RESUMO: O presente estudo pretende explanar alguns dos aspectos inerentes ao princípio constitucional do não confisco, sem almejar, contudo, exaurir o tema, analisando-se, prima facie, a definição de tributo, discorrendo, em seguida, sucintamente acerca das limitações constitucionais do poder de tributar e o seu aspecto fundamental no ordenamento jurídico e, por derradeiro, examinar especificamente o princípio que veda a utilização de tributo com efeito de confisco, declinando, ainda, alguns julgados do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.
Palavras-chave: Tributo. Limitação constitucional ao poder de tributar. Princípio do não-confisco.
ABSTRACT: The present study aims to explain some of the aspects inherent to the constitutional principle of the confiscation, not without aim, however exhaust the subject, analyzing, prima facie, the tribute of definition, sketching, then briefly about the constitutional limitations of the power to tax and your substantial aspect of the legal system and, for ultimate, examine specifically the principle that prohibits the use of tribute with effect from confiscation, and, to this end, some judged the Supreme Court about the quaestio.
Keyword: Tribute. Constitutional limitation to the power to tax. Principle of non-confiscation.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho propõe-se a comentar alguns dos aspectos relativos ao princípio do não confisco, delimitando seu âmbito de incidência no ordenamento jurídico pátrio e os pressupostos axiológicos que fundamentam a sua existência e lhe confere sentido próprio, e com o auxílio da doutrina e da jurisprudência, sobretudo com inarredável observância dos preceitos insertos na Carta Cidadã, empreender um trabalho hermenêutico no tocante a sua aplicabilidade prática na ordem jurídica vigente.
O mandamento principiológico em tela consubstancia a limitação contida no preceptivo normativo contido no artigo 150, inciso IV, da Carta Fundamental, que estabelece um parâmetro ao exercício do poder impositivo pelo Estado, vedando-lhe estabelecer, no exercício da competência Constitucional que lhe foi outorgada, tributos cujos efeitos extrapolem a finalidade social que os presidiram e adquiram características nitidamente confiscatórias.
Deflui-se, do exposto, o aspecto notadamente fundamental do princípio em comento, pois constitui irretorquível desdobramento dos direitos e garantias fundamentais, gozando da mesma força no plano eficacial, a vista do que estabelece o §1º do artigo 5º do Diploma Magno, e integrando o núcleo intangível a que alude o artigo 60, §4º, inciso IV.
O princípio do não confisco está situado dentro da Seção II (das limitações do poder de tributar), Capítulo I (Do Sistema Tributário Nacional), Título VI (Da Tributação e do Orçamento), da Constituição da República, onde, o artigo 150, inciso IV, preceitua que, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao cidadão/contribuinte, é vedado aos entes políticos, no exercício de sua competência tributária, utilizar tributos com efeito de confisco[1].
Nesse diapasão, delimitado o objeto de estudo, algumas questões, neste contexto introdutório, impõem sejam consideradas. O Direito Tributário, em sua roupagem contemporânea, reveste-se deonticamente dos pressupostos humanísticos que caracterizam o substrato ontológico e axiológico da Constituição Federal de 1988, constituindo inolvidável instrumento de garantia da dignidade da pessoa humana e de efetivação dos direitos e garantias fundamentais[2].
A Carta Fundamental, nesse particular, institucionaliza um modelo Democrático de Estado Constitucional de Direito, em que se pretende, precisamente, a transformação do imaginário liberal-individualista e sua substituição progressiva por uma organização de característica notadamente social, onde haja efetiva intervenção do Estado no domínio econômico de modo a viabilizar a realização e a implantação de níveis superiores de igualdade e liberdade, promovendo a redistribuição de riquezas e garantindo, aos menos favorecidos, o acesso aos bens de natureza subsistencial para garantir a manutenção de uma vida digna (STRECK, 2009).
Por esta razão, dentre outras que podem ser aferidas, é que no artigo 1º do Texto Magno erigiu como fundamentos da República Federativa do Brasil, à cidadania, à dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, estabelecendo-se, ainda, como seus objetivos (artigo 3º), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, de modo a viabilizar o desenvolvimento nacional, erradicando-se a pobreza e a marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Tendo essas finalidades em vista, o constituinte, ao outorgar competência tributária aos entes políticos, também sacramentou limitações em igual hierarquia normativa com o escopo de conformar o exercício dessa prerrogativa a determinados balizamentos de observância imperativa. Além de outras garantias que podem ser depreendidas do texto Constitucional, sobressaltam-se aquelas contidas na Seção II, do Capítulo I, do Título VI, sob a denominação “Das limitações do poder de tributar”, que traceja os mandamentos sobre os quais esse poder-dever deve ser exercitado.
Parte-se, portanto, da premissa de que o Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente atrelado à realização dos direitos e garantias fundamentais emanados do Texto Supremo. E este, por sua vez, dentre outras garantias que estabelece, consagra, em seu artigo 150, IV, o princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco, que será objeto de análise no presente estudo.
Esclareça-se, a priori, que a problemática do tema reside na ausência de uma definição clara e objetiva do que vem a ser tributo com efeito de confisco. A Constituição não estabeleceu um critério quantitativamente aferível para se constatar quando uma determinada exação extrapola as finalidades sociais que ordenaram a sua instituição e/ou modificação. Essa verificação, ao que se evidencia, inicialmente é direcionada ao legislador[3], que deverá observá-la no desempenho de sua atividade legiferante. Estende-se, em um segundo plano, aos intérpretes, como objeto de seu labor judicante, que examinaram, em cada caso concreto, a compatibilidade de um determinado ato normativo em relação aos preceitos encetados na Constituição Federal.
Vale esclarecer, nesse passo, que o estudo do tema carece de melhor aprofundamento pela doutrina e jurisprudência. Há pouco material disponível abordando especificamente o princípio em liça. Encontra-se, com algumas exceções, de forma esparsa dentro dos manuais e cursos voltados a disciplina de Direito Tributário, havendo um ou outro autor, que ao abordá-lo, deu-lhe a devida atenção.
No presente estudo, onde foram realizadas pesquisas doutrinárias, consultados alguns periódicos na rede mundial de computadores e analisados alguns julgamentos do STF sobre a matéria, pode-se observar que um ponto constitui lugar-comum entre eles, a saber: o princípio que veda a utilização de tributos com efeitos confiscatórios é um mandamento aberto que possui conteúdo indeterminado. Nesse vislumbre, corrobora o exposto o fato de a Constituição não estabelecer diretrizes seguras para se verificar um limite a partir do qual uma determinada exação adquire característica confiscatória, aniquilando, total ou parcialmente, o patrimônio do contribuinte.
Inexiste no direito posto ato normativo que objetivamente regulamente a matéria, tracejando os limites, excedidos os quais, o tributo desvincula-se de sua finalidade social. Incumbe, portanto, ao hermeneuta, conforme alhures assinalado, extrair, diante do caso concreto, o sentido mais consentâneo da norma à luz da Carta Fundamental e delinear o seu respectivo alcance no ordenamento jurídico vigente.
O presente estudo, portanto, pretende explanar alguns dos aspectos inerentes à matéria, sem almejar, contudo, exauri-la, analisando-se, prima facie, a definição de tributo, esboçando sucintamente sobre as limitações constitucionais do poder de tributar e o seu aspecto fundamental no ordenamento jurídico e, por derradeiro, examinar o princípio que veda a utilização de tributo com efeito de confisco, declinando, para tanto, alguns julgados do Supremo Tribunal Federal nesse sentido.
2. TRIBUTO
A definição normativa de tributo encontra-se exteriorizada no artigo 3º do Código Tributário Nacional, recepcionado pela Constituição de 1988, o qual dispõe que “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção por ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Luciano Amaro (2016, p. 38), em seu curso de Direito Tributário brasileiro, examinando as noções imanentes a este vocábulo, elucidou que:
Tributo, como prestação pecuniária ou em bens, arrecada pelo Estado ou pelo Monarca, com vistas a atender os gastos públicos e às despesas da coroa, é uma noção que se perde no tempo e que abrangeu desde os pagamentos, em dinheiro ou bens, exigidos pelos vencedores aos povos vencidos (à semelhança das modernas indenizações de guerra) até a cobrança perante os próprios súditos, ora sob o disfarce de donativos, ajudas, contribuições para o soberano, ora como um dever ou obrigação. No Estado de Direito, a dívida de tributo estruturou-se como uma relação jurídica, em que a imposição é estritamente regrada pela lei, o tributo é uma prestação que deve ser exigida nos termos previamente definidos pela lei, contribuindo dessa forma os indivíduos para o custeio das despesas coletivas (que, atualmente, não são apenas as do próprio Estado, mas também das entidades de fins públicos).
Nessa linha epistemológica, obtempera o saudoso professor Marcus Cláudio Acquaviva (1994, p. 1236), que os tributos representam um:
Ônus compulsório, criado e gerido pelo Estado, visando ao custeio de serviços públicos. O tributo é Gênero, de que são espécies o imposto, a taxa e a contribuição de melhoria. O fundamento jurídico do tributo é o poder fiscal do Estado, e seu elemento essencial é a coercibilidade, vale dizer, prerrogativa legal de o Estado compelir o contribuinte ao pagamento da prestação.
Nesse particular, é imperioso registrar - muito embora essa questão não constitua objeto de análise específica no presente estudo - que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RE 138.284, rel. Carlos Veloso e ADC-1/DF) já pacificou o entendimento de que os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais integram as espécies tributárias[4]. Kiyoshi Harada (2011, p. 311) reforça advertindo que o posicionamento adotado apresentou-se, na espécie, como o mais consentâneo (no plano analítico do conhecimento), visto que a questão deve ser examinada à Luz do Sistema Tributário Nacional vigente e interpretada sistematicamente sob a égide normativa da Constituição Federal, que disciplina expressamente as aludidas exações, o que, por conseguinte, não pode ser olvidado pela comunidade jurídica.
Retornando a análise do conceito de tributo, preleciona Kiyoshi Harada (2011, p. 308) que a sua definição não é uniforme. Entretanto, vislumbrando que um de seus elementos característicos é a coercitividade, sentenciou que “os tributos são prestações pecuniárias compulsórias, que o Estado exige de seus súditos em virtude de seu poder de império [...]”.
No entendimento de Geraldo Ataliba (2004, p. 53), tributo constitui:
[...] a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, posta a cargo de certas pessoas, de levar dinheiros aos cofres públicos. É o nome que indica a relação jurídica que se constitui no núcleo do direito tributário, já que decorre daquele mandamento legal capital, que impõe o comportamento mencionado.
No mesmo sentido, quanto à definição de tributo, preleciona Leandro Paulsen (2017, p. 33) que:
Cuida-se de prestação em dinheiro exigida compulsoriamente, pelos entes políticos ou por outras pessoas jurídicas de direito público, de pessoas físicas ou jurídicas, com ou sem promessa de devolução, forte na ocorrência de situação estabelecida por lei que revele sua capacidade contributiva ou que consubstancie atividade estatal a elas diretamente relacionada, com vista à obtenção de recursos para o financiamento geral do Estado, para o financiamento de fins específicos realizados e promovidos pelo próprio Estado ou por terceiros em prol do interesse público.
Dos aforismos expostos, conclui-se que tributo, como prestação pecuniária compulsória, representa a cifra exigida pelos entes políticos de seus contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, em razão da prática, no mundo fenomênico, de fato descrito em lei como passível de incidência tributária, para consecução de fim a seu encargo, almejando, assim, o bem-estar coletivo.
Para tanto, nos termos do artigo 145 da Constituição, os entes políticos, para a obtenção de recursos para financiar as suas atividades e outros fins específicos, poderão instituir impostos[5], taxas[6] e contribuição de melhorias[7], bem como, na linha da classificação pentapartida, os empréstimos compulsórios, previsto no artigo 148, e as contribuições do artigo 149, ambos do Diploma Magno.
Vê-se, portanto, que as pessoas jurídicas de direito constitucional interno gozam de prerrogativas para a instituição de tributos, cuja finalidade, em síntese, é abastecer os cofres públicos com o escopo de viabilizar a manutenção de suas atividades. Entretanto, na linha do que preconiza Dirley da Cunha Júnior (2015, p. 1000), como toda competência, a competência tributária é limitada. Isto implica afirma, nas palavras do saudoso doutrinador:
[...] que o seu exercício só será legítimo se protagonizado dentro dos limites do Texto Supremo. A competência tributária encontra-se limitada por princípios constitucionais (como, a igualdade, a capacidade contributiva, a legalidade, a segurança jurídica, a anterioridade, a irretroatividade e outros) e regras constitucionais (sobretudo aquelas que repartem a própria competência), uma vez que não pode uma pessoa política, a pretexto de exercer sua competência tributária, invadir a competência de outra, como, v.g., a União instituir impostos do Estado ou do Município e vice-versa. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 1000)
Observa-se, destarte, que a competência tributária é exercida nos lindes estabelecidos na Constituição, consoante se infere de seus artigos 150 a 152, os quais estabelecem limitações objetivamente atreladas ao poder de tributar[8]. Essas limitações, portanto, no escólio de Luciano Amaro (2016, p. 129), não representam obstáculos ou vedações, senão que concorrem para fixar o que pode ser tributado e como pode sê-lo.
3. DAS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR COMO GARANTIA FUNDAMENTAL DO CONTRIBUINTE
Depreende-se, do articulado até o momento, que os tributos são criados em conformidade com a competência constitucionalmente delimitada para cada ente político – União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Registrou-se, ainda, que essa aptidão não é exercida ao alvedrio das respectivas pessoas jurídicas constitucionais de direito público interno. A Constituição, deste modo, além de estabelecer tanto quanto o possível a esfera de atuação de cada ente político, também tracejou parâmetros normativos sobre os quais o exercício dessa prerrogativa deve ser erigido, resguardando-se, por conseguinte, “[...] os valores por ela reputados relevantes, com atenção especial para os direitos e garantias fundamentais”. (AMARO, 2016, p. 128)
Oportuno, a propósito, assinalar que o Estado existe para a consecução do bem-estar coletivo. E por este motivo a Constituição lhe confere diretamente um conjunto de prerrogativas que lhe garantem uma posição privilegiada nas relações jurídicas face ao particular. Desse desiderato, o princípio da prevalência do interesse público sobre o privado é genuína emanação dessa predominância, constituindo princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade, pressuposto lógico de sua existência e do convívio social (MELO, 2015, p. 99), o que justifica, nesse quadrante, no âmbito do poder impositivo do Estado, a possibilidade de exigência de tributos como forma de garantia e manutenção do interesse público[9].
Em que pese o poder-dever de impor e exigir tributos constituir expressão desta supremacia, considerando-se a função institucional a cargo do Estado, de garantia do bem-estar coletivo, vale destacar, no escólio de Ricardo Alexandre (2008, p. 94), ser é inegável que:
[...] o Estado possui um poder de grande amplitude, mas esse poder não é ilimitado. A relação jurídico-tributária não é meramente uma relação de poder, pois, como toda relação jurídica, é balizada pelo direito e, em face da interferência que o poder de tributar gera sobre o direito de propriedade, o legislador constituinte originário resolveu traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício de tal poder diretamente na Constituição Federal”.[10]
Nesse sentido, conforme ensinamento de Luciano Amaro (2016, p. 132), “O exercício da competência tributária faz-se, como vimos, dentro de balizamentos materiais e formais[11], que, didaticamente, são estudados como limitações constitucionais do poder de tributar”.
No entendimento de Hugo de Brito Machado (2005, p. 272-273):
Em sentido amplo, é possível entender-se como limitação ao poder de tributar toda e qualquer restrição imposta pelo sistema jurídico às entidades dotadas desse poder. Aliás, toda atribuição de competência implica necessariamente limitação. A descrição da competência atribuída, seu desenho, estabelece os seus limites. Em sentido restrito, entende-se como limitações do poder de tributar o conjunto de regras estabelecidas pela Constituição Federal, em seus arts. 150 a 152, nas quais residem princípios fundamentais do Direito Constitucional Tributário [...].
Leandro Paulsen (2017, p. 128), discorrendo sobre o tema, sentenciou nos seguintes termos:
As limitações que se apresentam como garantias do contribuinte (legalidade, isonomia, irretroatividade, anterioridade e vedação do confisco), como concretização de outros direitos e garantias individuais (imunidade dos livros e dos templos) ou como instrumentos para a preservação da forma federativa de Estado (imunidade recíproca, vedação da isenção heterônoma e de distinção tributária em razão da procedência ou origem, bem como de distinção da tributação federal em favor de determinado ente federado), constituem cláusulas pétreas, aplicando-se-lhes o art. 60, § 4o, da CF. [...] Assim, são insuscetíveis de supressão ou de excepcionalização mesmo por Emenda Constitucional.
Sobressai, portanto, que o complexo normativo (princípios e regras) estatuído na Constituição, cujas disposições delimitam e subvencionam aos seus parâmetros o exercício da competência tributária, informam e conformam o poder-dever de tributar a limites intransponíveis, constitui inegável garantia do cidadão/contribuinte em relação à voracidade fiscal do Estado. Logo, exercitada essa competência à revelia dessas fronteiras, o ato normativo dele decorrente padecerá de insuperável vício de inconstitucionalidade. Esses instrumentos demarcadores, consoante referido alhures, possui residência nos artigos 150 a 152 da Carta Fundamental[12].
Ademais, ressalta o Ministro Alexandre de Moraes (2016, p. 1381) que:
[...] a limitação constitucional ao exercício estatal do poder de tributar é essencial para a garantia da segurança jurídica e dos direitos individuais, em especial o de propriedade, evitando abusos e arbitrariedades e permitindo uma relação respeitosa entre o fisco e o contribuinte.
A Constituição, ao que se evidencia, sacramenta as principais limitações ao exercício da competência tributária no vislumbre a delimitar o âmbito de atuação dos entes políticos, justapondo, aos seus interesses (no caso, extrair do patrimônio privado a sua fonte de existência), garantias individuais e coletivas como ponto de partida para o exercício das prerrogativas lhes outorgadas. Mas, não necessariamente estabelece todas. Isso é facilmente percebido através de singela leitura de seu artigo 150, donde sobressai de forma cristalina que as garantias que estatui existem sem prejuízos de outras (...) asseguradas ao contribuinte (ALEXANDRE, 2008, p. 94).
Dentre as limitações estabelecidas pela Constituição Federal ao poder de tributar, encontra-se a vedação de estabelecimento de tributos com efeitos confiscatórios. Esse princípio, ao lado da capacidade contributiva, constitui “mandamento nuclear”[13] da sistemática tributária, e sua violação representa insurgência contra todo o sistema jurídico-tributário, sobretudo em se considerando que a desatenção a esse princípio (do não confisco) representa subversão dos valores fundamentais estatuídos na Carta Republicana, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra (MELLO, 2015, p. 54).
4. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DE UTILIZAÇÃO DE TRIBUTOS COM EFEITOS CONFISCATÓRIOS
A Constituição Federal, na seção relativa às limitações constituições do poder de tributar, albergou, em seu artigo 150, inciso IV, o mandamento que veda o estabelecimento tributos com efeitos de confisco. Esse princípio encontra seu fundamento axiológico no direito de propriedade. É norma, como se evidencia, primacialmente dirigida ao legislador, o qual, ao instituir tributo ou majorá-lo, deverá fazê-lo (ou graduá-lo) sem, contudo, expropriar indevidamente o patrimônio do contribuinte.
Num primeiro sentido, entende-se por tributo confiscatório, a linha do que preconiza Aliomar Baleeiro (2010, p. 900-901), aquele que “absorve parte considerável do valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem exercício de atividade lícita e moral”. Leandro Paulsen (2017, p. 143) lembra que se costuma identificar o confisco com a tributação excessivamente onerosa, insuportável, não razoável, que absorve a própria fonte da tributação.
Segundo Hugo de Brito Machado (2005, p. 280):
Tributo com efeito de confisco é tributo que, por ser excessivamente oneroso, seja sentido como penalidade. É que o tributo, sendo instrumento pelo qual o Estado obtém os meios financeiros de que necessita para o desempenho de suas atividades, não pode ser utilizado para destruir a fonte desses recursos.
Como anotou Luciano Amaro (2016, p. 169), a Constituição de 1988 é infensa à utilização de tributos com efeitos confiscatórios. Confiscar, consoante elucida, “é tomar para o fisco, desapossar alguém de seus bens em proveito do Estado”. Confisco propriamente dito, não se confunde com tributos cujos efeitos extrapolam a sua finalidade e venham a assumir características confiscatórias.
Deve ser o observado, nesse sentido, que a Carta Cidadã garante (como um direito inerente a personalidade humana) o direito de propriedade em seus artigos 5º, inciso XII e 170, inciso II, subordinando-o, contudo, à sua finalidade social (artigos 5º, XXIII e 170, inciso III). Nesse viés, é possível vislumbrar que a Constituição, ao flexibilizar o direito de propriedade estabelecendo a exigência de prévia e justa indenização nos casos em que autoriza a desapropriação[14], por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social (artigo 5º, inciso XXIV), ou, ainda, quando o imóvel urbano ou rural não atenda aos reclamos da função social, nos termos do artigo 182, §§ 3º e 4º e artigo 184, deixa entrever a sua aversão ao confisco, que é a expropriação patrimonial pelo Estado sem justa e prévia indenização.
Traz a lume, Misabel Abreu Machado Derzi (2010, p. 910), em nota de atualização a inestimável obra de Aliomar Baleeiro[15], “[...] que a perda de bens, regulada em lei, é modalidade de pena expressamente autorizada na Constituição, somente aplicável mediante o devido processo legal (artigo 5º, XLVI e LIV)”. Mesmo assim, segundo a precitada autora, “[...] no Direito Constitucional Moderno, pode-se afirmar que o confisco propriamente dito, é amplamente vedado [...]”, como regra.
Isso não obsta, como lembra SANTI-ROMANO (1977, p. 169), que o confisco incida sobre os bens relacionados à prática de crimes e se estenda aos frutos dele provenientes, bem como do enriquecimento ilícito decorrente de dano ao Erário, a exemplo, na ordem jurídica vigente, do disposto no artigo 243 da Constituição Federal[16], cuja prescrição estabelece a chamada “desapropriação confiscatória”[17]. Mesmo assim, para que o Estado possa confiscar o patrimônio que se enquadre nas hipóteses ventiladas, dever-se-á observar a devido processo legal.
Nesse sentido, Derzi (2010, p. 911) sentencia que:
Com mais evidência se deduz que a inteligência do disposto no art. 150, IV, vedando utilizar tributo com efeito de confisco, parte, necessariamente, da premissa de que tributo, não sendo sanção de ato ilícito, não pode desencadear consequências tão ou mais gravosas de que as sanções penais.
Infere-se, portanto, que a vedação ao confisco, como limitação constitucional do poder de tributar, cuja definição normativa encontra residência no artigo 150, IV, da Constituição, parte do pressuposto de que o tributo, não sendo sanção por ato ilícito, não pode implicar em sanção mais gravosa de que as sanções penais, segundo a inteligência da mencionada autora.
Ademais, a definição de tributo confiscatório não se encontra ínsita na própria estrutura lógica da norma, nem das multas e penalidades pecuniárias a ela cominadas. A jurisprudência que vem sendo perfilhada em relação à matéria tem apreciado o caso concreto, onde se questiona o caráter confiscatório de determinada norma, tendo como parâmetro a plena proteção e garantia do direito de propriedade (DERZI, 2010). O ponto que distingue o tributo, as multas, as penalidades, o direito de propriedade e o confisco são bem tênues, entretanto, não se confundem, cada qual possui a sua esfera de significação individuada e com regulamentação própria pelo ordenamento jurídico, inclusive com espectro de incidência pré-definidos.
Não obstante isso, o que o artigo 150, inciso III, da Constituição, exterioriza é a vedação de que os tributos, que constituem a fonte de entrada de recursos nos cofres públicos por excelência, cuja finalidade primacial é financiar os serviços públicos tendo por escopo a garantia do bem-estar social, aniquilem a sua própria base de existência com exações desarrazoadas, que transcendam o limite de uma tributação tida como proporcional em relação às forças econômicas do contribuinte, e assumam, na prática, feição confiscatória, consubstanciando em instrumento de absorção, pelo Estado, do patrimônio dos contribuintes.
Aliomar Baleeiro (2010, p. 900-904) ressaltou que “[...] o tributo confiscatório repugna à tradição constitucional brasileira [...]” e, comentando a construção jurisprudencial do sistema constitucional americano, anotou que “[...] o imposto deve ser ‘reasonably apportioned’, embora possa atender, como poder de polícia, a objetivos extrafiscais deduzidos da cláusula ‘provide... general welfare of the United States’”. E, ao invés da tese de Marshall[18], trouxe à luz Holmes:
Eu concordaria, plenamente, ressalvado o efeito de algumas opiniões do Chief justice Marshall, que culminaram ou, melhor, se fundaram em sua proposição, frequentemente citada, de que o poder de tributar implica o de destruir. Naquela época, não era reconhecido, como agora, que a maioria das distinções legais são distinções de graduação. Se os Estados tivessem algum poder, assumia-se que eles tinham todo o poder, e que a alternativa necessária era denegá-lo completamente. Mas esta Corte, que tantas vezes frustrou a tentativa de tributar de certos modos, pode frustrar qualquer uma tentativa de discriminar ou de cometer outros abusos sem abolir, totalmente, o poder de tributar. O poder de tributar não implicará poder de destruir, enquanto existir essa corte. (Panhadle Oil Co. vs. Knox – 277 (1928) 223)
Misabel Abreu Machado Derzi (2010, p. 914), nesse vislumbre, consignou que, com isso, Aliomar Baleeiro, ponderou efetivamente a questão. “Tantos as multas e penalidades pecuniárias, como os tributos (em sentido estrito) devem ser proporcionais, razoavelmente quantificados”. E Holmes, consoante se infere acima, assinalou que as “distinções legais são distinções de graduação”, o que, a seu turno, não implica na supressão do poder de tributar.
Anotou-se, portanto, que o poder de tributar não corresponde ao poder de destruir. Lembra Inocêncio Mártires Coelho (2009, 1399), com supedâneo nos ensinamentos de Geraldo Ataliba (1996, p. 21), que o princípio que veda a utilização de tributos com efeitos confiscatórios explicita, dentre outras coisas, que as exações devem ser compatíveis com a sua finalidade precípua:
[...] que é produzir receita pública [...] sem que essa expropriação, no entanto, implique exigir do contribuinte mais do que, efetivamente, ele pode pagar, ou seja, nada além do justo e do razoável, do que é adequado, necessário e proporcional em sentido estrito, conceitos que são vagos, é verdade, mas nem por isso insuscetível de concretização à luz dos critérios da moderna hermenêutica constitucional. (COELHO, 2009, p. 1399)
Nessa esteira, Luciano Amaro (2016, p. 169) ponderou que:
[...] não se quer, com a vedação do confisco, outorgar à propriedade uma proteção absoluta contra a incidência do tributo, o que anularia totalmente o poder de tributar. O que se objetiva é evitar que, por meio do tributo, O Estado anule a riqueza privada. Vê-se, pois, que o princípio atua em conjunto com a capacidade contributiva, que também visa preservar a capacidade econômica do indivíduo.
Observa-se, portanto, que o mandamento que veda o uso de tributos com efeitos confiscatórios não constitui um obstáculo ao poder-dever de tributar, senão que o conforma e delimita sem âmbito de incidência com o escopo de preservar a parcela necessária à sobrevivência do patrimônio privado[19].
Em que pese a importância da vedação ao confisco para a relação jurídico-tributária contemporânea, vê-se, pois, que o mesmo ainda não possui as suas diretrizes objetivamente definidas no ordenamento jurídico pátrio, ficando, em vista disso, ao encargo do intérprete a construção de modo circunstancial de seu conteúdo à vista do caso concreto. Nesse mesmo sentido, ALEXANDRINO (2007, p. 116-117), que obtempera que “o conceito de confisco é indeterminado”. Afirmando, ainda, que “não existe definição de limite a partir do qual se ultrapassa o que seria uma tributação pesada e passa-se a ter uma tributação confiscatória”.
Há, nesse sentido, uma dificuldade em se encontrar parâmetros normativos para se aferir se em um determinado caso o tributo é ou não confiscatório. O artigo 150, IV, da Constituição, foi redigido intencionalmente pelo constituinte de modo aberto e vago, de forma a transferir para o intérprete o papel de complementar o sentido da norma[20] (BARROSO, 2015, p. 351). Gilmar Ferreira Mendes (1998, p. 40) lembra que um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido, no caso os contribuintes que devem se solidarizar com a manutenção do interesse coletivo mediante o pagamento compulsório de tributos, e os objetivos perseguidos pelo legislador ao instituir determinada exação.
Ricardo Lobo Torres (1999, p. 58) perfilhou esse mesmo entendimento asseverando que:
A vedação de tributo confiscatório, que erige o ‘status negativus libertatis’, se expressa em cláusula aberta ou conceito indeterminado. Inexiste possibilidade prévia de fixar os limites quantitativos para a cobrança, além dos quais se caracterizaria o confisco, cabendo ao critério prudente do juiz tal aferição, que deverá se pautar pela razoabilidade. A exceção deu-se na Argentina, onde a jurisprudência, em certa época, fixou em 33% o limite máximo de incidência tributária não-confiscatória”.
Vê-se, pois, que no ordenamento jurídico pátrio não existem critérios objetivos para se aferir previamente quais os limites quantitativos de determinada exação seria considerada razoável, proporcional e não confiscatória, a exemplo do que ocorre na Argentina, que em determinado época fixou em 33% o limite máximo de incidência tributária não confiscatória. Em nossa ordem jurídica, porém, o conceito aberto da norma exige dos militantes do campo jurídico que desenvolvam o seu conteúdo de maneira que melhor reflita o regime democrático e os postulados da justiça social.
O Supremo Tribunal Federal, em que pese a indeterminabilidade e o alto grau de abstração do princípio em liça, tem se posicionado de forma profícua sobre a questão, sendo certo que a sua aplicabilidade incide tanto sobre os tributos quanto às multas[21]. No que interessa, vale colacionar parte do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello na ADinMC 2.010-DF[22], in verbis:
A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade
Outra questão, de igual relevância, balizada pelo julgado anterior, é que o efeito confiscatório deve ser identificado levando em consideração o total da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído[23].
Às multas tributárias, por sua vez, constituem instrumentos destinados a sancionar os inadimplentes e que não se confundem com os tributos propriamente ditos, pois representam uma sanção a aqueles que inobservam o cumprimento das obrigações tributárias, seja da obrigação principal (que é o pagamento do tributo), quanto das obrigações acessórias.
Vale assinalar que, nesse ponto, as turmas do STF não são unânimes. Registre o entendimento adotado no RE 754.554-GO, examinado pela segunda turma do STF, que entendeu pela inconstitucionalidade da multa de 25% sobre o valor da operação prevista no art. 71, VII, da Lei 11.651 do Estado de Goiás. Nesse caso não se analisou a conduta punida com a multa em espeque, cingiu-se a examinar a questão unicamente à luz do princípio do não confisco, de modo que às multas, em vista desta limitação ao poder de tributar, não pode alcançar valores escorchantes, que absorvam, no dizer de Aliomar Baleeiro (2010, p. 901), parte considerável do valor da propriedade, aniquilem a empresa ou impeçam o exercício de atividade lícita e moral.
Registre-se, de outro lado, o entendimento adotado, quanto às multas tributárias, no Agravo de Instrumento de número 727.872/RS[24], onde o relator, Ministro Luís Roberto Barroso, examinou a questão à vista da conduta a ser punida, classificando as multas tributárias em três espécies, a saber:
No direito tributário, existem basicamente três tipos de multas: as moratórias, as punitivas isoladas e as punitivas acompanhadas do lançamento de ofício. As multas moratórias são devidas em decorrência da impontualidade injustificada no adimplemento da obrigação tributária. As multas punitivas visam coibir o descumprimento às previsões da legislação tributária. Se o ilícito é relativo a um dever instrumental, sem que ocorra repercussão do montante do tributo devido, diz-se isolada a multa. No caso dos tributos sujeitos a homologação, a constatação de uma violação geralmente vem acompanhada da supressão de pelo menos uma parcela do tributo devido. Nesse caso, aplica-se a multa e promove-se o lançamento de ofício [...].
Nessa linha cognitiva, ressaltou, ainda, o respeitável Ministro que, não obstante a cláusula aberta em que é redigida a norma inserta no artigo 150, inciso IV, da Constituição, permite-se aferir o seu conteúdo, diante de um determinado caso concreto, mediante a dosimetria quanto à sua incidência em correlação as diversas espécies de multa, aduzindo que, as multas moratórias, possuem como aspecto pedagógico o desestímulo ao atraso, ao passo que, as multas punitivas, revelam um caráter mais gravoso, mostrando-se como verdadeiras reprimendas, não sendo, portanto, razoável punir em igual medida o desestímulo e a reprimenda.
Em vista disso, no AI 727.872, o Ministro Luís Roberto Barroso adotou o seguinte posicionamento:
Considerando as peculiaridades do sistema constitucional brasileiro e o delicado embate que se processa entre o poder de tributar e as garantias constitucionais, entendo que o caráter pedagógico da multa é fundamental para incutir no contribuinte o sentimento de que não vale a pena articular uma burla contra a Administração fazendária. E nesse particular, parece-me adequado que um bom parâmetro seja o valor devido a título de obrigação principal. Com base em tais razões, entendo pertinente adotar como limites os montantes de 20% para a multa moratória e 100% para multas punitivas”.
Nesse desiderato, o Ministro Luís Roberto Barroso, partindo da análise das distintas espécies de multas tributárias, perfilha o entendimento adotado no RE 748.257, julgado sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowsi, no sentido de que são confiscatórias as multas fixadas em 100% ou mais do valor do tributo devido. E, com supedâneo no RE 582.461, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, RE 596.429, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, e o RE 239.964, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, quanto à multa moratória, deu provimento ao agravo regimental (AI 727,872), interposto contra decisão que inadmitiu o recurso extraordinário, para reduzir a multa moratória de 30% para o percentual de 20%.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Isto posto, vê-se que o tributo, como obrigação pecuniária compulsória, que independe da concorrência da vontade do contribuinte para a sua configuração, consubstancia a fonte por excelência de ingresso de dinheiro nos cofres do Estado para a consecução de seus fins, qual seja: o de promover o bem-estar social.
Entretanto, para que os entes políticos desempenhem essa prerrogativa, dever-se-á observar os limites constitucionais objetivamente delineados nos artigos 150 a 152, da Constituição, sem olvidar de outras garantias fundamentais distribuídas na Carta Democrática, as quais também servirão como instrumentos de contenção da voracidade fiscal do Estado, a exemplo do direito de propriedade, que no exercício dessa competência não pode ser aniquilado.
Dentre as garantias que a Constituição justa põe ao poder de tributar, tem-se o princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco, previsto no artigo 150, IV, da Constituição Federal, que, a despeito de qualificar-se como uma norma de conceito indeterminado, sem possuir no campo normativo ato correlato que objetivamente defina quantitativamente a incidência de tributação tida como não confiscatória, vem sendo objeto de estudo pela doutrina e examinado pelos tribunais superiores através de uma interpretação sistemática do ponto de avaliação à luz dos princípios e regras encartados na Constituição Federal.
O Supremo Tribunal Federal, como se assinalou, tem adotado o entendimento de que o efeito confiscatório de determinado tributo deve ser identificado levando em consideração o total da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído.
Quando às multas tributárias, o STF tem declinado para o entendimento de que são confiscatórias as multas fixadas em 100% ou mais do valor do tributo devido. E, segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, em voto proferido no AI 727.872 AGR/RS, a questão da multa tributária deve ser examinada à luz da conduta a ser punida, motivo pelo qual classificou a multa em três espécies (as moratórias, as punitivas isoladas e as punitivas acompanhadas do lançamento de ofício), e, em vista disso, entende como razoável adotar como limite o montante de 20%, para a multa moratória, dado o seu caráter nitidamente pedagógico, e o montante de 100% para as multas punitivas, visto que representam uma conduta mais gravosa, almejando, assim, coibir o descumprimento às previsões da legislação tributária.
Entretanto, não obstante o posicionamento adotado pelo STF acerca da matéria em questão, longe está de ser pacífico o seu âmbito de abrangência nos domínios do Direito Tributário. Reforça-se, apenas, a necessidade de se estudá-lo com mais profundidade e que o seu alto grau de abstração normativa, decorrente de sua indeterminabilidade conceitual, relegando aos intérpretes o dever de completar o seu conteúdo, não constitua um óbice para que a norma prevista no artigo 150, IV, da Constituição, seja aplicada plenamente no ordenamento jurídico vigente, sobretudo por se caracterizar como uma garantia fundamental do contribuinte.
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NOTAS:
[1] Vade Mecum RT [Equipe RT]. 12 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 89.
[2] V. Hugo de Brito Machado (2005, p. 48): “A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar os seus fins sociais, a não se que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização da economia”.
[3] Que em sua atividade singular, ao eleger do mundo fenomênico os eventos passíveis de tributação, deverá atentar-se para os postulados da proporcionalidade e razoabilidade, tendo sempre em vista a finalidade social de sua respectiva instituição.
[4] Nesse sentido, ALEXANDRINO, Marcelo e VICENTE, Paulo. Direito Tributário na Constituição e no STF: Teoria e Jurisprudência. 12ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 07-08.
[5] Paulo de Carvalho Barros (2015, p. 59-60), em seu clássico Curso de Direito Tributário, na linha da classificação proposta por Geraldo Ataliba (1975, p. 139), em observância do disposto no artigo 16 do Código Tributário Nacional, definiu imposto “[...] como tributo que tem por hipótese de incidência (confirmada pela base de cálculo) um fato alheio a qualquer atuação de Poder Público [...]”, ao contrário das taxas, cuja vinculação é direta e imediata, e as contribuições de melhoria, indireta e mediata. E prossegue o renomado autor dizendo que os impostos possuem um regime jurídico-constitucional peculiar, “[...] pois a Carta Magna reparte a competência legislativa para instituí-los entre as pessoas políticas de direito constitucional interno – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – de sorte que não ficam a disposição dessas entidades, como ocorrem com as taxas e contribuições de melhoria (tributos vinculados), que podem ser criados por qualquer uma daquelas pessoas, desde que, naturalmente, desempenhem a atividade que servem de pressuposto à sua decretação. Fala-se, por isso, em competência privativa para a instituição dos impostos, que o constituinte enumerou, nominalmente, indicando a cada uma das pessoas políticas quais aqueles que lhe competia estabelecer [...]”.
[6] Que tem como fato gerador, nos termos do artigo 77 do Código Tributário Nacional, o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestados aos contribuintes ou postos a sua disposição.
[7] É instituída, consoante preceitua o artigo 81 do Código Tributário Nacional, para fazer face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que a obra resultar para cada beneficiado.
[8] Aliomar Baleeiro (2010, p. 02), nesse sentido, sentencia que “[...] a defesa do sistema tributário e do próprio regime político do país processa-se por um conjunto de limitações ao poder ativo de tributar [...]”.
[9] Nesse sentido, Ricardo Alexandre (2008, p. 94): “Uma das situações em que a prevalência é claramente visualizada é a possibilidade de cobrança de tributos. O Estado possui o poder de, por ato próprio – a lei -, obrigar os particulares a se solidarizarem com o interesse público mediante a entrega compulsória de um valor em dinheiro”. Não é outro, também, o entendimento sufragado pelo saudoso professor Hugo de Brito Machado (2005, p. 49), para quem o Estado, no exercício de sua Soberania, exige que os indivíduos lhe forneçam os recursos de que necessita. “O poder de tributar nada mais é que um aspecto da soberania estatal, ou uma parcela desta”.
[10] Compartilhando do mesmo entendimento, Hugo de Brito Machado (2005, p. 49) elucida que a relação jurídico-tributária não reflete simplesmente uma relação de poder, pois, “Nos dias atuais, entretanto, já não é razoável admitir-se a relação tributária como relação de poder, e por isto mesmo devem ser rechaçadas as teses autoritárias. A ideia de liberdade, que preside nos dias atuais a própria concepção de Estado, há de estar presente, sempre, também na relação de tributação”.
[11] Entende-se por limitações materiais, no escólio do citado autor (AMARO, 2016, p. 128-129), o poder de tributar que “pressupõe o respeito às fronteiras do campo material de incidência definido pela Constituição e obediência às demais normas constitucionais ou infraconstitucionais que complementam a demarcação desse campo e balizam o exercício daquele poder. Requer a conformação com os princípios constitucionais tributários e a adequação, quando seja o caso, aos limites quantitativos (alíquotas máxima ou mínima) definidos na Constituição, em lei complementares ou em resoluções do Senado”; ao passo que, no campo formal, pressupõe “a harmonia com os modelos constitucionais de produção do direito: tributos (em regra) criam-se por lei ordinária; alguns, porém, demandam lei complementar para serem validamente instituídos; alguns podem ter alíquotas alteradas por ato do Executivo, enquanto outros (que formam a regra) só podem ser modificados por lei, inclusive no que respeita às suas alíquotas”.
[12] Leandro Paulsen (2017, p. 128) explicita que as limitações contidas no artigo 150 são gerais, isto é, concernente a todos os entes políticos, ao passo que os preceptivos constantes no artigo 151, específicos à União, e o artigo 152 baliza as limitações direcionadas aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.
[13] Expressão utilizada em alusão ao conceito de princípio de autoria de Celso Antônio Bandeira de Mello.
[14] O que não se confunde com o instituto do confisco, representando (a desapropriação), segundo MELLO (2015, p. 2015), um procedimento por meio do qual o Poder Público adquire originariamente a propriedade de alguém, pessoa física ou jurídica, mediante justa e prévia indenização.
[15] BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Atualizadora: DERZI, Misabel Abreu Machado. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
[16] Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas a reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
[17] Segundo MELLO (2015, p. 892), “[...] cumpre acrescentar que por força do artigo 243 da Constituição, com a nova redação dada pela EC 81/2014, foi instituído um confisco (aliás elogiável), conquanto denominado de desapropriação [...]”
[18] Adotada no Mc. Culloch vs. Maryland, em 1819, segundo o qual “o poder de tributar envolve o poder de destruir”. (BALEEIRO, 2010, p. 902)
[19] Como registra CARVALHO (2015, p. 174), a capacidade contributiva constitui um referencial para se aferir, diante de um caso concreto e, lavando-se em consideração a riqueza individual de um determinado contribuinte, se um tributo é ou não confiscatório. A capacidade contributiva do sujeito passivo, segundo o mencionado autor, “sempre foi o padrão de referência básico para aferir-se o impacto da carga tributária e o critério comum dos juízos de valor sobre o cabimento e a proporção do expediente impositivo”.
[20] Ver, a propósito do exposto, Judith Martins-Costa (1998, p. 08), que acerca dos conceitos jurídicos indeterminados, asseverou que “a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’, caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja caracterização pode estar fora do sistema”.
[21] V. RE 91.707, de relatoria do Ministro Moreira Alves, onde se afirmou que “O STF tem admitido a redução de multa moratória imposta com base em lei”.
[22] >http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asps1=000018002&base=baseAcordaos< Acesso em: 18 de junho de 2017.
[24] > http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=306826206&tipoApp=.pdf.< Acesso em: 18 de junho de 2017.
Advogado. Especialista em Direito Tributário pela Anhaguera-Uniderp/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANSON, Lucas Martins. O princípio constitucional do não confisco e sua aplicabilidade no Direito Tributário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50502/o-principio-constitucional-do-nao-confisco-e-sua-aplicabilidade-no-direito-tributario. Acesso em: 13 nov 2024.
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