I
Com base na “lei habilitante” o Presidente Nicolás Maduro decretou o tabelamento dos aluguéis de imóveis comerciais, limitados a 250 bolívares (algo como R$ 90,00 em meados do ano de 2.014) por metro quadrado.
O exame da experiência brasileira (dentre outras) certamente evitaria a enganada aventura dos vizinhos venezuelanos, tanto no que diz com o meio escolhido, como quanto ao mérito do decreto, se é que o objetivo é o desenvolvimento econômico, notadamente das relações de locação.
Louve-se desde já: no Brasil, o tratamento legal, consolidado com base em larguíssima experiência e atento a princípios democráticos, é diametralmente diverso e aqui é absolutamente livre a convenção do aluguel[1].
II
Analise-se inicialmente o modo como se impôs esse tabelamento: através de um decreto lançado com base na extraordinária “lei habilitante”, promulgada em fins de 2013 diante da “imperiosa necesidad de la construcción de un sistema de gobierno popular que permita el aceleramiento y recuperación de la economía nacional”[2] , segundo o seu encaminhamento formal.
Acerca desse modo de operar na economia, recordem-se quão inócuas sempre se mostraram essas “medidas emergenciais”, aprendendo-se com a visão, há décadas aplaudida, do jurista Caio Mario da Silva Pereira ao comentar investidas legislativas, assim mal impostas, no setor da locação de imóveis: “Tem o legislador tentado restaurar a igualdade mediante normatização emergencial. Mas, como a crise não é transitória, o equacionamento em termos temporários ao invés de lograr a sua cessação tem-na muitas vezes agravado. Há um estado de fato que já se prolonga por tempo extenso, e que se prolongará ainda por muitos anos” [3].
De outro prisma, não é novidade que o vocábulo “lei” se empregue com vários significados, servindo tanto para definir a regra que emana do poder legislativo do Estado e que obriga os indivíduos, quanto para exprimir relações constantes entre fenômenos naturais ou sociais. Exemplo do primeiro caso é a norma civil que impõe o dever de pagar o preço de produtos adquiridos; exemplo da segunda é a “lei da gravidade”.
Exceto se emanações normativas como esta venezuelana, forem atos de quem se acredite divinizado (viés sebastianista, a essas alturas da história da civilização?), ou se forem projetos simplesmente expressivos de temporário poder ditatorial, desenhados com crua má-fé ou intentos distantes daqueles noticiados no texto (quiçá rasas emanações populistas), a ignorância de que “lei” (enquanto regra estatal) alguma poderia alterar “lei” natural ou de mercado (como o é a da oferta e procura), consiste em erro que só leva à chacota: mais de uma vez se tentou, por canetada, revogar a “Lei da Procura e Oferta" e somente resultaram chistes e governantes zombados.
III
Se aquele chefe de Estado optou por decretar a interferência nas locações valendo-se de norma extraordinária, no Brasil nós temos meios mais seguros, eficazes e modernos.
O valor do aluguel, estritamente considerado, pode ser periodicamente readequado por mecanismo previsto diretamente na legislação das locações, que dispõe sobre a revisão a cada três anos[4]. Ao menos desde que passou a viger a legislação atual, em 1991 – e lá se vão mais de vinte anos – jamais se arranhou a segurança na revisão dos valores de aluguéis.
Não sendo suficiente rever tão somente o locativo ou mostrando-se cabível maior amplitude da análise, as condições iniciais do contrato poderão ser alteradas somente com base na lei e mediante definição pelo Poder Judiciário[5], jamais sendo impostas por cegos decretos, tudo se realizando de maneira livre e democrática, perfeita e previamente normatizada, com absoluto respeito à realidade das coisas, dos negócios, das relações entre os envolvidos.
Assim, serão reequilibradas as situações, mercê da utilização de dispositivos presentes no Código Civil, a destacar-se a observação da função social do contrato, a imposição dos princípios da boa-fé objetiva e da probidade, a vedação à onerosidade excessiva ou à lesão, tudo em franca consonância com o prestígio da liberdade de contratar.
Da doutrina abalizada de Capanema de Souza, cuidando desta última possibilidade: “(...) Se o equilíbrio econômico do contrato se rompe, causando lesão enorme a uma das partes, em decorrência de circunstância supervenientes à celebração do pacto e imprevisíveis ao homem de prudência normal, é lícito à parte prejudicada pleitear, em juízo, o restabelecimento das condições inaugurais, ou, em sendo isto possível, até mesmo a resolução do contrato. (...)” [6].
Nossas instituições vão além, sempre com clareza: a par da segurança decorrente da boa legislação brasileira, hábil para resolver eventuais disparates ou desvios nos negócios, assinala-se que o Estado tem à sua disposição – sempre conforme a legislação verdadeiramente democrática - formas outras de intervir na economia, que não o repentino tabelamento, predestinado ao fracasso.
Saudáveis estratégias de Estado harmonizam os princípios da livre iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, e trazem benefícios a todos. A título de ilustração, são lembradas as possibilidades de financiamentos a juros especiais de determinados setores ou atividades, do adequado planejamento tributário e da outorga de isenções ou alíquotas diferenciadas, do investimento em parcerias público privadas, e assim por diante.
IV
Vista a inocuidade da intervenção abrupta por decreto, ultrapassada a índole de comédia ou de obscurantista prática ditatorial, pode-se ferir o fundo, analisar o escopo da medida do governo venezuelano, que a pretexto de perseguir a serenidade econômica, se intrometeu em particulares negócios, um dentre os mais clássicos: a locação de imóveis.
Governos brasileiros que – ainda bem – ficaram no passado, tentaram sobrepor-se às forças da economia[7] e, por exemplo, ditatorialmente limitaram reajustes dos aluguéis a um ínfimo porcentual da inflação efetiva, congelaram os aluguéis ou parcelaram a aplicação dos reajustes inflacionários, como se isso pudesse proteger os locatários. Não deu certo, seja no particular de cada caso, seja quando verificado o espraiamento – a função social – da determinação.
Igualmente, aprecie-se o exemplo, não beneficiou inquilino algum a proteção locativa dada a entidades religiosas[8], mostrando-se atenta a constatação de Arruda Miranda: “É bastante discutível a eficácia dessa espécie de “proteção” legal. Os que militam na área são testemunhas de que, se por um lado os locatários já instalados são beneficiados pela norma, por outro, os pretendentes à tais locações enfrentam a justificada retração dos locadores (...). Quando dão sorte, são obrigados a aceitar valores de aluguel muito superiores aos normais, exigidos para compensar as desvantagens dessas espécies de locações”[9]
A história ensina: restrições ao funcionamento de qualquer setor implicam em elevação de custos (precificação do benefício legal) e no redirecionamento dos investimentos, e vice-versa.
Exatamente no mundo das locações imobiliárias já vimos isso ocorrer: quando se restringiram reajustes decorrentes da inflação, o mercado passou a acrescer certa margem de previsão inflacionária (“gordura”) aos valores dos alugueis iniciais; quando se vedou a denúncia vazia e se obstou a retomada dos imóveis pelos locadores, os investidores abandonaram a construção voltada à locação.
O custo da indevida e obtusa intromissão governamental nas locações imobiliárias já foi sentido no país: os mais velhos se lembrarão das vilas construídas por empresários para locação; notarão que durante décadas foi paralisado esse tipo de investimento devido à incontestável certeza de perda econômica (decorrente de congelamentos, fixações, restrições de cláusulas e outros quejandos, aliás, localizáveis em vários e maus momentos da história legal e econômica mundial).
Em sentido inverso, os exemplos positivos: quando a lei deu liberdade e segurança contratual às locações em shoping centers[10] ou às locações “built to suit” [11], os respectivos mercados floresceram.
Convém notar que somente quanto aos shoppings centers (tratados com ampla liberdade[12] na Lei das Locações), cerca de cinco milhões de metros quadrados de “área bruta locável” (ABL) foram inaugurados no Brasil entre o início de 2007 e o final de 2013, segundo dados da Associação Brasileira de Shopping Centers - ABRASCE. Trata-se de vantagem palpável à sociedade e à economia, é evidente.
É realmente visível o benefício da liberdade contratual, incluída a liberdade de preços: no setor de imóveis comerciais (que seria atingido, se por aqui o novo sistema venezuelano vigesse) nos últimos seis anos foram acrescentados nas maiores capitais brasileiras, algo como cinco milhões de metros quadrados de áreas para escritórios; foram inaugurados cerca de cinco e meio milhões de metros quadrados destinados ao setor de logística em São Paulo e no Rio de Janeiro[13]. Demanda atendida; se exagero ocorrer na construção de unidades, cuidar-se-á de risco assumido pelos empreendedores, e redundará na baixa de preços.
Estas são algumas ilustrações desse sistema de “vasos comunicantes”, tão natural na economia e cuja violação tanto irrita o direito, seja pela ineficácia (em termos concretos) das repentinas normas, seja pelos ônus sociais resultantes, siderando o setor fulminado pelo ato pretensamente benéfico.
V
No Brasil já se repetiu demasiado o mito da hipossuficiência dos locatários empresariais, mas nós aprendemos a auscultar a realidade, a aquilatar as assertivas ecoadas e bisadas como se Mandamentos fossem; não existe no setor uma “proporção áurea” [14] (e que em tese admitiria regras gerais, tais como fixar um valor qualquer de aluguel, imponível a qualquer metro quadrado em qualquer região ou condição), mas sim, existe a desejável, natural e saudável diversidade de situações, bem contempladas no Brasil por legislação equânime, realista, moderna.
É habitual – e não há o que estranhar - existirem locatários incrivelmente mais poderosos economicamente do que os proprietários de um ou outro prédio, circunstância que obviamente não reclama proteção especial. A notoriedade dessa evidência prescinde maiores comentários, mas nem sempre foi admitida.
Diga-se, isso ocorre tanto em locações comerciais quanto em relações residenciais e, no que diz com estas últimas, o mito da divulgada pobreza dos locatários foi derrubado em 1995, quando a FIA/FEA/USP realizou profunda pesquisa do mercado de locação em São Paulo, demonstrando quão parelhas são algumas situações (descobriu-se, por exemplo, que à classe econômica “B” pertencem 27,3% dos locadores e 22,7% dos locatários, porcentuais bastante próximos). Desde então, qualquer estudo das locações se debruça sobre evidências reais, abandonando-se as imaginárias[15].
Sistemas sociais e econômicos tão difusos (com tantos locadores e tantos locatários, em que não existe monopólio) não admitem intrusões do naipe exemplificado na Venezuela. E, já aprendemos por aqui, quaisquer dispositivos que favoreçam pretensamente este ou aquele polo da relação contratual terão sido mal pensados e não funcionarão, seja em decorrência da descoberta de fórmulas legais alternativas, seja com base em decisões judiciais, seja por fim, pela natural movimentação da economia.
Esta conclusão decorre da singela comparação das consequências de um lado, da intromissão abrupta e emergencial em setores pulverizados e legalmente organizados e de outro, dos benefícios que decorrem do privilégio à liberdade contratual balizada pelos princípios constitucionais vigentes, dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência e dos seus corolários expressos na legislação infraconstitucional.
Há sempre de se manter (e a lei nacional soube fazê-lo) a função social da propriedade e das relações contratuais: regular e desenvolver as locações, permitir o crescimento do mercado e da quantidade de imóveis disponíveis e estimular o uso de imóveis locados, para que não seja necessário à massa de empresas locatárias, desviar seus capitais dos respectivos objetos sociais, para a inversão na anacrônica e imobilizadora aquisição de sedes operacionais.
No mais, os contratantes se ajustarão em atenção ao objetivo legal de atender as atuais necessidades produtivas, tanto das locatárias, para as quais o imóvel consiste significativo elemento do conjunto operacional, quanto para locadores, os quais se caracterizam como investidores imobiliários e, não mais, meros detentores de escrituras – transferindo o confronto da relação entre propriedade e uso, para a saudável convivência da dinâmica entre dois negócios distintos e complementares.
[1] O artigo 17, da Lei das Locações estabelece essa liberdade e apenas proíbe a fixação em moeda estrangeira e reajustes com base na variação cambial ou do salário mínimo, a par de realçar a utilização das regras específicas quando de locação residencial se cuidar.
[2] (SIC – exposição de motivos)
[3] Pereira Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume III – Contratos (de acordo com o Código Civil de 2002). Revista e atualizada por Regis Fichtner. 1ª Edição Eletrônica. Rio de Janeiro. 2003. Capítulo XLVIII, item 236.
[4] “Art. 19. Não havendo acordo, o locador ou locatário, após três anos de vigência do contrato ou do acordo anteriormente realizado, poderão pedir revisão judicial do aluguel, a fim de ajustá-lo ao preço de mercado”.
[5] Com absoluto respeito ao instituído notadamente quanto à repartição dos poderes, na Constituição Federal, frise-se, nesses tempos em que vez por outra surgem espasmos normativos.
[6] Souza, Sylvio Capanema de - A Lei do Inquilinato Comentada. Rio de Janeiro: GZ Ed. – 6ª edição - 2010, p.99.
[7] Inesquecíveis as barafundas criadas por congelamentos de preços e de remunerações, que até hoje lotam os tribunais.
[8] A Lei 9.256, de 09/01/1996 alterou o artigo 53, da Lei 8.245/91.
[9] Carneiro, Waldir Arruda Miranda – Anotações à lei do inquilinato – lei 8245 de 18 de outubro de 1991. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p.412.
[10] A teor do artigo 54, da Lei 8.245/91, nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação, definindo-se em seguida alguns poucos limites e aplicando-se os dispositivos procedimentais (bons, aliás) previstos na lei das locações.
[11] Lei 12.744, de 19/12/2012.
[12]Pela precisão, abram-se parêntese para destacar que a liberdade contratual prevista na lei das locações e ora homenageada tem os seus evidentes e constitucionais limites. Para que nos mantenhamos, sempre, adstritos à matéria da locação imobiliária, vale referir trecho de uma decisão relatada pelo Desembargador Antonio Loyola Vieira, do Paraná: “(...) sob exegese do artigo 54, da Lei nº 8.245/1991, que admite a liberdade de pactuar as cláusulas de acordo com a livre vontade das partes (pacta sunt servanda). Entretanto, em que pese o entendimento do douto Magistrado “a quo”, a liberdade de pactuar as cláusulas contratuais contida na previsão legal supramencionada não afasta sua apreciação por parte da função jurisdicional do Poder, com efeito, de restabelecer o equilíbrio contratual necessário nas relações sociais "ex vi" da previsão contida no artigo 421, do Código Civil. A livre iniciativa e a liberdade contratual são fundamentos indispensáveis para o desenvolvimento econômico. Todavia na solução de conflitos o julgador deve primar pela regra que melhor reflete a vontade Constitucional valendo-se do diálogo das fontes como forma de harmonização. (...)” (TJPR - Apelação nº 0004538-88.2009.8.16.0001, relator Des. Antonio Loyola Vieira, julgamento 22/06/2011). Como se vê, trata-se daqueles controles legais antes referidos neste comentário.
[13] Segundo pesquisa conduzida e divulgada pela CB Richard Ellis (São Paulo).
[14] Como a que caracteriza o Parthenon ou obras de Leonardo Da Vinci.
[15] A propósito destes comentários: a mesma pesquisa apurou que dentre os partícipes do mercado das locações residenciais em São Paulo, 56% dos inquilinos e 63% dos proprietários declararam aos pesquisadores da FIA/FEA/USP que um governo interferente “atrapalha”, e 64% dos locatários residenciais e 51% dos locadores acreditam que sem interferência governamental haveria maior oferta de imóveis para locação.
Advogado, diretor da Mesa de Debates de Direito Imobiliário (MDDI), sócio correspondente para São Paulo da Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BUSHATSKY, Jaques. A locação imobiliária e o tabelamento de aluguéis: a liberdade (sempre) funciona melhor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/40723/a-locacao-imobiliaria-e-o-tabelamento-de-alugueis-a-liberdade-sempre-funciona-melhor. Acesso em: 25 dez 2024.
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