RESUMO:O presente trabalho possui como objetivo apontar o exercício da autoridade parental pelos pais afins nas famílias recompostas por meio da posse de estado de filho e da socioafetividade, com respaldo na Constituição Federal de 1988, no Novo Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A possibilidade de dissolução do vínculo conjugal anteriormente proibida pela legislação favoreceu a ampliação do número de separações e, consequentemente, de novas uniões. Estas uniões, são, pois, o objeto de estudo do presente trabalho, em que se buscou elucidar a função do cônjuge ou companheiro nestes novos arranjos familiares, por entender que a regulamentação da autoridade parental nos lares recompostos facilita a convivência e, consequentemente, o êxito no novo núcleo familiar. Para subsídio das conclusões, optou-se por uma metodologia que privilegiou a pesquisa doutrinária e jurisprudencial, pautando-se na força normativa que os princípios constitucionais vêm assumindo do mundo jurídico contemporâneo e na aplicabilidade destes no Direito de Família.
Palavras-chave: Família recomposta. Autoridade parental. Pai afim. Socioafetividade.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 FAMÍLIA: CARACTERÍSTICAS E NUANCES. 2.1 CONCEITO DE FAMÍLIA.. 2.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA. 2.3 FAMÍLIAS CONSTITUCIONALIZADAS: MATRIMONIAL, CONVIVENCIAL E MONOPARENTAL 3. AUTORIDADE PARENTAL, FAMÍLIAS RECOMPOSTAS E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.. 3.1 DO PÁTRIO PODER À AUTORIDADE PARENTAL. 3.2 FAMÍLIAS RECOMPOSTAS. 3.3 PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. 4 AUTORIDADE PARENTAL EM FAMÍLIAS RECOMPOSTAS. 4.1 A APLICAÇÃO DA AUTORIDADE. 4.2 ATUAÇÃO DOS PAIS AFINS.. 4.3 A PROBLEMÁTICA REGISTRAL. 4.4 O DESFAZIMENTO DE UMA FAMÍLIA RECOMPOSTA, E AGORA? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO.
Tema bastante relevante, merecedor de estudo específico e de inegável importância social, sobretudo para o ramo do Direito de Família, diz respeito às transformações sociais que deram surgimento à uma gama de novos arranjos familiares anteriormente inexistentes e não reconhecidos pela legislação pátria.
As famílias recompostas – arranjos familiares em que pelo menos um dos cônjuges ou companheiro leva para o novo lar um filho de um relacionamento anterior –, por se tratar de um novo tipo de família, merece especial atenção, razão pela qual necessita de um estudo e identificação de suas especificidades, por conter particularidades não compreendidas nos outros núcleos familiares. Dentre eles, tem-se o preconceito sobre os enteados, ao inseri-los como membros pertencentes a uma segunda classe.
A autoridade parental dos pais afins nas famílias reconstituídas, apesar da abordagem doutrinária historicamente recente, é uma situação aceita e consolidada na sociedade. Em que pese a legislação civil ainda não contemplar a paternidade socioafetiva, o Poder Judiciário vem reconhecendo a aplicação da filiação socioafetiva em casos concretos. Com atenção, sobretudo, ao melhor interesse da criança e do adolescente, por verificar sua inegável e sólida presença na comunidade.
Com o advento da emancipação feminina, a criação da Lei do Divórcio, a Constituição da República Federativa do Brasil de 88, entre tantos outros dispositivos caracterizadores da evolução social, houve um grande aumento do fenômeno da multiparentalidade. Com isso, a própria função dos pais afins passou a ser compreendida de maneira diversa. Há possibilidade de o seu papel variar de acordo com uma série de fatores como, por exemplo, a participação ativa ou ausência do pai biológico na vida do filho.
O presente trabalho busca elucidar a autoridade parental em famílias recompostas, mostrando, a consolidação deste instituto e o seu crescimento no cotidiano das famílias brasileiras. Como também, exteriorizar a participação do padrasto/madrasta na criação, educação e desenvolvimento do enteado através da socioafetividade. Parentesco este que advém da convivência diária, fazendo nascer direitos e deveres entre os indivíduos dessa relação.
Este estudo fundamenta-se, sobretudo, nos posicionamentos doutrinários e na jurisprudência pátria. Sendo fracionado em três capítulos, quais sejam: (1) Família: características e nuances, onde será abordado o conceito de família, os princípios que norteiam o Direito de Família e as famílias constitucionalizadas; (2) Autoridade parental, famílias recompostas e socioafetividade paterna, que trará a definição jurídica destes institutos; e (3) Autoridade parental em famílias recompostas, o qual demonstrará sua aplicabilidade, importância, características, o posicionamento jurisprudencial e a necessidade da abrangência pelo legislativo.
Com o intuito, portanto, de contribuir decisivamente para a consolidação dos preceitos fundamentais tutelados pela Lex Suprema, pautando-se, sobretudo, no caráter deôntico que os princípios vêm assumindo no mundo jurídico contemporâneo, passa-se à análise minuciosa das temáticas pertinentes ao objeto de estudo em questão.
A família é como um espelho d’água. Diz-se espelho por refletir a sociedade e suas características da maneira mais original e verdadeira possível, mostrando, inclusive, através de simples observação, a época na qual está inserida. Diz-se água por ser transparente e límpida, evidenciando seus aspectos, defeitos, qualidades e temores, sendo tão sensível na sua essência e tão frágil em sua superfície que, ao mínimo tremor, seja ele externo ou interno, ocasiona uma distorção na imagem ali projetada. Sobre o conceito de família, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho dispõem que
nenhuma definição nessa seara pode ser considerada absoluta ou infalível, uma vez que a família, enquanto núcleo de organização social, é, sem dúvida, a mais personalizada forma de agregação intersubjetiva, não podendo, por conseguinte, ser aprioristicamente encerrada em um único standard doutrinário. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 43)
E continuam,
A disseminação mundial de um novo modelo econômico, já a partir do século XIX, fez estremecer os alicerces da família como instituição, não sendo raras as vozes que, tais quais trombetas do apocalipse, bradavam que era o início do fim da família... Talvez, sim, fosse o início do fim, não dá família, em si, mas da concepção uniforme e conservadora de um único formato de família. O século XX, nessa trilha, foi pródigo em eventos e fenômenos que abalaram tal discriminatória imposição de pensamento único. A formação dos grandes centros urbanos, a revolução sexual, o movimento feminista, a disseminação do divórcio como uma alternativa moralmente válida, a valorização da tutela da infância, juventude e terceira idade, a mudança de papéis nos lares, a supremacia da dignidade sobre valores pecuniários, o reconhecimento do amor como elo mais importante da formação de um “LAR, Lugar de Afeto e Respeito”..., tudo isso e muito mais contribuiu para o repensar do conceito de família na contemporaneidade. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 51)
Em que pese à dificuldade de exprimir um posicionamento conceitual, em virtude, sobretudo, das transformações históricas e das especificidades de cada núcleo familiar, Gustavo Tepedino desenvolve a ideia de que o ser humano sente a necessidade de saber que existem pessoas com as quais se identifica, preocupa-se e que pode contar. A esse porto seguro, chama de família, e que “dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social” (TEPEDINO, on-line, p.26).
Doutrinadores como Maria Berenice Dias e Paulo Netto Lôbo procuram conceituar família no mesmo prisma dentro de uma perspectiva de mudanças:
O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônita reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo estado. (DIAS, 2010, p.43)
Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). (LÔBO, 2011, p.18)
Assim sendo, de maneira sintética, a família pode traduzir-se em uma organização social formada a partir de laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos.
Deve-se estar atento à proteção da família pelo fato de que é por meio dela que se dá o surgimento de uma sociedade e sua sustentação, pois é nela que cada pessoa desenvolve seu caráter e aprende a ser um cidadão, é com ela que se dividem as maiores conquistas e é a ela que se recorre na adversidade. Seu prestígio é tamanho que os legisladores sentiram a necessidade não só de proteger a família como também qualificá-la quanto a sua importância na sociedade, conforme explicitado no artigo 226 da Constituição Federal: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do estado”.
Superado o período da ditadura militar que assolou a sociedade brasileira por mais de vinte anos, a Constituição Federal de 1988, em relação às demais que outrora vigeram no ordenamento jurídico pátrio, apresentou-se como um conjunto normativo definidor de direitos até então menosprezados. Para Luís Roberto Barroso (in NOVELINO, 2009, p. 150):
No Direito Contemporâneo, a Constituição passou a ser compreendida como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. Rememore-se que o modelo jurídico tradicional fora concebido apenas para interpretação e aplicação de regras. Modernamente, no entanto, prevalece a concepção de que o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto.
Os princípios, portanto, vêm desempenhando no mundo jurídico o papel fundamental de orientar a aplicação das normas, adequando-as aos casos concretos, afastando-se do positivismo jurídico tradicional, há muito esfacelado por não atender ao dinamismo das demandas sociais, acarretando, inclusive, significativas mudanças em todo o Código Civil e na sua aplicação pelo Judiciário.
Dentre os vários princípios expostos na Carta Magna de 1988, os galgados como norteadores do Direito de Família são: (a) o da dignidade da pessoa humana, fundamento de um Estado Democrático de Direito, que impede a equiparação entre seres humanos e coisas; (b) o do pluralismo familiar, que reconhece a existência de diferentes arranjos familiares, inclusive daqueles que não estejam explicitamente elencados na Constituição Federal; (c) o da autonomia e da menor intervenção estatal, que preconiza a liberdade de cada indivíduo para organizar seu planejamento familiar; (d) o da igualdade e do respeito às diferenças, que defende a isonomia entre os cônjuges e entre filhos; (e) o da afetividade, que permite o reconhecimento de laços familiares ainda que inexistente a consanguinidade; (f) o do melhor interesse da criança e do adolescente, que garante a especial proteção que estes seres em formação necessitam; e (g) o da responsabilidade, que cria deveres de cuidados entre os familiares.
De inegável importância para o objeto de estudo deste trabalho, passa-se à análise das principais características dos princípios acima elencados, cuja observância é obrigatória em face da força normativa que possuem.
a) A dignidade da pessoa humana
O pressuposto para o surgimento da dignidade da pessoa humana é a existência do ser humano, ou seja, o nascimento com vida já caracteriza a detenção do direito de ser tratado de maneira digna. Antes do nascimento há apenas a expectativa deste direito.
Este princípio passou, e ainda passa, por transformações de interpretação ao longo dos anos. Em um passado não muito remoto, a ideia de dignidade estava atrelada à moral a aos bons costumes. Por esta razão, a figura masculina, por exemplo, ao descobrir que fora traído, partia em proteção de seu nome e de sua honra, fazendo “justiça” com as próprias mãos, podendo chegar, inclusive, a matar a mulher infiel ou o amante desta, sem que nenhuma sanção fosse a ele imposta. Ao contrário, era um reclame da sociedade. Hoje, entretanto, pelo reconhecimento da supremacia do bem da vida, o exercício arbitrário das próprias razões não encontra respaldo na legislação.
Ainda em caráter exemplificativo, sabe-se que, em épocas passadas, era comum o não reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento. Tidos como indignos, sofriam discriminação e eram marginalizados pela sociedade. Atualmente, não só são reconhecidos como filhos legítimos, como também têm o direito de pleitear em juízo o reconhecimento de sua filiação.
Estes avanços democráticos são resultantes, sobretudo, do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. A citação direta desse princípio ainda no 1° artigo, inciso III da Constituição Federal, elencado como um dos fundamentos da República, expõe sua importância para a Constituição de um Estado Democrático de Direito.
Mas, afinal, o que é a dignidade da pessoa humana?
O entendimento esposado por Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 96), fazendo alusão à Kant, é de que o ser humano não tem um valor venal, um preço, por ser dotado de uma consciência moral. Para o aludido doutrinador, ser detentor de dignidade é o que torna o homem superior às coisas materiais. Desta forma, dignidade nada mais é do que uma qualidade intrínseca do ser humano, por ser este dotado de valor inestimável, incalculável e merecedor de respeito.
Impende observar, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana possui uma dimensão metaindividual, ou seja, extrapola as barreiras da pessoalidade, interessando a toda coletividade. É o que se pode perceber por meio da análise do famoso caso de “arremesso de anões”. Sobre este episódio, expõem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
No início da década de 1990, determinada boate nos arredores de Paris apresentava aos seus clientes, como uma das opções de entretenimento, o arremesso de anões. O cliente interessado divertia-se arremessando à distância uma pessoa portadora dessa deficiência. A Prefeitura de Paris, por entender que tal prática, em franco desrespeito à dignidade humana, violava a Declaração Europeia de Direitos Humanos, afigurando-se ilícita, embargou a atividade. A boate se defendeu argumentando que teria o direito de exercer aquela atividade econômica. E o mais surpreendente: o anão figurou no processo, ao lado da boate, sustentando que aquela era a sua atividade econômica, o seu meio de sustento de vida. O Tribunal de Versalhes, então, cassou o embargo administrativo, autorizando a prática combatida. Coube ao Conselho de Estado da França reformar a decisão do Tribunal, para proibir em definitivo a modalidade, deixando claro que a dignidade de um homem não interessa apenas a ele, mas a toda a sociedade. Seria o caso de inseri-lo em algum programa do governo, mas não permitir a continuação de uma atividade profissional degradante. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 74-75)
Desta forma, infere-se que a preservação da dignidade está intimamente ligada à esfera pessoal, mas também ao âmbito das relações sociais, onde os laços familiares estão inseridos.
Caracterizando o ambiente mais propício para o seu desenvolvimento, para Maria Berenice Dias (2010, p.63), “a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer”.
E inegável, portanto, o elo existente entre a família e a dignidade da pessoa humana, em que a primeira desempenha um importante papel para o desenvolvimento de um ser dotado de qualidades que o impedem de ser equiparado a coisas.
b) O pluralismo familiar
Para Adriana Maluf (2010, p. 98), “Diversas são as formas de agrupamento familiar que vêm se descortinando na atualidade, vivendo lado a lado com outras formas mais tradicionais de configuração de núcleo familiar”.
A ideia de que apenas por meio do casamento pode haver a formação de uma entidade familiar decaiu com o advento da Constituição Federal de 1988. Os novos arranjos familiares, criados em decorrência do dinamismo social, fez nascer, no âmbito legislativo, a necessidade de reconhecer grupos há muito tempo existentes na sociedade.
Pautando-se nas ideias de Albuquerque Filho (on-line), pode-se inferir que o princípio em comento está relacionado com o reconhecimento, pelo Estado, das diferentes possibilidades de arranjos familiares, preconizando o apoio às múltiplas estruturas familiares e legitimando os arranjos emergentes por meio do reconhecimento legal dos direitos e deveres a eles inerentes.
Defende-se, portanto, com respaldo nas ideias de Guilherme Gama (2008, p. 72), uma associação do disposto no artigo 1º, inciso V da Constituição Federal, que versa sobre o pluralismo político, com o Direito de Família, estendendo-o a este, quebrando, desta forma, o paradigma patriarcal e matrimonial enraizado na sociedade, de modo a possibilitar a livre escolha de composição do arranjo familiar pelo cidadão.
c) A autonomia e a menor intervenção estatal
Também conhecido como princípio da liberdade, o princípio da autonomia no Direito de Família defende uma menor intervenção estatal nas relações privadas, garantindo a cada indivíduo o livre planejamento familiar da melhor forma que lhe convir, podendo optar pela estrutura que pretende constituir sua família.
É em decorrência deste princípio, portanto, que doutrinadores afirmam que: “Ao Estado não cabe intervir no âmbito do Direito de Família a ponto de aniquilar a sua base socioafetiva” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 104).
Por esta razão, pode-se dizer que a menor intervenção estatal está intimamente ligada ao princípio do pluralismo familiar, uma vez que o Estado está impedido de interferir na liberdade de escolha dos indivíduos em optar por qualquer modelo de família, ainda que não expressamente previsto pela Constituição. Isto se dá, sobretudo, em atenção à prancha axiológica do princípio da dignidade da pessoa humana.
O Código Civil de 2002, inclusive, zelando por uma intervenção mínima, reconheceu no artigo 1.513 que “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família” e, no artigo 1565, §2°, que “o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”.
Por isso, o posicionamento de Rodrigo da Cunha Pereira, citado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011, p. 103) é de que “O Estado abandonou a sua figura de protetor-repressor, para assumir postura de Estado protetor-provedor-assistencialista”.
Impende destacar, entretanto, que o reconhecimento da aplicabilidade do princípio da menor intervenção estatal não pode afastar do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito de algum membro da estrutura familiar. É o caso, por exemplo, da inegável competência do Juiz da Infância e da Juventude para proferir decisões que versem sobre guarda dos filhos ou, ainda, sobre destituição do poder familiar quando necessária.
d) A igualdade e o respeito às diferenças
A igualdade no Direito de Família deve ser respeitada em duas esferas: na relação conjugal, ou seja, entre o homem e a mulher e, por analogia, entre os companheiros no caso da união homoafetiva, e entre os filhos, havidos no matrimônio, fora dele ou por adoção, detentores de mesmos direitos e qualificações.
Não há dúvidas de que a Constituição de 1988 no artigo 5º, inciso I, estabeleceu a isonomia entre os sexos quando dispõe que “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Ainda, equalizando direitos e deveres entre ambos os cônjuges, a igualdade entre os gêneros foi reafirmada mais adiante no texto da Lex Superior, no artigo 226, §5º, que assim preceitua: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”
A igualdade entre os filhos, por sua vez, foi tratada no artigo 227 da Carta Magna de 1988, extirpando diferenças e descriminações quando, atenta ao princípio isonômico, expõe que “Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Invocando a preleção, Lôbo (on-line) manifesta-se:
A desigualdade de deveres entre os cônjuges foi o consectário natural do paradigma familiar que vigorou na legislação brasileira, até praticamente o advento da Constituição de 1988, que pôs cobro a seus últimos e resistentes resíduos. No plano infraconstitucional, o Código Civil de 2002 suprimiu explicitamente o tratamento legal assimétrico dos deveres do marido e da mulher, concentrando no art. 1.566 os deveres comuns de ambos. Contudo, a própria razão de ser da norma instituidora dos deveres comuns, sua utilidade e sua finalidade, perderam consistência porque ela integrava um conjunto normativo voltado à consolidação do paradigma familiar fundado na entidade matrimonializada, no poder marital, na legitimidade e no pátrio poder. Esses pilares desapareceram ou foram profundamente transformados, mercê da refundamentação da família determinada pela Constituição de 1988, refletindo as intensas modificações sociais e culturais ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX, principalmente pela adoção irrestrita (e, verdadeiramente, revolucionária) do princípio da igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher e entre os filhos.
O reconhecimento da igualdade, porém, não impede a observância das peculiaridades, sejam elas naturais ou culturais, de cada ser, uma vez que, somente por meio do respeito às diferenças, estaria assegurada a igualdade plena (LÔBO, on-line). Neste sentido, a efetivação do princípio da igualdade requer esforços muito além de um tratamento isonômico de modo geral.
Em consonância com o pensamento de Roselló (2009, p. 128), entende-se que o singular, ao ultrapassar a barreira da unicidade e passar a ser constituído como plural, não deve ser enxergado como uma massa ou coletividade no sentido genérico do termo, mas de maneira a considerar as diferenças existentes entre os componentes do todo para, somente assim, conseguir alcançar seu fim social, a igualdade. É por esta razão que Walber de Moura Agra (2008, p.141) defende:
A igualdade almejada é a jurídica, em que a lei não pode discriminar cidadãos que estejam em semelhantes situações. Sua exceção somente pode ser amparada em uma racionalidade que tenha por finalidade que este tratamento diferente amenize uma disparidade fática. Muitas vezes, a quebra da igualdade jurídica tem o escopo de realizar uma igualdade fática, pois do contrário, tratar de forma isonômica pessoa, bens ou situações desiguais seria ensejar o aumento de desigualdades já existentes.
e) A afetividade
Respaldando-se nas ideias de Lôbo (on-line), pode-se dizer que o princípio da afetividade, trazido de forma implícita na Constituição Federal e no Código Civil em seus artigos 227, §6º e 1.596, respectivamente, rege todas as relações familiares, demonstrando, sobretudo por meio da temática da filiação, sua importância.
A certeza da condição de filho, mais do que a verdade demonstrada por meio do exame de DNA, dá-se por uma relação de afetividade, podendo esse vínculo ser estabelecido com base nos sentimentos que envolvem as pessoas, e não somente pela compatibilidade genética. Por esta razão, Oliveira (2002, p.233), analisando a afetividade como amálgama dos laços familiares, defende a ideia de que
Fechando-se contra “ataques” externos, a família atual ganha, no seu cotidiano, razão suficiente para não aceitar a introdução, em seu meio, de fatores que possam levá-la à destruição. A efetividade, traduzida no respeito de cada um por si e por todos os membros – a fim de que a família seja respeitada em sua dignidade e honorabilidade perante o corpo social – é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores características da família atual.
Percebe-se, portanto, que a afetividade, ainda que associada na maioria das vezes à seara da filiação, é imprescindível para o estabelecimento e permanência de qualquer laço familiar. Este avanço na forma de pensar as ligações familiares é resultante da transposição de grandes desafios e da destruição de incomensuráveis barreiras psicossociais arraigadas no tempo e no espaço, em que a família era tida como garantia de crescimento econômico e amparo na velhice. Sem levar em consideração a vontade de estar junto ao outro e o sentimento existente, as uniões prendiam-se por laços matrimoniais, acorrentando, sobretudo a mulher, aos parâmetros culturais da época do “até que a morte nos separe”.
Passada essa obscura fase, pautando-se na doutrina de Lôbo (on-line), defende-se a ideia de que, além da afetividade, o núcleo familiar reveste-se das características da ostensibilidade e da estabilidade. A primeira faz referência ao comportamento dos indivíduos perante a sociedade, o tractus; a segunda, por sua vez, possui o escopo de tirar os relacionamentos episódicos do rol, aqueles não duradouros.
f) O melhor interesse da criança e do adolescente
É de fundamental importância a análise desse princípio. Por se tratar de um indivíduo em formação e, por isso, ainda não completo, a criança e o adolescente precisam de atenção e cuidados específicos, obtendo, em decorrência de sua situação de fragilidade, regalias não inerentes a outros cidadãos. A quebra da igualdade fática neste caso é decorrente da situação de vulnerabilidade em que se encontram estes seres incompletos, sendo lançados privilégios para que se alcance a plenitude da igualdade.
O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente encontra respaldo e força na percepção de que este período de transição pelo qual estão passando é marcado pela definição de sua personalidade, momento em que procuram encontrar seus espaços no meio social, ou seja, descobrem-se como pessoa humana possuidora de direitos e deveres, razão pela qual se justifica a atenção despendida.
Na seara do Direito de Família, a temática da infância e da juventude possui um dos pontos de maior cautela e apreensão no divórcio entre os pais. Pensamento também esposado por Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 132-138), percebe-se que, muitas vezes, a criança e o adolescente são usados como forma de atingir o outro cônjuge, sem que se perceba, contudo, o mal que praticam aos filhos. Exercendo verdadeiro bombardeio de atos de alienação parental, os pais acabam esquecendo que mesmo com o esgotamento do amor e o término do relacionamento, há algo muito maior e mais importante a ser preservado que frutificou da relação: o melhor interesse da criança e do adolescente.
g) A responsabilidade
Também compreendida por solidariedade, a responsabilidade aplicada ao Direito de Família estabelece obrigações de assistência, moral e material, entre os familiares, em atenção, sobretudo, à necessária efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. De acordo com Flávio Tartuce,
A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil pelo art. 3.°, inc. I, da Constituição Federal de 1988, no sentido de buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, já que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais. Isso justifica, entre outros, o pagamento de alimentos no caso de sua necessidade, nos termos do art. 1.694 do atual Código Civil. (TARTUCE, on-line)
É importante esclarecer, tomando como base o exemplo trazido do pagamento de alimentos entre cônjuges, companheiros ou entre esses e seus descendentes e ascendentes, que o dever moral e social de prestar assistência não está relacionado à indenização por responsabilidade civil. Esta é decorrente de algum dano ocasionado, que deve ser ressarcido, enquanto que o princípio da responsabilidade justifica-se pelo dever de cuidado resultante dos laços afetivos.
Superada, portanto, a época do individualismo e instalado o ideal da solidariedade, foram sendo colecionados mandamentos que atribuem ao cidadão a responsabilidade de prover as necessidades de seu núcleo existencial. É neste sentido que se consolida o princípio da responsabilidade na seara familiar. E, ainda que a responsabilidade seja mais facilmente visualizada nas ações dos pais em relação aos filhos, impende reforçar a ideia que o dever de cuidado entende-se também aos filhos, que devem assistir aos pais na velhice, em atenção, sobretudo, ao princípio da proteção do idoso.
Buscando tecer um breve retrospecto histórico, pode-se dizer que a abordagem específica da temática familiar é algo recente na legislação brasileira. Despercebida pelos elaboradores da Constituição de 1824 – que não destinaram normas específicas sobre o assunto – e atrelada, na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, ao casamento civil como único ato jurídico capaz de construí-la, a família somente ganhou capítulo próprio no ordenamento jurídico com o advento da Constituição de 1934. Foi neste momento que surgiu, pela primeira vez, a expressão “especial proteção do Estado”, ideia repetida em todas as Constituições posteriores. Ainda sobre a Lei Maior de 1934, José Sebastião de Oliveira afirma que
o poder constituinte não se interessou em apresentar um conceito substancial de família, limitando-se a somente especificar o ato pelo qual ela se constituía e que o ato jurídico do casamento era indissolúvel, o que, vale dizer, não admitira o divórcio a vínculo. (OLIVEIRA, 2002, p. 48)
As Constituições subsequentes de 1937 – que acrescentou a necessidade de educação da prole com a promessa de colaboração estatal, igualou os direitos dos filhos naturais aos dos legítimos e atentou para os cuidados e garantias especiais por parte do Estado à infância e juventude – e a de 1946, que reestabeleceu a norma prevista na Constituição de 1934, suprimida na de 1937, sobre a extensão dos efeitos civis ao casamento religioso, não foram consideradas muito inovadoras no que diz respeito à conquistas de direitos sociais e de cidadania.
As Constituições de 1967 e 1969, por sua vez, tratando do tema em um único artigo e quatro parágrafos, limitaram-se a reconhecer os mesmos direitos já conferidos pelas Constituições anteriores, sem que nenhuma inovação temática fosse percebida.
Ainda que tenha recebido ferrenha oposição do clero nacional, a grande inovação na seara da família deu-se com a aprovação da Emenda Constitucional n. 09/77, que incorporou o instituto do divórcio no ordenamento jurídico pátrio, dando início à modernização do Direito de Família.
A evolução do modo de pensar da sociedade e a busca pela consolidação dos ideais democráticos fez surgir, em 1988, uma Constituição – dita, não por acaso, “Cidadã” – atenta à efetivação dos direitos e garantias estabelecidos em seu texto, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa. Esta nova Lei Maior, correspondendo à necessidade de adequação de situações fáticas às previsões legislativas, além de estabelecer a igualdade entre todos os filhos (legítimos, caracterizados por nascerem na vigência do matrimônio; ilegítimos, gerados fora do casamento, classificados em naturais, quando os pais não tinham qualquer impedimento para se casarem, ou espúria, proveniente de uma relação incestuosa ou adulterina; legitimados, aqueles nascidos em momento anterior ao casamento dos pais; e adotivos, tidos como os de origem civil), reconheceu três espécies de família: a matrimonial, convivencial e monoparental.
A família matrimonial é aquela construída com base nos laços advindos do casamento, ato que, hoje, permite a efetivação da autonomia da vontade, sobretudo no que tange a escolha do regime de bens e a duração da união. Como dito outrora, esta era, em tempos remotos, a única forma admitida pela legislação para a constituição de uma entidade familiar. Para Adriana Maluf (2010, p.105),
Embora não traga consignada a doutrina pátria uma definição expressa do que seja em si o casamento, podemos entendê-lo como um ato solene, com forma prevista em lei, que tem em vista a formação de um grupo social, que visa ao amparo mútuo dos seus partícipes em todas as esferas da vida íntima, baseado em afeição genuína, com finalidade de crescimento interior, desenvolvimento das intrínsecas potencialidades, visando ao bem-estar, à felicidade, à perpetuação do ser humana em observância da higidez da sociedade.
A Carta Magna de 1988, entretanto, inovou ao abranger outro tipo de vinculação entre pessoas, qual seja, a união estável, também chamada de família convivencial, conferindo-lhe status familiae. O reconhecimento desta forma de laço familiar, entretanto, não foi simples. Ao contrário, defende-se que a trajetória deu-se da “ampla rejeição, com absoluta ausência de tutela jurídica, atravessando o silencioso constrangimento da simples tolerância, passando pela aceitação natural como fato social, até o reconhecimento e valorização constitucional” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 407-408).
De modo geral, os doutrinadores atribuem à união estável as características da convivência pública e duradora, entre pessoas do mesmo sexo ou não, com o fito de constituir uma família. É, pois, um relacionamento informal quando comparado ao casamento, uma vez que não possui como pressuposto existencial a diversidade de sexos e é desprovido de formalidades legais para a sua constituição.
A Constituição de 1988 reconheceu, ainda, a família monoparental, qual seja, aquela formada por qualquer dos pais e sua prole. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011, p. 508),
No que diz respeito ao momento de sua constituição, pode ser ela classificada em originária ou superveniente. Na primeira espécie, em que a família já se constituiu monoparental, tem-se, como exemplo mais comum, a situação da mão solteira. Salienta-se que tal situação pode decorrer de múltiplos fatores, desde a gravidez decorrente de uma relação casual, passando pelo relacionamento amoroso estável que não subsiste ao advento do estado gravídico (pelo abandono ou irresponsabilidade do parceiro ou mesmo pelo consenso) até, inclusive, a conhecida “produção independente”. Nessa família monoparental originária, deve-se incluir, logicamente, a entidade familiar constituída pela adoção, em que o indivíduo solteiro (independentemente do sexo) adota uma criança, constituindo um núcleo familiar. Já a família monoparental superveniente é aquela que se origina da fragmentação de um núcleo parental originalmente composto por duas pessoas, mas que sofre os efeitos da morte (viuvez), separação de fato ou divórcio.
Posicionando-se acerca da hierarquização axiológica entre as três espécies de famílias constitucionalizadas e defendendo a tese que propõe a igualdade dos tipos de entidades, Paulo Lôbo defende que
A igualdade dos tipos de entidades consulta melhor o conjunto das disposições constitucionais. Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada. (LÔBO, on-line)
Ocorre que, sem uma justificativa jurídica razoável, deixou o legislador de contemplar no ordenamento outros laços existentes na sociedade, como, entre outras, é o caso (1) das famílias anaparentais, aquelas constituídas sem a presença dos pais, o que possibilita uma gama infinita de arranjos, desde a convivência entre irmãos órfãos até a união de duas amigas, viúvas, que decidem morar na mesma casa, por exemplo; (2) das famílias homoafetivas, reconhecidas como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal por meio do julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, compostas por casais formados por pessoas do mesmo sexo; (3) das famílias recompostas, caracterizadas pela união de casal em que um deles, ou ambos, possuem filhos de relacionamentos anteriores; e (4) das famílias paralelas, em que um dos integrantes da união, ou ambos, participam como cônjuge em mais de uma família.
Defendendo a não taxatividade do rol elencado nos parágrafos do artigo 226 da Constituição Federal e a inclusão das demais espécies de família, Paulo Lôbo ensina:
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado,depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade. (LÔBO, on-line)
Por fim, sugerindo uma metodologia interpretativa, o aludido autor defende: “se dois forem os sentidos possíveis (inclusão ou exclusão), deve ser prestigiado o que melhor responda à realização da dignidade da pessoa humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não explicitadas no texto” (LÔBO, on-line), razão pela qual acredita que as famílias constitucionalizadas não encerram numerus clausus e que as outras espécies de família são igualmente tuteladas pela Constituição Cidadã.
A concepção atual de autoridade parental é resultante de uma evolução gradativa da expressão que tem por finalidade traduzir o conjunto de direitos e deveres na relação dos pais com os filhos.
Inicialmente, a autoridade parental foi chamada de pátrio poder, expressão oriunda do patria potestas do Direito Romano, nomenclatura que se justificava por meio do viés histórico, uma vez que a época na qual foi inserida era marcada pela supremacia do homem em relação à mulher, vista como relativamente incapaz, não sendo possível a ela uma participação real nas decisões de âmbito familiar.
Neste momento, então, ficava a cargo da figura masculina a educação e alimentação da prole, a escolha sobre que profissão deveriam os filhos seguir, a decisão de poder utilizar-se da prole para trabalhos e afazeres, a imposição de castigos moderados aos filhos, dentre tantas outras funções (COMEL, 2003, p.24).
Para Farias e Rosenvald (2011, p.4), neste passado, “as pessoas se uniam em família com vistas a formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos”. Em outras palavras, a procriação e o consequente crescimento da família eram vistos como meio de ascensão social, uma vez que a economia era baseada na agricultura familiar, em que, quanto mais mão-de-obra, maiores seriam as possibilidades de ganhos. Para Washington de Barros Monteiro (2007, p.340),
No terreno pessoal, o pai dispunha originalmente do enérgico jus vitae et necis, o direito de expor o filho ou de matá-lo, o de transferi-lo a outrem in causa mancipi e o de entregá-lo como indenização noxae deditio. No terreno patrimonial, o filho, como escravo, nada possuía de próprio. Tudo quanto adquiria , adquiria para o pai, princípio que só não era verdadeiro em relação às dívidas.
O artigo 233 do Código Civil de 1916, instituído pela Lei 3.071 de 01 de janeiro de 1916, dispondo que “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos”, ainda retratava fielmente a supremacia do pai sobre a mãe nas questões familiares. Ainda sobre o antigo Código Civil, este era claro e taxativo quanto aos filhos que eram submetidos ao pátrio poder: os legítimos, legitimados e os legalmente reconhecidos, não contemplando os ilegítimos, como se podia inferir da leitura do artigo 379: “Os filhos legítimos, os legitimados, os legalmente reconhecidos e os adotivos estão sujeitos ao pátrio poder, enquanto menores”.
Entretanto, estes dispositivos logo ficaram em total dissonância com o caminhar da civilização, que vinha a passos largos quebrando preconceitos históricos com a finalidade de deixar para trás esse passado acorrentado a discriminações.
Para Maria Berenice Dias (2010, p.10), “foi a libertação feminina que levou à decadência do viés patriarcal da família. É necessário reconhecer que foi a luta feminista que impôs o império da liberdade e da igualdade”. Neste sentido, mudanças comportamentais referentes à participação da mulher na sociedade e, em especial, como integrante de um núcleo familiar, começaram a ocorrer.
O advento do Estatuto da Mulher Casada, instituído pela Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, demonstrou, ainda que de modo tímido, os avanços democráticos pelos quais a sociedade vinha passando, no momento em que atribuiu o pátrio poder também à figura feminina. Porém, a legislação ainda permaneceu com resquícios dos tempos remotos ao prever que, havendo discordância entre os pais, preponderaria a vontade do patriarca.
Além desta, outras novidades puderam ser observadas com a publicação do mencionado Estatuto, como por exemplo, a eliminação da incapacidade relativa da mulher superveniente ao novo casamento, uma vez que, de acordo com o artigo 393, “A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos do leito anterior, os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido”, ratificando, desta forma, o direito da mulher de praticar espontaneamente atos sobre a pessoa e bens dos filhos do leito anterior (COMEL, 2003, p.35).
A mais robusta inovação, entretanto, deu-se em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, que trouxe, além de incalculáveis avanços democráticos em todas as áreas do Direito pátrio, atenta, sobretudo, à efetivação dos direitos fundamentais, alterações profundas – e, digam-se, benéficas – no Direito de Família.
A igualdade plena entre os sexos descrita no artigo 5º, I, da Carta Magna e reafirmada mais especificamente em relação aos cônjuges no art. 226, § 5º provocou a inutilização de vários artigos do Código Civil, levando doutrinadores e jurisprudencialistas a divergirem quanto ao alcance dessa nova norma.
Apesar do desconforto inicial provocado, a alteração legislativa beneficiou a mulher, e principalmente as mães, que passaram a ser reconhecidas como sujeitos com direitos plenos e proporcionais aos da figura masculina.
Em 1990, momento posterior, portanto, ao advento da Constituição Federal e, por consequência, trazendo preceitos que deviam coadunar-se com os novos mandamentos constitucionais, surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente – o ECA. Seu diferencial, quando comparado à Lei Maior, manifestou-se no amparo específico à criança e ao adolescente, reconhecendo a necessidade de implementação de uma política de proteção integral a estes sujeitos de direitos e deveres.
O pátrio poder, expressão que se manteve no ECA até a alteração legislativa de 2009, passou, então, a ser entendido como um dever inerente aos pais, decorrente da paternidade e da filiação, independentemente estado civil dos genitores, o que não ocorria com a abordagem trazida pela Constituição, que atrelava o pátrio poder à “sociedade conjugal”, relacionando-o, portanto, ao matrimônio dos pais. Por esta razão, para Comel (2003, p.47), “o Estatuto da Criança e do Adolescente reconheceu que todo menor tem direito ao pátrio poder, qualquer que seja a situação do pai e da mãe em relação ao casamento”. No mesmo sentido, “A separação judicial ou o divórcio, assim como a dissolução da união estável, não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos” (MONTEIRO, 2007, p.349).
Ao estabelecer, no artigo 21, que “O pátrio poder, será exercido em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente”, o ECA efetivou a igualdade constitucional entre o homem e a mulher, razão pela qual a expressão “pátrio poder” já não traduzia a realidade das relações familiares.
Ainda que a referente ao Direito lusitano, mas que permite a aplicação por analogia ao Direito brasileiro, para Eduardo dos Santos, citado por Sílvio de Salvo Venosa (2010, p. 304), “O poder paternal já não é, no nosso direito, um poder e já não é, estrita ou preponderantemente, paternal. É uma função, é um conjunto de poderes-deveres, exercidos conjuntamente por ambos os progenitores”.
Assim sendo, a nomenclatura “pátrio poder” foi substituída, no novo Código Civil, por “poder familiar”, “distanciando-se de sua função originária – voltada ao exercício de poder dos pais sobre os filhos – para constituir um múnus, em que ressaltam os deveres” (LÔBO in DIAS; PEREIRA, 2003, p. 177).
A expressão “pátrio poder” remetia ao poder exclusivo da figura masculina, não contemplando a autoridade da mãe. A nova expressão, entretanto, por dispor da palavra “familiar”, faz inferir a presença de mais de um sujeito detentor do poder, fazendo menção a um dever compartilhado.
Essa mudança não foi apenas estética, mas modificou, sobretudo, a interpretação da finalidade do poder familiar, alterando a própria causa de ser do instituto, que passou a ser compreendido como dever parental de realizar atos que zelem pelo bem da prole. Por esta razão, enfatiza Paulo Lôbo (2011, p.19) que “o interesse dos pais está condicionado ao interesse do filho, ou melhor, no interesse de sua realização, como pessoa em formação”. Para Washington de Barros Monteiro (2007, p.347),
Modernamente, o poder familiar despiu-se inteiramente do caráter egoístico de que se impregnava. Seu conceito, na atualidade, graças à influência do cristianismo, é profundamente diverso. Ele constitui presentemente um conjunto de deveres, cuja base é nitidamente altruística. Outrora, o pátrio poder representava uma tirania, a tirania do pai sobre o filho; hoje o poder familiar é uma servidão do pai e da mãe para tutelar o filho.
Muitos doutrinadores, entretanto, concordam em dizer que a adoção dessa nova expressão não foi a melhor escolha, uma vez que o emprego da palavra “poder” remete à ideia de um direito próprio e não de um dever para com outrem.Para Silvio Rodrigues (2004, p.355),
O novo Código optou por designar esse instituto como poder familiar, pecando gravemente ao mais se preocupar em retirar da expressão a palavra “pátrio”, por relacioná-la impropriamente ao pai (quando recentemente já lhe foi atribuído aos pais e não exclusivamente ao genitor), do que cuidar para incluir na identificação o seu conteúdo real, que, antes de poder, [...] representa uma obrigação dos pais, e não da família, como sugere o nome proposto.
Para a sociologia, o poder está relacionado à habilidade de uma pessoa em impor sua vontade sobre os demais. A análise desta definição, portanto, permite supor a supremacia de alguém sobre outrem, como se àquele que não detém o poder só restasse a obediência indiscriminada, sem observância do melhor interesse do menor. Sobre a temática, posicionam-se Teixeira e Rodrigues (2010, p.57):
Os filhos exercem papel ativo na própria vida, além de contribuírem para a constituição da dignidade dos pais, pois a preservação dos interesses dos filhos constitui fator de desenvolvimento da personalidade dos pais. Portanto, não pode falar que os pais sejam titulares de um poder e, em contrapartida, os filhos lhes devam uma prestação. Afinal, “ninguém cresce sem fazer crescer, nem destrói sem se autodestruir”.
Assim sendo, é importante reafirmar que, na sociedade atual, essa relação de autoridade dos pais sobre os filhos está relacionada, sobretudo, à realização de um dever social e jurídico de ambos os pais – ou, excepcionalmente, de um deles, na falta do outro – de prestar assistência à prole, ajudando-a em sua formação.
As críticas à expressão “poder familiar”, entretanto, levaram ao surgimento de uma nomenclatura bastante aceita e difundida modernamente no meio doutrinário, qual seja, a “autoridade parental”, pois parece ser esta a expressão que engloba, com mais perfeição, o conceito atual do referido instituto. A utilização da expressão “autoridade”, para Paulo Lôbo (in DIAS; PEREIRA, 2003, p. 178), “traduz melhor o exercício de função ou de múnus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade e no interesse do outro”.
Mas, afinal, o que é autoridade parental?
LÔBO (2011, p.19), utilizando-se, ainda, da expressão “poder familiar” para se referir à autoridade parental, propõe que “o poder familiar, concedido como múnus, é um complexo de direito e deveres”.
Maria Helena Diniz (2008, p.537), por sua vez, aprofundando-se um pouco mais, explica que
O poder familiar pode ser definido como um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho.
Podem ser elencadas como obrigações dos pais quanto à pessoa do filho:
I) dirigir-lhes a criação e educação; II) tê-los em sua companhia e guarda; III) conceder-lhes, ou negar-lhes, consentimento para casarem; IV) nomear-lhes tutor, por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais lhe não sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercitar o poder familiar; V) representá-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (Cód. Civil de 2002, art. 1.634); VIII) cumprir e mandar cumprir, no interesse deles, as determinações judiciais; IX) assegurar-lhes convivência familiar e comunitária em ambiente livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (Estatuto da Criança e o Adolescente, arts. 19 e 22). (MONTEIRO, 2007, p. 350)
Em relação aos bens dos filhos, “A administração e o usufruto são inerentes ao poder familiar; cabem ao genitor, investido no seu exercício, e apenas cessam com a maioridade, emancipação, morte do filho ou inibição do poder familiar” (MONTEIRO, 2007, p. 353-354). Os atos praticados pelos pais, entretanto, devem restringir-se à simples administração, ou seja, atos que conservem o bem ou o explore – locação de imóvel, por exemplo –, tornando-se necessária a autorização judicial para celebração de negócios que extrapolem esse limite, sob pena de nulidade do negócio.
Pode-se concluir, então, que a autoridade parental consubstancia-se em um conjunto de obrigações inerentes aos pais em detrimento dos filhos menores e não emancipados, o qual engloba, de modo genérico, os deveres de educação, guarda, construção de um ambiente propício ao desenvolvimento com dignidade e sustento material e moral.
Por fim, coadunando-se ao esposado no artigo 21 do ECA e 1.631 do Novo Código Civil, impende ressaltar a fiscalização complementar exercida pelo Poder Público nas relações familiares. “Sem perder de vista que a missão confiada aos genitores se reveste de importância social, o Poder Público vigia, corrige, completa e algumas vezes supre a atuação daquele que exercita o poder familiar” (MONTEIRO, 2007, p.347).
Como já mencionado outrora, com o advento da Emenda Constitucional n° 9, regulamentada pela Lei 6.515 de 1977, foi instituído, no Brasil, o divórcio, acarretando a revogação da legislação anteriormente vigente que previa a indissolubilidade do vínculo matrimonial.
Essa possibilidade, reconhecida legislativamente, de desfazimento do casamento trouxe uma inegável abertura ao surgimento de novos mosaicos familiares.
O divórcio, entretanto, não foi o único facilitador para formação desses novos arranjos. A viuvez, a dissolução da união estável e a configuração da família monoparental formada por pai ou mãe solteiro são exemplos de situações familiares que também permitem novas composições.
É importante salientar que esses novos laços familiares não surgiram para colocar em desuso o modelo da família clássica, conhecida como entidade heteroparental, formada por ambos os pais e a sua prole. Ao contrário, essas novas composições, resultantes do processo de transformações sociais, agregam-se ao modelo clássico como mais um forma de organização familiar, detentora dos mesmos direitos e deveres.
A designação “família”, entretanto, usualmente faz referência à família nuclear, caracterizada como tradicional, composta pelos ascendentes e sua prole comum (pai-mãe-filhos). Por esta razão, há uma necessidade de se nomear esses novos arranjos familiares, visto que, para Grisard Filho (2010, p.87),
continuar a chamar estas famílias só de famílias supõe uma conduta social de ocultamento e não discrimina as diferenças relacionadas com a especificidade dos novos vínculos, tanto no social e afetivo como no jurídico.
Assim, partindo da necessidade de denominação desses novos núcleos familiares, Marianna Chaves (on-line) enuncia:
Relativamente à terminologia utilizada, optou-se por família reconstituída, por ser a expressão mais utilizada na literatura jurídica brasileira. Sem embargo, encontram-se na doutrina as expressões como famílias recompostas, família mosaico, família pluriparental, família transformada, família rearmada, família agregada, família agrupada, família combinada, família mista, família extensa, família sequencial ou família em rede.
Ainda, fazendo referência à terminologia argentina, explica Débora Gouveia (on-line):
Na argentina é utilizado o termo ‘família ensamblada’, para designar as famílias por nós chamadas de reconstituídas. ‘Ensamblada’ segundo o dicionário, vem de ‘ensamblar’, cuja tradução para a língua portuguesa é ‘encaixar’, ‘embutir’. A denominação ‘famílias ensambladas’ provém da linguagem musical. Os ‘ensambles’ são obras musicais escritas para um grupo de solistas e a palavra não apenas se refere ao conjunto musical como também descreve o grau de coerência com a execução musical, e o resultado do esforço de todos, proporciona algo harmônico e gratificante tanto para os músicos como para o auditório. Esta metáfora se popularizou e foi adotada pela doutrina.
Mas como são caracterizadas essas famílias recompostas?
Grisard Filho (in GROENINGA; PEREIRA, 2003, p.257) as identifica como sendo “uma estrutura familiar originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros tem filho ou filhos de um vínculo anterior.” Ou seja, é a composição familiar resultante da nova união de indivíduos divorciados ou viúvos – desde que haja prole, pelo menos, de um dos membros do casal – ou, até mesmo, do primeiro casamento do pai ou mãe solteiros, formando assim “um novo lar com regras próprias, no qual cada um traz consigo a experiência vivida na família anterior” (TEIXEIRA, 2005, p.120).
Teixeira e Rodrigues (2010, p.193) expõem as possíveis configurações das famílias reconstituídas, elencando quatro possibilidades:
(a) o genitor, seu filho e o novo companheiro ou cônjuge, sem prole comum; (b) o genitor, seu filho e o novo companheiro ou cônjuge, com prole comum; (c) os genitores de famílias originárias distintas e seus respectivos filhos, inexistindo prole comum; (d) os genitores de famílias originárias distintas e seus respectivos filhos, com prole comum.
Fica evidente, portanto, que as famílias recompostas são caracterizadas de acordo com a origem da prole, ou seja, se é apenas de um membro do casal, se exclusivamente do outro, se ambos são possuidores de filhos de relacionamentos anteriores ou se os dois têm filhos de outra relação e também filhos em comum. Assim, infere-se que a configuração de uma família recomposta obriga a ocupação, por um dos cônjuges, do cargo de madrasta ou padrasto do filho advindo de uma relação anterior de seu companheiro.
O Novo Código Civil, em seu artigo 1.595, regularizou a relação de parentesco entre o padrasto/madrasta e o enteado elucidando que “Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade”. Esse artigo pôs em ordem não só a relação do cônjuge com a prole do companheiro como também, no §1°, estende a afinidade aos ascendentes e irmãos do cônjuge, explicitando que “O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.
Em outras palavras, cada cônjuge ou companheiro é vinculado aos parentes do outro pela afinidade. Esse parentesco na linha reta liga, de maneira ilimitada, o cônjuge ou companheiro aos ascendentes e descendentes do outro. Já na linha colateral, abrange os irmãos do cônjuge ou companheiro.
Vale ressaltar que na legislação brasileira, o parentesco por afinidade em linha reta não se dissolve, mesmo com o divórcio ou dissolução da união estável ou, até mesmo, com a morte de um dos cônjuges. “Tal situação tem como desiderato confirmar a regra de impedimento matrimonial (CC, art. 1.521) entre os parentes por afinidade na linha reta, mesmo após a dissolução do vínculo” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.552).
A afinidade na linha transversal, por sua vez, não continua em caso de divórcio, dissolução da união estável ou óbito de um dos cônjuges. “O casamento entre quem foi cunhado, anteriormente (após a dissolução das núpcias) não está proibido, sendo factível” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 553).
Uma nomenclatura usada na doutrina para dar maior intimidade a essa modalidade de parentesco é pai ou mãe afim e filho afim.
É importante que se entenda, inicialmente, que a afinidade não gera direitos e deveres para o pai afim, como os deveres de alimentar, cuidar, educar, entre outros, como é o caso do parentesco natural e o civil. Paulo Lôbo (2011, p.212-213), ao comentar sobre o parentesco por afinidade, explica:
O parentesco por afinidade é estabelecido forçosamente em decorrência do casamento ou da constituição de união estável. O vínculo jurídico independe da vontade das partes ou da eventual rejeição dos que a ele ficam sujeitos. No sentido comum, afinidade compreende-se como coincidência ou semelhança de gostos, interesses, sentimentos, como pontos comuns entre duas coisas da mesma espécie ou até mesmo como identidade. No sentido jurídico, contudo, diz apenas respeito a parentesco específico com os parentes do outro cônjuge ou companheiro.
Pautando-se nas ideias do aludido autor, portanto, pode-se inferir a obrigatoriedade do vínculo afetivo, no sentido jurídico do termo, entre os indivíduos dessa nova rede familiar, ainda que esta não seja a vontade dos membros, realçando, assim, a não espontaneidade desta ligação.
Todavia, não é por meio da afinidade que o pai ou a mãe afim tornam-se detentores de direitos e deveres para com o filho afim, pois esse parentesco trouxe apenas o efeito de estabelecer um impedimento legislativo, qual seja, o de convolação de núpcias entre os parentes por afinidade. É, entretanto, com base na socioafetividade que essas obrigações se constituem.
O artigo 1.593 do Código Civil dispõe que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Entende-se que nesta “outra origem” citada pelo referido artigo está inserida a socioafetividade.
A problemática encontra-se na circunstância de que nem todo parentesco por afinidade desencadeia, necessariamente, numa relação socioafetiva. Então como saber diferenciá-los? Para Leila Donizetti (2007, p.15),
A despeito de ser uma realidade, a paternidade socioafetiva, diferentemente da paternidade jurídica e da paternidade biológica, precisou encontrar subsídios que legitimassem a verdade socioafetiva. É a partir dessa necessidade que surge o instituto da posse do estado de filho, cujo objetivo é valorizar a affectio, o caráter sociológico da filiação.
A socioafetividade, portanto, é comprovada a partir do reconhecimento da posse de estado de filho, mas essa aprovação “não é capaz de constituir o próprio vínculo, pois, como sabido, posse de estado é apenas meio de prova subsidiário e, portanto, não gera estado” (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.194).
O que define a substância desse novo tipo de parentesco, o que constitui a essência da socioafetividade, para Teixeira e Rodrigues (2010, p.194),
é o exercício fático da autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é genitor biológico, desincubir-se de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores, com o escopo de edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consangüíneos que geram tal obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade ou a maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental, externado sob a roupagem de condutas como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o vínculo jurídico da parentalidade.
Seguindo a mesma corrente, Farias e Rosenvald (2011, p.616) expõem:
A filiação socioafetiva decorre da convivência cotidiana, de uma construção diária, não se explicando por laços genéticos, mas pelo tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam reciprocamente o papel de pai e filho, respectivamente. Naturalmente, a filiação socioafetiva não decorre da prática de um único ato. Não teria sentido estabelecer um vínculo tão sólido através de um singular ato. É marcada por um conjunto de atos de afeição e solidariedade, que explicitam, com clareza, a existência entre uma relação de pai/mãe e filho. Enfim, não é qualquer dedicação afetiva que se torna capaz de estabelecer um vínculo paterno-filial, alterando o estado filiatório de alguém. Para tanto, é preciso que o afeto sobrepuje, seja o fator marcante, decisivo, daquela relação.
A posse de estado de filho é caracterizada com a comprovação de três requisitos, quais sejam, nomem (nome), tractus (trato) e fama (fama). O nome, requisito sem importância fundamental, refere-se à atribuição do nome de família do pai ao filho. Os outros dois elementos têm uma maior relevância. A fama é a reputação perante a sociedade, “é a publicidade do estado de filho” (FUJITA, 2011, p.116). O último, o trato, de maior importância, é a verificação prática do tratamento entre os membros da família como se pais e filhos biológicos fossem, ou seja, é a percepção da condição real de filiação.
Estes requisitos, todavia, devem estar aliados a uma extensão cronológica, ou seja, é fundamental que se perdure a posse de estado de filho, “porquanto a posse somente se revelará após um espaço de tempo já passado. O ‘tempo’ condiciona, simultaneamente, a existência e a força da posse de estado” (FUJITA, 2011, p.117).
É a posse do estado de filho que garante a possibilidade de reconhecimento, por intermédio do Poder Judiciário, da filiação socioafetiva que, se comprovada, garante aos filhos afins os mesmos direitos dos filhos biológicos. Neste sentido consubstancia-se o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO. 1. A paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial e doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem pertinentes, as regras orientadoras da filiação biológica. 2. A norma princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as restrições à busca do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com a possibilidade de filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma ampliativa, os restritivos comandos legais hoje existentes, para assegurar ao que procura o reconhecimento de vínculo de filiação sociafetivo, trânsito desimpedido de sua pretensão. 3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo biológico. 4. Não demonstrada a chamada posse do estado de filho, torna-se inviável a pretensão. 5. Recurso não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.189.663/RS, 2011).
Em outra importante decisão, defendendo, inclusive, a preponderância da filiação socioafetiva sobre a biológica ao declarar, em lide entre pai biológico e pai de criação, que a filha deveria permanecer registrada com o nome do pai afetivo, posicionou-se o Tribunal Superior de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativas à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. 6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (nemo auditur propriam turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica. 7. Recurso especial provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n° 1.087.163/RJ, 2011)
Albuquerque Júnior (2007, p.62-63), traçando, portanto, uma linha evolutiva, determina que
Quando da consolidação do sistema de filiação típico do direito civil tradicional, vivia-se quase que sob a exclusividade do paradigma do biologismo, ressalvado apenas o papel da adoção, tornado secundário pelo fato de ter o filho adotivo, antes das reformas no direito de família, um status prejudicado e menos direitos que o filho consanguíneo dito legítimo; em seguida, já como uma manifestação do direito civil contemporâneo, estabelece-se um novo paradigma, o da socioafetividade, convivendo lado a lado com o parentesco biológico; e, por fim, no estágio atual, chega-se à prevalência do paradigma socioafetivo, como meio de privilegiar as diretrizes constitucionais principiológicas que regem o direito de família, notadamente a afetividade, o melhor interesse da criança, a liberdade e a igualdade.
Na concepção atual, portanto, a “precisão dos testes genéticos deve ser vista [...] de forma relativa e sem exageros, como uma ferramenta útil, mas que não pode conduzir a sobrepujar o parentesco constituído com base na afetividade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 61). É preciso, pois, enxergar o biologismo como, apenas, um dos critérios para determinação da filiação, em que a socioafetividade apresenta-se como elo determinante. Por esta razão, outrora se posicionou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PATERNIDADE BIOLÓGICA NÃO CONFIRMADA. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. AFETIVIDADE ENTRE PAI REGISTRAL E FILHO. ANULAÇÃO DE REGISTRO. IMPOSSIBILIDADE. A paternidade registral, não biológica, deve ser mantida quando inexistente vício de consentimento e presente a relação de socioafetividade entre as partes. RECURSO IMPROVIDO. (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Apelação Cível n° 70023979875, 2008).
Ao comentar esta jurisprudência, expõe Zeni (2009, p. 97):
O vício de consentimento mencionado é quando o pai é induzido a erro ao proceder ao registro da criança, acreditando que ela é sua filha biológica. Vício bastante possível de acontecer, uma vez que a maternidade é certa, mas a paternidade se presume. A presença desse vício poderia, sim, acarretar na procedência de ação negatória de paternidade, porém, até a ciência, pelo pai, de que não é o pai biológico do menor, passam-se, muitas vezes, anos. Período no qual nasce e cresce o afeto de um para com e pelo outro e, diante da supremacia do afeto, a ação é indeferida com fundamento na socioafetividade.
Conclui-se, desta forma, que a socioafetividade nasce com o passar do tempo, à medida que as pessoas vão se relacionando e se conhecendo, não possuindo um momento exato para sua origem, sendo caracterizada pela posse de estado de filho.
Enquanto a afinidade apenas vincula os cônjuges aos parentes consangüíneos do outro, é a socioafetividade que faz a união desse grupo familiar, criando direitos e deveres que devem ser reconhecidos por toda a sociedade, razão pela qual se defende que
pai, ou mãe, na complexidade que esses termos comportam, será sempre aquele ou aquela que, desejando ter um filho, acolhem em seu seio o novo ser providenciando-lhe a criação, o bem-estar e os cuidados que o ser humano requer para o seu desenvolvimento e para a construção de sua individualidade e de seu caráter. Aquele que se dispõe a assumir, espontaneamente, a paternidade de uma criança, levando ela ou não a sua carga genética, demonstra, por si só, consideração e preocupação com o seu desenvolvimento. (MAIDANA apud DONIZETTI, 2007, p.38)
Uma família nuclear, quando em seu interior não há mais sentimento entre os cônjuges, ou seja, quando o matrimônio não logrou êxito, não há motivos para a continuidade dessa relação, uma vez que “não se justifica a manutenção do núcleo social, que, em alguns casos, só permanece pela formalidade que reveste; permanece a forma, mas não a essência” (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.191).
Por isso, é necessário reconhecer o direito de ambos os cônjuges de tentar encontrar, com outra pessoa, o sucesso em um novo relacionamento e a sua felicidade pessoal, levando consigo, se houver, a prole do matrimônio anterior. Percebe-se então que
Com o casamento ou a união estável de duas pessoas, que levam para o novo lar um ou mais filhos de relações anteriores – seja em decorrência da viuvez, separações, divórcios, dissoluções de uniões estáveis ou do pai e mãe solteiros que criam sozinhos seus filhos –, há o estabelecimento de um conjunto próprio de regras de convivência para aquela nova família, principalmente no que se refere à continuidade de criação e educação dos filhos. Isso porque o espaço de liberdade de cada um sofre interferências, em decorrência das novas pessoas que se agregam àquele núcleo familiar. Tais interferências podem ser positivas ou negativas, no que se refere ao desenvolvimento da personalidade dos filhos, de modo que podem vir a configurar situações patológicas ou promocionais (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.197).
Para que essas interferências sejam caracterizadas como positivas faz-se necessária uma maleabilidade e compreensão de todos os novos integrantes dessa pluriparentalidade, ambiente em que será adotado um novo conjunto de regras, distinta das observadas no vínculo anterior. Por esta razão, para Grisard Filho (in GROENINGA; PEREIRA, 2003, p.259), “estas estrutura e história fazem com que o começo e o desenvolvimento de uma família reconstituída seja muito diferente que o de uma família originária. Novas núpcias, novos filhos, novas relações (...)”.
Esses percalços trazem pequenos conflitos, muitas vezes de difícil resolução, para a família reconstituída, “atribuindo ao novo grupo uma gigantesca tarefa, a de construir sua própria identidade, pois seus integrantes organizam-se sob condições individuais, culturais e sociais diferentes” (GRISARD FILHO in GROENINGA; PEREIRA, 2003, p. 259).
Muitas vezes, o filho trazido para o novo casamento viveu, anteriormente, em um lar monoparental, ocasionando a priori, um desconforto quanto a aceitação de um novo integrante no ambiente familiar.
Todavia, superada essa etapa, mesmo sem perceberem, o pai/mãe afins vão executando funções no dia-a-dia características do exercício da autoridade parental, como levar ao colégio, repreender a criança e o adolescente diante de um erro, pagar despesas eventuais, dar conselhos, entre outras funções que passam desapercebidas no cotidiano.
Há, nesses casos, o nascimento da socioafetividade, pois é dessa convivência diária que gera o sentimento e se instala, com o passar do tempo, a posse de estado de filho por meio da nominatio, tractatus e reputatio.
É importante, neste momento, esclarecer a distinção entre o princípio da afetividade e a socioafetividade. Apesar de parecidos, estes institutos não se confundem, pois, enquanto esta “ministra condutas objetivas, externalizadas pelos deveres de criar, educar e assistir” (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.194), aquele, para Teixeira e Rodrigues (2010, p.194),
funciona como um vetor que reestrutura a tutela jurídica do direito de família, que passa a se ocupar mais da qualidade dos laços travados nos núcleos familiares do que com a forma através da qual as entidades familiares se apresentam em sociedade.
Especial atenção deve, também, ser dada ao que dispõe o artigo 1.636 do Código Civil: o pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.
É perceptível, no final do mencionado artigo, sua dissonância com a realidade, bem como o fato de não levar em consideração o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, excluindo o novo cônjuge ou companheiro de qualquer envolvimento na criação do menor, o que, na realidade, não pode ser obedecido, uma vez que a convivência torna impossível a não interferência do outro adulto no âmbito familiar.
Defende-se, portanto, a necessidade de se atualizar o artigo 1.636, para que ele se adéque à realidade das famílias ensambladas, bem como se coadune aos princípios constitucionalmente tutelados.
Nesta mesma linha de pensamento, Teixeira (2005, p.125), comentando o citado artigo, explana:
A situação se torna mais complexa em função da última parte do caput daquele dispositivo, que estabelece que o exercício da autoridade parental se perfaz sem a interferência do novo cônjuge ou companheiro. O mesmo ocorre quando o genitor solteiro casar ou estabelecer união estável. Entretanto, a prática reflete exatamente o oposto. A realidade impõe novas formas de arranjos familiares, que provocam rearranjos internos, decorrentes da estrutura havida na família anterior, agora desfeita (...) é inevitável que algumas funções, sejam maternas ou paternas, sejam cumpridas pelo pai ou pela mãe afim.
Não há que se negar o direito à autoridade parental ao padrasto ou madrasta por puro formalismo legal, prendendo-se a exatidão da lei, deixando de contemplar o justo e de dar o direito a quem realmente o deveria ter. Como afirma Lôbo (2011, p.96):
são justamente os conflitos e os meios de solução, para assegurar uma convivência saudável e razoável entre esses figurantes antigos e novos da vida da criança, no melhor interesse desta, que o direito brasileiro desconhece, parecendo que essas entidades familiares são invisíveis.
Ignorar a multiparentalidade e os seus efeitos é ignorar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, pois, não contemplar, o legislativo, o direito-dever ao padrasto/madrasta da autoridade parental sobre o enteado é muito mais do que fechar os olhos para essa relação socioafetiva, é ferir os direitos básicos do menor, “por lhes suprimir convivência familiar, assistência moral e material em relação àqueles que se responsabilizaram faticamente pela prática de condutas típicas da tríade criar, educar e assistir” (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.204).
Impende ressaltar, ainda, que este direito-dever atribuído ao pai/mãe afim deve ser completo. Explica-se: Lôbo, ao referir-se à legislação alemã, expõe que naquele ordenamento é direito dado ao padrasto e à madrasta a codecisão, conjuntamente com o cônjuge, quanto às questões relativas à prole, nos casos de guarda unilateral. Ocorre que “esse direito depende de comum acordo, podendo o guardião revogá-lo a qualquer tempo” (LÔBO, 2011, p.97-98).
Pode-se concluir, então, que esse privilégio não passa de uma espécie de procuração, onde o guardião cede ao seu companheiro poderes para realizar atos de seu interesse e em comum acordo. Havendo, entretanto, discordância entre os cônjuges, pode, o guardião, tornar esse direito sem efeito por meio de sua revogação. Fica evidente que a legislação alemã não passa de atribuir ao pai/mãe afim um direito pela metade, que não pode ser considerado como algo inovador, moderno ou uma solução. Esse direito, ao ser entregue a alguém, deve ser completo para que sua atuação no desenvolver da criança e do adolescente também o seja. Por esta razão, entende-se que esta metodologia estrangeira não se deve ser adotada no Brasil.
É compreensível, em algumas situações, a timidez por parte do legislador de abranger determinados grupos por se tratar de algo, muitas vezes, não unânime, uma vez que o ser humano tende a ser averso a mudanças. Esse é o maior percalço encontrado na autoridade parental em famílias recompostas, resultante do medo de se desprender de velhos hábitos, de se desvincular de costumes muitas vezes enraizados na sociedade, ainda que essas mudanças sejam para melhor, pois, uma vez alterado, torna-se mais difícil voltar atrás.
Esse temor em se perder o já conquistado, ou de sair dessa sua zona de conforto, é o que traz incertezas para mundo jurídico, mesmo que tais mudanças já estejam intimamente presentes no mundo fático, no cotidiano. Tem-se, como exemplo, “a constante busca das famílias homoafetivas de terem seus amplos direitos familiares igualmente reconhecidos. Isso inclui o direito ao planejamento familiar e, por conseqüência, o direito à adoção conjunta por parte desses casais” (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.203).
Pode-se concluir, portanto, utilizando-se das palavras de Marianna Chaves (on-line), que
O pai ou mãe afim possui, dentro destes temas tratados, tantos direitos ou deveres quanto os pais biológicos. E tudo se traduz basicamente em uma conjunção de duas palavrinhas: afinidade e socioafetividade. Essa conjugação faz da afinidade entre as crianças e os seus pais-afim um verdadeiro parentesco, de onde emergem diversas situações que merecem uma tutela digna e ajustada.
Em uma família nuclear, a função de cada pessoa já está bastante definida pelo critério biológico e “os atributos do poder familiar, como guarda, sustento e educação dos filhos, são comportamentos sociais bem definidos e conhecidos por todos”. (GRISARD FILHO, 2010, p.136).
Todavia, o mesmo não se verifica na família mosaico, em que, para a mesma prosperar, faz-se necessária, como dito outrora, uma readaptação de seus integrantes, para que se adéquem à nova situação, uma vez que “a realidade impõe novas formas de arranjos familiares, que provocam rearranjos internos, decorrentes da estrutura havida na família anterior, agora desfeita”. (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.200)
Tema de profunda relevância diz respeito ao comportamento do novo cônjuge ou companheiro frente aos filhos da relação anterior, se “como ‘um pai’, ‘um amigo’ ou ‘o outro adulto da casa’. Esta ambigüidade constitui a dificuldade mais significativa das famílias reconstituídas para obter a plena satisfação de seus integrantes” (GRISARD FILHO, 2010, p.136).
Para elucidar essa questão, é de bom alvitre, tratar sobre três casos distintos na família reconstituída, na qual a atuação dos pais afins está intimamente ligada à relação do ex-cônjuge com a prole: se o genitor é falecido; se é vivo, porém não tem convívio com o menor; ou se é vivo e participa ativamente de sua criação.
No caso do genitor ser morto, o pai afim pode preencher essa função, pelo fato de estar o cargo vago, devido ao falecimento do pai biológico, ou seja “o pai ou mãe afim cumprem um papel de substituição, in loco parentis” (GRISARD FILHO, 2010, p. 138).
Incide no mesmo resultado a situação em que o genitor, apesar de vivo, é totalmente ausente de suas funções parentais, não procurando saber do desenvolvimento da criança ou adolescente, podendo o pai ou mãe afim se encarregar de exercer o poder familiar.
O terceiro caso, por sua vez, compreende o fato do genitor não guardião se fazer presente na vida do filho. O novo cônjuge deve, então, posicionar-se complementando a criação, educação e desenvolvimento da criança. Entretanto, essa “complementaridade não significa mera acessoriedade, mas integração da função, suprimindo o paradigma da exclusividade do exercício parental” (GRISARD FILHO, 2010, p.138).
Grisard Filho (2010, p.139) ainda comenta a interferência que a situação econômica e social gera nas famílias recompostas. Voltando os olhos para o nível de envolvimento entre pais e filhos afins, explana o referido autor que quanto maior o poderio econômico dessa família, menor essa interação, e quanto menor o seu poder aquisitivo, mais íntimos são esses laços. Isso pode se justificar pela possibilidade da família mais favorecida economicamente vir a educar seus filhos em ambientes diversos, evitando com isso, possíveis atritos ou rivalidades decorrentes da convivência.
Diante do exposto, conclui-se que
A convivência sob um mesmo teto exige uma organização familiar comprometida com o bem estar comum. Para tanto, é necessária a imposição de uma ordem de hábitos e atividades, decidida e coordenada pelo genitor biológico e pelo pai ou mãe afim, aos quais os filhos afins não podem ficar alheios. Para isto, é necessário conferir ao pai ou mãe afim certa autoridade no âmbito doméstico, que nasce daquela convivência e da responsabilidade de todo adulto sobre menor a seu encargo. (GRISARD FILHO, 2010, p.139).
Caso de extrema controvérsia doutrinária e jurisprudencial diz respeito ao registro, pelo cônjuge do genitor, do filho advindo de uma relação anterior de seu companheiro. Ou seja, é o caso de o padrasto ou madrasta vir a adotar o enteado.
Esse desejo de registrar como seu o filho de outrem é decorrente de laços de afetividade e afinidade construídos pela convivência entre ambos, em que o pai afim, ao assumir no cotidiano o papel de responsável pelo menor, exercendo sobre ele a autoridade parental, sente a necessidade de reconhecer juridicamente como seu um filho não gerado por ele, pois “a verdadeira paternidade não é um fato da biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen” (VILELA apud FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.615).
A edição da Lei 11.924/09, conhecida como Lei Clodovil Hernandez, foi um avanço em relação à problemática registral do enteado pelo pai ou mãe afim. A referida Lei incluiu o §8° no artigo 57 da Lei 6.015/73, dispondo que o enteado ou a enteada poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.
Ou seja, pode-se fazer um acréscimo no nome do enteado com a devida concordância do padrasto ou madrasta, e é essa a palavra mais correta a ser entendida, acréscimo, pois nada mais é do que uma soma e não uma substituição do vínculo anterior.
Nesta mesma linha, ao discorrer sobre o assunto, afirma Lôbo (2011, p.97) que “a averbação não significa substituição ou supressão do sobrenome anterior, mas acréscimo, de modo a não ensejar dúvida sobre a antiga identidade da pessoa, para fins de eventuais responsabilidades”.
Todavia, a referida Lei faz referência, apenas, ao direito à mudança do nome, não contemplando a responsabilidade ulterior que venha a recair sobre os representantes da criança e do adolescente, isentando estes novos pais de qualquer função.
O Estatuto da Criança e do Adolescente inovou ao comentar sobre a possibilidade de adoção do pai ou mãe afim com relação à prole do companheiro. Determina o artigo 41, § 1º que, se um dos cônjuges ou concubinos, adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.
Foi, assim, por meio da adoção que essas famílias conseguiram legitimar direitos e deveres como herança, alimentos, dever de cuidado e amparo, entre tantos outros. No entanto, a adoção comum gera empecilhos para a família recomposta, pois retira – o judiciário – um dos pais registrais para dar lugar ao nome do novo pai. Ou seja, há uma substituição no registro da criança de um pai por outro, eliminando um vínculo para que outro seja instaurado. Não se vislumbra, entretanto, que esta seja a melhor forma de resolver tamanha problemática.
Uma possível solução para os diversos arranjos familiares encontrada pela doutrina foi o registro da multiparentalidade, o qual defende o direito de se registrar mais de um pai e/ou mãe na certidão da criança ou do adolescente.
Contradições surgem, portanto, com relação a que nome deve o filho portar, se dos pais genéticos, dos socioafetivos ou dos dois e de que modo ficará escrito na certidão a pluriparentalidade, visto que, além do espaço ser reservado para apenas um pai e uma mãe, há também singularidade quanto ao parentesco dos gêneros, contendo apenas as expressões “pai” e “mãe”. Porém, como elucida Teixeira e Rodrigues (2010, p.210-211),
O registro não pode ser um óbice para sua efetivação, considerando que sua função é refletir a verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de várias pessoas exercerem funções parentais na vida dos filhos, o registro deve espelhar esta realidade.
Em seguida, os referidos autores fazem uma analogia ao problema enfrentado pelos casais homossexuais no momento da adoção e explicita uma das possíveis soluções encontrada pelo Judiciário:
Problema semelhante pode ser constatado com a adoção por casais homoafetivos, de modo que muitos apontam como obstáculo à sua efetivação a operacionalização registral. Entretanto, julgados que têm deferido a adoção por pares homossexuais têm encontrado alternativas para superar esse obstáculo meramente formal, qual seja, “filho de”, o que dispensa a diferenciação dos genitores por gênero. (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010, p.211)
Apesar de parecidos, o registro da pluriparentalidade não se confunde com a adoção feita por casais homossexuais, pois, como diz Farias e Rosenvald (2011, p.623):
A pluriparentalidade não diz respeito à possibilidade de determinação de uma relação paterno ou materno-filial entre pessoas do mesmo sexo, como no exemplo do casal homoafetivo. Nesse caso, não há que se falar em multiparentalidade porque se estabelecerá o vínculo entre o filho e duas pessoas figurando como pais ou como mães. A tese da pluriparentalidade defende a multiplicidade de vínculos paternos e maternos.
No mesmo sentido, admitindo a pluralidade de vínculos maternos e/ou paternos outrora se posicionou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESENÇA DA RELAÇÃO DE SOCIOAFETIVIDADE. DETERMINAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO ATRAVÉS DO EXAME DE DNA. MANUTENÇÃO DO REGISTRO COM A DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE. TEORIA TRIDIMENSIONAL. Mesmo havendo pai registral, o filho tem o direito constitucional de buscar sua filiação biológica (CF, § 6º do art. 227), pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar. Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica. APELO PROVIDO (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de justiça, Apelação Cível n° 70029363918, 2009).
Defendendo a pluralidade de registro, Belmiro Pedro Welter, autor da teoria tridimensional no Direito de Família, por entender o ser humano como um sujeito complexo, alega que
Todos os efeitos jurídicos (alimentos, herança, poder/dever familiar, parentesco, guarda compartilhada, nome, visitas, paternidade/maternidade genética e afetiva e demais direitos existenciais), das duas paternidades, devem ser outorgadas ao ser humano, na medida em que a condição humana é tridimensional, genética e afetiva e ontológica (WELTER, on-line).
Através dessa tríade, biologia, afetividade e ontologia, o autor defende a ideia de que se deve reconhecer, simultaneamente, a paternidade biológica e a genética, uma vez que não há sobreposição entre elas. Assim, para Welter (on-line),
Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de TODOS os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana.
Para o referido autor, portanto, de modo conclusivo,
Em decorrência da tese da teoria tridimensional no direito de família, há necessidade premente da doutrina e da jurisprudência avançarem mais um pouco, não admitindo apenas a existência do mundo genético OU do mundo afetivo, mas, sim, conceder ao ser humano o direito ao mundo biológico E ao mundo afetivo, isso porque o ser humano é detentor de três mundos, genético-afetivo-ontológico, pelo que ele tem o direito: a) à sua singularidade, ao seu mundo real, em sua perspectiva verdadeira, a base sobre a qual ele se relaciona consigo mesmo (mundo ontológico); b) ao relacionamento com a família e a sociedade (mundo afetivo); c) na transmitindo às gerações, por exemplo, de sua compleição física, os gestos, a voz, a escrita, a origem da humanidade, a imagem corporal e, principalmente, de todas as partículas de seu DNA (mundo genético), para que haja a pacificação familiar e social, um dos maiores fundamentos do Estado Constitucional (WELTER, on-line).
A aceitação da teoria tridimensional no Direito de Família, a qual se apresenta como justa por não estabelecer hierarquização de filiação, desencadeia a execução da “multi-hereditariedade, na medida em que seria possível reclamar herança de todos os seus pais e de todas as suas mães. Isto sem esquecer a possibilidade de pleitear alimentos, acréscimo de sobrenome, vínculos de parentesco...” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p.622). O assunto é, pois, inovador e ainda carente de estudo da aplicação prática da referida teoria, atentando-se sempre para o melhor interesse da criança e do adolescente.
O ser humano, ao reeditar sua família por meio da recomposição de seu núcleo familiar, acrescentando um cônjuge ou companheiro em sua vida, em que um deles ou ambos levam filhos de relacionamentos anteriores para o novo lar, traz consigo a vontade de que este novo arranjo dê certo. Ocorre que, o simples querer, muitas vezes, é insuficiente para o êxito familiar, uma vez que há a necessidade de comprometimento de todos os integrantes desse arranjo e não há uma fórmula ou regra a ser seguida como maneira de se alcançar a frutificação dessa nova família.
Como brilhantemente lembrado por Albuquerque Júnior (2007, p.53-54),
Se a afetividade e convivência são elementos essencialmente fáticos, é natural cogitar da possibilidade de seu desaparecimento a posteriori. As vicissitudes das relações interpessoais, em sua imprevisibilidade, não raro contemplam situações de desentendimento, e o que era afeição se converte em indiferença ou desafeto. Também não são exíguos os exemplos em que cessa de todo a convivência, e os laços entre os indivíduos, que eram estreitos, tornam-se cada vez mais rarefeitos, até o virtual desaparecimento. Nada mais comum, nada mais humano.
Assim sendo, é natural o desfazimento de muitas dessas famílias recompostas, seja pela vontade dos cônjuges, seja por vontade alheia aos integrantes, como no caso da morte de um dos companheiros. É necessário, desta forma, que, inicialmente, ambos os cônjuges aceitem que o relacionamento chegou ao fim. Portanto, para Sarkas (in GROENINGA; PEREIRA, 2003, p.370),
Compreender e aceitar a separação, legitimar os motivos do outro para a ruptura e viver o sofrimento faz parte do reconhecimento da perda. A falta dessas condições explica, em parte, os comportamentos de repetição de casamentos que muitas pessoas entram. A necessidade de companheirismo, de parceria, é um dado real para as pessoas, não se discute. O que não é real, mas não menos presente também até hoje, é o mito de que o casamento irá satisfazer plenamente um e outro. A crença de que o amor salva tudo, que só ele realiza não passa de uma crença, mas a maioria dos casais dela compartilham enquanto a separação não vem. O processo de luto é a ponte que permite aos recém-separados transpor esse “abismo” e chegar sãos e salvos do outro lado.
Deve-se ater, também, ao fato de que pode essa família ter dado certo, desde que tenha surgido, tenha havido aprendizado mútuo, evolução dos indivíduos, educação, companheirismo, enfim, desde que tenha produzido bons laços afetivos. Entretanto, deu certo durante um espaço de tempo determinado, tendo desaparecidos os motivos que justificassem sua manutenção, pois, “namoro, casamento, romance, tem começo, meio e fim. Como tudo na vida.” (ARNALDO JABOR, on-line).
Separações, de modo geral, prejudicam o filho, por sentir ele afetividade pelo ex-cônjuge, devido ao tempo empenhado na construção desse vínculo. O fim do relacionamento, entretanto, não deve fazer com que seja esquecido o melhor interesse da criança ou adolescente, que não pode sofrer consequência ao seu desenvolvimento com essa ruptura.
Por esta razão, para Albuquerque Júnior (2007, p.72),
Se a convivência, a afetividade os ambas vêm a ser interrompidas por fatos posteriores, não há a cessação da relação de filiação socioafetiva, por uma razão simples: a cláusula geral de tutela da personalidade humana proíbe tal dissolução, que significaria retirar ao indivíduo, por vontade de outrem (e por vezes visando a um interesse meramente patrimonial), um dos mais relevantes fatores de construção de sua identidade própria e de definição de sua personalidade. Constitui-se, pois, para todos os efeitos, uma relação plena de filiação, a qual, para adequada proteção da pessoa pelo ordenamento, não pode se sujeitar a incertezas ou a instabilidades emocionais dos sujeitos envolvidos.
Assim sendo, com base no melhor interesse da criança, o pai ou mãe afim tem, por exemplo, o direito de visita, assim como o de pleitear a guarda compartilhada se esta for a melhor solução para o desenvolvimento do filho.
Ainda, têm também os pais afins deveres, como exemplo, o de prestar alimentos, caso o filho afim necessite. Essa obrigação, entretanto, não surge por meio do vínculo da afinidade ou pelo fato de ter ocorrido um convívio diário, porque “a coabitação, por si só, não faz nascer uma vocação alimentar entre os membros de um lar, pois o legislador limitou as pessoas reciprocamente obrigadas a isto”. (GRISARD FILHO, 2010, p.160). O que gera esse dever é a socioafetividade entre ambos, com respaldo no princípio da solidariedade, explicado por Grisard Filho (2010, p.168):
Diante do princípio da solidariedade, de fundo constitucional, é possível a concessão de alimentos entre pais e filhos afins, porque a relação familiar que existe entre eles acha-se amparada por lei (CC, arts. 1.593 e 1.595).
Diante do explicitado, utilizando-se das palavras do supramencionado autor, pode-se concluir que:
Apesar da dissolução do vínculo conjugal por morte ou divórcio, julga-se razoável que o pai e a mãe afim continuem a visitar e a comunicar-se com seus filhos e filhas afins, menos prejudicial a estes pelo luto originado na ruptura do casal, bem assim de seus meio-irmãos. Considera-se justo e importante que a mãe afim continue a criação dos filhos de seu ex-cônjuge, se resultar benéfico para eles. O dissenso sobre estas questões, por ocasião da família biológica, resultará em demanda judicial, que o juiz, com a máxima discricionariedade e no interesse superior do menor, decidirá. (GRISARD FILHO, 2010, p.105).
Os pais e mães afins têm nas famílias recompostas uma importância ímpar para a prosperidade desse arranjo familiar. Sua participação ativa no novo lar e na vida do menor é fundamental. E não deve ser desconsiderada.
O artigo 1.593 do código civil ao tratar de parentesco, deu visibilidade para se enxergar uma nova filiação ao afirmar que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consaguinidade ou de outra origem. Ao citar o legislador uma outra origem, faz ele menção a socioafetividade, colocando ela em paralelo com a consaguinidade, dando com isso, sua devida importância.
Muitas famílias da atualidade, não seguem mais os parâmetros da família matrimonial de tempos passados. Não há também, a necessidade de se copiar esses antigos costumes. Questão de bastante relevância na atualidade é se a família está cumprindo com o seu fim, independentemente de seu modo de constituição, que é propiciar um ambiente adequado para o desenvolvimento de seus integrantes com respeito e dignidade.
Para isso, são de suma importância o reconhecimento e a regularização pelo legislativo, das funções dos pais afins no âmbito familiar. Alocando, esses novos integrantes de famílias reconstituídas, em um lugar de colaboração e legitimidade na criação do filho afim.
É notória, a necessidade de se alterar o artigo 1.636 do CC. Ao comentar sobre a autoridade parental dos pais biológicos após o estabelecimento de novas núpcias, retirando de maneira expressa, qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro na educação do menor. O supracitado artigo comete total desvelo quanto ao melhor interesse da criança ou adolescente, por não abarcar a influência do pai afim.
Tratar a filiação, considerando apenas o lado biológico, seria limitar a afetividade, como se fosse praticável exigir do ser humano que amasse um número restrito de pessoas. Levando a acreditar na possibilidade de se aprisionar o envolvimento emocional de um indivíduo a outro.
Havendo então sobre a mesma criança mais de um adulto por gênero, se sentindo no papel de responsável e exercendo autoridade em sua criação e educação, deve-se reconhecer direitos e deveres a todos os indivíduos dessa relação. Uma vez que, ter um pai é melhor do que não ter nenhum e, por conseguinte, ter dois pais é mais vantajoso do que ter apenas um.
Não delegar autoridade parental às famílias recompostas é o mesmo que economizar afeto, como se ele fosse limitado em sua fonte a uma quantidade já definida quanto a sua produção.
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Bacharel em direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Fernando Costa Santos. Socioafetividade em famílias recompostas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50445/socioafetividade-em-familias-recompostas. Acesso em: 12 nov 2024.
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