1. INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, não raro se tem notícia, no meio jurídico, acerca da propositura de ações civis públicas pelo Ministério Público Federal, com a pretensão de se condenar a União ou Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a instaurar, conduzir e concluir o processo demarcatório de determinada terra indígena, inclusive, no mais das vezes, com a imposição de prazo para tanto.
Nesse contexto, e tendo em vista que a demarcação de terras indígenas, como será abordado, é procedimento administrativo de competência da União, o presente trabalho objetiva examinar, em breves linhas, se é juridicamente possível ao Poder Judiciário, à luz dos princípios e normas constitucionais e da legislação de regência, impor à Administração Pública a obrigação de demarcar terra indígena.
2. DESENVOLVIMENTO
Sobre a demarcação de terras indígenas, dispõe o art. 231, caput, da Constituição Federal:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (grifo nosso)
Face ao teor do texto constitucional, pode-se concluir, tal como leciona Luiz Fernando Villares[1], que “a demarcação é o reconhecimento formal previsto no art. 231 da Constituição Federal de 1988 realizado pelo Estado Brasileiro, de competência da União Federal, das terras indígenas tradicionalmente ocupadas”.
E continua: “Demarcação é o ato que define os limites de um território. É o trabalho de colocar marcas físicas, marcos artificiais e estabelecer os naturais, que determinam onde é ou não a área de posse de determinada comunidade/povo indígena”.
A atividade de demarcação de terras indígenas, de competência exclusiva da União, fora prevista, também, no Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73), o qual, em seu art. 19, assim dispõe:
Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.
§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.
§ 2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória. (grifo nosso)
Diante do referido comando legal, e tendo vista o disposto no art. 231 da Constituição, a demarcação de terras indígenas fora regulamentada pelo Decreto n.º 1.775/96, o qual, por sua vez, estabeleceu que a demarcação de terras indígenas deve ser precedida de processo administrativo, de iniciativa do órgão federal de assistência ao índios – no caso, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) –, por meio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser delimitada constitui terra tradicionalmente ocupada pelos índios.
O procedimento de demarcação de terras indígenas é constituído de diversas fases, definidas, atualmente, nos arts. 2º, 5º e 6º do Decreto 1.775/96, in verbis:
Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.
§ 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.
§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.
§ 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.
§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.
§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.
§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.
§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:
I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;
II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;
III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.
Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto.
Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.
Trata-se, pois, de procedimento de alta complexidade, que demanda considerável quantidade de tempo e recursos diversos para atingir os seus objetivos.
Assim, tendo em vista a carência de disponibilidade econômico-financeira, bem como de outros recursos de ordem material e de pessoal, aliada à complexidade do procedimento, a Administração, por meio da FUNAI, é compelida a estabelecer prioridades na análise dos mais diversos pleitos demarcatórios por parte dos povos indígenas, com base num juízo de conveniência e oportunidade, para aferir qual território reclama maior urgência e necessidade em ser identificado e delimitado.
Outra não é a lição de Luiz Fernando Villares[2], in verbis:
Conhecidos os pleitos e a urgência da demarcação, a Administração Pública tem o poder discricionário de iniciar o processo ou não. (...) Antes de deflagrar o procedimento administrativo para a demarcação, devem ser analisados os pleitos e verificadas a urgência e pertinência da demarcação, duas ordens de grandeza que são traduzidas na a) necessidade maior ou menor no tempo e possíveis prejuízos comparados com as outras demarcações e b) fundamentação técnica preliminar e viabilidade política da demarcação. (grifo nosso)
Assim sendo, resta claro que a demarcação de terras indígenas, enquanto “política estatal para garantir os direitos dos povos indígenas às suas terras[3]”, constitui atividade tipicamente administrativa, cujo planejamento e concretização competem unicamente à Administração Pública, que a exerce com base em juízos de conveniência e oportunidade, ou, em outras palavras, com base em sua discricionariedade.
Em se tratando, pois, da formulação e implantação de política pública, pode-se afirmar, indene de dúvidas, que tal atribuição se insere, prioritariamente, no âmbito das funções institucionais dos Poderes Executivo e Legislativo, não sendo dado ao Poder Judiciário, portanto, substituir as instâncias constitucionalmente competentes para tanto e determinar a efetivação de políticas governamentais, sob pena de violação ao princípio constitucional da separação dos poderes (art. 2º, c/c o art. 60, § 4º, inciso III, da Constituição Federal).
Com efeito, aludido princípio, além do sentido negativo, de divisão, controle e limite dos poderes, possui um sentido positivo, “de assegurar a justa e adequada ordenação das funções do Estado, impondo competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais de soberania” [4]
Daí porque, continua a autora, “na seara dos direitos fundamentais e respectiva concretização, essa dimensão positiva se apresenta extremamente relevante, tendo em vista que o excesso e o ilimitado uso de competências conferidas constitucionalmente implicaria ofensa ao princípio da separação dos poderes”.
Assim sendo, a ingerência indevida do Poder Judiciário nas funções legislativa e executiva configura manifesta violação ao sobredito princípio constitucional, e, portanto, deve ser rechaçada, razão pela qual não é possível ao Poder Judiciário determinar à FUNAI a realização de procedimento de demarcação de determinada terra indígena, muito menos fixar prazo para que a autarquia assim proceda, já que o juízo de urgência e necessidade da realização desses procedimentos insere-se, à evidência, no âmbito da discricionariedade administrativa da FUNAI, a quem compete “formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro”, baseada, dentre outros princípios, na “garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes”, na forma do art. 2º, inciso II, alínea “c”, do respectivo Estatuto (Anexo I do Decreto n.º 7.778, de 27/07/2012).
Como bem ressaltou o constitucionalista português Canotilho, no tocante ao controle judicial da concretização dos direitos sociais, “os tribunais não são órgãos de conformação social ativa”.[5]
De se observar, inclusive, que a implantação de políticas públicas e o planejamento das atividades da Administração demandam a análise de uma série de impactos sociais, financeiros e orçamentários, elementos fáticos e materiais que nem sempre são levados em conta pelos juízes e tribunais, por falta de conhecimentos técnicos, de preparo específico nessa seara, bem assim por estarem alheios às peculiaridades inerentes ao comando e gerência da máquina administrativa.
A atividade material da Administração, de realização de fatos concretos, depende de metas e prioridades estabelecidos pelos governantes, é dizer, pelo Poder Executivo, de acordo com a análise da oportunidade e conveniência de adoção das medidas administrativas no caso concreto, de modo que não compete ao Judiciário determinar, ele próprio, em flagrante substituição ao administrador, quais os interesses que devem ser prioritariamente atendidos pelo Estado.
Outro não é o entendimento dos tribunais pátrios, consoante se extrai do precedente jurisprudencial abaixo transcrito:
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRELIMINARES. INCOERÊNCIA ENTRE FUNDAMENTAÇÃO E DISPOSITIVO. INEXISTÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. REJEIÇÃO. DESTINAÇÃO DE PERCENTUAL DO ORÇAMENTO DOS ENTES FEDERADOS ESPECIFICAMENTE PARA O CUSTEIO DO AUMENTO DOS LEITOS DE UTI PEDIÁTRICA EM FORTALEZA-CE. OUTRAS MEDIDAS PARA A MINIMIZAÇÃO DOS PROBLEMAS RELATIVOS À SAÚDE INFANTIL. POLÍTICAS PÚBLICAS. FORMULAÇÃO PELO JUDICIÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. IMPROVIMENTO DA APELAÇÃO.
I - Inexistindo na decisão recorrida qualquer incongruência entre os fundamentos fático-jurídicos declinados e o subseqüente dispositivo, não se deve, por esse motivo, acolher pedido de anulação da sentença.
II - É da competência solidária entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a responsabilidade pela prestação do serviço de saúde à população, sendo o Sistema Único de Saúde composto pelos referidos entes, conforme pode se depreender do disposto nos arts. 196 e 198, parágrafo 1º, da Constituição Federal (STJ: REsp 773657-RS).
III - Os Juízes não podem se transformar em conformadores sociais nem é possível, em termos democráticos processuais, obrigar jurisdicionalmente os órgãos políticos a cumprir um determinado programa de ação- J. J. Gomes Canotilho.
IV - Não compete ao Judiciário, no seu mister, editar normas genéricas e abstratas de conduta, nem fixar prioridades no desenvolvimento de atividades de administração. Ao Poder Executivo compete analisar a conveniência e oportunidade da adoção de medidas administrativas (STJ: AgRg no REsp 261144-SP).
V - A independência e a harmonia dos Poderes (art. 2º, da CF) evidenciam-se como princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Ademais, a separação dos Poderes constitui cláusula pétrea constitucional que impõe sua observância pelo Poder Judiciário.
VI - Improvimento da apelação do Ministério Público.
(TRF 5ª Região, Apelação Cível – 403668, Rel. Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira. Quarta Turma, DJ - Data: 12/03/2008 - Página::825 - Nº::49). (grifo nosso)
Assim sendo, resta claro que o exercício do controle jurisdicional da Administração não confere ao Judiciário a possibilidade de exame das programações, planejamentos e atividades próprias do Executivo, mais especificamente, no que importa ao presente exame, da FUNAI, substituindo-a na política de escolha de prioridades na área de promoção da política indigenista, atribuindo-lhe encargos sem o conhecimento da existência de recursos e de condições materiais suficientes para tanto.
Em outras palavras, é juridicamente inviável impor-se à FUNAI, sob pena de lesão ao princípio constitucional da independência e harmonia dos poderes, obrigação de fazer, subordinada a critérios tipicamente administrativos, de oportunidade e conveniência.
Deveras, só a FUNAI, com base nos dados referentes às diversas comunidades indígenas que se presta a atender, tem como aferir quantas são as demandas fundiárias indígenas, quais delas são prioritárias, e quais os recursos disponíveis para tanto, tudo com fulcro em critérios cujo estabelecimento e avaliação competem apenas àquele órgão de assistência ao índio, até porque, como será abordado adiante, os recursos orçamentários a ela destinados são parcos, de modo que sua destinação precisa ser cuidadosamente planejada.
A Fundação deve priorizar um estudo qualitativo, ao invés de meramente quantitativo, em relação às demarcações, até porque nem todas as terras em análise pela FUNAI serão efetivamente demarcadas, mas, apenas, aquelas que cumprirem os requisitos estabelecidos no art. 231 da Constituição Federal.
Dessa forma, caso admitida a possibilidade de o Judiciário determinar o início, análise e conclusão do procedimento demarcatório de uma dada terra indígena, em prazo a ser fixado pelo Juízo, tal medida implicaria na alteração das metas e prioridades já estabelecidas pelo administrador competente, que precisaria deslocar sua insuficiente força de trabalho e os poucos recursos de que dispõe para atender à ordem judicial proferida sem a visão global da situação, vindo a prejudicar, em última análise, o desenvolvimento ou continuidade de outros procedimentos demarcatórios prioritários executados pela FUNAI.
A esse respeito, impende trazer à baila, mais uma vez, as precisas lições de Luiz Fernando Villares[6], nos seguintes termos:
A carência de recursos materiais e humanos para realizar as demarcações de terras indígenas força a Administração Pública a exercer com totalidade a discricionariedade administrativa, prevendo as demandas e a possibilidade de seu atendimento, inclusive fazendo um juízo de urgência e oportunidade para considerar qual terra deva e possa ser identificada em primeiro lugar. A pretensão levada pelo Ministério Público através do ajuizamento de Ação Civil Pública com o objetivo de ver demarcada esta ou aquela terra indígena exige do Poder Judiciário uma tutela que não lhe cabe analisar, pois a decisão, se de acolhimento do pedido, principalmente em medida liminar, entra no juízo discricionário da Administração, numa atividade que lhe é inerente e não lhe pode ser usurpada. Apenas a Administração possui a visão total de quantas são as terras indígenas a serem demarcadas, quantas solicitações existem, e, principalmente, quais são os recursos à sua disposição. Ciente das limitações, procura elaborar um plano com as demarcações a serem realizadas anualmente.
A imposição judicial de demarcação de terras indígenas encontra óbices, igualmente, na ausência de disponibilidade econômico-financeira para realização das despesas correlatas por parte da FUNAI.
Nesse ponto, é de se ter em vista, como bem ressaltou o Ministro Celso de Mello, em julgamento proferido nos autos da ADPF n.º 45, que:
(...) a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização -, depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. (grifo nosso)
Deveras, as limitações financeiras e orçamentárias do Estado existem e não podem ser ignoradas em se tratando da concretização de direitos sociais, mormente quando essa efetivação dos direitos venha a ser exigida judicialmente do Poder Público, devendo tal aspecto ser considerado pelo magistrado.
Daí porque não se afigura possível a prolação de uma ordem judicial com vistas a obrigar o Estado a fornecer um determinado serviço, implantar um determinado projeto ou desenvolver determinada atividade, para além de suas capacidades materiais (financeiras e de infraestrutura), já que não se dispõe de recursos ilimitados para a promoção de toda e qualquer pretensão relativa à atividade estatal[7].
Exatamente nesse contexto insere-se a chamada cláusula da reserva do possível, segundo a qual a concretização dos direitos fundamentais de segunda geração está condicionada à razoabilidade da pretensão deduzida face ao Poder Público e à existência de disponibilidade financeira do Estado.
Mostra-se oportuno colacionar, mais uma vez, o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento realizado no bojo da ADPF n.º 45:
Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos.
Destarte, a disponibilidade financeira do Estado é aspecto que não pode ser desconsiderado quando se cuida da efetivação, sempre onerosa, de direitos sociais, exatamente como ocorre nas hipóteses em que se pretenda obter judicialmente da FUNAI a deflagração e conclusão, num dado prazo, do procedimento de demarcação de certa terra indígena.
Como se sabe, a FUNAI não dispõe de recursos financeiros ilimitados e suficientes para atender ao elevado número de demandas fundiárias que lhes são trazidas pelas centenas de comunidades indígenas do país, razão pela qual, como antes explicitado, mostra-se necessário à autarquia estabelecer metas e prioridades no atendimento aos pleitos territoriais dos indígenas, mediante uma deliberação responsável a respeito da destinação desses recursos.
A demonstração da existência da disponibilidade orçamentária e financeira da FUNAI para realizar os processos demarcatórios de terras indígenas, portanto, é mais uma condição à prolação de eventual decisão judicial sobre o assunto.
Além de tudo já exposto, releva notar, ainda, que os prazos previstos no Decreto n.º 1.775/96 para a conclusão das etapas do processo de demarcação de terras indígenas não são peremptórios, razão pela qual sua eventual superação pelo órgão indigenista, quando da realização dos procedimentos demarcatórios, não lhe acarreta qualquer consequência jurídica, nem, tampouco, lhe constitui em mora em relação à obrigação de demarcar um dado território apontado como indígena.
O mesmo pode ser dito em relação ao disposto no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –(ADCT), segundo o qual “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
Com efeito, também o referido prazo não é de natureza peremptória, constituindo norma programática a disposição que o estabeleceu, com o intuito de levar o Poder Público a promover as demarcações em tempo razoável.
Outra não é a direção da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal (STF), como revelam os seguintes arestos:
MANDADO DE SEGURANÇA – DILAÇÃO PROBATÓRIA. Estando a causa de pedir do mandado de segurança direcionada à definição de fatos considerada dilação probatória, forçoso é concluir pela impropriedade da medida. TERRAS INDÍGENAS -DEMARCAÇÃO. O prazo previsto no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não é peremptório. Sinalizou simplesmente visão prognóstica sobre o término dos trabalhos de demarcação e, portanto, a realização destes em tempo razoável.”(MS 24566/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 28-05-2004)
ADMINISTRATIVO. TERRAS INDÍGENAS. PROCEDIMENTO DE IDENTIFICAÇÃO E DEMARCAÇÃO. ATRIBUIÇÃO. FUNAI. INEXISTÊNCIA DE INÉRCIA ADMINISTRATIVA.
1. O prazo previsto no art. 67 do ADCT (e pelo mesmo motivo também o prazo do art. 65 da Lei 6.001/73) para a demarcação das terras indígenas não é peremptório, conforme decidido pelo STF ao julgar o MS 24.566-2-DF, relator o eminente Ministro MARCO AURÉLIO (DJ 28.5.2004).
2. O procedimento administrativo para identificação e demarcação das terras ocupadas pelos índios Kapotnhinore, da etnia Kayapó, foi regularmente desencadeado pela FUNAI no exercício das suas funções institucionais de demarcar e registrar as terras ocupadas pelos silvícolas, não existindo sequer indício nos autos que indiquem negligência por parte do órgão de assistência ao índio na condução desse processo.
3. Apelações e remessa oficial, tida por interposta, a que se dá provimento.
(TRF-1ª Região, AC 2005.39.01.001468-4/PA, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, Rel. Acor. Desembargadora Federal Maria Isabel Gallotti Rodrigues, Sexta Turma, e-DJF1 p.150 de 08/09/2009)
Assim, não havendo prazo fatal para que o Estado inicie os processos de demarcação em relação aos quais for instado, compete ao Poder Público definir o planejamento adequado para atender a esse fim público, sendo indevida a ingerência do Judiciário, em tal quesito, como já destacado.
Imperioso notar, por fim, que, como visto, a demarcação é um procedimento de alta complexidade, sendo que o respectivo Relatório Circunstanciado (art. 2º, § 6º, do Decreto n.º 1.775/1996) deve ser precedido por uma série de estudos, abrangendo dados gerais e específicos sobre o grupo indígena envolvido e o território que se pretende ver demarcado, relativos à habitação permanente, atividades produtivas, meio ambiente, reprodução física e cultural, levantamento fundiário, dentre outros, nos termos da (Portaria/FUNAI n.º 14, de 09 de janeiro de 2006).
Estudos dessa monta, que envolvem uma série de conhecimentos técnicos específicos de diferentes naturezas, bem assim o dispêndio contínuo de recursos materiais (sobretudo financeiros) e humanos, demandam, por óbvio, considerável quantidade de tempo para que venham a atingir suas finalidades. Seu deslinde, portanto, não pode se dar de forma imediatista, em curto espaço de tempo, muito menos em período estabelecido pelo Judiciário sem qualquer consideração dessas especificidades.
Confira-se, nesse sentido, o seguinte aresto, abaixo transcrito:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IDENTIFICAÇÃO E DEMARCAÇÃO DE ÁREAS A SEREM OCUPADAS POR ÍNDIOS GUARANIS NO NORTE DO ESTADO DE SANTA CATARINA. LIMINAR CONCEDIDA. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
Os trabalhos de levantamento, demarcação e solução temporária do problema demandam recursos humanos e materiais cuja mobilização exige prazo incompatível com a determinação judicial.” (TRF 4ª Região, AI Nº 2002.04.01.048848-8/SC, Rel. Des. Federal VALDEMAR CAPELETTI, julgado em 20/02/2003). (grifo nosso)
Analisando a questão, o Desembargador Federal a quem incumbiu a relatoria do feito exarou o seguinte voto:
“Ao proferir o despacho de fl. 80, assim me pronunciei:
‘Recebo o agravo com atribuição de eficácia suspensiva.
A decisão recorrida de fls. 26/33 defere liminar, em ação civil pública, para determinar que as rés União e FUNAI, solidariamente, (a) em noventa dias, levantem a questão indígena na Circunscrição Judiciária de Joinville; (b) no mesmo prazo, relatem ao juízo as possíveis hipóteses de solução; (c) após o relatório, em seis meses, continuem os procedimentos de demarcação; (d)bimestralmente, apresentem relatórios dos trabalhos de demarcação; e (e) em noventa dias, proponham solução temporária para a questão.
A meu ver, os trabalhos de levantamento, demarcação e solução temporária do problema demandam recursos humanos e materiais, especialmente de ordem econômico-financeira, cuja mobilização exige prazo incompatível com a determinação judicial.
De resto, descabe ao Poder Judiciário substituir o Poder Executivo no delineamento e na implantação de providências administrativas da atribuição deste.’
Não vislumbro, agora, motivo para modificar esse entendimento.
Em face do exposto, dou provimento ao agravo.
É o voto”.
Destarte, os procedimentos demarcatórios reclamam devem ser promovidos no prazo razoável e necessário para que se complementem os estudos imprescindíveis para verificar se o território que se pretende ver demarcado constitui, de fato, terra tradicionalmente habitada pelos índios, na forma da Constituição Federal, levando-se em consideração a disponibilidade de recursos materiais e humanos da Administração Pública, bem como os planejamentos e programações elaborados pelo órgão de assistência ao índio quanto às demandas fundiárias prioritárias.
Eventual decisão judicial no sentido de determinar a demarcação de uma terra indígena e de estabelecer um prazo fatal para o início, realização e conclusão do procedimento demarcatório como um todo mostrar-se-ia, pois, desarrazoada e juridicamente equivocada, configurando indevida ingerência do Judiciário em funções administrativas inerentes à FUNAI.
3. CONCLUSÃO
Conclui-se, assim, que não é juridicamente possível ao Poder Judiciário determinar à FUNAI a realização de procedimento de demarcação de determinada terra indígena, muito menos fixar prazo para que a autarquia assim proceda, seja por violar expressamente o princípio constitucional da separação dos poderes, seja por encontrar obstáculos nos condicionamentos impostos pela cláusula da reserva do possível, mais especificamente na ausência de disponibilidade financeira da FUNAI para efetivar, de pronto, a demarcação de determinada terra indígena indicada pelo Juízo, ou, ainda, pelo fato de que inexiste prazo fatal para que o Estado Brasileiro venha a deflagrar procedimentos demarcatórios em relação aos pleitos fundiários que lhes são apresentados.
Eventuais decisões judiciais contendo esse tipo de determinação ao Poder Público - como sói acontecer em diversos tribunais - configuram indevida ingerência do Poder Judiciário nas funções legislativa e executiva e, portanto, devem ser rechaçadas.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009.
ROCHA, Rosália Carolina Kappel. A eficácia dos direitos sociais e a reserva do possível. Revista Virtual da AGU, Brasília, Ano V, n.º 46, nov. 2005. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/85444. Acesso em 11 de dez de 2014.
OLIVEIRA NETTO, Sérgio de. O princípio da reserva do possível e a eficácia das decisões judiciais. Revista Virtual da AGU, Brasília, Ano V, n.º 43, ago. 2005. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/86246>. Acesso em 11 de dez 2014.
[1] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p. 125.
[2]VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p. 125., p. 129.
[3]Ob cit., p. 125., p. 126.
[4] ROCHA, Rosália Carolina Kappel. A eficácia dos direitos sociais e a reserva do possível. Revista Virtual da AGU, Brasília, Ano V, n.º 46, nov. 2005. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/85444. Acesso em 11 de dez de 2014. p. 22.
[5] CANOTILHO, apud ROCHA, Rosália Carolina Kappel. A eficácia dos direitos sociais e a reserva do possível. Revista Virtual da AGU, Brasília, Ano V, n.º 46, nov. 2005. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/85444. Acesso em 11 de dez de 2014, p. 22.
[6] VILLARES, Luiz Fernando. Direito e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2009. p. 128-129.
[7] OLIVEIRA NETTO, Sérgio de. O princípio da reserva do possível e a eficácia das decisões judiciais. Revista Virtual da AGU, Brasília, Ano V, n.º 43, ago. 2005. Disponível em: http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/86246>. Acesso em 11 de dez 2014 p. 06.
Procuradora Federal. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Caroline Marinho Boaventura. O Poder Judiciário e a imposição à Administração Pública da obrigação de demarcar terras indígenas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/42414/o-poder-judiciario-e-a-imposicao-a-administracao-publica-da-obrigacao-de-demarcar-terras-indigenas. Acesso em: 23 dez 2024.
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