Resumo: O presente artigo tem por intento problematizar a legitimidade jurídica e social da adoção individual ou conjunta feita por pessoas de orientação homossexual, tendo em vista que as hodiernas formações familiares são um fato social, o qual não deve ser desprezado, e torna-se uma questão de relevância em nosso ordenamento cidadão efetivar os direitos que lhes são inerentes à luz dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, dentre eles, o de constituir filiação, questão aqui abordada no instituto da adoção, a qual se deve lembrar, leva a possibilidade de família aos que não a possuem, priorizando o interesse dos infantes que não dispõem de ambiente familiar, e por isso não pode ser limitada para além do que é determinado pela lei. Busca-se discutir se a homoafetividade é causa de impedimento ao direito de adotar criança ou adolescente com base em análise dos conceitos de adoção, de família e da legislação correspondente à matéria, tendo como guia as bases constitucionais, uma vez que essa discussão traz à baila uma reflexão sobre o quão arraigado ainda é a discriminação, mesmo que o direito assista os marginalizados e nos coloca diante da finalidade social e familiar da adoção.
Palavras-chave: adoção; casais homoafetivos; legitimidade; família; discriminação.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo problematizar a adoção feita por pessoas homossexuais, conjunta ou individualmente, analisar a entidade família, bem como discutir a finalidade da adoção, recorrendo, para tanto, aos princípios constitucionais, sabendo-se que a Constituição Federal de 1988 traz como fundamento da República Brasileira a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e como objetivo fundamental promover o bem de todos sem quaisquer formas de preconceito ou discriminação (art. 3º, IV), inclusive, aquelas baseadas no gênero; a igualdade é principio e direito fundamental: todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). Daí a necessidade sócio-jurídica de se debater a possibilidade de casais do mesmo sexo poderem adotar uma criança, uma vez que possuem ao seu favor os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, além da discriminação eventualmente sofrida pelos casais interessados em adotar e do embargo à finalidade social da adoção, levando-se em consideração os direitos da criança e do adolescente de serem postos em uma família substituta ao invés de não terem nenhuma expectativa de vida futura.
Em março de 2015 a Ministra Cármen Lúcia do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou adoção por um casal homoafetivo (decisão inédita no Tribunal) no julgamento do Recurso Extraordinário 846102 e, baseando-se na decisão do mesmo tribunal que reconheceu a união estável homoafetiva no ano de 2011, defendeu que o conceito de família, com regras de visibilidade, continuidade e durabilidade, também pode ser aplicado a pessoas do mesmo sexo, já que o “conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico”, justificou na decisão. Se se reconhece a união homoafetiva como família, porém negando os direitos a ela inerentes, ocorre uma negação do princípio da igualdade, pois segundo a Ministra na mesma decisão “a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família”.
Adoção é o ato jurídico solene pelo qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela estranha. É, acima de tudo, um direito da criança e do adolescente e também uma prerrogativa da família, e a união homoafetiva nesta condição não pode ficar excluída do usufruto deste direito. O conceito de família não mais se centra no enlace matrimonial heterossexual, reconhecendo a Constituição Federal para além desta a família monoparental, bem como a união estável (art. 226) entre pessoas do mesmo sexo, conforme entendimento do STF. Uma vez que a nossa sociedade tem a heterossexualidade como a padrão a ser seguido, há uma resistência gratuita em acolher e respeitar a possibilidade de homossexuais ou casais do mesmo sexo estarem aptos a adotar. São evocados os argumentos de que a ausência de modelos comportamentais de ambos os gêneros, feminino e masculino, implicaria em sequelas de ordem psicológica e dificuldades na identificação de gênero do adotado, havendo o “risco” de o adotado tornar-se homossexual. Também é colocada em conflito com a possibilidade de adoção por homossexuais a preocupação com a integridade da honra e da dignidade do filho ou filha adotada, que pode ser alvo de discriminação e ofensas no meio em que está inserto ou vítima de escárnio por parte de pessoas próximas, o que poderia lhe acarretar transtornos psicológicos ou problemas de inserção social.
A adoção por homossexuais é questão de muita polêmica no Brasil, todavia, nenhuma lei em nosso país proíbe expressamente a adoção por pessoas homossexuais e já existem precedentes jurisprudências que deferiram adoção a homossexuais, mas será mesmo que pais homossexuais causam problemas de qualquer ordem ao adotado? Para Viviane Girardi (2005, p. 130), a chance de adoção por casais homossexuais é possível por intermédio da utilização de mecanismos jurídicos de interpretação conjuntamente com o arcabouço legal que estabelece a multiplicidade das formas de organização familiar. Afirma que para que isso ocorra é necessário que o operador jurídico estabeleça os valores jurídicos que pretende salvaguardar juridicamente, pois a adoção por casais do mesmo sexo envolve empecilhos morais e culturais, tornando evidente a presença do elemento subjetivo para decisão. O desafio, atualmente, não é mais vencer nos tribunais, contudo, a luta é contra a resistência da sociedade em reconhecer e acatar direitos que já são inerentes a essas pessoas.
2. LINEAMENTOS SOBRE A NOÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA
Em amplo sentido, família, como parentesco, é o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar (ascendentes, descendentes e parentes afins); em sentido restrito, família gira em torno do poder familiar na relação pais e filhos, sendo visível atualmente o abandono dos paradigmas da família patriarcal, segundo entendimento de Silvio de Salvo Venosa (2010,p.2). Não há consenso sobre o conceito de família entre ciências sociais como direito, sociologia ou antropologia e até mesmo dentro do direito há variações em relação aos seus ramos, o certo é que a concepção de família sempre foi influenciada pela moral de cada época.
Segundo Friedrich Engels, o estado primitivo da família tinha como característica a promiscuidade entre seus membros e, como consequência o matriarcalismo, já que se tinha desconhecimento do pai, logo a mãe detinha o poder sobre os filhos. Posteriormente diversos fatores como guerras ou instinto natural fizeram com que os homens buscassem relações com mulheres de outras tribos e, nesse sentido, o homem caminha contra o incesto e para as relações um pouco mais individuais, fornecendo bases para a monogamia, a despeito da continuidade da poligamia (como nos casos em o casamento era monogâmico, mais se admitiam esposas secundárias). A relação familiar monogâmica veio a ressaltar o pátrio poder e esta possuía um caráter econômico de produção, pois antes da revolução industrial com a economia tipicamente agrária, os lares eram pequenas oficinas de fabricação e os ofícios eram passados de pai para filho. A industrialização retira o caráter de unidade de produção e a família torna-se, por excelência um âmbito de desenvolvimento e cultivo de valores morais, afetivos e espirituais entre seus membros.
Em Roma, a família era compreendida com um conjunto de pessoas que, quer pela natureza, quer pelo direito, viviam sujeitas ao poder de outra, o patriarca, nesse sentido, sob o prisma sociológico a família coincidia com a noção de pátrio poder; pessoas que viviam sob um mesmo teto, sob a autoridade de um titular, logo, com esta noção de poder muito forte, a família era análoga a uma “monarquia autoritária”. Na antiguidade greco-romana além da função de procriação, a família tinha também uma finalidade religiosa: o culto dos antepassados; essa religião doméstica era um vínculo tão poderoso quanto o nascimento, a família seria um grupo de pessoas que prestigiavam os mesmo antepassados, sempre regidos pelo pater. A continuidade da família tinha o objetivo de cultuar os antepassados, caso contrário, estes cairiam em desgraça. Sendo sempre o descendente homem a guiar o culto, a adoção assume relevante papel no direito da antiguidade clássica, ao garantir a continuidade do culto familiar nos caso em que um filho biológico, (fruto do casamento religioso legítimo) não o pudesse fazer. Já família cristã é a célula básica da igreja, onde permanece o caráter de culto, porém aos aspectos religiosos do cristianismo.
A configuração familiar básica formada pelos pais (heterossexuais) e filhos, sofreu paulatinamente modificações na modernidade na e pós-modernidade quando à sua estrutura, finalidade e aos papéis de seus membros. A passagem da economia agrária à economia industrial tirou da família o caráter de oficina de produção dirigida pelo chefe, e esse chefe passa a compor o proletariado; a mulher também se lança no mercado de trabalho, ainda que em menor escala; isso contribui para a abertura ou maior dispersão da família; a religião deixa de ser ministrada em casa, o Estado passa a intervir na vida familiar prestando ou supervisionando tarefas que antes competiam somente aos pais como educação e outras assistências e a família não necessariamente é conduzida por um casal, e os casais não mais obrigatoriamente seguem o padrão heterossexual; as uniões sem casamento, que sempre foram muito comuns, recebem respaldo na legislação, inclusive as de orientação homoafetiva. Agora, a família, nas suas diversas configurações é um microssistema de função social; é um núcleo de formação, de apoio e afeto aos seus membros, os quais agora se encontram equiparados em relação à igualdade e dignidade, a família assegura, ainda, a coesão social. O direito acompanhou toda a evolução da família, legitimando ou corrigindo transformações sociais, pois a renovação dos nossos valores e a dialética social nos apresentam novas configurações familiares, frutos das sexualidades divergentes, tais como os homossexuais, bissexuais e transexuais, deste modo os casais homoafetivos vão paulatinamente ganhando reconhecimento e amparo no direito, como quando os ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, reconheceram a união estável para casais do mesmo sexo. Se antes não se possuía uma definição de família, atualmente tampouco estamos perto de construí-la, em meio às complexas relações e formações que reclamam espaço nesse conceito. No direito a família já foi tida como pessoa jurídica e como organismo jurídico, do ponto de vista sociológico-jurídico a quem a considere uma instituição, isto é, uma união associativa de pessoas, da qual a sociedade se utiliza para coordenar a procriação e a educação dos filhos, com finalidade voltada para a manutenção e controle social; seria, assim, uma instituição que resulta da união de pessoas de sexos diversos. Para Pietro Perlingieri (1997, p.178 - 179)
Esta não é uma pessoa jurídica, nem pode ser concebida como um sujeito com direitos autônomos: ela é formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes. As razões da família não têm autonomia em relação às razões individuais.
De acordo com Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, família é um gênero que comporta várias espécies: casamento, união estável, comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (monoparental). A entidade familiar contemporânea toma os mais variados matizes, desde o matrimônio entre homem e mulher, sem filhos ou com filhos biológicos e adotivos, a convivência sem casamento, a família guiada apenas por um dos pais, as uniões estáveis hetero ou homoafetivas e até outras situações não legitimadas. Lourival Serejo (2004, p. 23) nos aponta características das novas formações familiares:
Qualquer que seja a família do futuro, as tendências previsíveis em suas características já estão presentes em grande maioria das famílias atuais, a saber: a despatrimonialização (substituição da preocupação capitalista de acumular bens pela valorização das relações familiares autênticas entre os membros de uma família), valoração dos aspectos afetivos da convivência familiar, igualdade dos filhos, desbiologização do conceito de paternidade, guarda dos filhos a terceiros, companheirismo, democracia interna mais acentuada, instabilidade, mobilidade e inovação permanente.
Apesar da complexidade do conceito de família, é notável a quebra das bases tradicionais da patrimonialização, da matrimonialização das relações familiares e dos padrões de heterossexualidade, além do relevante papel que a afetividade assume, tornando-se um vetor para se demarcar o que vem a ser e para se ampliar o conceito de família. As novas configurações familiares surgem para colocar em xeque a concepção heterocêntrica de família como única, ameaçando a cristalização de modelos até então inabaláveis, porém não sem enfrentar óbices ao seu reconhecimento. Uma vez reconhecidas, como já ocorreu com a união homoafetiva, avultam agora desafios em relação à parentalidade e aos direitos reprodutivos, como por exemplo, a questão da adoção, aqui abordada.
3. UMA VISÃO GERAL DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
Adoção é um mecanismo que permite a filiação artificial, independente de vínculo biológico; é proveniente da manifestação de vontade de ambas as partes – adotante e adotado – e de decisão judicial. Pode, ainda, ser descrita como a filiação jurídica calcada essencialmente em relação de afeto. Nos dizeres de Maria Helena Diniz (p.416)
Adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha.
Na Antiguidade Clássica, a adoção era um instrumento que garantia a continuidade da descendência em caso de empecilho biológico ou natural e, consequentemente, assegurava, nestes casos, a prática do culto doméstico aos antepassados, algo que era fundamental nas crenças greco-romanas. A adoção ainda não possuía nenhum caráter assistencial como nos moldes atuais, seria um compromisso com a religião civil, possuindo também sua finalidade política e social, como podemos inferir da observação de Sílvio de Salvo Venosa (2010, p.275-276):
A ideia fundamental já estava presente na civilização grega: se alguém viesse a falecer sem descendentes, não haveria pessoa capaz de continuar o culto familiar, o culto aos deuses-lares. Nessa contingência, o pater famílias, sem herdeiro, contemplava a adoção com essa finalidade. O princípio básico do instituto antigo que passou para o direito civil moderno era no sentido de que a adoção deveria imitar a natureza: adoptio naturam imitatur. O adotado assumia o nome e a posição do adotante e herdava seus bens como consequência da assunção do culto. O direito sucessório, permitido exclusivamente pela linha masculina, também era corolário da continuidade do culto familiar.
No mesmo sentido, em Roma a adoção ganhou precisos contornos no entendimento de que seria o ato de buscar na lei e na religião o que a natureza havia negado, ou seja, adquirir descendência por meio de mecanismos legais, uma vez que havia o interesse político na adoção, já que era um recurso que garantia ao mesmo tempo a continuidade da família e dos ritos religiosos, tendo em vista que ausência de descendente que prosseguisse com o culto doméstico poderia redundar na extinção da família; é notório o fato de adoção, neste contexto priorizar o interesse do adotante. Na Idade Média, sob o primado do Direito Canônico e com base no dogma do matrimônio como fulcro da família cristã, a adoção cai em desuso, voltando à tona com o surgimento dos Códigos, sistematizando-se na maioria dos ordenamentos modernos.
No Brasil, regulada de maneira esparsa pelas Ordenações, a adoção ganhou sua solidez com o advento do Código Civil de 1916, lei eminentemente patrimonial, onde também era tida como um instrumento capaz de dar descendência aos casais impossibilitados naturalmente, primando seu interesse; era feita por meio de escritura pública, sendo desnecessária sentença judicial e também levava em consideração a vontade do adotando. Outros requisitos para adoção eram: o adotante deveria ser 16 anos mais velho que o adotando e com mais de 50 anos de idade, sem prole legítima ou legitimada; se o adotante fosse casado, o casamento deveria ter duração superior a 05 anos; duas pessoas não podiam adotar conjuntamente se não fossem casadas e o adotando deveria ter mais de 18 anos. Importante salientar que este molde de adoção do Código de 1916 mantinha o adotado vinculado a sua família natural para efeito de direitos e deveres, apenas colocando-o sob outro pátrio poder, porém afastando-o dos direitos sucessórios relacionados à família adotiva.
A partir daí, a adoção passou por sucessivas alterações, ganhando com a superveniência da lei n. 3.133, de 08 de maio de 1957, aspectos assistenciais e humanitários, além de maior alcance, pois se estendeu a adoção a pessoas de 30 anos de idade, a despeito de terem ou não prole natural. Já a lei n. 4.655, de 02 de junho de 1965, dispôs sobre a “legitimação adotiva”, que tinha o intuito de amparar o menor abandonado, estabelecendo um vínculo de parentesco de primeiro grau, em linha reta, entre adotante e adotado, desligando-o dos laços que o prendiam aos parentes consanguíneos mediante sentença judicial que concedesse a legitimação e feitura de Registro Civil, como se o ora adotado sempre tivesse sido filho natural dos adotantes.
A legitimação adotiva foi revogada pela lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979, que disciplinou o Código de Menores, entrando em cena a “adoção plena”, que também tinha por escopo a integração da criança ou adolescente na família adotiva. Assim, juntamente com a tradicional adoção simples do CC de 1916, passa a vigorar a adoção plena, sendo que a primeira a primeira originava um parentesco civil somente entre adotante e adotado, porém este último permanecia vinculado sua família biológica, exceto no que se refere ao poder familiar, era revogável pela vontade das partes e não extinguia os direitos e deveres resultantes da ligação parental natural, como foi dito acima; em contrapartida, a adoção plena possibilitava o pleno ingresso do adotado na família do adotante como se fosse filho de sangue, desconsiderando os vínculos com a família de outrora. Essa divisão ganhou nova roupagem com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei n. 8.069, de 13-7-1990, alterada pela lei n.12.010, de 03 de agosto de 2009), o qual estabeleceu que a adoção de crianças e adolescentes sempre seria plena, ao passo que a simples se aplicaria aos adotandos que houvessem atingidos essa idade. Destarte, passaram a ser assinaladas duas espécies legais de adoção: a civil e a estatutária; a adoção civil era a simples ou tradicional, disciplinada no Código Civil de 1916, e a adoção estatutária ou plena era aquela prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente para os menores de 18 anos.
Foi com o ECA que a adoção consolidou seu caráter social, filantrópico e assistencial, cuja finalidade é dar uma família às crianças e adolescentes que se encontram despojados desta ou em situação de carência, respeitas as condições legais, sendo interessante o caráter de excepcionalidade que a partir daí ela assume, como podemos inferir do seu artigo 19, segundo o qual “toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”. Existe a forte intervenção do Estado visando garantir os direitos do menor, para além da finalidade de dar filhos aos que, por causa biológica, estejam impedidos de gerá-los. De acordo com Sílvio de Salvo Venosa (2010, p.278):
Por outro lado, na adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente não se pode considerar somente a existência de simples bilateralidade na manifestação de vontade, porque o Estado participa necessária e ativamente do ato, exigindo-se uma sentença judicial, tal como faz também o Código Civil de 2002. Sem esta, não haverá adoção. A adoção moderna, da qual nossa legislação não foge à regra, é direcionada primordialmente para os menores de 18 anos, não estando mais circunscrita a mero ajuste de vontades, mas subordinada à inafastável intervenção do Estado. Desse modo na adoção estatuária há ato jurídico com marcante interesse público que afasta a noção contratual. Ademais, ação de adoção é ação de estado, de caráter constitutivo, conferindo a posição de filho ao adotado.
O presente Código Civil, de 2002, não alterou os princípios e a estrutura do Estatuto da Criança e do Adolescente, absorvendo sua nova visão da adoção, como também a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 227 §6º equipara em direitos e qualificações os filhos, sejam eles havidos ou não da relação do casamento ou por adoção.
4. A POSSIBILIDADE JURÍDICA DE ADOÇÃO FEITA INDIVIDUAL OU CONJUNTAMENTE POR HOMOSSEXUAIS
O Estatuto da Criança e do adolescente estabelece como critérios para adoção as seguintes disposições, conforme redação dada pela lei 12010/2009: podem adotar os maiores de dezoito anos, independente de estado civil (art. 42); para adoção conjunta (feita por um casal), é necessário que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família (art. 42,§ 2º); aquele (a) que tem intenção de adotar deverá ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que quem vai ser adotado (art. 42,§ 3º) e a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos (art.43). A partir daí, podemos inferir que o estatuto em momento algum impõe óbice à adoção requerida por indivíduo ou par homossexual, sabendo-se que estes podem perfeitamente preencher estes requisitos e tendo em vista I: o fundamento constitucional-republicano da dignidade da pessoa humana, segundo o qual todas as pessoas são merecedoras do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, livres de qualquer circunstância degradante e titulares dos mesmos direitos e deveres, quando em iguais condições; II: o objetivo fundamental de promover o bem de todos sem quaisquer formas de preconceito ou discriminação inclusive aquelas baseadas no gênero e na orientação sexual, meta que visa extirpar toda e qualquer forma de segregação e cerceamento de direitos devido a alguma forma de preconceito e III: o princípio da igualdade, que assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e que todos devem ser tratados igualmente na medida em que se igualem e desigualmente na medida em que se desigualem.
É justamente o raciocínio de Maria Berenice Dias (2009, p. 216) ao defender que o direito à adoção por casais homoafetivos tem fundamento de ordem constitucional, não sendo possível excluir o direito a paternidade e à maternidade de gays e lésbicas sob pena de infringir o respeito à dignidade humana, pois o mesmo é que sintetiza o princípio da igualdade e da vedação de tratamento discriminatório de qualquer ordem.
Além destas considerações, o fim primeiro da adoção é proporcionar uma família, e consequentemente toda a estrutura e amparos necessários ao desenvolvimento de uma criança ou adolescente, ao infante abandonado ou em situação de carência; prioriza-se o interesse do adotando, como consta do artigo 43 do ECA. Segundo Maria Berenice Dias, uma vez que não há proibição acerca da adoção por casais do mesmo sexo, a faculdade de adotar é tanto do homem quanto da mulher e ambos em conjunto ou isoladamente, independentemente do estado civil, não importando a orientação sexual dos mesmos, deve-se ter em vista sempre o bem-estar da criança e do adolescente (2009, p. 214). Portanto, impedir um processo de adoção com base em discriminação à orientação sexual dos adotantes ou do adotante, além de tolher sua prerrogativa de ter um filho, acaba sendo empecilho à própria finalidade da adoção e esbarra no dever da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, dentre outras coisa, o direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, consoante o artigo 227 da Constituição Federal. Corroborando o princípio do melhor interesse da criança/adolescente Marianna Chaves (2011, p. 255) opina que:
É mister evidenciar que indubitavelmente, o fato de ser homo ou heterossexual não torna um indivíduo mais ou menos capacitado para exercer o papel de pai ou mãe. Nesta seara, o critério norteador a ser observado é o melhor interesse da criança, que em nada se conecta com a orientação sexual daquele ou daqueles que se propõem a adotá-la, mas sim com a capacidade dos mesmos de exercer a função parental.
Argumenta-se também, contra a adoção por homossexuais, que o sadio desenvolvimento da criança adotada estaria comprometido, pois há a equivocada crença de que a falta de referências comportamentais de ambos os sexos possa acarretar sequelas de ordem psicológica e dificuldades na identificação sexual do adotado, contudo não existem evidências, além daquelas resultantes dos preconceitos, de que tal temor se concretiza, supostamente haveria um choque entre a proibição da não discriminação por orientação sexual e a prevalência do melhor interesse da criança. Em contrapartida, Marianna Chaves (2011, p.267) se refere a pesquisas que atestam que crianças criadas por pais homossexuais não têm qualquer dificuldade fora do normal na convivência familiar, na escola, e na transição para a vida adulta, bem como não têm maiores chances de problemas com autoestima. Também se recorre à falácia de que ao possuir pais de orientação sexual homoafetiva, haveria confusão no processo de identificação de gênero do adotado, porém, mais uma vez a ciência descontrói o senso comum, pois, ainda de acordo com autora supracitada (2011, p.286), uma pesquisa do professor Michael Bailey, do Departamento de Psicologia da Universidade norte-americana de Northwestern apontou que mais de 90% dos filhos de homossexuais são heterossexuais; a autora afirma, também, que outros estudos não encontram constatação de que a orientação sexual dos pais condicione a identidade de gênero dos filhos. A orientação sexual por si só não torna alguém mais ou menos apto a exercer a função de maternidade ou paternidade, o que deve ser levado em consideração é a disposição afetiva, o compromisso, a responsabilidade e as condições materiais e pessoais dos aspirantes à adoção para com o infante a ser adotado. Conforme a psicóloga Maria Cristina d´Avila de Castro
aí se confunde sexualidade com função parental, como se a orientação sexual das figuras parentais fosse determinante na orientação sexual dos filhos. A função parental não está contida no sexo, e, sim, na forma como os adultos que estão no lugar de cuidadores lidam com as questões de poder e hierarquia no relacionamento com os filhos, com as questões relativas a problemas disciplinares, de controle de comportamento e de tomada de decisão. (Disponível em: http://site.cfp.org.br/wpcontent/uploads/2008/08/cartilha_adocao.pdf)
Não obstante encontremos estudos debruçados sobre a essa nova configuração familiar, atestando o sucesso dos homossexuais no exercício de sua parentalidade, diversos setores sociais persistem no questionamento da capacidade dessas pessoas em cuidar de uma criança e oferecer-lhe um ambiente familiar saudável; é o primado do poder da heteronormatividade, em prejuízo da legitimação das diferenças e das múltiplas possibilidades existentes para a manutenção da família.
Também causa desconforto a possibilidade de a criança adotada por casal ou individualmente por homossexual ser vítima de repúdio no meio que frequenta, sendo refletido nela o estigma social que ainda pesa sobre seus pais. Mas aqui o impasse transcende a questão da opção sexual dos pais, pois a mesma sociedade que é responsável por suas crianças e adolescentes na plenitude do seu desenvolvimento interpõe barreiras, as quais são construídas por sua não aceitação do direito do próximo, impedindo que uma parcela de infantes despojados de amparo familiar ou em situação de hipossuficiência alcance a oportunidade de desfrutar de uma família, de afeto, conforto e educação. Seria incoerente indeferir adoção a uma pessoa ou casal homossexual que oferte todas as condições impostas em lei, apresentadas reais vantagens para o adotando e funde-se em motivos legítimos, nesse caso direito à parentalidade, baseando-se na rotulação discriminatória de parte da sociedade, pois contraditoriamente, o melhor interesse do adotando, que se quer priorizar (?), estaria sendo negligenciado, uma vez que é preferível o ambiente familiar ofertado pelos requerentes do que o abandono ou o amparo de instituições, onde se tem um “cuidado” coletivizado e uma estrutura diferente da convivência familiar, que é direito constitucional da criança e do adolescente.
Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido apenas em 2011 a união estável homossexual, no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, e mesmo diante da obstinação da sociedade em aceitar a adoção homoafetiva, a jurisprudência brasileira há algum tempo já tem registros de concessão da adoção a indivíduos ou casais homossexuais, entretanto, foi somente em 2015 que a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal.
O caso aconteceu no Paraná, quando em 2006 um casal de homens solicitou adoção de uma criança e o Ministério Público (MP-PR) deste estado contestou o pedido, querendo impor limitações segundo as quais o casal só poderia adotar uma criança de pelo menos 12 anos de idade, para que a mesma pudesse opinar sobre a adoção. Porém, a Justiça do Paraná negou razão ao Ministério Público, tendo por fundamento o acórdão do Tribunal de Justiça estadual, onde se entendeu que se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê. Não conformado com a decisão, o MP-PR recorreu aos tribunais superiores; no Superior Tribunal de Justiça o recurso foi negado pelo ministro Villas Bôas Cueva, em decisão monocrática. Para o mesmo, o MP-PR não apontou com clareza quais as disposições constitucionais violadas.
No Supremo Tribunal Federal a alegação foi de que a decisão contraria o artigo 226, parágrafo 3ª da Constituição Federal, onde consta que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. Todavia, a Ministra Cármen Lúcia, relatora do processo, entendeu que o acórdão contestado pelo MP-PR está em harmonia com a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, citando em sua decisão o resultado do julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132. Consoante trecho de seu relatório:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS. ADOÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.277. ACÓRDÃO RECORRIDO HARMÔNICO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO. - Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo - data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família.” (Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 05/03/2015).
Tomando como guias a afetividade e o melhor interesse do adotando e detendo-se à legislação conjugada com os princípios constitucionais, não cabe impedimento da adoção por uma pessoa ou casal homossexual, tendo em vista que esta não é uma prerrogativa apenas das famílias heterossexuais e que está em jogo a perspectiva de um futuro melhor para crianças e adolescentes que se encontram à margem do direito constitucional da convivência familiar, a salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
5. CONCLUSÃO
A família é um órgão social, visto que tem um caráter, por excelência, funcional-vital dentro da sociedade: é o berço de formação moral e pessoal de cada indivíduo, onde há complexas relações marcadas, principalmente por laços de afeto, solidariedade e companheirismo, para além da ligação biológica e essas relações parentais são marcadas pela igualdade entre os integrantes de uma família. No espaço dominado pelos padrões heterossexuais, a família homossexual e de outras sexualidades divergentes vem ganhado cada vez mais espaço e legitimação; não mais apenas o matrimônio é legitimado como família: a Constituição de 1988 reconhece também neste sentido a união estável, hetero e homossexual (conforme interpretação do STF) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como as uniões de fato não formalizadas. A tendência, ao que parece, é ampliar ainda mais o que se entende por família, tendo em vista as novas configurações aparentes no meio social.
A adoção é medida que visa sustentar o direito constitucional da criança e do adolescente à convivência familiar e todas as prerrogativas daí decorrentes. Ampara especificamente os infantes e os jovens privados do ambiente familiar que lhes é devido; adotar é um ato jurídico solene por meio do qual alguém constitui filiação sem que seja por vias biológicas. Visando primordialmente o interesse e os benefícios aos adotandos, permite também a quem requeira a adoção a possibilidade de ter filhos, o que é um sonho para muitos. Também cumpre importante função social, além de ser um ato de amor e extrema responsabilidade, pois oferta o tão imprescindível ambiente familiar aos adolescentes e crianças sem perspectiva de um futuro melhor.
Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (inciso II do art. 5º da CF). Sem limitação legal, não se pode negar o direito de crianças e adolescentes à adoção, que lhes irá assegurar um lar, uma família, o direito ao afeto e à felicidade, ou seja, o direito à vida; tampouco é aceitável o cerceamento do direito inerente às famílias homossexuais de constituir filiação, ainda mais quando esse embargo se funda numa clara atitude discriminatória de orientação sexual, o que vai de encontro ao objetivo constitucional de promover o bem de todos sem quaisquer formas de discriminação e ao princípio da isonomia.
Muito embora estudos apontem que a homossexualidade dos pais não é fator nocivo ao desenvolvimento de uma criança nem condicionador de sua sexualidade, ainda muitas dúvidas e preconceitos permeiam o posicionamento das pessoas no cotidiano, e até dos profissionais que se deparam com essa nova configuração familiar. Existe um receio (in)fundado de que crianças cujos pais sejam gays ou lésbicas possam, no futuro, apresentar alguma identificação com a homossexualidade, como se o convívio da criança com dois pais ou duas mães tivesse o poder de determinar a identidade de gênero do filho.
Os preconceitos nossos de cada dia não devem pesar mais que a razão e o direito que assiste os que são estigmatizados pela sociedade; o que tem que ser levar a juízo é as condições impostas pela lei para a adoção (as quais são perfeitamente atendidas pelos homossexuais), a estabilidade, o modo como os adultos que serão responsáveis pelo adotando lidaram com sua educação, a estrutura e a disposição da família pleiteante para cuidar e de fato receber em seu seio o adotante, sabendo-se que a orientação sexual, por si só, não é causa de melhor ou pior desempenho da função paterna ou materna.
REFERÊNCIAS
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CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito-proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade, um panorama luso-brasileiro. Curitiba: Juruá Editora, 2011.
DIAS, Maria Berenice. Família Homoafetiva. Natal: Bagoas, 2009.
GIRARDI, Viviane. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto: A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais. 1ºed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005.
http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/cartilha_adocao.pdf. Acessado em 05 de maio de 2016.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
SEREJO, Lourival. Direito Constitucional de Família. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 10ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010. v. 6.
Graduanda do terceiro período curso de direito da UEPB .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Maria Gabrielle Celestino. A adoção frente às novas configurações familiares Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/47102/a-adocao-frente-as-novas-configuracoes-familiares. Acesso em: 04 nov 2024.
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