Resumo: Em face da efervescência social vivida nos tempos atuais, trata-se do tema Sociedade Civil e sua evolução ante ao desenvolvimento do Estado e sua representação no campo do Direito. As diversas acepções teleológicas do tema apresentado demonstram um caráter autônomo da sociedade, ao mesmo tempo em que é interdependente de um ente maior mediador dos anseios daquela como um organismo vivo e autodeterminado. O Estado, organizado socialmente para satisfação de inquietudes da sociedade que o originara, desempenha um papel quase que absoluto no mister que lhe fora atribuído. Contudo, deve-se considerar que, apesar da enorme força política concedida à criatura, a Sociedade Civil como criadora daquele pode e deve conduzi-lo ao melhor caminho e direcioná-lo sempre ao atendimento das demandas coletivas e ao bem-estar comum. Eis, portanto que surge o Direito em seu papel como o mecanismo jurídico que compõe o conjunto de instituições cívicas nas quais a Sociedade Civil se articula.
Palavras-chave: O Direito e a Sociedade Civil; Limitações ao poder do Estado; Estado e Sociedade; Jusnaturalismo; Filosofia do Direito.
1. Introdução
Sociedade civil é o lugar das lutas sociais e o lugar onde se definem as propostas coletivas. Na história do pensamento político, do renascimento à atualidade, seu conceito evoluiu muito denotando vários e sucessivos significados.
São trazidas aqui breves alusões históricas da evolução política dos conceitos de Sociedade Civil e Estado, com único objetivo de mostrar as variações de sentido conforme as concepções que havia da sociedade, e a íntima correlação que mantêm com o campo do Direito.
O conceito de Estado por certas vezes se confunde com o conceito de sociedade civil. Há, portanto, alguns momentos em que se complementam em outros tantos aspectos. E é não só no campo da ciência política, mas também do Direito como fenômeno social que se percebe isso.
Nenhum conceito é inocente e definitivo, sobretudo quando ele serve para definir o funcionamento das coletividades humanas. E o que se constata ainda hoje, com efeito, quando se leva em consideração os pontos de vista tomados atualmente, é caber a análise de três grandes categorias: uma concepção burguesa da sociedade civil, àquela da elite; outra concepção que define a sociedade civil como o reagrupamento de todos os bons; e, enfim, uma concepção popular, a concepção do povo. Povo este no sentido amplo intrínseco ao Direito das gentes.
2. Referencial Teórico
A primeira expressão de sociedade civil fora originada na doutrina política tradicional e, mais especificamente, na doutrina jusnaturalista. Seu conceito se opunha ao de sociedade natural. Conceito criado e defendido por Hobbes (HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2006.). Para ele, foi através das contradições entre os benefícios do Estado Civil e dos inúmeros inconvenientes do Estado de Natureza, atribuindo à vida no Estado as características que distinguem o viver civil (razão, paz, segurança, riqueza, decência, sociabilidade, requinte, ciência e benevolência), que surge o conceito.
Tem-se, assim, Sociedade Civil significado como uma ordem social organizada superior porque civilizada e racional nascida dos contrastes e conflitos que o homem se encontrava em um estado primitivo da natureza, aflorando da instituição do poder comum para garantir, fundamentalmente, a paz, a liberdade, a propriedade e a segurança a todos os indivíduos associados.
Para Locke, e em suas palavras, “aqueles que se reúnem num só corpo e adotam uma lei comum estabelecida e uma magistratura à qual apelar, investida de autoridade de decidir controvérsias que nascem entre eles, se encontram uns com os outros em sociedades civis.” (apud BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.). O filósofo Inglês incluía, então, o Estado no conceito de sociedade civil. Sob a ótica de Locke, a sociedade civil não se contrapõe somente ao estado de natureza, abstrata e idealmente considerada, mas também às sociedades dos povos primitivos. Sustenta-se, então, um conceito para sociedade civil como sendo expressão da sociedade civilizada ou de sociedade política.
O célebre contratualista Rousseau (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.), numa outra acepção, definiu sociedade civil como sendo a sociedade civilizada, mas não necessariamente ainda sociedade política. Esta surgida do contrato social, onde se recupera o estado de natureza e se supera a sociedade civil. A sociedade civil de Rousseau é, do ponto de vista hobbesiano, uma sociedade natural. Para Montesquieu (apud BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.), fundamentado em Giovanni Gravina, autor italiano do século XV, sociedade civil é a reunião das vontades dos particulares, nas relações que possuem entre si, num apelo natural de viver em sociedade ou Estado Civil. Sociedade política é a reunião de todas as forças particulares para formação de um Estado Político.
Na acepção de Hegel (apud BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.), era o espaço social situado entre a família e o Estado. Logo, a sociedade civil não coincide mais com o Estado, mas constitui um de seus momentos preliminares, faltando-lhe, para caracterizar-se como tal, a característica de organicidade. A concepção hegeliana de sociedade civil contraria as teorias precedentes que identificam uma associação voluntária que não conseguia distinguir e perceber a real e efetiva excelência do sentido de Estado, distinguindo assim, ambos os conceitos.
Partiu-se, em seguida, para um enfoque econômico e materialista. Sociedade civil, para Adam Smith (apud BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.), tratava-se de tudo que era socialmente construído, compreendendo o mercado e o Estado. Karl Marx definiu sociedade civil como sendo o conjunto das relações sócio-econômicas condicionantes das demais relações, tendo o mesmo significado o de sociedade burguesa. (MARX, Karl. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003.)
A sociedade burguesa valoriza a sociedade civil como elemento essencial de sua estratégia de classe. Para ela, a sociedade civil é o lugar do desenvolvimento das potencialidades do individuo e do espaço do exercício das liberdades. Sob esta ótica, o papel do Estado é limitado em estabelecer o conjunto de regras jurídicas garantindo a propriedade privada e o livre exercício de empresa, em assegurar o funcionamento da reprodução social e em proteger os indivíduos.
No pensamento de Marx, as instituições políticas e jurídicas tinham suas origens nas relações materiais de existência. Ele descreveu o processo através do qual a sociedade civil se emancipa do Estado, por impedir seu livre desenvolvimento, e se cinde em indivíduos independentes que se proclamam libertos e iguais perante o Estado, criticando os pretensos direitos naturais como gerados da própria sociedade civil. Logo, Marx deixa claro, na sua visão, que sociedade civil é o espaço onde tem lugar as relações econômicas como as que caracterizam a estrutura de cada sociedade, significando a sociedade pré-estatal, onde é base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política. Sociedade civil, assim é para Marx, a esfera independente das relações econômicas intersubjetivas dos indivíduos, iguais entre si, contraposta à esfera das relações públicas.
Para Antonio Gramsci (apud BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.), existem duas realidades distintas que apontam para as relações ideológico-culturais, a sociedade civil e sociedade política ou Estado. A sociedade política corresponde à função de hegemonia de direção espiritual e cultural que um grupo exerce, em determinado momento, sobre toda a sociedade. No que resta, a sociedade civil, corresponde ao conjunto de organismos privados, constituídos pelas instituições e destinados a produzir consenso entre seus indivíduos através da transmissão dos valores dominantes, como escolas, mídias, instituições religiosas etc. Nessa feição, pode-se dizer que a sociedade civil se situa entre o príncipe e o comerciante, entre o Estado e o Mercado.
No pensamento contemporâneo, sociedade civil é composta das organizações geradas pelos grupos sociais geralmente fragilizados na sociedade atual, desprotegidos pelo Estado e fora do mercado que, notadamente, planeja e dirige as políticas públicas. A sociedade civil vaga livremente nas instituições e se manifesta em fenômenos nas ONGs, nos setores não-mercantis da economia e nas instituições de interesse comum, na educação, na segurança e na saúde. É o terceiro setor, ao lado do Estado, autônomo, susceptível de fazer oposição. Em uma palavra, trata-se da organização de cidadãos, de todos que querem o bem e desejam a mudança do curso das coisas injustas no mundo. É matriz do moderno direito associativo.
As propostas dos membros da sociedade civil, nesse quadro de pensamento, correspondem a verdadeiras necessidades, entretanto, essa concepção não deriva para uma outra ordem das relações sociais. É como se a sociedade fosse composta de uma coleção de indivíduos reagrupados em estratos superpostos, instâncias de profundidade, e que reivindicam um lugar digno no seio dessa sociedade. Tal ideia denuncia abusos do sistema, mais não chega a uma crítica de sua lógica e, muito menos, à proposta de efetivas soluções. Por essa mesma razão, ela se torna facilmente receptora de ideologias revolucionárias, entre classes, culturalistas, utópicas, no sentido negativo da palavra, que, manifestando o desejo de mudar os paradigmas da sociedade, engendra, em longo prazo, na ineficácia.
Portanto, a sociedade civil é forjada pelo mercado nas relações desiguais. O espaço público é monopolizado pelas forças econômicas. Os grupos dominantes agem mundialmente, utilizando os Estados não com vistas à redistribuição da riqueza e a proteção dos necessitados, mas, cada vez mais para controlar as populações e servir o mercado. Os mecanismos são diversos e sempre progressivos, vindos das políticas monetárias, tratados de livre mercado, das reformas jurídicas àquelas do ensino, da privatização da segurança social aos serviços da saúde, da diminuição de subsídios à pesquisa social e aos apoios às organizações populares, da supressão da publicidade à imprensa de esquerda e ao controle, de um enfraquecimento dos setores progressistas, das instituições religiosas, à tutela das ONGs.
Mas, sobre a base desta analise se desenvolve também uma consciência social mais aprofundada. Com efeito, existe uma sociedade civil popular que é a dos grupos sociais desfavorecidos ou mais necessitados, que pouco a pouco experimentam e descobrem as causas de sua situação. Ela se encontra na base da resistência que, pouco a pouco, se globaliza. Ela reivindica um espaço público organizado a serviço de todos os seres humanos e não de uma classe ou minoria, cabendo ao Direito a construção deste ambiente. Ela quer transformar em cidadãos aqueles que foram reduzidos a produtores e a consumidores, aqueles que se debatem nas dificuldades das economias informais. Aqueles que formam essa "multidão inútil" para o mercado mundial.
3. Conclusão
Parafraseando o professor Miguel Reale (REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª Ed: Saraiva, 2002.), Direito é “a integração normativa dos fatos segundo valores”. Segundo a ideia da implicação-polaridade, os reflexos dos movimentos sociais na seara jurídica servem de acomodação da sociedade aos fins atavicamente por ela pretendidos, ora por questões arquetipicamente coletivas, ora por uma consciência comum a todos aqueles a ela pertencentes.
E é com esteio nesta máxima que se pode abstrair a importância da história política no entendimento da dinâmica jurídica e social pela qual o país e o mundo passam nos dias de hoje.
Os movimentos populares não se reduzem a meros fenômenos sociais observáveis. São notórios os reflexos politico-jurídicos envolvidos na dinâmica social. Não há como assistir aos fatos contemporâneos como simples espectador sem que sejam percebidos os reflexos jurídicos das resistências dos povos aos mais diversos sistemas de políticas determinantes que tanto suprimem injustamente legítimos direitos de minorias e, ainda, interesses transpessoais indisponíveis.
Diversas são as distorções políticas que induzem a sistematizações jurídicas não legítimas na história da humanidade. Até mais recentemente, foi o movimento operário que se impôs como paradigma das lutas durante, mais ou menos, dois séculos, revestido, assim, mais com base na análise econômica.
Atualmente, por exemplo, além de um novo direito associativo que floresce, um elemento bastante significativo do reflexo daquelas sistematizações jurídicas está contido na consciência ecológica cada vez mais representada no campo não só de um direito ao meio ambiente equilibrado, mas também a uma perspectiva social que visa enxergar na dignidade da pessoa humana, das gerações atuais e futuras, um caminho para o aprimoramento do próprio Estado.
Nesse ínterim, a destruição do meio ambiente, produzida por uma relação mercantil com a natureza, tem se agravado consideravelmente em meio ao crescimento das desigualdades. No curso da fase neoliberal da acumulação de capitais, foram provocadas grandes reações. Cada vez mais, pessoas fazem a ligação entre a lógica econômica e os problemas ecológicos. Coincide o desenvolvimento da consciência de justiça nos indivíduos com as consequências dos desequilíbrios ecológicos causados pelas disputas econômicas. Torna-se inevitável que as representações de uma sociedade civil digna e justa estejam vinculadas diretamente à busca do equilíbrio dos recursos contidos na natureza.
Uma promoção da sociedade civil popular reagrupando o conjunto dos que em todos domínios da vida coletiva contribuem a construir uma outra economia, uma outra política, uma outra cultura, com altos e baixos, sucessos e fracassos, acertos e erros. Esta sociedade civil tem necessidade de redefinir os movimentos sociais e as estratégias a serem seguidas, bem como os mecanismos jurídicos, as propostas de melhora e os objetivos a serem universalizados. A sociedade civil deve formular seu próprio planejamento, para não permanecer submissos às decisões do mercado, devendo produzir seus enunciados e sua cultura, como muitos movimentos o fizeram no passado.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 5ª ed. Brasília : UNB – São Paulo : Imprensa Oficial, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2006.
MARX, Karl. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003.
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª Ed: Saraiva, 2002.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
Advogada da União, pós-graduada em Direito Empresarial e mestranda em Derecho de las Relaciones Internacionales y de la Integración en América Latina pela Universidad de la Empresa de Montevideu/Uruguai.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Ruth Helena Silva Vasconcelos. O Direito, a sociedade civil e o Estado: uma abordagem à luz da política de Bobbio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/47098/o-direito-a-sociedade-civil-e-o-estado-uma-abordagem-a-luz-da-politica-de-bobbio. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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