou de criação ou simulação de incapacidade física para furtar-se à incorporação militar, como preceitua o art. 184 do Código Penal Militar (MIRABETE, 2009, p. 68).
O crime se consuma com a ocorrência do resultado que consiste numa lesão à integridade física, fisiológica ou psíquica. Para a comprovação da materialidade exige-se o exame de corpo de delito. A tentativa é admissível quando o agente, com a intenção de lesionar, pratica a conduta criminosa, mas o resultado não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade. Por exemplo, o agente arremessa uma pedra na direção da vítima, mas erra o alvo (BARROS, 2009a, p. 97).
Existem algumas situações que merecem destaque.
Quando causada lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, não se configura o delito do art. 129, §6º do CP, mas sim, o crime de trânsito previsto no art. 303, do Código de Trânsito Brasileiro. Mas, se a lesão for dolosa, será punida nos termos da lei penal comum.
Distingue-se a tentativa de lesão corporal dolosa do crime de perigo de vida, definido no art. 132, uma vez que, neste o agente atua apenas com a vontade de causar perigo e não dano. Não se confunde a lesão corporal, ainda, com o delito de maus-tratos, em que o agente visa corrigir a vítima. Distingue-se, também, da contravenção das vias de fato por não haver, nesta, ofensa à integridade corporal ou à saúde. Haverá aborto quando o agente causa a lesão para provocar a interrupção da gravidez ou assumindo o risco de produzi-la. Ocorre injúria real quando o agente provoca a lesão com animus injuriandi, aplicando-se também a pena da violência. Havendo tortura, o crime, caso preencha os requisitos previstos no tipo penal, será o definido no art. 1º e seus parágrafos da Lei nº. 9455/97 (MIRABETE, 2009, p. 84).
3.3 Espécies de lesão corporal
Há várias modalidades de lesão corporal (lesão corporal leve, grave, gravíssima, seguida de morte, agravada contra menor ou idoso, privilegiada, em situação de violência doméstica, lesão culposa). No momento, trataremos apenas das lesões leves, graves, gravíssimas e culposas excluindo outros casos especiais por não serem objeto do presente estudo.
3.3.1 Lesão corporal leve ou simples
É o dano à integridade física ou à saúde que não constitua lesão grave ou gravíssima. Prevista no caput do art. 129, do CP:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano.
Sua definição se dá por exclusão, ou seja, configura-se a lesão leve quando não ocorre nenhum dos resultados previstos nos §§1º, 2º e 3º do art. 129. É sempre dolosa, somente podendo se configurar quando o agente quer a produção do resultado ou assume o risco que o mesmo se produza.
A lesão dolosa compõe-se dos seguintes requisitos essenciais (BITENCOURT, 2003, p. 185): a) dano à integridade física ou à saúde de outrem; b) relação causal entre ação e resultado; c) animus laedendi (intenção de ferir).
3.3.2 Lesão corporal grave
As hipóteses de lesão corporal grave estão previstas no §1º, do art. 129, do CP, in verbis:
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
Como destaca Fernando Capez (2010, p. 176) é possível a coexistência das diversas formas de lesão grave, constituindo elas crime único; deve o juiz, nessa hipótese, leva-las em consideração na fixação da pena base, conforme prevê o art. 59. Por exemplo: se resulta perigo de vida (inciso II) e aceleração de parto (inciso IV).
3.3.3 Lesão corporal gravíssima
Apesar da legislação penal não mencionar a expressão “lesão corporal gravíssima”, a doutrina e a jurisprudência utilizam essa nomenclatura para diferenciar os resultados qualificadores de maior gravidade previstos no §2º, do Codex. São eles:
§ 2° Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incurável;
III perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos (BRASIL, 2007).
Evidentemente, os resultados apontados são mais graves que os do parágrafo anterior.
3.3.4 Lesão corporal culposa
O Código Penal também pune a lesão corporal causada culposamente: “§ 6° Se a lesão é culposa: Pena - detenção, de dois meses a um ano.”
Desta forma, se da imprudência, negligência ou imperícia do agente resultou não a morte, mas a lesão corporal na vítima, o agente é punido com pena de detenção de dois meses a um ano. Júlio Fabbrini Mirabete (2009, p. 83) destaca que quanto à conduta culposa, é a mesma do homicídio e, além dos casos previstos para aquele delito, colhem-se da jurisprudência os seguintes: fumar próximo a depósito de pólvora e dinamite provocando explosão; avaliar erroneamente o médico radiografia, não percebendo fraturas que ocasionaram deformidade ao paciente; agir com culpa in custodiendo na guarda de cão que agride transeunte; e negligenciar na guarda do cão bravio, que ataca a vítima, não o mantendo preso sob severa vigilância.
3.3.5 Lesão corporal levíssima
O Código Penal Militar prevê uma modalidade especial de lesão corporal, em seu art. 209, §6º:
Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
§ 6º No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar.
São casos de lesão corporal levíssima colhidos da jurisprudência: pequenos hematomas e escoriações orbitárias da vítima, provocados por um soco; escoriação causada por pequeno estilhaço de projétil; agressão que não deixe sequela na vítima (ASSIS, 2009, p. 452).
Na desclassificação de crime militar para infração disciplinar, deve-se sopesar as circunstâncias em que o fato foi praticado pelo agente (ASSIS, 2009, p. 452): local do fato, extensão da lesividade e sede da região anatômica atingida pela vítima, bem como os antecedentes do acusado.
3.4 Danos a serem indenizados em caso de lesão corporal
3.4.1 A reparação de danos nas lesões leves
O Código Civil de 1916 previa as hipóteses de indenização em caso de lesão corporal em seus arts. 1538 e 1539, que assim dispunham:
Art. 1538. No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente.
§1º Esta soma será duplicada, se do ferimento resultar aleijão ou deformidade.
§2º Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva, ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito.
Art. 1539. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua o valor do trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, incluirá uma pensão correspondente à importância do trabalho, para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.
Hodiernamente a reparação de danos no caso de lesão corporal vem prevista nos arts. 949 e 950, do Código Civil de 2002. Dispõe o art. 949, da lei civil:
Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
O dispositivo trata, em verdade, de disciplinar a indenização no caso de lesões leves, assim entendidas, como já visto, quando não resultam agravamentos como a deformidade, o aleijão, o dano estético e a inabilitação para o exercício do trabalho ou diminuição da capacidade laborativa (ARAÚJO, 2008, p. 115).
Neste caso, a indenização compreenderá os danos emergentes e os lucros cessantes, além do possível dano moral, que por ventura tenha ocorrido.
Os danos emergentes compreendem as despesas com tratamento da vítima, incluindo tudo quanto necessário para a completa cura do ofendido, de modo a poder retornar ao estado de saúde em que se encontrava antes da ofensa. Estão abrangidas as despesas com hospitalização, medicamentos, transportes para tratamento, colocação de próteses, contratação de enfermeiros e fisioterapeutas, exames laboratoriais, aparelhos ortopédicos, entre outras essencialidades para o tratamento.
No que toca aos danos emergentes, ressalta Rui Stoco (2007, p. 1263) as despesas com tratamento devem ser aquelas normais e absolutamente necessárias à recuperação da vítima e estarem de acordo com o seu padrão de vida. Pois:
Não seria razoável um trabalhador braçal, sempre atendido por médicos e hospitais da rede conveniada da Previdência Social, submeter-se a tratamento nos hospitais e clínicas mais sofisticados e avançados do País ou do exterior apenas porque vislumbrou o potencial econômico do causador do dano.
Faz-se necessário lembrar, ainda, que se a vítima foi atendida por hospital público, nada poderá pretender a título de ressarcimento pela simples razão de nada ter despendido. Caso o atendimento clínico e hospitalar houver sido prestado através do plano de saúde, de natureza privada, ao qual a vítima esteja filiada, somente poderá reclamar, a título de ressarcimento de despesas médico-hospitalares, a diferença de preço eventualmente não coberta pelo plano. Mas se nada pagou, ficará impedida de pleitear reembolso, mesmo porque a empresa que solveu as despesas fica sub-rogada no direito de demandar em face do causador das lesões (STOCO, 2007, p. 1263-1264).
Os lucros cessantes, por sua vez compreendem o que a vítima deixou de ganhar em virtude do acidente (GONÇALVES, 2009, p. 774). A vítima deve comprovar tudo o que deixou de produzir ou ganhar no período entre o acidente e o retorno ao trabalho, demonstrando o nexo causal entre o prejuízo e o ato praticado, do qual resultaram as lesões temporariamente incapacitantes (STOCO, 2007, p. 1264).
De forma prática, Rui Stoco (2007, p. 1264) explica como comprovar os lucros cessantes:
Se for servidor público ou empregado de empresa, bastará comprovar o seu ganho mensal, de modo que o reembolso constituirá no pagamento dos dias que deixou de comparecer ao trabalho, segundo os vencimentos ou salários do dia do pagamento.
Se trabalhar como vendedor, motorista de táxi, profissional liberal ou outra atividade sem vínculo empregatício, dever-se-á verificar sua média de ganho mensal ou diário.
A expressão trazida ao final do dispositivo “além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido” permite que a vítima pleiteie, ainda, a reparação por dano moral. Como adverte Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 774) “embora nem sempre a lesão corporal de natureza leve justifique pedido dessa natureza, há casos em que tal pretensão mostra-se pertinente”.
Exemplifica o doutrinador (GONÇALVES, 2009, p. 774):
Se a lesão resultou de uma agressão física, por exemplo, que provocou uma situação vexatória para a vítima, é possível, conforme as circunstâncias, pleitear-se a reparação do dano moral causado pela injusta e injuriosa agressão, que será arbitrada judicialmente, em cada caso. Assim se atenderá ao espírito da lei, que não se contentou em prever, para a hipótese de lesão corporal de natureza leve, somente o ressarcimento do dano emergente e dos lucros cessantes.
Portanto, a indenização por lesões leves compreenderá os danos emergentes, lucros cessantes e o dano moral que a vítima haja sofrido.
3.4.2 A reparação de danos nas lesões graves
As lesões graves previstas expressamente na legislação penal podem ser divididas em duas espécies para fim de reparação civil: deformidades ou aleijões e a incapacidade para o trabalho.
3.4.2.1 A indenização nos casos de deformidades ou aleijões
O antigo Codex, em seu art.1538, §2º, previa uma especial e exclusiva proteção à mulher, nesses termos:
§2º Se o ofendido, aleijado ou deformado, for mulher solteira ou viúva, ainda capaz de casar, a indenização consistirá em dotá-la, segundo as posses do ofensor, as circunstâncias do ofendido e a gravidade do defeito.
Essa especial proteção à mulher lesionada fisicamente e que tenha sofrido aleijão ou deformação foi desprezada pelo Código Civil atual, pois não se justifica a concessão de uma indenização por dano moral somente à mulher. Assim, tanto a mulher quanto o homem estão protegidos pela regra do art. 949, do Código Civil, podendo pleitear indenização em razão de qualquer lesão estética permanente que tenham suportado devido aos danos causados pelo ofensor. Desde então, mostra-se desnecessário à lei especificar tais lesões e as indenizações correspondentes (STOCO, 2007, p. 1265).
As lesões corporais graves vêm previstas no Código Penal, em seu art. 129, §1º. O inciso III tipifica as que implicam em debilidade permanente de membros, sentidos ou funções. Os membros são: braços, antebraços, mãos, pernas, coxas e pés. Sentidos são: visão, audição, paladar, tato e olfato. Já as funções dizem respeito às atividades dos órgãos do corpo humano, tais como: a função respiratória, urinária, digestiva, circulatória e reprodutora (ARAÚJO, 2008, p. 118).
Por sua vez, o CP ainda prevê, no §2º, do mesmo dispositivo, as hipóteses de perda ou inutilização de membro, sentido ou função e a deformidade permanente, entendida essa como o dano estético permanente, irreparável e perceptível, capaz de causar-lhe impressões vexaminosas. Não se refere somente àquelas lesões que causem danos estéticos faciais, compreendendo também todas aquelas que podem desfigurar o corpo de outrem de forma duradoura, irreparável e grave (ARAÚJO, 2008, p. 119). É irrelevante que a lesão esteja em parte do corpo que possa ficar coberta. São exemplos de deformidade permanente: a cicatriz permanente, a perda de um olho ou de parte da orelha e a paraplegia (FIUZA, 2006, p. 769).
Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 774-775) explica que aleijão é a perda de um braço, de uma perna, de movimentos ou de sentidos. Para que se caracterize deformidade é necessário que haja dano estético, que o ofendido cause impressão penosa ou desagradável.
O dano estético não seria uma terceira espécie de dano, ao lado do dano material e do dano moral, mas apenas um aspecto deste último. É conceituado por Teresa Ancona Lopez (2004, p. 45) como a “modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta um enfeamento e lhe causa humilhações e desgostos, dando origem, portanto, a uma dor moral”.
São requisitos necessários para a caracterização do dano estético: transformação física, com desequilíbrio entre o estado físico anterior e o presente, e permanência ou durabilidade do dano (FIUZA, 2006, p. 769).
Existem ocasiões em que o dano estético acarreta dano patrimonial à vítima, incapacitando-a para o exercício de sua profissão (caso do ator cinematográfico que, em virtude de um acidente automobilístico, fica deformado), como ainda dano moral (tristeza e humilhação). Admite-se, nessa hipótese, a cumulação do dano patrimonial com o estético, este como aspecto do dano moral. Nesse sentido, prevê a Súmula nº. 37 do Superior Tribunal de Justiça: “São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato”.
Embora haja controvérsia na jurisprudência a respeito da cumulação do dano moral com o dano estético, a posição majoritária dos tribunais e pacífica na doutrina pátria (STOCO, 2007, p. 1249) é de não se admitir a cumulação do dano estético com o dano moral, para evitar a caracterização de autêntico bis in idem.
3.4.2.2 A indenização no caso de incapacidade para o trabalho
O Código Civil prevê a indenização para a vítima que, em razão da lesão sofrida, tenha reduzida a sua capacidade de trabalho ou não possa mais exercer seu ofício ou profissão. Esta reparação é regulamentada pelo art. 950, do Codex:
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.
Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.
Ressalta Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 781) que “a inabilitação refere-se à profissão exercida pela vítima e não à qualquer atividade remunerada”.
Sobre o tema, comenta Silvio Rodrigues (2002, p. 233): “desse modo, se se trata, por exemplo, de um violinista que, em virtude de acidente, perdeu um braço, houve inabilitação absoluta para o exercício de seu ofício e não mera diminuição de sua capacidade laborativa”.
A incapacidade permanente para o trabalho deve ser entendida como aquela cujo limite temporal de sua duração não se pode precisar. Também deve ser considerado que, por conta da intensidade das lesões, poderá ocorrer o agravamento das condições físicas da vítima, convertendo-se a incapacidade temporária em permanente, caso em que o exame pericial complementar autorizará a majoração do pensionamento, exigindo-se, inclusive, reforço das garantias (ARAÚJO, 2008, p. 116).
O valor da indenização dependerá do grau de incapacidade da vítima, a ser comprovado por perícia médica, e abrangerá as despesas com tratamentos e utilização de eventuais aparelhos ortopédicos, os lucros cessantes e um pensionamento proporcional à inabilitação laboral sofrida pela vítima (ARAÚJO, 2008, p. 116).
Sobre o tema, Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 782) transcreve julgado esclarecedor do Supremo Tribunal Federal:
Responsabilidade civil – Desabamento de prédio acarretando danos pessoais. A lesão corporal sofrida pela autora acarretou-lhe uma redução parcial na sua capacidade de trabalho, em caráter permanente, avaliada em 50%.
Portanto, a partir do acidente, as rés devem indenização correspondente não somente aos danos emergentes, bem calculados e arbitrados pela sentença, como também aos lucros cessantes, correspondentes ao período em que deixou de trabalhar, quer por estar hospitalizada, quer por estar impossibilitada em razão de aguardar o aparelho ortopédico e de com ele se acostumar; durante esse período, a indenização corresponde aos salários integrais que deveria perceber, sem qualquer redução; a partir daí, a indenização corresponderá a 50% do salário que deveria perceber normalmente, observada a proporção estabelecida pela sentença, isto é, entre o que a autora percebia por ocasião do acidente e o que deveria perceber em face da alteração do salário mínimo”
O parágrafo único, do art. 950, do Código Civil, permite que o prejudicado, se preferir, possa exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.
O pagamento dos lucros cessantes deve ser feito de modo integral até a obtenção da alta médica, ou seja, até que a vítima esteja em condições de retornar ao trabalho normal. Daí por diante, corresponderá a uma porcentagem do salário que deveria receber normalmente, proporcional à redução de sua capacidade laborativa.
Destaca Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 783) cabe à vítima provar os rendimentos que percebia por ocasião do evento danoso, para o cálculo da porcentagem da depreciação de sua capacidade laborativa. Não havendo essa prova, ou provado que a vítima prestava serviços eventuais, sem renda determinada, toma-se por base o salário mínimo para a fixação da referida porcentagem. Esse mesmo critério é adotado quando o lesado não consegue demonstrar qualquer renda porque não se encontrava exercendo nenhuma atividade, sendo, contudo, pessoa apta para o trabalho.
O lesado também tem direito a uma verba para pagamento de terceiros contratados para a execução de serviços domésticos do quais restou temporariamente incapacitado. É da jurisprudência:
Tendo a vítima de acidente de trânsito ficado, em razão dos ferimentos, impossibilitada de cuidar dos afazeres da casa, faz jus ao recebimento de indenização para contratação de empregada enquanto subsistir o impedimento. Tal verba não se confunde com a pensão, já deferida, decorrente da redução da capacidade laborativa (RT 610:138 citada por GONÇALVES, 2009, p. 784).
Em relação aos aposentados e às pessoas que na época da ocorrência do dano se encontravam incapacitados de exercer atividade laborativa por problemas de saúde ou pela idade avançada, não há que se cogitar de pagamento de pensão pela redução da capacidade laborativa, pois não há prejuízos, visto que a vítima ou dependia de terceiros para sobreviver, ou dos proventos da aposentadoria, e não colaborava, assim, economicamente para o seu sustento (GONÇALVES, 2009, p. 786).
Questão interessante é a de haver o lesado recebido auxílio do Instituto de Previdência pelos danos resultantes do sinistro e se esse recebimento afastaria o direito à indenização pelo ato ilícito sofrido. Nesse caso, é pacífico que o recebimento dos benefícios previdenciários não afasta a indenização do art. 950, do Código Civil, que resulta de ilícito civil, pois, se assim ocorresse, se transmudaria o lesante, responsável pela reparação do ato ilícito, em beneficiário da vítima de seguro social, o que seria inadmissível (GONÇALVES, 2009, p. 788).
Até mesmo para o adolescente que não exerça atividade remunerada na época do evento danoso admite-se indenização, levando-se em conta a possível diminuição da sua capacidade de trabalho (GONÇALVES, 2009, p. 789).
4 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO POLICIAL MILITAR
4.1 Breves considerações sobre a segurança pública na atual Carta Magna
Preceitua a Lei Maior, em seu art. 144, que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Os órgãos componentes do sistema de segurança pública brasileiro, prescritos na Carta Magna, são: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares.
As atribuições desses órgãos estão previstas nos §§ 1º a 5º, do art. 144, da CRFB. Quanto às polícias militares e corpos de bombeiros militares, consideradas forças auxiliares e reserva do exército, prevê a Constituição da República serem subordinadas aos governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Registra-se, também, a previsão, no § 8º, do art. 144, da possibilidade dos municípios constituírem guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Como observa Álvaro Lazzarini (2003, p. 90) “[...] os Corpos de Bombeiros Militares, em princípio, não exercem atividades de segurança pública, porque, estas, repitamos, dizem respeito às infrações penais, com típicas ações policiais preventivas ou repressivas imediatas.”
E continua o administrativista discorrendo que a atividade-fim dos Corpos de Bombeiros Militares é de prevenção e combate a incêndios, busca e salvamento e, agora, a de defesa civil, como previsto no art. 144, §5º, parte final, da Constituição da Republica de 1988 e legislação infraconstitucional de cada unidade federada (LAZZARINI, 2003, p. 90).
O rol de atribuições dos Corpos de Bombeiros Militares diz respeito, isto sim, à tranqüilidade pública e à salubridade pública, ambas integrantes do conceito de ordem pública.
Interessante ressaltar que a previsão constitucional dos órgãos policiais é taxativa, não podendo, portanto, ser criados outros órgãos policiais com incumbência de exercer atividades de segurança pública, em quaisquer dos níveis estatais, o que impede, por isso mesmo, que órgãos autárquicos, fundacionais ou paraestatais, não previstos na norma constitucional, exercitem atividades de segurança pública (LAZZARINI, 2003, p. 90). Moraes (2007, p. 784) recorda que o Colendo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 236-8/RJ, decidiu que a enumeração constitucional dos órgãos policiais é taxativa.
A multiplicidade dos órgãos de defesa da segurança pública, pela nova Constituição, teve dupla finalidade: o atendimento aos reclamos sociais e a redução da possibilidade de intervenção das Forças Armadas na segurança interna (MORAES, 2007, p. 784).
José Lauri Bueno de Jesus (2004, p. 95) expõe o conceito de polícia:
A polícia é uma função do Estado que se concretiza numa instituição de administração positiva e visa pôr em ação as limitações que a lei põe à liberdade dos indivíduos e dos grupos para a salvaguarda e preservação da ordem pública, em suas várias manifestações, desde a segurança das pessoas à segurança da propriedade, da tranqüilidade dos agregados humanos à proteção de qualquer outro bem tutelado com disposições constitucionais.
A função de polícia é realizada de diferentes formas, podendo ser dividida em administrativa e de segurança. Essa última abrange a polícia ostensiva e a polícia judiciária.
Como ensina José Afonso da Silva (2007, p. 778):
A polícia administrativa tem por objeto as limitações impostas a bens jurídicos individuais (liberdade e propriedade). A polícia de segurança que, em sentido estrito, é a polícia ostensiva tem por objeto a preservação da ordem pública e, pois, as medidas preventivas que em sua prudência julga necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas.
Explica Fernando da Costa Tourinho Filho (2003, p. 188) que a polícia administrativa:
É aquela que tem por objeto “as limitações impostas a bens jurídicos individuais”, limitações essas que visam assegurar “completo êxito da administração”. Como exemplo de Polícia Administrativa, podemos citar a Polícia Aduaneira, a Polícia Rodoviária e a Polícia Ferroviária Federal de que tratam os §§ 2º e 3º do art. 144 da Lei Maior.
Já a Polícia de Segurança tem por objeto as medidas preventivas, visando à não-alteração da ordem jurídica. Ela age com certo poder discricionário, isto é, com poderes mais ou menos amplos, sem as limitações impostas pela lei. [...] A atuação da Polícia de Segurança independe de qualquer autorização judicial [...]
Não seria possível nem admissível que a Polícia, para evitar um “tiroteio” ou um “quebra-quebra”, devesse procurar as Autoridades Judiciárias a fim de receber autorização para agir [...]
Entretanto, apesar de todo o investimento, planejamento, emprego e operacionalização da polícia ostensiva, é impossível impedir o cometimento de todas as infrações penais, sendo necessária a existência de outro órgão, que seja responsável pela apuração dos crimes e contravenções. Nas palavras de José Afonso da Silva (2007, p. 778-779):
É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações penais e de indicação de sua autoria, a fim de fornecer os elementos necessários ao Ministério Público em sua função repressiva das condutas criminosas, por via de ação penal pública.
No âmbito federal a função de polícia judiciária é exercida exclusivamente pela Polícia Federal. Na esfera estadual, a função de polícia judiciária é exercida, embora sem exclusividade, pela Polícia Civil e a função de polícia ostensiva, bem como a preservação da ordem pública é realizada pela Polícia Militar.
4.2 A responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal praticado em serviço
Como já observado, a atividade de polícia ostensiva e preservação da ordem pública, a nível estadual, é realizada pela Polícia Militar. Nesse contexto, o policial militar atua na prevenção e repressão das infrações penais, exercendo suas atividades de acordo com as normas e diretrizes traçadas pela Administração.
Para o desempenho regular de suas atribuições, lhe são outorgados vários equipamentos, como: armas de fogo, cassetete, tonfas, pistolas taser, granadas, gás de pimenta e algemas. São ainda conferidas funções especiais, como a busca pessoal e domiciliar nos casos de fundada suspeita, abordagem de veículos para fins de fiscalização de trânsito, remoção de veículos, entre outras.
No exercício da atividade policial, o militar do estado deve agir estritamente em observância aos preceitos da lei, sem abusos, excessos ou desvios. Ao policial militar não é permitido fazer tudo o que quiser, não estando imune da responsabilidade pelos atos danosos que cometer no exercício da função. O exercício do direito encontra limites traçados pela lei.
Nas palavras de Rui Stoco (1999, p. 583):
Essa questão relativa ao limite do exercício do direito, além do qual poderá ser abusivo, quer dizer, a linha divisória entre o poder concedido e o poder excedido, constitui a essência da teoria do abuso de direito.
[...] Assim, se um policial, quando em serviço, usando arma da Corporação se excede nas funções que lhe foram cometidas e faz uso dela, responde o Estado pelos prejuízos que deste ato advenham.
É comum noticiar-se na imprensa casos de agressões causadas por policiais militares em serviço, muitas vezes resultando em lesões corporais a terceiros que não haviam concorrido para o evento. Para essas situações, na esfera cível, haverá a responsabilização do Estado, com fulcro no § 6º, do art. 37, da Carta Magna, respondendo a Administração pelo dano causado. Comprovado ter havido culpa ou dolo do agente estatal, deverá esse ressarcir o Estado no que despendeu ao indenizar a vítima.
Em caso concreto, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - AGRESSÃO POLICIAL - VÍTIMA SUBMETIDA À CIRURGIA UROLÓGICA EM RAZÃO DO CHUTE DESFERIDO PELO AGENTE PÚBLICO - OFENSA À DIGNIDADE PESSOAL - DANOS MORAIS DEVIDOS - RESSALVA DO ARBITRAMENTO DOS PREJUÍZOS EM SALÁRIOS MÍNIMOS - FIXAÇÃO EM PECÚNIA - INDENIZAÇÃO DEVIDA DIANTE DAS PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO.
1. O ato praticado pelos policiais militares resultou em injusta agressão física ao autor, ocasionando-lhe constrangimento de ordem moral, devendo o Estado de Santa Catarina ser responsabilizado pelo ocorrido.
2. O valor da indenização por dano moral não pode ser vinculado ao salário mínimo, diante de expressa vedação constitucional (CF/88, art. 7º, inc. IV).
DANOS MATERIAIS - DESPESAS MÉDICAS - COMPROVAÇÃO NOS AUTOS E FIXADOS PELA SENTENÇA REEXAMINADA - INDENIZAÇÃO MANTIDA.
Custas PROCESSUAIS - ESTADO - IMPOSSIBILIDADE - ISENÇÃO DETERMINADA PELA LEI COMPLEMENTAR 156/97 - ALTERADA PELA LEI COMPLEMENTAR 161/97 (TJSC. Apelação Cível n. 2002.009055-2. Rel.: Des. Nicanor da Silveira. j. em 11-11-2004).
Ainda que tenha praticado o dano fora do serviço, mas agindo na condição de policial militar, estará configurada a sua responsabilidade civil. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., art. 37, § 6º.
I. - Agressão praticada por soldado, com a utilização de arma da corporação militar: incidência da responsabilidade objetiva do Estado, mesmo porque, não obstante fora do serviço, foi na condição de policial militar que o soldado foi corrigir as pessoas. O que deve ficar assentado é que o preceito inscrito no art. 37, § 6º, da C.F., não exige que o agente público tenha agido no exercício de suas funções, mas na qualidade de agente público.
II. - R.E. não conhecido" (STF. Recurso extraordinário n. 160401/SP. Rel.: Min. Carlos Velloso. j. em 20-04-1999).
E quando se trata de reparar os danos causados em lesão corporal praticada pelo policial militar, não se está referindo apenas às ofensas físicas causadas de maneira dolosa. Lembre-se que nos deslocamentos para ocorrências, onde normalmente há a necessidade de transitar em velocidade acima do permitido para a via, e, muitas vezes em situações que poderiam ser consideradas infrações de trânsito (avançar sinal vermelho, transitar na contra-mão ou sobre o passeio) também podem ocorrer danos resultantes de acidentes de trânsito, onde haverá, também, o dever de indenizar. É da jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - VIATURA DA POLÍCIA MILITAR QUE SE CHOCOU FRONTALMENTE COM MOTOCICLETA DURANTE ATENDIMENTO A CHAMADO DECORRENTE DA EXECUÇÃO DE CRIME - FRATURA NO PÉ DO APELANTE - ATESTADO MÉDICO COMPROBATÓRIO DE QUE ESTE SOFREU LESÃO - AFASTAMENTO DAS ATIVIDADES LABORAIS POR 40 (QUARENTA) DIAS - OFENSA FÍSICA QUE REPERCUTE NO ESTADO EMOCIONAL DA VÍTIMA - VERBA COMPENSATÓRIA ARBITRADA EM R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS) - SUCUMBÊNCIA INVERTIDA - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS FIXADOS EM 10% SOBRE O VALOR DA CONDENAÇÃO - ISENÇÃO DO PAGAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS - RECURSO PROVIDO - SENTENÇA REFORMADA (TJSC. Apelação Cível n. 2008.012232-4.
Rel.: Des. José Volpato de Souza. j. em 28-09-2009).
Nesse caso, ainda que o policial estivesse agindo no cumprimento do dever, estando isento de responsabilidade, conforme adiante se verá, não restou o Estado eximido de tal obrigação, vez que a vítima não concorreu para o acidente, não havendo, também, caso fortuito ou força maior.
Sempre que não estiverem presentes suas excludentes de responsabilidade civil, o Estado deve indenizar a vítima pelos danos causados por policiais militares no exercício da função, não podendo alegar que o ato cometido pelo agente é crime, para eximir-se de sua responsabilidade extracontratual.
O abuso cometido pelo policial militar confirma ainda mais a obrigação do Estado de reparar os danos, visto que é de sua exclusiva responsabilidade o recrutamento de pessoas para o efetivo policial.
Do Superior Tribunal de Justiça, colhe-se julgado esclarecedor do tema ora tratado:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. NÃO CONFIGURADA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AÇÃO CONDENATÓRIA. FAZENDA PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. LESÕES CORPORAIS COMETIDAS POR POLICIAIS MILITARES. DANOS MATERIAIS E MORAIS. QUANTUM INDENIZATÓRIO.
[...]
3. Deveras, in casu, o ilícito foi praticado justamente pelos agentes públicos - policiais militares - incumbidos de velar pela segurança da população, por isso, a fixação da indenização deve manter-se inalterada como meio apto a induzir o Estado a exacerbar os seus meios de controle no acesso de pessoal, evitando que ingresse nos seus quadros pessoal com personalidade deveras desvirtuada para a função indicada (STJ. Recurso especial n. 505080/DF. Rel.: Min. LUIZ FUX. j. em 17-11-2003).
Na grande maioria das vezes esses danos são causados durante confrontos com os criminosos, encontrando-se, quase sempre, os policiais envolvidos no embate, amparados em causas justificantes, como a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal.
Assim, por exemplo, caso uma guarnição policial que pretenda conter uma torcida organizada, enfurecida pela derrota de seu time, tenha a necessidade de fazer uso de munição não letal para afastar os contendores, e o projétil venha a atingir uma pessoa inocente que não participava do tumulto, responderá o Estado pelo dano causado, devendo indenizar a vítima, devido à regra da responsabilidade objetiva.
Contudo, a Administração não terá direito de regresso em face dos policiais, que com sua conduta legítima, não incorreram em dolo ou culpa.
Nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. TEORIA OBJETIVA. AÇÃO PRATICADA POR POLICIAL RODOVIÁRIO, NA PRESUMIDA DEFESA DE TERCEIRO. RESULTANTE DE MORTE DE TERCEIRO ESTRANHO AO EVENTO.
1. SE O AGENTE PÚBLICO, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES, PRATICA DANO A TERCEIRO NÃO PROVOCADOR DO EVENTO, HÁ DO ESTADO SER RESPONSABILIZADO PELOS PREJUÍZOS CAUSADOS, EM FACE DOS PRINCÍPIOS REGEDORES DA TEORIA OBJETIVA.
2. O ART. 107, DA CF DE 1969, EM VIGOR NA ÉPOCA DOS FATOS, HOJE REPRODUZIDO COM REDAÇÃO APERFEIÇOADA PELO ART. 37, PAR. 6. DA CF DE 1988, ADOTOU A TEORIA OBJETIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO, SOB A MODALIDADE DO RISCO ADMINISTRATIVO TEMPERADO.
3. A ABSOLVIÇÃO DE POLICIAL RODOVIÁRIO, NO JUIZO CRIMINAL, EM DECORRÊNCIA DA MORTE CAUSADA POR OCASIÃO DE AÇÃO PRATICADA EM LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO, NÃO AFASTA A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO, SE NÃO PROVAR QUE O ACIDENTE OCORREU POR CULPA DA VÍTIMA.
4. PASSAGEIRO ATINGIDO POR DISPARO DE ARMA DE FOGO EM DECORRÊNCIA DE AÇÃO POLICIAL CONTRA MOTORISTA DE VEÍCULO.
5. INDEPENDÊNCIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM CONFRONTO COM A CRIMINAL, SALVO QUANDO NO JUIZO PENAL SE RECONHECE, VIA DECISÃO TRÂNSITA EM JULGADO, AUSÊNCIA DE AUTORIA E DE MATERIALIDADE DO DELITO.
6. A ABSOLVIÇÃO NO JUIZO CRIMINAL NÃO IMPEDE A PROPOSITURA DA AÇÃO CIVIL, QUANDO PESSOA QUE NÃO CONCORREU PARA O EVENTO SOBRE DANO, NÃO TIVER CULPA (STJ. Recurso especial n. 111843/PR. Rel,: Min. José Delgado. j. em 09-06-1997).
Por derradeiro, indispensável citar as palavras de Rui Stoco (1999, p. 584):
São acontecimentos não queridos e fruto muito mais do recrudescimento da violência dos marginais que do comportamento dos agentes policiais, mas que impõe uma resposta mais severa destes.
Nem por isso, entretanto, ficará o Estado acobertado pela indenidade civil, pois vige – como regra constitucional – a teoria do risco administrativo, que obriga o Estado a indenizar, sem indagação de culpa, em seu sentido amplo.
Por todo o exposto, vislumbra-se que o Estado responderá civilmente sempre que a conduta advinda do exercício da atividade policial gerar dano a um particular, desde que não estejam presentes quaisquer das causas excludentes da responsabilidade estatal: caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima. É a aplicação da teoria do risco administrativo, fundamentada no art. 37, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
De outro vértice, o policial militar que no exercício de sua função, extrapola os limites legais e causa lesão corporal em outrem, com dolo ou culpa, será obrigado a ressarcir a Administração no que esta despendeu ao indenizar a vítima.
A situação se difere quando o policial age dentro dos limites impostos pela lei, pois nessa hipótese, mesmo que cause um dano como uma lesão corporal ou até mesmo um homicídio, não será obrigado a ressarcir a Administração Pública. A responsabilidade civil do policial é subjetiva, só restando configurada em caso de dolo ou culpa.
Adiante se verá em quais situações o policial militar não será responsabilizado civilmente pelo cometimento de lesão corporal em serviço.
4.3 Excludentes da obrigação de indenizar a lesão corporal praticada pelo policial militar
Como já se verificou, os elementos da responsabilidade civil são a conduta, o dano, a
culpa e o nexo causal. Todavia, o dever de indenizar não é absoluto, prevendo o Código Civil algumas circunstâncias que, por atacar um dos elementos ou pressupostos gerais da responsabilidade civil, rompendo o nexo causal, terminam por fulminar qualquer pretensão indenizatória (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 143).
Tais circunstâncias estão previstas no art. 188, do Código Civil, in verbis:
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
Da leitura do dispositivo, evidencia-se que as permissivas elencadas são as mesmas do art. 23 do Código Penal, tendo cada qual a mesma conceituação e requisitos.
Necessário mencionar que embora a lei civil não faça referência expressa ao estrito cumprimento de dever legal, entende-se estar subentendido no inciso I, pois atua no exercício regular de um direito reconhecido quem pratica o ato no estrito cumprimento do dever legal (VENOSA, 2005, p. 62).
As excludentes da obrigação de indenizar na lesão corporal praticada pelo policial militar seriam, a princípio: a legítima defesa, o exercício regular de direito, o estrito cumprimento de dever legal e o estado de necessidade.
Contudo, em relação ao estado de necessidade é imprescindível esclarecer que, embora a lei declare que o ato praticado em estado de necessidade não é ilícito, nem por isso libera quem o pratica de reparar o prejuízo que causou (GONÇALVES, 2009, p. 797). Nesse caso há um temperamento dos arts. 929 e 930, do Código Civil. Desta forma, deve o agente indenizar a pessoa lesada ou o dono da coisa destruída, caso esse não seja o culpado pelo perigo, podendo posteriormente ajuizar ação regressiva em face do causador do perigo inicial (VENOSA, 2005, p. 63).
O exercício regular de direito é inaplicável ao crime de lesão corporal praticado por policial, pois a lei não confere ao agente de segurança estatal o direito de lesionar, assim como não confere o direito de matar (DELMANTO, 2002, p. 47).
Restam, como únicas excludentes de ilicitude, no delito de lesão corporal praticado por policial militar, a legítima defesa e o estrito cumprimento de dever legal.
4.3.1 Estrito cumprimento de dever legal
Implicitamente previsto no art. 188, I, segunda parte, do Código Civil, o estrito cumprimento de dever legal é uma causa de exclusão da responsabilidade, afastando a obrigação de reparar o dano praticado.
O conceito é o mesmo do direito penal, onde encontra-se a definição de Fernando Capez (2009, p. 294): “causa de exclusão da ilicitude, que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei. Exemplo: o policial que priva o fugitivo de sua liberdade, ao prendê-lo em cumprimento de ordem judicial”.
A excludente fundamenta-se na idéia de que a pessoa que cumpre regularmente um dever não pode, ao mesmo tempo, praticar ato ilícito, uma vez que a lei não contém contradições.
Para a configuração da justificante, faz-se necessária a presença de alguns requisitos, segundo a lição de Cezar Roberto Bitencourt (2007, p. 322):
a) estrito cumprimento – somente os atos rigorosamente necessários justificam o comportamento permitido;
b) de dever legal – é indispensável que o dever seja legal, isto é, decorra de lei, não o caracterizando obrigações de natureza social, moral ou religiosa. A norma da qual emana o dever tem de ser jurídica, e de caráter geral: lei, decreto, regulamento etc
Afirma Diego Schwartz (2009, p. 45) “por dever legal se compreende toda e qualquer obrigação direta ou indiretamente derivada de lei. Pode ser a própria lei, como o decreto, o regulamento, ou qualquer ato administrativo infralegal, a exemplo da diretriz, desde que originária de lei”.
Ressalta Celso Delmanto (2002, p. 45) que a norma determinante do dever legal não precisa ser necessariamente de natureza penal.
Nos crimes culposos não se admite a descriminante, pois a lei não obriga à imprudência, negligência ou imperícia (CAPEZ, 2009, p. 295).
Sempre que o policial militar causar lesão corporal em alguém, desde que nos estritos limites do dever legal, não haverá a obrigação de indenizar. Como exemplo, poderíamos citar o policial que algema adolescente que resiste violentamente à apreensão, causando lesões leves nos punhos desse; o policial que, para separar briga em estabelecimento comercial, usa de força física e derruba um dos contendores que cai sofrendo equimose.
Exemplo interessante nos traz Fernando de Almeida Pedroso (1997, p. 378): “De igual forma, o policial que comete lesões corporais, atirando contra a perna de criminoso em fuga, atua sob o pálio do estrito cumprimento do dever legal” [...].
O areópago Catarinense recentemente decidiu:
APELAÇÃO CRIMINAL. DELITO MILITAR. LESÃO CORPORAL LEVE. RESISTÊNCIA À APREENSÃO DE ADOLESCENTE. LESÕES APONTADAS EM LAUDO PERICIAL PROVENIENTES DO NECESSÁRIO USO DE ALGEMAS PARA CONTER O MENOR. AÇÃO REALIZADA NO ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL. ART. 234 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. EXCLUDENTE DE ILICITUDE VERIFICADA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO.
"Não há crime quando o agente prática o fato no 'estrito cumprimento de dever legal'" (Mirabete, Julio Fabbrini. Código penal interpretado, 5. ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 227) (TJSC. Apelação Criminal n. 2008.014324-9. Rel.: Des. Sérgio Paladino. J. em 15-07-2008.).
Um outro ponto a ser tratado é o excesso praticado no estrito cumprimento de dever legal. O Código Penal ao expor as causas excludentes em seu art. 23, prevê, em seguida, no parágrafo único:
Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.
A mesma regra se aplica na esfera cível, devendo o policial militar, ainda que
amparado pelo estrito cumprimento de dever legal, atuar nos termos do ordenamento jurídico. Se desnecessariamente causa dano maior que o permitido, não ficam preenchidos os requisitos desta descriminante.
As espécies de excesso que interessam a este estudo são o excesso doloso ou culposo.
No excesso doloso o agente quer um resultado deliberadamente além do necessário. Responderá pelo excesso, como crime doloso.
Como ensina Júlio Fabbrini Mirabete (2005, p. 194):
O excesso pode ser doloso, hipótese em que o sujeito, após iniciar sua conduta conforme o direito, extrapola seus limites na conduta, querendo um resultado antijurídico desnecessário ou não autorizado legalmente. Excluída a descriminante quanto a esse resultado, responderá o agente por crime doloso pelo evento causado no excesso. Assim, aquele que, podendo apenas ferir, mata a vítima, responderá por homicídio; o que podia evitar a agressão através de vias de fato e causou lesão responderá por esta etc.
Por sua vez, no excesso culposo, embora não o desejando, o agente, por não tomar o cuidado objetivo devido, causa um resultado além daquele que era necessário. Responderá pelo excesso, a título de culpa, se o resultado excessivo for previsto como crime culposo.
Na lição de Júlio Fabbrini Mirabete (2005, p. 194):
É culposo o excesso quando o agente queria um resultado necessário, proporcional, autorizado e não o excessivo, que é proveniente de sua indesculpável precipitação, desatenção etc. Na realidade, há uma conduta dolosa, mas, por medida de política criminal, a lei determina que seja fixada a pena do crime culposo, se previsto em lei, já que o sujeito atuou por um erro vencível na sua ação ou reação, diante do temor, aturdimento ou emoção que o levou ao excesso. Também nesta hipótese o agente responderá apenas pelo resultado ocorrido em decorrência do excesso.
Da mesma forma que na esfera penal, na reparação civil o agente deve responder pelo
dano, no ato praticado com excesso doloso ou culposo mas tão-somente no que corresponde ao excesso cometido.
Na realização de uma prisão, o policial militar pode usar a força necessária para prender, mesmo que cause lesões no cidadão. Mas, por exemplo, se ao colocar uma algema, ele dolosamente resolve apertar demais na intenção de causar dor no preso, resultando, além da dor, uma lesão desnecessária, deverá responder por tal resultado, pois se excedeu quando não precisava.
Nesse sentido já decidiu o Areópago Catarinense:
CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - AGRESSÕES À INTEGRIDADE FÍSICA PERPETRADA POR POLICIAIS MILITARES - EXCESSO NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL - DANOS MORAIS - CONDENAÇÃO - RECURSO PROVIDO.
1. Agressão física perpetrada por policial militar, quando a pessoa detida sob a acusação de atitudes suspeitas e por promover desordens já se encontrava dominada, exorbita o estrito cumprimento do dever legal e sujeita à indenização a título de danos morais.
2. Na fixação do valor da compensação a título de danos morais, o juiz deve considerar, não só a extensão do gravame sofrido, mas também as condições particulares da vítima e do ofensor (TJSC. Apelação Cível n. 2001.012154-9. Rel. Des. Luiz César Medeiros. J. em 30-06-2003).
Portanto, não haverá responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal, quando sua conduta estiver legitimada pelo estrito cumprimento do dever legal. Contudo, o dever legal não pode ultrapassar os limites impostos pela finalidade legal a qual foi conferido.
4.3.2 Legítima defesa
A legítima defesa também vem prevista no inciso I, do art. 188 do Código Civil. Mas, na verdade, sua regulamentação é ditada pelo art. 25, do Código Penal:
Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Fundamenta-se essa excludente no reconhecimento de que o Estado não tem condições de oferecer ao cidadão a proteção necessária em todos os lugares e momentos, permitindo, logo, que cada um se defenda com seus próprios meios (CAPEZ, 2009, p. 284).
Como elucida Flávio Augusto Monteiro de Barros (2009b, p. 341):
Se o Estado, diante da urgência da situação, não pode socorrer o direito agredido, cumpre ao titular deste reagir. Segundo a lição de Battaglini, quem se predispõe a delinqüir deve ter em conta dois perigos: o perigo da defesa privada e o da reação penal do Estado.
São requisitos para a legítima defesa, na lição de Fernando Capez (2009, p. 168):
a) agressão injusta;
b) atual ou iminente;
c) a direito próprio ou de terceiro;
d) repulsa com meios necessários;
e) uso moderado de tais meios;
f) conhecimento da situação justificante.
A agressão aqui tratada sempre será um ato humano, pois o revide a ataque de animais não configura legítima defesa, mas sim estado de necessidade (MIRABETE, 2005, p. 183).
A agressão deve ser injusta, assim entendida aquela contrária às normas do direito. Não é necessário que a agressão seja um ilícito penal, basta que a pessoa não esteja obrigada a suportar a agressão para tê-la como injusta. Por exemplo, o policial no atendimento de ocorrência não é obrigado a deixar ser empurrado por um pai que tenta impedir a prisão do filho, podendo desde logo reagir a agressão e desobstruir o caminho para efetuar a prisão.
Agressão atual é a que está ocorrendo, ou seja, o efetivo ataque já em curso no momento da reação defensiva. Para ser admitida, a repulsa deve ser imediata, ou seja, logo após ou durante a agressão atual (CAPEZ, 2009, p. 288). O policial, ao ser agredido com um soco pode, desde logo, desferir um golpe contra o agressor, imobilizá-lo e derrubá-lo, para em seguida algema-lo. Mas não poderá, depois de passados dois dias da agressão, encontrar o agressor na rua e atacá-lo, pois isso seria uma vingança, desprovida de legitimidade.
Agressão iminente é aquela que está prestes a ocorrer, a que existe quando se apresenta um perigo concreto, que não permita demora à repulsa (MIRABETE, 2005, p. 183). Nessa situação, o policial pode reagir desde logo, pois ninguém está obrigado a esperar até que seja atingido por um golpe (CAPEZ, 2009, p. 288).
Caso o perigo seja de uma agressão futura, inexistirá a legítima defesa, pois a pessoa que teme sofrer a agressão poderá usar de outros recursos como o registro de um boletim de ocorrência por ameaça. Assim, o policial militar que desfere um golpe de tonfa em quem ameaça lhe dar uma surra quando aquele estiver de folga não estará acobertado pela excludente.
O oposto também é verdadeiro, não se admitindo legítima defesa de agressão passada.
A legítima defesa também pode ocorrer na defesa de direito de terceiro. Todos os bens jurídicos podem ser defendidos pela legítima defesa, não apenas a vida ou a integridade física. A lei não restringe a legítima defesa apenas aos direitos suscetíveis de ofensa material, de modo que a proteção se estende também à honra, ao patrimônio e à liberdade (BARROS, 2009b, p. 344-345).
Quando a lei se refere a terceiro, esta expressão deve ser entendida de forma abrangente, de modo a proteger a pessoa física, jurídica, o nascituro, a coletividade, o Estado. A legítima defesa pode ser usada até mesmo contra a vontade do titular do bem jurídico, a exemplo do policial que vem a ferir uma pessoa para evitar que ela se mate (BARROS, 2009b, p. 346).
A repulsa será realizada com o uso dos meios necessários, assim entendidos os menos lesivos colocados à disposição do agente no momento em que sofre a agressão. E esses meios devem ser utilizados de forma moderada, isto é, dentro do limite razoável para conter a agressão. A moderação não deve ser medida milimetricamente, mas analisadas as circunstâncias de cada caso (CAPEZ, 2009, p. 289-290). O policial militar, visando se defender de uma agressão física, não poderá exagerar no número de golpes.
Deve-se salientar que meio necessário é o que o agente dispõe no momento em que rechaça a agressão, podendo ser até mesmo desproporcional com o utilizado no ataque, caso não haja outro à disposição na ocasião da repulsa (BARROS, 2009b, p. 346). A exemplo do policial que, ao reprimir um roubo mediante o emprego de faca, onde o criminoso encontre-se na iminência de agredir a vítima, para defendê-la faz uso de sua pistola e atira contra o agressor: configurada estará a excludente da legítima defesa.
Por derradeiro, é necessário que exista o conhecimento da situação justificante. Mesmo que haja agressão injusta, atual ou iminente, a legítima defesa estará completamente descartada se o agente desconhecia essa situação. Pois, se a sua intenção era cometer um crime e, não, se defender, ainda que, por coincidência, o seu ataque acabe sendo uma defesa, o fato será ilícito (CAPEZ, 2009, p. 290). Por exemplo, o policial queria cometer a lesão corporal na vítima, mas esta acabou atacando primeiro e o policial precisou se defender. Não haverá legitima defesa, pois o dolo do agente (elemento subjetivo) não era se defender, mas sim lesionar o agressor.
Estudados os requisitos, não se poderia finalizar o tópico sem analisar a legítima defesa putativa, instituto ao qual muito se recorre no cotidiano.
Fernando Capez (2009, p. 293) conceitua a legítima defesa putativa: “É a errônea suposição da existência da legítima defesa por erro de tipo ou de proibição. Só existe na imaginação do agente, pois o fato é objetivamente ilícito”.
A legítima defesa putativa não exclui a antijuridicidade do ato, mas tão somente a culpabilidade, isentando o réu de pena na esfera penal, não afastando a responsabilidade civil. Nessa hipótese, até mesmo ao próprio sujeito que suporta a agressão, e não apenas ao terceiro inocente, deverá ser ressarcido o dano, pois essa espécie de legítima defesa não exclui o caráter ilícito da conduta, interferindo apenas na culpabilidade penal. Isso se explica, pois, encontra-se o agente em legítima defesa putativa quando, em virtude de uma suposta ou imaginária agressão, repele-a, utilizando moderadamente os meios necessários para a defesa do seu direito ameaçado (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 147). Exemplo disso seria o policial militar que, ao adentrar em uma área de alta periculosidade, avista um cidadão em atitude suspeita, e ao defrontar-se com o mesmo, aquele coloca bruscamente a mão na cintura para pegar um documento de identidade. O policial militar, imaginando que o suspeito vai sacar uma arma, atira primeiro.
Em se tratando de legítima defesa putativa, é pacífica a jurisprudência no sentido de permanecer a obrigação de indenizar as lesões corporais causadas pelo policial militar:
Ocorre a responsabilidade civil do Estado por lesão corporal causada por agente policial, embora haja o reconhecimento em sentença criminal de que o mesmo agiu nas condições do art. 17 do CP (legítima defesa putativa [atual art. 20, §1º]). Esta decisão não faz coisa julgada no cível, pois o art. 65 do CPP se refere à legítima defesa propriamente dita, que é excludente da injuridicidade. Do mesmo modo é o art. 160, I, do CC [atual art. 188, I]. Responde, por conseguinte, o Estado pela reparação do dano, em virtude da própria noção de responsabilidade civil, independentemente da invocação do risco administrativo (Decisão citada por Rui STOCO, 2007, p. 203).
Nesse caso, haverá a obrigação de indenizar por parte do Estado, permanecendo também a responsabilidade do policial.
Questão que merece atenção, todavia, é a da agressão cometida contra o delinquente que pratica crime de roubo mediante o emprego de arma de brinquedo. Inegáveis as semelhanças entre a pistola de brinquedo e a verdadeira, fato que causa o mesmo pânico na vítima e requer os mesmos cuidados por parte dos policiais que atendem esse tipo de ocorrência, uma vez que só se descobre a ausência de letalidade da arma após o encerramento do evento.
Nessa hipótese, caso o policial militar venha a se deparar com esse tipo de ocorrência e, para se defender, atire contra o meliante, sendo que somente após o final da ocorrência venha a se descobrir que a arma utilizada para o crime era de brinquedo, embora se defenda a configuração da legítima defesa putativa, inegável a presença da culpa exclusiva da vítima para o evento danoso. O criminoso que veio a ser atingido pelo tiro do policial concorreu de forma culposa e exclusiva para sua lastimável tragédia, não havendo dever do Estado de indenizar, tampouco responsabilidade do policial militar, pela evidente presença da excludente da responsabilidade estatal: a culpa exclusiva da vítima.
Tratando-se de obrigação de indenizar, somente a legítima defesa real e praticada contra o próprio agressor isenta o agente de responsabilidade civil pelos danos provocados. Caso o policial, para defender a própria integridade ou a de terceiro, lesionar o agressor, restará configurada a legítima defesa, não havendo ato ilícito e, tampouco, obrigação de indenizar.
Contudo, se por engano ou erro de pontaria, vier a lesionar uma terceira pessoa que não participara da ocorrência, esta deverá ser indenizada. Nesse caso, poderá ser proposta ação de regresso em face do agressor inicial. Ocorrerá o famoso erro de execução (aberratio ictus).
Nessas circunstâncias, mesmo que o policial tenha agido em legítima defesa, o Estado deve indenizar a vítima, haja vista não ter havido culpa desta para a ocorrência do ato danoso, pois objetivava-se atingir o agressor, mas, por um simples erro de pontaria atingiu-se pessoa que com nenhuma culpa concorria. Caberá ao Estado reparar o dano, nos termos do art. 37, § 6º, da CRFB, ainda que o policial militar tenha sido absolvido no juízo criminal. Mas, não poderá a Administração Pública propor ação regressiva em face do policial, já que agiu sob o pálio da legítima defesa real.
Sobre o tema, traz-se a lição de Rui Stoco (2007, p. 202):
Cumpre acrescentar que se o autor do fato danoso for preposto do Estado, a ação daquele, ainda que praticada em legítima defesa, não retira a obrigação deste de indenizar, por força do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade objetiva. Significa que o Estado, por força da responsabilidade objetiva, responde civilmente pelo ato danoso, impondo-se-lhe indenizar a vítima ou as pessoas legitimadas, independentemente da existência de culpa lato sensu, mas não terá direito de regresso contra o agente público, se absolvido no crime ou comprovado no cível ter agido em legítima defesa real.
Isso se justifica porque a legítima defesa exclui a responsabilidade do policial militar, não a do ente estatal que teria eximida a sua responsabilidade nos casos de força maior, caso fortuito ou culpa exclusiva da vítima. Novamente as palavras de Rui Stoco (2007, p. 1014):
Mas tratando-se de responsabilidade objetiva do Poder Público, não se pode considerar as situações personalíssimas da legítima defesa, do estado de necessidade ou de estrito cumprimento do dever legal, na atuação do agente público (que se classificam como excludentes de ilicitude), como causas excludentes de responsabilidade da pessoa jurídica de direito público, se não se provar culpa exclusiva da vítima, pois, se não se caracterizam como ilícito penal ou civil para o agente, não têm o condão de romper o liame causal para o Estado.
Em caso de prática de homicídio, nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal:
Responsabilidade civil do Estado: caracterização: morte causada a particular por agente da Polícia Rodoviária em serviço: irrelevância, nas circunstâncias do caso, de ter sido o servidor absolvido por legítima defesa de terceiro, se a agressão a esse não atribuída à vítima, mas a outrem, não atingido (STF. Recurso extraordinário n. 229653.Min. Sepúlveda Pertence. J.em 12-06-2001). Rel.:
Aplica-se à legítima defesa tudo o que foi dito quanto ao excesso no estrito cumprimento de dever legal. Nesse raciocínio, o agente estatal deve responder pelo excesso na legítima defesa, isto é, quando sua conduta ultrapassa os limites da ponderação. Segundo Silvio de Salvo Venosa (2005, p. 62) “deverá responsabilizar-se, proporcionalmente, pelo excesso cometido, pois subsiste a ilicitude em parte da conduta”.
Carlos Roberto Gonçalves (2009, p. 804) ressalta que o ato será contrário ao direito naquilo que for excesso. Todavia o agente pode alegar e provar que o excesso resultou do terror, do medo, ou de algum distúrbio ocasional para se eximir da responsabilização. Nas suas palavras:
Exige-se, para que o estado de necessidade e a legítima defesa autorizem o dano, a obediência a certos limites. Preleciona Pontes de Miranda que, se o ato praticado em legítima defesa for excessivo, no que ele é excesso torna-se contrário ao direito. Entretanto, mesmo assim pode o agente alegar e provar que o excesso resultou do terror, do medo, ou de algum distúrbio ocasional, para se livrar da aplicação da lei penal. Na esfera civil, a extrapolação da legítima defesa, por negligência ou imprudência, configura a situação do art. 186 do Código Civil.
Ainda que presente a legítima defesa real, havendo excesso doloso ou culposo por parte do policial na sua conduta, haverá responsabilização do Estado pelo ato danoso, mas tão-somente no que corresponde ao excesso cometido.
No atendimento de uma briga de bar, caso os agressores reajam contra a intervenção policial recebendo a polícia com socos e pontapés, pode o policial reagir e usar a força contra os brigões, até contê-los. Mas, após dominar a situação, não apresentando mais perigo ao policial, este, por sua vez, não pode continuar a agredi-los, uma vez que não mais presente a excludente da legítima defesa.
Se o policial vier a agredir os detidos que encontram-se já fora de combate, lesionando-os, haverá responsabilidade civil do mesmo referente a esta última lesão.
Portanto, não haverá responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal quando sua conduta estiver amparada pela legítima defesa real, desde que não haja excesso. Contudo, se for atingido um terceiro, que nenhuma culpa tenha no desencadear dos fatos, em virtude de erro na execução (erro de pontaria), caberá ao Estado indenizá-lo, pois estará ausente a excludente da culpa exclusiva da vítima. Mas, nesse caso, não poderá a Administração demandar em face do policial militar, por encontrar-se, este, sob o pálio da legítima defesa real.
4.4 A ação regressiva e a denunciação da lide: questões controvertidas
Por força de dispositivo constitucional, o Estado é obrigado a reparar o dano causado por seus servidores, assegurado direito de regresso contra o causador do dano, nos casos de dolo ou culpa. No caso, a Administração, após indenizar o lesado pelos prejuízos advindos da conduta do policial militar, tem o direito de regresso caso comprove a culpa ou dolo do policial militar. Isso é pacífico.
A controvérsia surge no momento em que a Administração é citada para responder a ação de indenização: ela pode, desde já, promover a denunciação da lide do policial militar ou terá primeiro que aguardar o deslinde da ação e, somente após a reparação do dano, ajuizar a competente ação de regresso em face do policial?
A denunciação da lide consiste em uma ação regressiva, no mesmo processo, podendo ser proposta tanto pelo autor como pelo réu, sendo citada aquela pessoa contra quem o denunciante terá uma pretensão indenizatória de reembolso, caso venha a sucumbir na ação principal. Cabível somente em ações ordinárias. Converte-se, na verdade, numa propositura de uma ação de regresso antecipado, para a eventual condenação de sucumbência por parte do denunciante (CYSNE, 2004). Está prevista no art. 70, III, do Código de Processo Civil:
Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:
III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.
É um tipo de intervenção de terceiro forçada e o seu cabimento está condicionado à possibilidade de que o condenado possa regredir contra outrem. Como há previsão expressa de direito regressivo do Estado, contra o agente material do dano, no caso de dolo ou culpa, nada impediria, do ponto de vista teórico, a aplicação do instituto (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 241).
Contudo, existe séria divergência jurisprudencial para a sua admissão, havendo dois entendimentos sobre o tema.
A corrente que nega a admissibilidade da denunciação da lide no próprio processo de indenização defende que a possibilidade do mecanismo feriria o Princípio da Economia Processual, bem como o da Celeridade Processual, uma vez que haveria duas marchas processuais para se atingir a uma sentença; ressaltando que se trata de uma ação judicial em que no pólo passivo encontra-se uma pessoa jurídica de direito público, sendo-lhe garantidas todas as "vantagens" processuais, principalmente em relação aos prazos.
Caso seja aceita a denunciação, o lesado, autor da demanda principal, será o mais atingido, pois, muito provavelmente, levará o dobro do tempo para que tenha seu direito de indenização garantido.
O Princípio da Celeridade Processual restaria, assim, desaparecido, com duas instruções processuais, nas quais se buscaria, na ação principal, conhecer da existência dado nexo de causalidade – responsabilidade objetiva -, e na denunciação da lide se provar a culpa de seu agente público, pelo Estado, acrescentando-se, assim, fato novo à lide de reparação de danos. lesão e
Ressalte-se que a instrução para a denunciação da lide, em que se buscaria responsabilizar o agente público, demoraria ainda mais, devido a perícias, testemunhas, e outras provas necessárias, lembrando ainda que, caso ocorram problemas com a citação do denunciado, ficará o processo suspenso conforme o artigo 72 do Código de Processo Civil, que dispõe:
Art. 72. Ordenada a citação, ficará suspenso o processo.
Não se pode olvidar o fato de que o valor a ser recebido pelo autor no caso de êxito na ação poderá ser insignificante para o Estado, comparado ao tempo que levará para perceber, provocando, assim, uma desigualdade, pois a pessoa jurídica de direito público terá o direito de regresso contra seu agente público garantido e não lhe será prejudicial o tempo que levar o trâmite da ação e ficar sem aquele valor em seus cofres; já no caso da pessoa lesada, certamente, sofrerá mais pela demora de sua indenização, principalmente, se tiver que suportar a espera do julgamento simultâneo da denunciação da lide. Não se preservaria, novamente, o Princípio da Celeridade Processual.
Seguindo essa corrente, Hely Lopes Meirelles (2005, p. 641) opta pela ação regressiva contra o servidor causador do dano ao invés da denunciação da lide:
A ação regressiva da Administração contra o causador direto do dano está instituída pelo § 6º do art. 37 da CF como mandamento a todas as entidades públicas e particulares prestadoras de serviços públicos. Para o êxito desta ação exigem-se dois requisitos: primeiro, que a Administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que se comprove a culpa do funcionário no evento danoso. Enquanto para a Administração a responsabilidade independe da culpa, para o servidor a responsabilidade depende da culpa: aquela é objetiva, esta é subjetiva e se apura pelos critérios gerais do Código Civil.
O Sodalício Catarinense já decidiu:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - PODER PÚBLICO - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - DENUNCIAÇÃO DA LIDE - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO IMPROVIDO.
Tratando-se de relação de responsabilidade civil entre o Poder Público e a vítima, descabida a denunciação da lide, devendo prevalecer a regra constitucional do art. 37, § 6º, sobre o art. 70, III, do Código de Processo Civil, a fim de não tumultuar e procrastinar o processo (TJSC. Agravo de Instrumento n. 2007.011987-4. Rel.: Des. Sérgio Roberto Baasch Luz. J. em 08-08-2008).
A segunda corrente entende que deve ser aceita a denunciação da lide em face do servidor, pois o direito de regresso está previsto na Constituição, o julgamento da denunciação nos mesmos autos evitará sentenças contraditórias, aliado ao fato de que estaria sendo respeitado o princípio da economia processual, pois, haveria apenas um processo principal já decidindo a responsabilidade do Estado e a do seu agente, e não uma ação ordinária movida pela vítima e outra ação de regresso proposta pela Administração. Nesse sentido, já decidiu a Corte Catarinense de Justiça:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - INDEFERIMENTO DA DENUNCIAÇÃO À LIDE REQUERIDA PELO ESTADO NA CONTESTAÇÃO - DIREITO DE REGRESSO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ADMITINDO A LITISDENUNCIAÇÃO - VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE E ECONOMIA PROCESSUAL - APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 70, INC. III, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, E 36, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Em se tratando de responsabilidade civil do Estado, é a Constituição que, ao mesmo tempo em que consagra o dever objetivo da administração de reparar o dano causado por funcionário a terceiro, institui também a ação regressiva do Estado contra o funcionário responsável, desde que tenha agido com dolo ou culpa (art. 37, § 6º).
Se o art. 70, III, do Código de Processo Civil, prevê a denunciação da lide àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar em ação regressiva, o prejuízo que perder a demanda; e se o texto constitucional é claríssimo ao afirmar que o Estado tem ação regressiva contra o funcionário responsável; não há como vedar à Administração Pública o recurso à litisdenunciação (...)(Humberto Theodoro Júnior. Revista Forense, vol. 334, p. 65-66) (TJSC. Agravo de Instrumento 2004.011557-1. Rel. Des. Nicanor da Silveira. Florianópolis, 17 de fevereiro de 2005.).
Parece mais acertada a primeira posição, no sentido de não aceitar a denunciação da lide no bojo da ação indenizatória, até mesmo para a garantia do princípio da celeridade processual, que se tornou direito fundamental previsto no art. 5º, LVIII, da Carta Magna, acrescido pela Emenda Constitucional nº. 45. E, ainda, para se preservar a indenização garantida ao sujeito pelo direito ferido com o dano provocado, em virtude da superioridade em todos os aspectos do ente estatal frente ao indivíduo, mesmo porque lhe estará garantido o direito ao ressarcimento em ação judicial posterior, e mesmo após a execução da sentença pelo indivíduo lesado.
5 Conclusão
A presente pesquisa rendeu gratificantes e proveitosos conhecimentos sobre o tema estudado. Embora já se tivesse noção a respeito da responsabilidade civil no âmbito geral e, até mesmo em outros assuntos de forma mais aprofundada, novas descobertas foram alcançadas ao se estudar a responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal praticado em serviço.
O instituto da responsabilidade civil, demasiadamente importante para a sociedade atual, merece especial atenção no estudo de sua estrutura.
A responsabilidade civil do Estado, por sua vez, evoluiu através dos séculos, mudando suas características a partir dos regimes absolutistas até o sistema democrático neoliberal da atualidade. Desde as antigas teorias da irresponsabilidade do Estado, até as mais exacerbadas como a teoria do risco integral, a responsabilidade do Estado foi objeto de estudo de várias gerações, sempre chamando a atenção dos juristas.
A segurança pública, prevista expressamente na atual Constituição Cidadã e regulamentada pela legislação infraconstitucional, traz em seu sistema todo um conjunto de órgãos que tem por missão prevenir, reprimir e apurar as infrações penais.
Cabe à Polícia Militar a atividade de polícia ostensiva, bem como a preservação da ordem pública. Para que o policial possa desempenhar regularmente suas atribuições, lhe são outorgados vários equipamentos, como armas de fogo, cassetetes, tonfas, pistolas de choque, granadas, tubos de gás de pimenta e algemas. São ainda conferidas algumas funções especiais, como a busca pessoal e domiciliar nos casos de fundada suspeita, abordagem de veículos para fins de fiscalização de trânsito, remoção de veículos, entre outras.
No exercício da atividade policial, o militar do Estado deve agir estritamente em observância aos preceitos da lei, sem abusos, excessos ou desvios. Ao policial militar não é permitido fazer tudo o que quiser, não estando imune da responsabilidade pelos atos danosos que cometer no exercício da função. O exercício do direito encontra limites traçados pela lei.
Assim, caso o policial venha a cometer qualquer dano desamparado por causas excludentes de antijuridicidade, será responsabilizado por tal conduta.
A responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal, por ser subjetiva, estará presente em duas situações: quando cometer o ilícito e não estiver sua conduta amparada pelas excludentes da legítima defesa e estrito cumprimento de dever legal (sendo, portanto, ilícita); quando, embora amparado por uma excludente de responsabilidade, o policial extrapola os limites impostos pela lei, e causa dano desnecessário (excesso punível). Nesse último caso, a responsabilidade se limita aos danos causados pelo excesso cometido.
Presente sua responsabilidade, deverá ressarcir ao Estado os prejuízos causados na indenização do particular lesado.
O Estado, por seu turno, será responsabilizado sempre que da conduta do policial militar ocorra dano a um particular, desde que inexistam quaisquer das causas excludentes de sua obrigação de indenizar: caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima. Fica impedido, também, de propor ação regressiva em face do policial militar, quando a conduta deste estiver amparada legalmente, uma vez que a responsabilidade da Administração é objetiva perante os administrados e a responsabilidade do policial militar é subjetiva perante a Administração.
Em relação às problemáticas suscitadas no início desta monografia, observa-se que não haverá responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal praticado em legítima defesa real onde, por erro na execução (erro de pontaria), pessoa inocente for atingida, haja vista que sua conduta estava justificada legalmente.
A Administração, entretanto, será obrigada a indenizar a vítima, pois mesmo que o policial tenha agido em legítima defesa real, estando excluída sua responsabilidade, o Estado é civilmente responsável por não ter havido concorrência da vítima na deflagração do ato danoso, não restando afastada sua responsabilidade. A responsabilidade civil do Estado em relação à vítima é objetiva e será apurada nos termos do art. 37, § 6º, da CRFB. Mas, não poderá a Administração Pública propor ação regressiva em face do policial, já que a ação deste foi legítima.
Pode-se concluir que o tema é de grande importância para os operadores da segurança pública, pois, conhecendo sua responsabilidade civil, bem como os limites de sua atuação, buscará o policial militar evitar o cometimento de abusos e excessos, poupando a si mesmo, a Polícia Militar e a sociedade de prejuízos desnecessários, atuando sempre na busca da paz social, da preservação da ordem pública e da segurança da comunidade, mesmo com o risco da própria vida.
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Oficial da Polícia Militar de Santa Catarina, Pós-Graduado, Lato Sensu, em Direito pela Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina - ESMESC em convênio com a Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC. Aprovado no Exame da OAB/SC. Aprovado no Concurso para Técnico Judiciário do Tribunal Reginal Eleitoral de Santa Catarina. Aprovado no Concurso para o Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCHWARTZ, Diego. A responsabilidade civil do policial militar no crime de lesão corporal praticado em serviço Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2011, 08:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/27494/a-responsabilidade-civil-do-policial-militar-no-crime-de-lesao-corporal-praticado-em-servico. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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