RESUMO: As democracias têm instituições mais sólidas e mais legitimidade. As pessoas que vivem em democracias estão dispostas a sacrificar algumas liberdades pessoais durante a crise, mas tem confiança de que vão recuperar essas liberdades, justamente para garantir sua dignidade e seus direitos fundamentais face a imposição violenta dos Estados fundamentalistas que querem impor sua fé.
PALABRAS-CHAVE: Estado de Direito; intolerância religiosa; liberdade de consciência e crença.
ABSTRACT: The democracies have more solid institutions and more legitimacy. The people who live in democracies are made use to sacrifice some personal freedoms during the crisis, but she has confidence of that they go to recoup these freedoms, exactly to guarantee its basic dignity and its rights face the violent imposition of the fundamentalist States that want to impose its faith.
KEY WORDS: Rule of law; religious intolerância; freedom of conscience and belief.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Os direitos fundamentais e suas gerações. 2. A relação entre liberdade de consciência e liberdade de crença. 3. O Estado de Direito é laico? 4. A intolerância e as minorias religiosas.
INTRODUÇÃO
No dia 13 de novembro de 2015, Paris foi vitimada por um ataque terrorista. No Stade de France, durante um jogo entre as seleções da França e da Alemanha, torcedores e expectadores ficaram desesperados diante de explosões que ocorreram ao redor, enquanto assistiam ao jogo. Além disso, três tiroteios simultâneos também assustaram a população. Entre eles, um ataque à casa de show Bataclan, deixaram 112 mortos, segundo a prefeitura de Paris. Dezenas de pessoas ficaram feridas em outros pontos da cidade, segundo a polícia parisiense. Ainda se desconhece a autoria, mas são fortes os indícios quanto ao Estado Islâmico.
O presidente francês, François Hollande, declarou estado de emergência em toda a França e que as fronteiras serão fechadas.
O presidente americano, Barack Obama, também fez um pronunciamento em que disse que a situação é “ultrajante” e que os EUA farão o que for possível para ajudar a França. “Faremos o que for necessário pra trabalhar com os franceses e as nações ao redor do mundo para buscar justiça”, disse. “Não quero especular no momento quem é o responsável até que sejamos informados pelas autoridades francesas que a situação está sob controle”. Obama disse ainda que o que aconteceu foi "um ataque contra toda a humanidade".
Até quando o homem vai matar em nome de Deus?
Desde o início desse século, países em que vigoram regimes democráticos foram atacados por terroristas. Todos sofreram impactos dramáticos. Mas nenhum deles abriu mão dos direitos civis.
Onze de setembro de 2001: o maior ataque terrorista da história. Dezenove homens da Al-Qaeda seqüestraram quatro aviões para se chocaram com as Torres Gêmeas em Manhattan e o Pentágono em Washington. Foram 2.996 mortos.
Desde então o terror voltou a atacar alvos civis longe das áreas de conflito no Oriente Médio.
Doze de outubro de 2002, terroristas ligados à Al-Qaeda atacam discotecas na ilha de Bali, Indonésia: 202 mortos.
Onze de março de 2004: terroristas islâmicos de filiação desconhecida explodem quatro trens em Madri: 191 mortos.
Sete de julho de 2005: quatro simpatizantes da Al-Qaeda explodem bombas no metrô e um ônibus de Londres: 52 mortos.
Novembro de 2008: por quatro dias, de 26 a 29 de novembro, dez militantes islamistas paquistaneses aterrorizam Mumbai na Índia: 166 mortos.
Dois de abril de 2015: o Quênia, que já tinha passado por um massacre num shopping em 2013, em grande atentado da Al-Qaeda em 1998, enfrenta mais um horror: terroristas do grupo Al-Shabab, associado à Al-Qaeda, invadem uma escola em Garissa e matam 147 alunos e professores.
Estes atentados tiveram por objetivo aterrorizar seis democracias: Estados Unidos, Indonésia, Espanha, Reino Unido, Índia e Quênia. Os seis países continuam democráticos, nenhum abriu mão das liberdades civis para enfrentar o extremismo. O terror não vence a democracia.
O cientista político Steven Cook, do Conselho de Relações Externas, que está em Washington, falou ao Jornal Nacional pela internet (14/11/2015): "As democracias têm instituições mais sólidas e mais legitimidade. As pessoas que vivem em democracias estão dispostas a sacrificar algumas liberdades pessoais durante a crise, mas tem confiança de que vão recuperar essas liberdades".
Assim, no presente estudo, propõe-se analisar os direitos fundamentais e suas gerações, diferenciando a liberdade de consciência e religiosa no Estado de Direito Brasileiro, enquanto laico, bem como, pontuar a proteção às minorias religiosas no contexto da intolerância religiosa.
1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS GERAÇÕES
Os direitos fundamentais surgem em um cenário do avanço do capitalismo, no qual os trabalhadores viram-se compelidos a empregarem-se nas fábricas, sem garantias condignas com a dignidade da pessoa humana. Como causa desta desigualdade material aponta-se o liberalismo econômico, isto é, a livre iniciativa num mercado concorrencial, propiciado pelas instituições e sem qualquer interferência estatal (Estado abstencionista). Tal fato gerou um acréscimo de riqueza jamais visto, em contrapartida, a classe trabalhadora contava com condições precaríssimas de trabalho; trabalho que, na lógica de mercado, equivale à mercadoria, sujeita à lei da oferta e da procura. (FERREIRA FILHO, 2009, p. 42-43)
É clássica a classificação dos direitos fundamentais sociais, segundo os ensinamentos do alemão Jellinek[1], em: direitos de defesa; prestacionais e de participação (ALEXY, 1994).
Assim, os direitos de defesa seriam os primeiros direitos, relacionados ao valor liberdade, realizáveis em razão de uma omissão por parte do Estado, um não fazer do Poder Público. São os direitos chamados individuais, aos quais o constituinte imprime eficácia jurídica para sua efetivação.
Os direitos fundamentais de defesa, dirigem-se, portanto, a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, implicando para estes um dever de respeito a determinados bens e interesses da pessoa humana, por meio da omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certas condições.
(...) os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos. (GOMES CANOTILHO, 1992, p. 552)
Denota-se tradicional, mas de grande relevância a classificação dos direitos fundamentais em gerações de direitos ou dimensões de direitos, como prefere a doutrina recente, pois se mostra mais adequada (BONAVIDES, 1997).
1ª Dimensão dos Direitos Fundamentais.
As revoluções liberais (Francesa e Norte-Americana) deram surgimento aos direitos de primeira dimensão, direitos relacionados ao valor liberdade (século XVIII), portanto, todos os direitos individuais e também aqueles de participação. Marcam a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito.
Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. (BONAVIDES, 1997, p. 563-564)
Portanto, preconizavam a máxima liberdade em relação ao Estado, garantindo assim a esfera privada face as ingerências do Estado, daí chamados de direitos de defesa frente ao arbítrio do poder político.
Assim, os direitos de primeira geração ficaram conhecidos como direitos civis (direitos de defesa) e políticos (direitos de participação).
Foram com as constituições escritas que tais direitos ganharam força, a destacar-se: a Magna Carta de 1215, assinada pelo rei “João Sem Terra e as Declarações Americana de 1776 e Francesa de 1789.
2ª Dimensão dos Direitos Fundamentais.
O fato histórico que inspira e impulsiona tais direitos são a Revolução Industrial na Europa, a partir do século XIX.
Considerando as péssimas condições de trabalho os trabalhos constituem movimentos na busca de reinvidicarem direitos trabalhistas, bem como, normas de assistência social.
Assim, tendo em vista o valor igualdade, que marca este período, nascem os direitos sociais, tendo como destaque os seguintes documentos: Constituição do México, de 1917; Constituição de Weimar, de 1919 e a Constituição Federal de 1934.
Segundo o Prof. Paulo Bonavides:
[...] passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos.
[...] de juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade. (1997, p. 564)
Portanto, os direito de 2ª dimensão, os direitos sociais, também econômicos e culturais, apresentam-se como prestacionais, exigindo um fazer por parte do Estado. São, assim, os direitos coletivos.
3ª Dimensão dos Direitos Fundamentais.
São marcados pela alteração da sociedade por profundas mudanças da comunidade internacional, relacionados ao valor fraternidade. Surgiram de uma constatação entre os países ricos e os países pobres, o que exigiria uma solidariedade / fraternidade dos países ricos para com os países pobres.
São desta geração de direitos: o preservacionismo ambiental, direito de auto-determinação dos povos (princípio que rege o Brasil nas suas relações internacionais – art. 4º, III), direito ao progresso e ao desenvolvimento, direito de propriedade sobre patrimônio comum da humanidade, paz, entre outros.
Demais Dimensões de Direitos Fundamentais.
Para Noberto Bobbio (BOBBIO, 1992) estariam entre os direitos de 4ª dimensão aqueles relacionados aos avanços no campo da engenharia genética. Ao seu lado, o Paulo Bonavides (BONAVIDES, 1997) destaca a globalização política ou dos direitos fundamentais, destacando-se os direitos de democracia, informação e pluralismo político. Finalmente, Ingo Sarlet (SARLET, 2012) destaca a necessidade de se reconhecer novos direitos fundamentais, como a mudança de sexo, dentre outros.
Reconhecendo a paz como supremo direito da humanidade e elemento necessário à realização da democracia participativa, Paulo Bonavides a reconhece como autônoma e integrante da 5ª dimensão de direitos fundamentais.
2. A RELAÇÃO ENTRE LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E LIBERDADE DE CRENÇA
Ainda que a liberdade de consciência tenha forte vínculo com a liberdade religiosa, ambas não se confundem e apresentam dimensões autônomas. A liberdade de consciência assume, de plano, uma dimensão mais ampla, considerando que as hipóteses de objeção de consciência, apenas para ilustrar com um exemplo, abarcam hipóteses que não têm relação direta com opções religiosas, de crença e de culto. (WEINGARTNER NETO, 2007. p. 79 e ss.)
Bastaria aqui citar o exemplo daqueles que se recusam a prestar serviço militar em virtude de sua convicção (não necessariamente fundada em razões religiosas) de participar de conflitos armados e eventualmente vir a matar alguém. Outro caso, aliás, relativamente frequente, diz com a recusa de médicos a praticarem a interrupção da gravidez e determinados procedimentos, igualmente nem sempre por força de motivação religiosa.
Assim, amparados na lição de Konrad Hesse, é possível afirmar que a liberdade de crença e de confissão religiosa e ideológica aparece como uma manifestação particular do direito fundamental mais geral da liberdade de consciência, que, por sua vez, não se restringe à liberdade de “formação” da consciência (o foro interno), mas abarca a liberdade de “atuação” da consciência, protegendo de tal sorte para efeitos externos a decisão fundada na consciência, inclusive quando não motivada religiosa ou ideologicamente. (HESSE, 1995, p. 168)
Individualmente, a liberdade de consciência pode ser definida, como a faculdade individual de autodeterminação no que diz com os padrões éticos e existenciais das condutas próprias e alheias e a total liberdade de autopercepção em nível racional ou mítico-simbólico, ao passo que a liberdade religiosa (ou de religião) engloba no seu núcleo essencial tanto a liberdade de ter, quanto a de não ter ou deixar de ter uma religião, desdobrando-se em diversas outras posições fundamentais, que serão, pelo menos em parte, objeto de atenção logo adiante. (SARLET, 2011. p. 481-482.)
Particularmente relevante para efeitos de proteção da liberdade religiosa, mas também para a diferenciação entre esta e a liberdade de consciência, assume relevo a própria definição do que se considera uma religião.
O que seria religião?
Impossível formular uma definição de religião que englobe a ampla gama de crenças espirituais e práticas que se fazem presentes em uma sociedade plural como é a do Brasil, pois, não há uma característica particular ou um complexo de características que todas as religiões tenham em comum, a fim de que possa ser possível defini-la(s) como religião(ões), definição ampla que se revela particularmente importante para maximizar a proteção das manifestações religiosas.
Por outro lado, até mesmo para preservar a diferença entre liberdade de consciência e liberdade religiosa e assegurar uma devida aplicação de ambas (especialmente no que diz com sua proteção), na condição de direitos fundamentais, não se poderá ampliar em demasia o conceito de religião, ainda mais quando está em causa também o reconhecimento e proteção da dimensão institucional da liberdade religiosa, ou seja, das igrejas e locais de culto.
3. O ESTADO DE DIREITO É LAICO?
A missão do Estado Democrático de Direito é promover o bem-estar social a todos os membros da sociedade para uma convivência pacífica e harmônica.
E no maior país católico do mundo é possível se afirmar que existe uma participação, ou melhor, uma relação do Estado com a Igreja?
No que diz, especificamente, a neutralidade religiosa e ideológica do Estado, esta constitui-se, especialmente, no tocante ao aspecto religioso, em elemento central das ordens constitucionais contemporâneas, mas com raízes na vertente do constitucionalismo, especialmente de matriz francesa, o que foi incorporado à tradição brasileira a contar da Constituição Federal de 1891.
Na Constituição Federal de 1988, tal opção (do Estado laico) encontra sua previsão expressa no já referido art. 19 da CF/1988, que veda aos entes da Federação que estabeleçam, subvencionem ou embaracem o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas.
A referência feita a Deus no Preâmbulo da Constituição Federal, além de não ter caráter normativo, não compromete o princípio da neutralidade religiosa do Estado, que, por sua vez, não implica – ainda mais consideradas as peculiaridades da ordem constitucional brasileira – um total distanciamento por parte do Estado da religião, distanciamento que – na acepção de André Ramos Tavares que aqui se partilha – sequer se revela como sendo desejável. (2010, p. 606)
Contudo, isso não quer dizer que o Estado laico assume uma postura de menosprezo e desconsideração com a comunidades religiosas em geral, mas, sim, que o Estado não professa nenhuma religião e não assume fins religiosos, mantendo uma posição equidistante e neutra, desprovida de hostilidade em relação à religião e mesmo proibitiva da religiosidade, conduta que seria incompatível ao pluralismo firmado no Preâmbulo da Constituição Federal, aos direitos fundamentais individuais, em especial, às liberdade de consciência e manifestação do pensamento.
É da tradição do povo brasileiro a religiosidade, mas para o não religioso e, dizemos mais ainda, para o ateu e o materialista, nenhuma contradição haveria se tivessem votado pela inserção do vocábulo ‘Deus’ no texto. Lembramos, para os que não sabem e para os que conhecem o fato (indocti discant, ament meminisse periti), que Bertrand Russel, declarando-se ateu, sustentou polêmica com pensador cristão, aceitando ambos, no início da discussão, a definição de Deus como ‘algo que criou o mundo e não se confunde com o mundo. (CRETELLA JUNIOR, 1992, p. 110-111)
De todo modo, o que se verifica é que outras manifestações podem ser extraídas da Constituição Federal, no sentido de uma postura aberta e sensível para com as religiões, sem que com isso se esteja a assumir (do ponto de vista do papel e posição do Estado) qualquer compromisso com determinada religião e igreja, o que pode ser ilustrado com os exemplos da previsão, ainda que em caráter facultativo, de ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, § 1.º, da CF/1988) e a possibilidade de reconhecimento de efeitos civis ao casamento religioso (art. 226, §§ 1.º e 2.º, da CF/1988).
Embora sua forte conexão com a dignidade da pessoa humana, a liberdade religiosa, mas, também, a liberdade de consciência, notadamente naquilo em que se projeta para o exterior da pessoa, é um direito fundamental sujeito a limites e restrições. Modalidade que é da liberdade expressão (manifestação do pensamento) e especialmente da liberdade de consciência (que é mais ampla), a liberdade religiosa, embora como tal não submetida a expressa reserva legal (no art. 5.º, VI, da CF/1988 estabelece ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos), encontra limites em outros direitos fundamentais e na dignidade da pessoa humana, o que implica, em caso de conflito, cuidadosa ponderação e atenção, entre outros aspectos, aos critérios da proporcionalidade.
Já a proteção aos locais de culto (como dever estatal que é) e a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, são, nos termos da Constituição Federal, sujeitos a regulamentação legal (ver, para a prestação de assistência religiosa, o caso das Leis 6.923/1981 e 9.982/2000), mas a legislação deverá, de qualquer modo, atender aos critérios da proporcionalidade e não poderá em hipótese alguma afetar o núcleo essencial do direito de liberdade religiosa e esvaziar a garantia da organização religiosa.
Por outro lado, a própria Constituição Federal estabelece limites para a liberdade religiosa e de consciência, quando, no art. 5.º, VIII, dispõe que: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. O postulado do Estado Laico (melhor formulado como postulado da neutralidade estatal em matéria religiosa), por sua vez, também interfere no exercício da liberdade religiosa, pois o Poder Público não poderá privilegiar determinada orientação religiosa, ainda que majoritária, como, por exemplo, se verifica na discussão em torno da colocação, ou não, de crucifixo em escolas e repartições públicas, que tem dividido a doutrina e a jurisprudência no Brasil e no direito comparado e internacional. Que a resposta correta depende de muitos fatores, inclusive e especialmente do marco do direito constitucional positivo, resulta evidente, embora nem sempre seja bem observado. A existência de uma tradição de tolerância e mesmo aceitação do uso de determinados símbolos religiosos ou mesmo de datas e feriados religiosos vinculados a uma orientação religiosa amplamente majoritária, sem que com isso se verifique uma intervenção desproporcional no exercício de liberdade negativa e positiva de religião por parte das demais correntes igualmente constitui critério relevante a ser observado.
Por sua vez, os conflitos da liberdade religiosa com outros direitos fundamentais e bens jurídico-constitucionais são múltiplos. Assim, podem, a depender do caso, ser justificadas restrições quanto ao uso da liberdade religiosa para fins de prática do curandeirismo e exploração da credulidade pública, especialmente quando com isso se estiver incorrendo em prática de crime ou afetando direitos de terceiros ou interesse coletivo.
Situação que já mereceu atenção da doutrina e jurisprudência no plano nacional e internacional diz com o conflito entre a liberdade de consciência e de crença com os direitos à vida e à saúde, como se verifica, de forma particularmente aguda, no caso dos integrantes da comunidade religiosa das “Testemunhas de Jeová”, cujo credo proíbe transfusões de sangue. Se para o caso de menores de idade revela-se legítima a intervenção estatal para, em havendo manifestação contrária dos pais ou responsáveis, determinar o procedimento médico quando tido como indispensável, no que se verifica substancial consenso, é pelo menos questionável que se queira impor a pessoas maiores e capazes algo que seja profundamente contrário às suas convicções, por mais que tais convicções sejam resultado de um processo de formação que se inicia na mais tenra idade. De qualquer sorte, quanto ao caso das pessoas maiores e capazes, não existe uma orientação definida, havendo entendimentos em ambos os sentidos. (Consulex, Ano VII, nº 74/08, p. 23 a 27)
Outro tema de relativo impacto no direito comparado, mas com importantes reflexos no Brasil, é o que trata do conflito entre liberdade religiosa e a proteção dos animais. Ainda que não se atribua aos animais a titularidade de direitos subjetivos, o fato é que existe um dever constitucional de proteção da fauna, que, pelo menos em princípio, poderá justificar restrições ao exercício de direitos fundamentais, incluindo a liberdade religiosa.
No Brasil, a hipótese seguramente mais frequente é a que envolve os rituais afrobrasileiros do Candomblé e da Umbanda, onde também são sacrificados animais. A respeito de tal prática, encontra-se decisão do TJRS, que, em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, declarou a legitimidade constitucional de lei estadual que admite a prática do abate para fins religiosos, desde que mediante consideração dos aspectos levando em conta a saúde pública e a proibição de crueldade com os animais, decisão da qual foi interposto recurso ao STF, que ainda não julgou a matéria.
A liberdade religiosa (incluindo a liberdade de culto e de organização religiosa) também pode entrar em conflito com a própria liberdade de expressão e comunicação, inclusive a liberdade artística, como se verifica no caso de charges ofensivas a determinada orientação ou prática religiosa, ou mesmo obras literárias e outras formas de expressão. Problemas como o proselitismo no ambiente do trabalho ou mesmo o assédio religioso, a possibilidade de distribuição de panfletos e outros meios de divulgação da crença em espaços públicos, a possibilidade do uso do véu ou outros símbolos religiosos em estabelecimentos de ensino ou no local de trabalho, a legitimidade constitucional dos feriados religiosos e a discussão em torno de o quanto a objeção de consciência, especialmente por motivos religiosos, deve assegurar a realização de provas e concursos públicos em horário apartado, são apenas alguns dos conflitos e problemas de interpretação que se tem oferecido ao debate na esfera da política e do direito, resultando em decisões judiciais nem sempre simétricas.
Assim, o Estado é laico, mesmo ao assegurar e garantir direitos fundamentais associados as liberdades de crença e culto.
4. A INTOLERÂNCIA E AS MINORIAS RELIGIOSAS
O respeito dos direitos das pessoas como forma de assegurar sua liberdade de crença, credo e culto, afinal, não se trata apenas de um direito, mas sim de um complexo conjunto de direitos.
Os direitos e garantias individuais e coletivos estão preservados e garantidos pela Constituição Federal de 1988: como garantia da ordem e da paz social e cabe ao Estado atuar como um mediador, o ente que irá harmonizar as condutas e irá propiciar a solução para casos de intolerância religiosa, ou, ainda, disseminar dúvidas sobre procedimentos éticos e morais envolvendo a tolerância religiosa.
De outro lado, a atuação do Estado em nada se mistura ao poder decisório próprio de cada religião, afinal, existe uma relação muito clara entre religião e direito que não se confunde e, tampouco, se mistura com a figura do Estado e seu poder de atuação.
A intolerância religiosa pode estar relacionada à dignidade da pessoa humana, quando considerada individualmente, bem como, ao convívio social, quanto pontuada no contexto social.
Mas o que significa tolerância? E intolerância?
Jean Delumeau explica: “A palavra ‘tolerância’, que não consta do Edito de Nantes, teve uma história atormentada. De início, ela assumiu um significado negativo. No Dictionaire de l’Académie de 1694, a tolerância é definida como a ‘indulgência para com o que não se pode impedir’. Mas, em sentido contrário, a Encyclopédie qualifica-a de ‘virtude’. Em nossos dias, ela se tornou base essencial das democracias atuais, isto é, o respeito pelas opiniões do próximo, quando ele não procura fazê-las triunfar pela força ou pela astúcia” (DELUMEAU, Jean; MELCHIOR-BONNET, Sabine. Op. cit., p. 378).
A questão da intolerância se faz mais presente quando se trata de cultos religiosos, uma vez que os cultos e seus ritos são criados e desenvolvidos justamente para solidificar a adoração comum dos membros daquela comunidade. Quando se trata de grupos de pessoas no culto a um Deus ou uma religião se tem a possibilidade de grupos mais fechados em sua própria fé e outros menos.
São muitos os casos de conflitos religiosos que ultrapassam a barreira das idéias e se transformam em atos armados. As motivações podem ser políticas ou sociais, mas a religião está presente e atua como mola propulsora de condutas entre o conflito armado.
Usam da religião como pano de fundo ou pretexto para uma guerra, foi assim com Saddam Houssein ao usar o conflito dos xiitas contra os sunitas para se impor no poder e controlar as supostas tensões religiosas.
E esse uso indiscriminado da religião pode atingir em cheio os ideários de grupos religiosos mais extremistas que usam largamente do fundamentalismo religioso para obterem sucesso em suas cruzadas políticas.
Tem-se, desse modo, que o fundamentalismo religioso é um assunto complexo e se refere ao uso extremado da fé de seus praticantes. Esse uso pode ser positivo ou negativo. No primeiro caso temos a ratificação da própria crença e dos cultos que se fortificam e assim incrementam a fé do grupo. Contudo, no segundo caso, é possível usar da fé como instrumento de combate, o que justamente tem se contemplado nos dias atuais.
Ao se direcionar o fundamentalismo religioso para um alvo certo sob a égide de proteger o seu Deus, a sua crença e o culto, os fiéis atacam o inimigo por acreditarem na causa. Matam em nome de Deus. De seu Deus.
O fundamentalismo pode se desenvolver através de conflitos regionais, com fulcro basilar na própria religião, ou num plano externo com o uso indevido da fé através do medo e da insegurança por um movimento que o mundo conheceu como terrorismo.
O sucesso ou o fracasso do fundamentalismo religioso varia de acordo com a forma que o líder espiritual trata a informação para seu grupo, ou, em outras palavras, realiza a propaganda da informação. Se o líder demonstrar que o inimigo é, de fato, o Satã e que esse precisa ser combatido para a mantença da unidade religiosa e a segurança das famílias, o seguidor irá aderir a tal pensamento.
A fundamentação religiosa motiva e fomenta o ódio impingido pelas células terroristas, como se o inimigo não fosse um país, uma nação, mas sim, o mal, o Satã.
Tem-se assim a justificativa dos ataques terroristas, usando a religião como meio de propagarem sua fé, matando pessoas em nome de Deus como sublimação de sua fé e imposição de ideais políticos.
CONCLUSÃO
Até quando o homem irá matar em nome da fé? Este é o contexto de intolerância religiosa travado no presente estudo.
Denota-se, a partir do contexto mundial de constantes ataques terroristas, que as pessoas ainda querem impor sua crença, sua religião e sua visão da mesma ao mundo, ainda que isso signifique ceifar vidas inocentes.
Os ordenamentos jurídicos se propõem a proteção de direitos chamados fundamentais, dentre eles a se destacar as liberdades de consciência e crença. Contudo, o próprio homem põe em cheque a tutela, violando-os em nome da fé, inclusive chegando a lesão mais extrema, a retirada do direito sem o qual os demais simplesmente perdem sua finalidade, a vida.
Os Estados democráticos não podem se calar diante de tal lesão.
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formado na Universidade Paranaense - UNIPAR, advogado atuante até o ano de 2008 (OAB-PR 30651), quando então passou a integrar os quadros da Policia Civil do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CANDIDO, Eric Costa. Intolerância religiosa e o Estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50339/intolerancia-religiosa-e-o-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 14 nov 2024.
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