RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo central o estudo do instituto do ativismo judicial, através da análise de seu conceito, momento de formação, teses principais em defesa e contrárias ao instituto, bem como posicionar-se criticamente quanto à matéria, em especial acerca dos reflexos de sua utilização na sociedade e no ordenamento jurídico. Objetiva-se traçar parâmetros objetivos acerca do instituto, em especial sua evolução histórica, contraponto as diferentes teses de surgimento e sopesando como estes diferentes panoramas influenciaram no atual desenvolvimento do ativismo judicial no ordenamento jurídico brasileiro. Abordam-se as principais teses defensivas e contrárias, em especial acerca da teoria da separação dos poderes, o neoconstitucionalismo e a figura da autopoiesis. Finaliza-se o presente trabalho posicionando-se criticamente quanto ao ativismo judicial, verificando quais os seus reflexos no ordenamento jurídico e expondo opinião crítica sobre a constitucionalidade desta atuação proativa do Judiciário no comando das políticas públicas
PALAVRAS-CHAVE: Ativismo judicial. Neoconstitucionalismo. Separação dos Poderes. Fazenda Pública.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Da análise propedêutica dos institutos 2.1 Da revisão da teoria da separação dos poderes 2.2 Os limites da atuação do Judiciário: da autopoiesis de Luhmann ao neoconstitucionalismo 2.3 Da origem do ativismo judicial, de sua definição e de sua aplicabilidade 2.4 A Constituição simbólica e o fenômeno da anormalidade constitucional (ADPF 347) 3 Divergências doutrinárias sobre o ativismo judicial 3.1 O ativismo judicial como desestabilizador do Estado Democrático de Direito 3.2 A última salvaguarda do Estado Democrático de Direito: o ativismo judicial 4 Considerações Finais 5 Referências Bibliográficas
1 INTRODUÇÃO
O ativismo judicial pode ser encarado como uma das temáticas mais controversas do atual estágio de evolução do direito. Este instituto, conforme será detalhadamente analisado, parte do pressuposto de uma omissão ou ação estatal que imponha ao ordenamento jurídico uma carga negativa tamanha que a solução a ser prestada é atuação dos magistrados na criação de direitos não necessariamente previstos no ordenamento jurídico.
Questiona-se se esta atuação direta por parte do Judiciário, além de violar a clássica separação dos poderes, não teria o condão de criar uma verdadeira “oligarquia intelectual” em que políticas públicas, em última instância, seriam pautadas no comando de magistrados, desobedecidos, no mais das vezes, princípios fundamentais como a impessoalidade e segurança jurídica, tendo em vista que a criação de tais normas dependeria, prioritariamente, do subjetivismo de cada magistrado.
Ressalta-se que há grande embate, em especial, sobre esta atuação de “supervisora máxima” das políticas públicas quando se contrapõe às prerrogativas da Fazenda Pública, tanto no campo constitucional (como o erário a ser protegido através de leis orçamentárias; a representatividade do Chefe do Executivo e membros do Legislativo; a supremacia, implícita no texto da Carta Magna, da supremacia do interesse público sobre o particular), como na seara legal (prerrogativas processuais dos entes públicos; disposições específicas quanto os poderes da Administração – hierárquico, de polícia, entre outros).
Várias são as críticas e as teses defensivas do instituto, todas minuciosamente explanadas no decorrer do presente trabalho. Aborda-se, inicialmente, sobre a estrutura “Orgânica do Estado”, destacando as funções típicas e atípicas, e explicando acerca do que se convencionou nomear de checks and balances, que se refere as influências recíprocas que as funções estatais exercem entre si, através do desempenho atípico de funções primárias.
Dá-se especial ênfase a atuação do Judiciário, repassando doutrinas clássicas e vanguardistas, a respeito da forma como exerce a jurisdição e a pacificação social, indagando-se acerca dessa nova roupagem de “legislador positivo” em casos concretos. Relaciona-se conceitos da autopoiesis, de Niklas Luhmann, com o atual estágio de evolução do direito, bem como a forma como o Estado Democrático de Direito incorporou o neoconstitucionalismo na atuação de seus magistrados.
A principal crítica proferida contra o ativismo judicial é a de que se retira o comando de representantes eleitos pelo real titular do poder (povo) para entregá-lo a uma pequena classe, aprovada pelo método de concurso público, mas não sujeito à votação popular, que, além de depender da avaliação subjetiva e de não ter “representatividade adequada”, retira dos poderes legítimos (Executivo e Legislativo) o comando da administração pública, criando verdadeira “ditadura do Judiciário”. Todos estes pontos, em especial esta crítica, são sopesados a luz do ordenamento positivo e da visão da doutrina e da jurisprudência sobre esta interessantíssima matéria.
Finaliza-se o trabalho com a avaliação acerca principais críticas e teses de defesas do ativismo judicial, posicionando-se criticamente sobre o instituto e abordando a premissa dos efeitos sociais que sua (não) atuação desencadeia não só na realidade fática, mas também na própria visão de ordenamento jurídico.
2 DA ANÁLISE PROPEDÊUTICA DOS INSTITUTOS
O presente trabalho tem como escopo traçar parâmetros de estudos acerca do fenômeno conhecido como “ativismo judicial”, destacando, em princípio, suas características básicas, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria, e focando nos reflexos que tal comportamento dos magistrados podem interferir no orçamento público e, até mesmo, na independência e harmonia entre os “poderes” estatais.
2.1 Da revisão da teoria da separação dos poderes
Ab initio, destaca-se que a mal fadada terminologia “poderes” estatais, conforme melhor doutrina, encontra-se incorreta, tendo em vista que o poder de um Estado é uno e indivisível e, no caso da República Federativa do Brasil, é de titularidade do povo. O que ocorre, em verdade, é uma compatibilização de atribuições típicas principais de um Estado, ou seja, para que um determinado ente possa gerir de forma eficiente e imparcial é necessário dividir as funções essenciais do ente permitindo que, dentro de seu microssistema estabelecido constitucionalmente, haja preservação das garantias e direitos dos cidadãos e até mesmo dos estrangeiros domiciliados ou transeuntes. Conforme ressaltado todo o poder emana do povo no Estado brasileiro, não obstante diferentes titulares na legislação extraterritorial, o qual o exerce através do voto secreto, periódico e universal. Este instrumento jurídico é o que permite que a decisão da maioria prevalece sobre a coletividade quanto ao comando de políticas públicas (ressalta-se o caráter antimajoritário do Judiciário nesta seara de proteção do direito das minorias, assunto que será explanado com mais detalhes adiante no presente estudo), legitimando que determinados indivíduos ocupam as função administrativas e legislativas no comando da nação.
São atividades tidas como essenciais para o Estado brasileiro, atuando de forma independente e harmônica, conforme impõe o art. 2.º da Constituição Federal: i) a administração, compreendida tanto a elaboração (dentro das iniciativas e prerrogativas inerentes ao processo legislativo) quanto execução, de políticas públicas a cargo do Executivo; ii) representação do povo com a finalidade de instituir leis, de alcance geral e abstrato, que restringem ou ampliam direitos e obrigações, cujo detentor é o Legislativo; iii) e a pacificação social, de forma definitiva e perpétua, sob a incumbência do Judiciário.
Deste organograma constitucional, taxado pela doutrina como “Estrutura Orgânica do Estado”, infere-se que o constituinte originário elencou como essencial o princípio da representatividade para tornar legítimo o comando da Administração Pública e do controle da sociedade através de comandos gerais e abstratos (lei). Porém, ainda que não exista a representatividade nos membros do Poder Judiciário, tendo em vista que a posse ao cargo de magistrado ocorre através de concurso público, diferentemente do processo eleitoral por que passa o Chefe do Executivo e os integrantes do Legislativo, há espaço de atuação no que tange à: i) verificação se os atos administrativos emanados por todos os “Poderes” encontram-se dentro dos parâmetros previstos em lei (doutrina clássica); ii) compatibilização de atos normativos com o disposto na Carta Magna, dando especial ênfase não somente às normas, mas também aos princípios, implícitos e explícitos, bem como ao que se denomina bloco de constitucionalidade (normas materialmente constitucional que não se encontram dentro do texto constitucional – toma-se como exemplo o disposto no art. 5.º,§3.º, da Constituição Federal, que autoriza que tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados em quórum qualificado pela Câmara e pelo Senado, são equivalentes à emenda constitucional); iii) própria elaboração de políticas públicas, através do que se denomina ativismo judicial, objeto do presente trabalho.
2.2 Os limites da atuação do Judiciário: da autopoiesis de Luhmann ao neoconstitucionalismo
Doutrina clássica se posiciona no sentido de que a jurisdição deve ser exercida tendo como substrato apenas o direito positivado, havendo verdadeira ojeriza ao fato do magistrado inovar no ordenamento jurídico uma vez existente um ato normativo (pode-se exemplificar um desdobramento desta ideologia a doutrina do interpretativismo, de origem estadunidense, em que a Constituição – e consequentemente as leis – deve ser analisada conforme seus estritos termos, respeitando-se a vontade exteriorizada pelo legislador, não cabendo ao magistrado inovar no tocante a esta seara).
Referida doutrina posiciona-se no sentido de que o comando político da nação (seja no aspecto administrativo ou legislativo) caberia única e exclusivamente aos detentores de “representatividade”, haja vista que a estipulação de diretrizes e execução de políticas públicas somente poderiam ser tomadas por aqueles que, através de voto, fossem legitimados efetivos do povo (real titular do poder), sob pena de se delegar os rumos da nação ao que alguns autores denominam de “oligarquia intelectual”. Em síntese, para esta corrente doutrina o magistrado estaria adstrito à lei devendo, no caso concreto, afastar-se de princípios regentes naquela sociedade em detrimento do direito positivado. Trata-se da clássica “entre a justiça e o direito, escolha o direito”, tendo em vista que princípios como segurança jurídica e impessoalidade não permitiriam que situações juridicamente idênticas fossem resolvidas de forma diferente, não se permitindo ao magistrado inovar no ordenamento jurídico na existência de uma legislação positivada pelos reais representantes do povo.
É necessário ressaltar, desde este momento inicial, que considerar em absoluto a doutrina clássica é desconsiderar dois pressupostos essenciais do direito, como ramo, e da estrutura adotada no ordenamento jurídico brasileiro:
i) O direito não é um sistema autopoiético (do grego “auto” próprio, “poiesis” criação). Autopoiesis é um termo oriundo de estudos biológico, formulado na década de 1970 por Francisco Varela e Humberto Maturana, ambos chilenos, correspondendo a noção de que as células são estruturas autocriadas, ou seja, que surge e se desenvolve dentro de um organismo, sem influência externa na sua criação e desenvolvimento. Porém, é com Niklas Luhmann, em sua Teoria dos Sistemas, que se amplia a ideologia a todos os sistemas, em especial os sociais e os psíquicos, em que estes próprios criam seus elementos, distinguindo-se dos demais por uma unidade e especificidade que não sofre influências externas na sua elaboração. Trata-se, portanto, de um sistema que se fecha em si e possui como prerrogativa a auto reprodução de seus elementos e ideologias. Utilizando das elucidativas palavras de LUHMANN (2007, pág. 44):
Os sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos produzem não só suas estruturas, mas também os elementos dos que estão constituídos – no interior destes mesmos elementos. Os elementos sobre os que se alcançam os sistemas autopoiéticos (que vistos sob a perspectiva do tempo não são mais que operações) não têm existência independente (...). Os elementos são informações, são diferenças que no sistema fazem uma diferença. Neste sentido são unidades de uso para produzir novas unidades de uso – para o qual não existe nenhuma correspondência no entorno.
Se assim o fosse, um sistema que se analisa dentro das próprias regras, desvinculado da realidade social, abre-se margem para a efetiva violação de cânones básicos muito superiores a qualquer regra positivada: a isonomia material. Aceitar o entendimento supramencionado é desconsiderar o próprio caráter antimajoritário ao qual o Judiciário encontra-se vinculado. Não se pode olvidar a máxima que “toda unanimidade é cega”, cabendo, portanto, ao Judiciário, dentro da análise do direito positivado, mas também com base na interpretação teleológico da norma, buscar aferir o real significado da norma à luz do caso concreto. Não se trata de atribuir ao Judiciário a qualidade de “salvador” ou “justiceiro”, mas sim ressaltar sua qualidade de legítima função instituída pelo texto constitucional, com inúmeras prerrogativas do poder constituinte originário, inclusive e em especial, o de interpretar os atos normativos baseado nas regras e nos princípios constitucionais;
ii) O estudo do tópico anterior, a respeito da autopoiesis, é hábil a comprovar que a partir do momento que se analisa o direito como um sistema fechado, auto reprodutivo, e desassociado da realidade social, abre-se margem para verdadeiras atrocidades praticas pelas “maiorias legítimas”, verdades atrocidades na realidade. Importante destacar que a origem do neoconstitucionalismo, sinteticamente definida como uma interpretação do sistema jurídico positivo através de seus princípios, atribuindo, em determinados casos um desvalor da conduta muito maior na violação deste quanto às regras jurídicas, surge em um período histórico ímpar sob o ponto de visto da sociologia: o final da segunda guerra mundial.
Interessantes as palavras de BARROSO (pág 3), no sentido de verificar a onda renovatória promovida após a Segunda Guerra Mundial no direito positivado mundial:
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2.ª . Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. Seria mau investimento de tempo e energia especular sobre sutilezas semânticas na matéria. A principal referência no desenvolvimento do novo direito constitucional é a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, e, especialmente, a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado em 1951. A partir daí teve início uma fecunda produção teórica e jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional no âmbito dos países de tradição romano- germânica. A segunda referência de destaque é a da Constituição da Itália, de 1947, e a subseqüente instalação da Corte Constitucional, em 1956. Ao longo da década de 70, a redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito constitucional.
O nazismo, ideologia política que se alçou no comando das política pública alemã através da majoritária aprovação popular, impregnou-se e se desenvolveu na mais pura e estrita legalidade, com a devida legitimidade. Desconsiderando interpretações históricas sobre a origem do sistema, tema que não cabe ao presente estudo, pode-se afirmar que a Alemanha, Estado soberano dentro de seu território e sob sua população, não violou o ordenamento jurídico, em verdade o refez, com base em seu direito positivado e permitiu que atrocidades imensuráveis fossem cometidas contra a humanidade.
Entenda-se: o que se está a afirmar é que um direito que se analise sem a valoração de princípios, da própria realidade fática, baseando-se única e exclusivamente no direito positivado, fechado e auto reprodutor em seus próprios elementos, abre margem, conforme evidências históricas, de um sistema em que impere a violação generalizada de direitos humanos. Ou seja, simplesmente aceitar, com base na “representatividade” do sistema majoritário, que se consolide um direito que destoa das diretrizes sociais e fáticas, é simplesmente ser conivente com injustiças sociais, tais como os regimes totalitários.
2.3 Da origem do ativismo judicial, de sua definição e de sua aplicabilidade
Mas, afinal, o que seria o ativismo judicial? Quais suas origens? Por que parcela da doutrina é tão enfática de rechaçar esta atuação incisiva do Judiciário?
Inicialmente, não há um contexto histórico delimitado e pacificado na doutrina para o surgimento do ativismo judicial. Importantes autores, como BARROSO (2009, pág. 7), entendem que foi com a Suprema Corte americana com a decisão a respeito da segregação racial. Em um primeiro momento, a atuação proativa da Suprema Corte validou determinados segmentos sociais mais reacionários para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857). Porém, o posicionamento da Corte inverteu-se por completo a partir da década de 50, havendo uma atuação progressiva da Corte no sentido de proteção a direitos fundamentais, citando-se, conforme o ilustre autor, casos envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954), acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v. Frontiero, 1973). Para outros autores, entretanto, como GOMES (2009, pág. A2), foi com uma reportagem do historiador Arthur Schlesinger que se cunhou a expressão “ativismo judicial”.
Os conceitos de ativismo judicial não se confunde com judicialização da política, conforme BARROSO (2009, pág. 6), são conceitos similares, mas não sinônimos, ainda que ambos, em suas palavras, “vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens”. A judicialização decorre do modelo de controle de constitucionalidade adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, não da vontade política dos governantes. Nestes casos, por expressa determinação constitucional, o Judiciário se viu obrigado, visto a vedação ao non liquet, a decidir sobre aquela matéria, não podendo alegar a falta de representatividade sobre a matéria.
Ativismo judicial, entretanto, conforme o autor, pode ser definido como uma atitude proativa do Judiciário na forma de interpretar a carta magna, atuando muitas vezes como legislador positivo, tendo em vista que o Legislativo, a classe política, não se encontra atendendo de forma satisfatória as demandas sociais, especialmente em casos de omissão. Trata-se, portanto, de uma participação do Judiciário visando acolher “valores e fins constitucionais”, havendo verdadeira interferência nas demais funções estatais (Executivo e Legislativo). O supracitado autor elucida que são três as principais expressões do ativismo judicial:
i) “aplicação da Constituição em situações não expressamente contempladas por seu texto”, ou seja, casos que não encontram no texto constitucional uma regulação expressa, mas que, através da interpretação teleológica da norma, pode-se aferir uma norma decorrente de princípios no caso concreto. Toma-se como exemplo o histórico julgamento do aborto de feto anencéfalos, nos autos da ADPF 54, em que, não obstante a inexistência de norma constitucional específica sobre a matéria. Parafraseando a corte, o que se questionava era a saber se existiria tipificação penal na interrupção de fetos anencéfalos, posicionando-se pela viabilidade, tratando-se de conduta atípica, baseada numa interpretação pautada em princípios da dignidade da pessoa humana, direito à vida e proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.
Neste caso específico, há ainda que se ressaltar temática acerca do chamado criptoconsequencialismo e das decisões manipulativas (aditivas e substitutivas) proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, ou pelos magistrados (controle difuso), como um dos principais argumentos contrários ao ativismo judicial.
Destaca-se que quanto aos limites da interpretação constitucional, conforme lições de LENZA (2013, pág. 163), muitas vezes o Judiciário se vê no papel de legislador positivo, criando verdadeiras normas jurídicas inter partes, principalmente através da chamada “interpretação conforme a Constituição” que se configura em nada menos do que uma técnica de decisão. Neste viés, de criação judicial de direitos, pode-se destacar a classificação de GUASTINI (2000, págs. 47-48) em decisões interpretativas em sentido estrito (divididas em de rechaço ou de aceitação) e as decisões manipuladoras/manipulativas/normativas (bifurcadas em aditivas e substitutivas).
As sentenças interpretativas de rechaço são aquelas em que, na existência de pelo menos duas interpretações possíveis, adota-se aquela que mais se adequar ao texto constitucional, afastando toda e qualquer interpretação contrária a esta, ou seja, a premissa permanece válida desde que utilizada da forma como fixada pela Corte. As de aceitação, de outra monta, são a hipótese de se anular decisão das instâncias inferiores, tendo em vista que foi “mal interpretado”, a premissa, portanto, permanece válida, mas a norma extraída naquele caso concreto é anulado, tendo em vista a utilização errônea do texto constitucional.
Interessantes as exposições de COELHO (2007, pág. 186) no sentido de que diferentemente das classificações acimas abordadas, nas sentenças manipuladoras a Corte não se limita a declarar a inconstitucionalidade, mas, agindo como legislador positivo (ativismo judicial), altera diretamente o ordenamento jurídico com o fito de adequá-lo à Constituição. Subdivide-se em aditivas e substitutivas.
A primeira é a hipótese em que se dilata o sentido da norma, declarando a inconstitucionalidade não pelo direito positivado, mas pelo que a previsão normativa deixou de contemplar. Sendo assim, pautado no princípio da isonomia, cria-se norma mais abrangente pra se esquadrar situações/grupos não contemplados pela previsão normativa original. Toma-se como exemplo a já citada ADPF 54 (antecipação terapêutica do parto em caso de gravidez de fetos anencefálicos), MI 670/ES (que trata do direito de greve dos servidores públicos) ou os MS 26.602, 26.603 e 26.604 (que tratam de fidelidade partidária). Todos são caso em que se declarou a omissão do legislador e se interpretou no sentido se abarcar situação não prevista no ato normativo originário.
As sentenças substitutivas, de outra monta, são declarações de inconstitucionalidade em que se anula o sentido empregado pelo ato normativo originário, substituindo-o por outro. Diferentemente da primeira hipótese aventada, nesta a Corte atua criando ato legislativo propriamente dito (atipicidade legislativa). Toma-se como exemplo a liminar concedida na ADI 2332, em que a Corte alterou o Decreto-lei N.º 3.365/41 para determinar que no caso de imissão prévia na posse, nos casos de desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, haveria incidência de juros moratórios no montante de 12% (doze por cento) da diferença entre o valor ofertado em juízo e o montante fixado em sentença, a despeito, não obstante o ato normativo originário estabelecer expressamente o valor de 6% (seis por cento), pautado no princípio da “justa indenização.
ii) “declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição”, neste caso específico não na Carta Magna norma afirmando expressamente que tal legislação infraconstitucional não se coaduna com os seus termos, contudo, através de uma interpretação teleológica, permite-se a declaração de inconstitucionalidade destas. Neste caso específico. Neste caso específico pode-se citar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no sentido a vedação ao nepotismo, pautado unicamente, à época, dos princípios da impessoalidade e da moralidade;
iii) “imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”, nesta hipótese é que ocorre o grande embate na doutrina e jurisprudência acerca dos limites da atuação do Judiciário, tendo em vista que há determinação expressa que o Executivo (independente da alegação da “reserva do possível”) adote determinadas condutas ou atuação de legislador positivo através de mandados coletivos com força concretista geral (não obstante neste último ponto haver expresso permissivo legal na Lei N.º 13.300/2016 para atuação do Judiciário).
2.4 A Constituição simbólica e o fenômeno da anormalidade constitucional (ADPF 347)
O último ponto de análise das facetas do ativismo judicial – imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de política pública – deve ser correlacionado, em primeira monta, com que se entende por constitucionalização simbólica e como seus efeitos podem gerar o que se denomina “anormalidade constitucional” ou “Estado de Coisa Inconstitucional”.
Nas lições de NEVES (2007, pág. 65), percebe-se que a Constituição, entendida como o “acoplamento estrutural” entre política e direito, nada mais é do que a forma como normas constitucionais impactam diretamente a realidade social, ou seja, a forma como se concretiza comandos da Carta Magna e como, numa visão de Peter Häberle, tanto a sociedade influencia no texto constitucional (como no caso de expansão do conceito de “família” para abranger também relações homoafetivas), como a Carta Magna transforma diretamente comportamentos sociais. Sendo assim, constituição simbólica pode ser definida como aquele que não consegue garantir a concretização de suas normas no âmbito social servindo, muitas vezes, como escusa para o cumprimento de direitos e garantias fundamentais, conforme será explanado.
Para o referido autor, dois são os aspectos da constituição simbólica: i) negativo, de não ser concretizada suas normas jurídicas; ii) positivo, o constituinte estabelece normas simplesmente para velar uma realidade social e impedindo que se efetive mudanças no seio desta sociedade.
Antes de explicar a visão de NEVES acerca das similitudes com o constitucionalismo simbólico, autopoiesis e traçar breves comentários acerca desta relação com o recém vivenciado Estado de Coisa Inconstitucional brasileiro (no caso das prisões), importante destacar a relevância do tema quanto ao ativismo judicial. Perceba-se: uma constituição cujas normas não possam produzir resultados favoráveis numa sociedade, servindo ora como escudo de interesses escusos do legislativo, ora simplesmente não tendo força normativa própria, possibilidade de coerção social, pode ser considerada uma Constituição Simbólica.
Na prática, não se permitindo que o Judiciário analise o sentido das leis com base nos valores e princípios constitucionais é simplesmente transformar a Carta Magna em um documento despedido de força normativa, seja simplesmente por não inviabilizar conteúdo jurídico contrário aos seus direitos positivados, seja simplesmente para velar interesses do legislativo. Resta evidente que o ativismo judicial é uma forma de impedir que direitos e garantias fundamentais sejam afastados pelo Legislativo, criando verdadeira constituição simbólica da dirigente CF/88.
A convergência entre constitucionalismo simbólico e autopoiesis refere-se ao fato daquela ser uma mera reprodução de critérios, programas e códigos de seu ambiente, não conseguindo/ ou almejando interferir na sociedade. Há, em verdade uma constante sobreposição do conteúdo político sobre o jurídico, não se permitindo o referido “acoplamento estrutural”, gerando situações justamente de “litígios estruturais” ensejadores do Estado de Direito de Coisa Inconstitucional.
A Constituição Simbólica, conforme ensina LENZA (2013, pág. 84) pode ser vislumbrada sobre três parâmetros básicos: i) confirmar valores sociais; ii) demonstrar a capacidade de ação do Estado; iii) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios.
Ademais, uma das funções deste tipo de Constituição é servir como álibi, ou seja, uma escusa para inércia estatal na consecução de prerrogativas constitucionais, conforme explana NEVES (2007, pág. 176):
A constitucionalização (simbólica), novamente, funciona como um álibi: “o Estado apresenta-se como identificado com os valores constitucionais, que não se realizam no presente por ‘culpa’ do subdesenvolvimento da ‘sociedade’. Já na retórica dos grupos interessados em transformações reais nas relações do poder, os quais pretendem frequentemente representar a ‘subcidadania’, invocam-se os direitos proclamados no texto constitucional para denunciar a ‘realidade constitucional inconstitucional’ e atribuir ao Estado/governo dos ‘sobrecidadãos’ a ‘culpa’ pela não realização generalizada dos direitos constitucionais, que seria possível estivesse o Estado/governo em outras mãos
Portanto, dentro de um Estado Democrático de Direito, pautado pelo neoconstitucionalismo, em que a força normativa da Constituição deve ser respeitada por todos os poderes, é imperioso assimilar que é necessária a interpretação realizada pelo Judiciário, não como casuística, mas tendo como substrato o anseio de não permitir que a Carta Magna de 1988, dirigente por natureza, se torne um instrumento obsoleto, incapaz de alterar a realidade social, despido de força normativa cogente. Se assim não se considerasse, haveria um “litígio estrutural”, a seguir explanado, que o legislador ordinário e o executivo simplesmente não conseguem concretizar valores e garantias fundamentais previstos em seu texto. Esta figura é o Estado de Coisa Inconstitucional, anormalidade verificada em um caso concreto especificamente na atuação dos administradores (Executivo) e representantes do povo (Legislativo).
Em relação especificamente à atuação do Executivo, restou assentado nos autos da ADPF 347, de apreciação do Supremo Tribunal Federal do Brasil, em sede pedido liminar, que o Judiciário se pronunciou no sentido de que o sistema carcerário brasileiro passa por um Estado de Coisa Inconstitucional, havendo a necessidade de uma atuação proativa do Judiciário no sentido de garantir direitos fundamentais, em especial o da dignidade da pessoa humana, autorizando o pedido de implementação de audiências de custódias e de obrigar a União a liberar o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), sem qualquer limitação.
Vislumbra-se claramente que em ambas as hipóteses há uma atuação do Judiciário que, pela teoria clássica da separação dos poderes, na obra “Do espírito das leis” de Montesquieu, há uma indevida ingerência deste no Executivo e Legislativo, visto que exacerbou sua função de julgar conforme o direito positivado, criando normas jurídicas (legislativo) e impondo a execução de políticas públicas sem lei prévia (executivo/administração).
Porém, em uma visão mais abrangente, considerando em especial situações concretas de extrema gravidade, como o Estado de Coisa Inconstitucional, é possível se entender que para preserva a eficácia da constituição de suas normas (entendidas tanto como as regras quantos os princípios), é, sim, necessária a atuação do Judiciário em casos de omissões e violações de direitos e garantias fundamentais, tanto com base no neoconstitucionalismo (interpretação conforme os princípios e valores de uma determinada sociedade, respeitando-se sempre o caráter antimajoritário da atuação dos magistrados e inviabilizando uma autopoiesis do direito), quanto na teoria de checks and balances em que todas as funções estatais exercem fiscalização e influências recíprocas entre si.
Perceba-se que não se deve afastar a função típica do Legislativo e do Executivo em situações corriqueiras, comuns, em que há, em verdade, uma decisão política discricionária baseada em comandos e permissivos constitucionais. Contudo, em situações de anormalidade constitucional, é, sim, necessário que o Judiciário intervenha, atue, sim, como legislador positivo ou administrador público para resguardar a higidez e a efetividade da Carta Magna. O exemplo dado, Estado de Coisa Inconstitucional, nas palavras de CAMPOS (2015, pág. 2) pode ser definido como uma violação massiva e generalizada de direitos fundamentais em atos comissivos e omissivos das autoridades públicas não são hábeis a sanar tal situação de inconstitucionalidade, conforme trecho abaixo:
Quando declara o Estado de Coisas Inconstitucional, a corte afirma existir quadro insuportável de violação massiva de direitos fundamentais, decorrente de atos comissivos e omissivos praticados por diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia continuada dessas mesmas autoridades, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades.
Portanto, em situações específicas em que há “litígios estruturais”, ou seja, um choque entre as funções típicas das funções estatais no seu dever de garantia de direitos fundamentais, há um dever de atuação do Judiciário, buscando à retoma do que se entende por “normalidade constitucional”.
3 DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS SOBRE O ATIVISMO JUDICIAL
O capítulo que se segue tem como principal meta traçar panorama acerca dos principais posicionamentos doutrinários sobre o ativismo judicial, adotando, ao final, posicionamento crítico sobre o instituto.
3.1 O ativismo judicial como desestabilizador do Estado Democrático de Direito
Nesta etapa do estudo passa-se à análise das posições contrárias ao ativismo judicial, destacando, em especial, seus reflexos. Vários são os argumentos, sendo necessário esmiuçar-se em cada um deles para se entender o mosaico teórico desta corrente doutrinária.
i) Umas das grandes celeuma sobre a matéria decorre da ausência de representatividade dos membros do Judiciário em adotar decisões que interfiram diretamente nas prerrogativas típicas das demais funções estatais, visto que se criaria, em última análise, uma elite intelectual cujo poder não decorreria da vontade popular (real titular do poder), sendo assim, questiona-se a adoção do ativismo judicial em decorrência da ausência de legitimidade democrática em sua atuação. Ademais, vislumbra-se que neste caso, haveria uma violação à segurança jurídica, uma vez que o Judiciário estaria a mercê de conveniências pessoais que se alteram em grande medida ao decorrer do tempo (fenômeno já explanado do criptoconsequencialismo). Destaca-se, em especial, que estas decisões, pautadas no subjetivismo, são especialmente utilizadas nos hard cases, ou seja, situações de conflito de valores constitucionais que dependem de um juízo de ponderação (postulados hermenêuticos da proporcionalidade e razoabilidade).
ii) Ressalta-se que a interferência no Legislativo, em especial, ocorre de duas formas distintas: atuando ora como legislador negativo (atribuição prevista na Carta Magna de exercer o controle de constitucionalidade dos atos normativos) e como legislador positivo (através do que se denomina decisões manipulativas, explanadas acima, em que o magistrado amplia ou substitui o sentido/alcance da norma pautado na hermenêutica). Resta evidente, nesta corrente doutrinária uma violação direta à teoria da separação dos poderes, visto que se retira a autonomia de suas prerrogativas institucionais e se repassa para outro poder (tanto no Executivo, quanto no Legislativo, todas as os atos executivos e normativos, nesta visão, estariam sob o crivo final do Judiciário, deturpando-se, portanto, suas prerrogativas constitucionais de comando da nação).
Nas lições de SARMENTO (2007, pág. 144), trecho colacionado abaixo, a prática que se encontra no Judiciário brasileiro, denominado decisionismo pelo autor, é extremamente gravosa para o Estado Democrático de Direito, visto que permite um subjetivismo exacerbado por parte dos magistrados, transformando valores constitucionais em “carinhas de condão” as quais permitiriam, virtualmente, a concessão de qualquer demanda, desrespeitando a ponderação que deve existir entre normas constitucionais. Toma-se como um exemplo da situação ilustrada pelo autor o confronto clássico entre o direito à saúde (dignidade da pessoa humana/ vida e etc.) com um orçamento público delimitado (teoria da “reserva do possível”, demandas ilimitadas e recursos finitos).
E a outra face da moeda é o lado E a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do "oba-oba". Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de através deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça –, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta "euforia" com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras "varinhas de condão": com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico
No caso de um tratamento excessivamente caro, mas necessário, indaga-se se o Judiciário pode comprometer as finanças públicas, determinando que se execute verbas – destinadas a um mosaico de obrigações – em apenas um caso, com um paciente. Não se trata do questionamento clássico do “valor de uma vida”, mas sim da análise jurídica se o Judiciário poderia interferir diretamente nas políticas públicas, impondo valores e princípios não expressos no direito positivado, através dos representantes do povo (membros do Legislativo). Para alguns, trata-se do fenômeno da “micro justiça” em detrimento da “macro justiça”, ou seja, casos individuais que se sobrepõe aos interesse coletivo tutelados por agentes públicos sem a devida legitimidade.
3.2 A última salvaguarda do Estado Democrático de Direito: o ativismo judicial
Passe-se a averiguar as posições favoráveis da atuação do Judiciário no comando das políticas públicas. Inicialmente, conforme já ressaltado, não se pode compreender que o ordenamento jurídico se encontra desassociado da realidade social, tendo em vista que esta visão limitada, que enseja o instituto da autopoiesis, gera verdadeiras atrocidades seja: i) por não produzir os efeitos sociais desejados, transformando a Carta Magna em mera Constituição-álibi; ii) por permitir, com base no processo legislativo interno de cada Estado, a criação de regimes que violam direitos e garantias fundamentais que são de observância obrigatória em nível internacional, mas que, juridicamente, não se encontram inconstitucionais ou ilegais; iii) por impossibilitar que o magistrado interprete a legislação, com base em seus princípios (neoconstitucionalismo), violando a isonomia material em detrimento da segurança jurídica (sem qualquer juízo de ponderação entre estes valores constitucionais).
Quanto à questão da legitimidade democrática no comando da política pública, nas didáticas lições de BARROSO (2009, PÁG. 10), colacionadas abaixo, a prerrogativa do Judiciária de se contrapor à definição dos que detêm a “representatividade adequada” (ou legitimidade democrática) decorre do caráter contra majoritário deste:
Os membros do Poder Judiciário – juízes, desembargadores e ministros – não são agentes públicos eleitos. Embora não tenham o batismo da vontade popular, magistrados e tribunais desempenham, inegavelmente, um poder político, inclusive o de invalidar atos dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não eletivo como o Supremo Tribunal Federal sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513 membros foram escolhidos pela vontade popular – é identificada na teoria constitucional como dificuldade contramajoritária.
Explana que duas justificativas são aptas a comprovar tal tese:
i) fundamento normativo: a própria atribuição delegada pela Constituição Federal, em especial do Pretório Excelso, de exercer uma parcela de poder político dotado de imparcialidade e tecnicismo através da interpretação de atos normativos com base na Carta Magna. Ressalta, todavia, que não se trata da figura do juiz boca da lei, tendo em vista que na própria aplicação dos princípios, os magistrados torna-se “coparticipantes do processo de criação do Direito”;
ii) elemento filosófico: trata-se de especial raciocínio elaborado por BARROSO (2009, pág. 11) no sentido de que Estado Constitucional de Democrático parte de dois conceitos básicos – constitucionalismo como “poder limitado e respeito aos direitos fundamentais; e democracia significando “soberania popular”. Assim o sendo, a Constituição ditará as normas atinentes ao exercício do poder democrático, mas não se baseará única e exclusivamente nos valores da maioria, tendo a vista a necessidade de proteção a direitos e garantias fundamentais da minoria, ainda que contrários à vontade da maioria. Interessante a percepção de que todo a maioria é circunstancial, transitória, sendo assim, há necessidade de proteger um núcleo fundamental de direitos e garantias para todos.
Neste viés, o caráter, o Judiciário garante direitos e garantias fundamentais como um núcleo inviolável, um comando que não se encontra vinculado à vontade da maioria, tendo em vista que até mesmo esta é transitória. Exercendo o ativismo judicial, nesta seara, nada mais é do que promover a efetiva democracia, visto que o magistrado não substitui, em si, a vontade do legislador, mas simplesmente interpreta os atos normativos com base em regras e princípios de índole constitucional, em um caráter técnico e impessoal. Sendo assim, a clássica separação dos poderes deve ser revisitada para garantir a efetiva justiça social, em detrimento do simples direito positivo de atribuições estanques.
A ausência de representatividade, neste caso, funciona como um benefício à atuação do Judiciário, tendo em vista que não encontra qualquer espécie de subordinação frente à sociedade (e ao caráter majoritário da democracia), podendo julgar com base em critérios técnicos e impessoais a atuação dos demais órgãos e visualizar nas chamadas “situações de anormalidade constitucional” a melhor técnica a ser adotada.
Não se afirma que o comando das políticas públicas deve ser repassado ao Judiciário, nem tão pouco se vocaciona à criação de uma “oligarquia intelectual”, mas simplesmente verificar que, na realidade social, as ações e omissões reiteradas do Executivo e do Legislativo no referido gerenciamento, quando gerarem situações gravosas a direitos e garantias fundamentais, devem estar sujeitas à tutela jurisdicional, permitindo-se, inclusive, que adote determinadas medidas, típicas destas funções estatais, para sanar as tais crises institucionais.
Não se pode olvidar que, mesmo através de sentenças manipulativas, o Judiciário encontra-se vinculado à lei e o Legislativo não está subordinado às decisões das Cortes em sua função típica de edição de atos normativos (sob pena de se incorrer na fossilização do Legislativo). Sendo assim, é plenamente possível a superação de entendimentos jurisprudenciais através da edição de leis (como o próprio Código de Processo Civil de 2015 que revogou inúmeras súmulas das Cortes Superiores), não criando nenhuma subordinação neste caso. O único intento do Judiciário, portanto, é simplesmente proteger direitos e garantias fundamentais, ainda que necessitem organizar o comando das políticas públicas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo acerca deste novo fenômeno denominado de ativismo judicial é de extrema relevância no atual estágio político-social do ordenamento jurídico brasileiro, transformando em tarefa árdua, mas gratificante, traçar parâmetros que possibilitem ao leitor compreender os princípios pontos históricos e doutrinários sobre a matéria. Demonstra-se, ao final, posição crítica sobre a temática, em especial, a luz da Carta Magna, a constitucionalidade do instituto.
No primeiro item do trabalho, acerca da análise propedêutico dos institutos, revisita-se a clássica Teoria da Separação dos Poderes, de Montesquieu, no sentido de que a visão de poderes estanques, absolutos e intransponíveis, encontra-se superada, sendo amplamente aceito a múltipla influência entre as funções estatais essenciais – Executivo, Legislativo e Judiciário – no que se denomina teoria dos freios e contrapesos (checks and balances). Consignou-se que o poder, uno e indivisível, é de titularidade do povo, demonstrando que neste ponto reside um dos principais argumentos contra o ativismo judicial: a falta de representatividade dos magistrados, tendo em vista a ausência de eleição popular.
No segundo item, verifica-se que dentro de uma ideologia rígida de separação dos “poderes” não se poderia ponderar que o Judiciário interferisse no comando das políticas públicas ou que atuasse como legislador positivo ou negativo, cabendo-lhe analisar, baseado na estrita legalidade, os atos infraconstitucionais. Assim o sendo, apenas os que possuíssem a adequada “representatividade” estariam habilitados ao comando da nação. Destaca-se que neste panorama, desconsidera-se o instituto da autopoiesis, termo que surge nas ciências biológicas, mas que é ampliado com Niklas Luhmann, ao explicar que são sistemas que criam seus próprios elementos, não sofrendo influências externas na sua elaboração.
Dentro de um ordenamento jurídico, verifica-se a autopoiesis quando o direito positivado não consegue influenciar na realidade social, transformando-se as normas jurídicas em simples legitimadores da vontade do poder dominante. Sendo assim, toma-se como exemplo a ideologia política do nazismo, em que havia a aprovação de uma “maioria legítima” - predominantemente concordava-se com a política instituída por Hitler, e, dentro de um mesmo sistema, dentro das normas jurídicas positivadas pelo Estado Alemão, permitiu-se que verdadeiras atrocidades ocorressem em nível global.
O que se busca afirmar, no segundo item, é que não se pode desvincular o ordenamento jurídico da realidade social, ainda que pautado na legalidade e na vontade predominante do povo, tendo em vista que cria um sistema jurídico-político fechado a interferências externas, legitimando atrocidades.
De outra monta, o neoconstitucionalismo, surgido após a segunda guerra mundial, é indispensável para que os magistrados possam verificar a justiça social das decisões baseados não apenas no direito positivo, mas em princípios e valores de conteúdo eminentemente humano. Conforme afirmado no trabalho: um direito que se analise sem a valoração de princípios, da própria realidade fática, baseando-se única e exclusivamente no direito positivado, fechado e auto reprodutor em seus próprios elementos, abre margem, conforme evidências históricas, de um sistema em que impere a violação generalizada de direitos humanos.
No terceiro item de estudo, afirma-se que não há consenso acerca do momento histórico que o ativismo judicial surgiu, porém, pode-se afirmar que teve um de seus primeiros vestígios na decisão da Suprema Corte americana a respeito da segregação racial, em 1857. A partir desta data, percebeu-se uma progressiva atuação da Corte na proteção de direitos fundamentais, em especial, à época, o dos negros. Destacou-se as diferenças pertinentes à judicialização da política com ativismo judicial, sendo aquela decorrente do modelo de controle de constitucionalidade adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro (pela Constituição Federal de 1988), ao passo que esta é a atitude proativa do Judiciário na proteção de valores e princípios constitucionais.
Explana-se, conforme lições de BARROSO (2009, pág. 6) que três são as facetas de aplicabilidade do ativismo judicial: “aplicação da Constituição em situação não expressamente contempladas em seu texto”; “declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados pelo legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição”; “imposição de condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”, citando, em cada uma das situações expostas, jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal a título exemplificativo.
A quarta temática proposto é a correlação entre a constitucionalização simbólica com litígios estruturais que geram uma situação de “anormalidade constitucional” entre as funções primárias do Estado. Define-se como constituição simbólica como aquela que não é apta a concretizar suas normas no âmbito social, servindo, no mais das vezes, como escusa ao cumprimento de direitos e garantias fundamentais (transformando-se em Constituição-álibi). Explica-se que é inconcebível que em um Estado Democrático de Direito, pautado nas premissas do neoconstitucionalismo, em que os princípios e valores constitucionais são essenciais para a interpretação e concretização de direitos e garantias fundamentais, haja omissões reiteradas do Legislativo e do Executivo, mesmo em suas funções típicas, que não possam estar sujeitas à atuação proativa do Judiciário. Cria-se uma verdadeira situação de anormalidade constitucional, ou litígio estrutural, em que apenas o comando ativo dos magistrados têm o condão de interromper, ou minimizar, ações e omissões que gerem violação aos direitos fundamentais.
No último capítulo proposto, abordam-se as lições doutrinárias favoráveis e contrários ao ativismo judicial, posicionando-se criticamente, ao final, sobre a constitucionalidade do instituto.
O ordenamento jurídico não pode se encontrar desassociado da realidade social, sob pena de se incorrer na autopoiesis – seja por não produzir efeitos sociais; por legitimar processos legislativos que violem direitos e garantias fundamentais; ou até mesmo por impossibilitar que o magistrado interprete a legislação (doutrina do interpretativismo) baseado no neoconstitciconalismo – fator que gera um verdadeiros litígio estrutural entre os poderes constituídos.
Quando ao aspecto de ausência de legitimidade democrática, ou representatividade adequada, destaca-se que pela própria dicção da Constituição Federal se evidencia o caráter antimajoritário do Judiciário, permitindo que atue, ainda que contrário à vontade da maioria, para a proteção de valores constitucionais.
Conclui-se que o instituto do ativismo judicial não tem o condão de transferir o comando das políticas públicas ao Judiciário, nem instituir a figura de uma “oligarquia intelectual”, mas, apenas, baseado na realidade social proteger valores e princípios constitucionais, como os direitos e garantias fundamentais, quando da violação reiterada por parte do Executivo e do Legislativo.
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Procurador autárquico da Manaus Previdência. Graduado em Direto pela Universidade Federal do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GERALDO UCHôA DE AMORIM JúNIOR, . Ativismo judicial: uma análise sobre o controle de políticas públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50166/ativismo-judicial-uma-analise-sobre-o-controle-de-politicas-publicas. Acesso em: 08 nov 2024.
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