Resumo: o presente artigo visa estudar de forma pormenorizada a questão do procedimento de relativização do Pacta Sunt Servanda enfatizando as mudanças e aplicações dos dispositivos existentes no Código Civil de 2002, com as Jornadas de Direito Civil, as jurisprudências e súmulas. Desta forma, artigo discorrerá de forma sucinta sobre os países que mais influenciaram nosso direito contratual e ao final fará breve conclusão da utilização de tal regra em nosso ordenamento jurídico.
Palavra chave: obrigatoriedade contratual; relatividade; cláusula; pact sunt servanda; cláusula rebus sic stantibus; relativização.
Sumário: 1. Introdução. 2. Posição brasileira. 2.1. Teorias Contratuais. 3. Pacta Sunt Servanda x Rebus Sic Stantibus. 4 Conclusão.
1 Introdução
A realidade contemporânea vem apresentando novos desafios político-sociais, econômicos e jurídicos, que precisam ser enfrentados, imediatamente, por toda a sociedade. O critério da justiça deve ser o parâmetro em todas as relações, principalmente a contratual. As partes têm que estar em equilíbrio, não podendo mais existir uma submissão do devedor em relação ao credor e com esse intuito veio o Código Civil Brasileiro de 2002.
O contrato é uma fonte das obrigações, resultante de um acordo de vontades que tem como um dos seus requisitos a bilateralidade. No entanto, hoje é visto um crescente aumento dos chamados contratos em massa, excluindo o elemento “acordo de vontades”, tornando o contrato um ato meramente unilateral ou aderente.
O pacta sunt servanda, o contrato faz lei entre as partes, é ainda considerado como um princípio de máxima importância para garantir segurança jurídica no mundo contratual.
No entanto, hodiernamente deve-se considerar que os contratos são elaborados em massa, ocorrendo mera aderência de uma das partes, massacram, portanto, a autonomia da vontade.
Devido a esta massificação, faz-se possível a revisão contratual não apenas pela teoria da imprevisão, mas por qualquer cláusula que revele a possibilidade de desequilíbrio entre as partes.
O contrato em sua órbita constitucional visa proporcionar as suas partes integrantes, segurança nas suas relações, sempre priorizando o Princípio da Dignidade Humana, art. 1º, III da Constituição Federal de 1988.
Esse tema é de extrema importância e utilidade pública, uma vez que toda a sociedade necessita do contrato para a realização de negócios jurídicos. A busca do ideal de justiça não se justifica apenas no setor público, mas também no privado, evitando que o homem médio fique à mercê de situações de extrema desproporção ou desequilíbrio.
2. Posição Brasileira
2.1. Teorias Contratuais
Uma das primeiras teorias que ganhou corpo foi a teoria do negócio jurídico, pois na “pirâmide conceitual estaria acima do contrato e abaixo do negócio jurídico lato sensu.”[1] A vontade humana surge como elemento fundamental para a concretização eficaz do negócio jurídico, gerando o chamado dogma da autonomia da vontade do emissor desta. Desta forma, segue o pensamento do jurista Enzo Roppo:
Emerge daqui, juntamente com as características formais da generalidade e abstracção, o outro dado, relacionado com aspectos do conteúdo, necessário para entender o sentido e o alcance da categoria do negócio: a elevação da vontade a elemento chave da sua definição. Na base desta, está a idéia, já acolhida pelo pensamento jusnaturalista e iluminista, da vontade humana como fonte de qualquer transformação operada no mundo do direito, como força criadora de direitos e obrigações como motor primeiro de toda a dinâmica jurídica.[2]
A importância dada à vontade nesta época se deve aos ideais liberais da Alemanha, e era visto como um ideal de igualdade entre os homens, que independentemente de condições financeiras estavam aptos para emitir declarações de vontade com o intuito de produzir efeitos jurídicos, desta forma, a autonomia da vontade era constituída foi constituída como um dogma do Estado Liberal.
Para se entender a teoria da autonomia da vontade, deve se ter em mente a teorias da vontade e da declaração que segundo Orlando Gomes “procuram explicar o primado da vontade”[3]
A teoria da vontade é de cunho extremamente subjetivo, levando em consideração apenas o aspecto psíquico do indivíduo no momento da celebração do contrato, enquanto a teoria da declaração possui cunho mais objetivo, voltado mais para a declaração realizada.
A teoria da vontade é constituída por dois elementos centrais, a vontade interna e a declaração de vontade, sendo a junção das duas a força do negócio jurídico. Sendo o elemento psíquico extremamente relevante, inclusive na interpretação do negócio, limitava-se a atuação da autonomia privada, revelando “um sistema econômico individualista e pouco dinâmico, no qual as trocas eram, no geral, bem ponderadas e guardavam um certo carácter pessoal”.[4]
Contrapondo-se a teoria da vontade, há a teoria da declaração constituindo uma brecha no princípio da autonomia privada. Esta sempre foi mais coerente com a sociedade moderna, visto que na massificação da economia, os contratos em massa se revestem de total aderência de uma das partes envolvidas, não há mais o que se falar em vontade no momento da concepção do negócio, mas sim a declaração do contrato.
A Teoria da confiança é uma relativização da teoria da declaração, não se retendo apenas na declaração inerente no corpo do contrato, mas também na confiança dentre as partes contratantes derivada da boa-fé objetiva, neste sentido:
A aparência de vontade não é levada em conta em todas as circunstâncias e sem outras considerações. Necessário que se possa despertar a convicção de que se trata de vontade real. Concede-se à declaração valor relativo, tornando-a decisiva sempre que a confiança no seu conteúdo possa se fundar na boa-fé do destinatário. Pode-se esquematizar, assim, a teoria: a declaração de vontade é eficaz, ainda quando não corresponda à vontade interna do declarante, se o destinatário não souber, ou não puder saber, que não corresponde à vontade.[5]
Relativizar a importância da vontade contratual é fundamental nos dias atuais, visto a grande massificação dos contratos e o aumento dos contratos de adesão, e a teoria da confiança faz com que se meça também a confiança das partes contratantes, visando segurança e estabilidade nas relações jurídicas.
3. Pacta Sunt Servanda X Rebus Sic Stantibus
No Brasil a cláusula rebus sic stantibus começou a ser tratada especificadamente nas décadas de 20 e 30 do século XX, mesmo o Código Civil não tendo nenhuma previsão expressa a cláusula ou a teoria da imprevisão, mas tal fato não impediu que os doutrinadores considerassem tais princípios.
A fórmula rebus sic stantibus, significa “enquanto as coisas estão assim” é uma abreviação do “contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur.”[6]
Fator decisivo para o crescimento da aceitação de tais institutos foi a influência da Primeira Guerra Mundial devido as incertezas que ocorriam naquele momento histórico.
Tal receio para a adoção da cláusula rebus sic stantibus no direito brasileiro é devido ao medo de tornar os contratos em uma fonte de insegurança jurídica.
A primeira obra que tratou a teoria da imprevisão de forma profunda foi a monografia de Arnoldo Medeiros da Fonseca. Neste trabalho o autor rejeitou a teoria da imprevisão dizendo não ter sido acolhida pelo Código Civil de 1916, devendo, portanto, a cláusula apenas ser aplicada em casos específicos estipulados por lei.
Nessa mesma linha, segue José Xavier Carvalho de Mendonça defendendo que o negócio jurídico permanece em plena eficácia, ainda que ocorram profundas e inesperadas mudanças nas circunstâncias de fato devendo as partes tomar providências sobre os possíveis riscos negociais.
Nota-se uma visão bem estática, imóvel, da vontade contratual, como diz Carvalho de Santos, em sua obra sobre o Código Civil de 1916:
O argumento de que as mudanças de circunstâncias desfigurariam a vontade das partes e, assim, justificavam a revisão contratual, é falho, pois não leva em consideração que a lei exige o consentimento para a formação do contrato, e não para a sua execução.[7]
O primeiro defensor da cláusula rebus sic stantibus no Brasil foi Jair Lins, pois segundo ele, o Código Civil de 1916 tinha adotado expressamente a cláusula, em seu art. 85: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem.”
Assim como nos casos de vencimento antecipado das dívidas na falência e no concurso de credores, de detenção pessoal e arresto ou embargos autorizados em vista da mudança de estado do devedor.
Segundo Arthur Rocha, os princípios da lei natural do consenso e a teoria da autolimitação dos contratos justificam a revisão contratual, porque assim faz prevalecer a vontade interna das partes contratantes.
No entanto, a cláusula só deve ser aplicada em caráter absolutamente excepcional, decorrente da existência de fatores supervenientes que acarretem uma onerosidade imensa ao devedor, sem corresponder necessariamente a um aumento de ganho do credor.
Uma das obras mais significativas da teoria da imprevisão foi a monografia de Paulo Carneiro Maia, pois este pregava que a cláusula é uma questão de equidade no ordenamento jurídico, que impediria a lesão de um contratante pelo o outro.
Segundo Pontes de Miranda, para estudar a cláusula rebus sic stantibus deve-se procurar equacionar o problema da desestabilização da base do negócio, que por vezes acarreta o desequilíbrio entre as prestações, mas segundo ele, a invocação da teoria só poderia ser feita se já tivessem expressas no contrato ou se existisse lei que decorresse sobre o assunto.
Washington de Barros Monteiro dizia que o direito contratual se estruturava em torno dos princípios da autonomia da vontade, o da supremacia da ordem pública e o da obrigatoriedade da convenção. No entanto, afastava a impossibilidade de modificação contratual, para inspirar-se em situações em que deveria se privilegiar a equidade e o justo equilíbrio entre as partes, afirmando que a cláusula “só pode ser adotada em casos excepcionais e com temperamento e extremos de cautela.”[8]
Diferentemente pensa Silvio Rodrigues, conforme explica em seu livro:
a teoria da imprevisão seria a consolidação da antiga cláusula rebus sic stantibus, e para sua aplicação não é mister que a prestação seja impossível de ser cumprida pelo devedor; basta que ela se torne excessivamente onerosa às partes devido a fatos extraordinários e imprevisíveis.[9]
Segundo Orlando Gomes a influência da inflação nos contratos, e a atuação de acontecimentos imprevisíveis como a Primeira Guerra Mundial e sua decorrências. E ainda assevera:
nos casos de desequilíbrios conseqüentes à depreciação monetária, é impossível justificar a intervenção judicial na economia do contrato sob o fundamento da imprevisão. Quem quer que contrate num país que sofre do mal crônico da inflação sabe que o desequilíbrio se verificará inelutavelmente se a prestação pecuniária houver de ser satisfeita algum tempo depois da celebração do contrato. O desequilíbrio é, por conseguinte, previsível, pelo que à parte que irá sofrê-lo cabe acautelar-se.[10]
No entanto, Orlando Gomes diferencia-se dos outros doutrinadores quanto à equidade, porque se assim fosse estaria tudo baseando num profundo subjetivismo. A possibilidade de revisão deve ser fundada em elementos técnicos, como a apreciação da vontade contratual e não em razões de equidade ou de boa-fé. Porém, tal atitude revela do doutrinador apenas uma tendência de manter o direito com um aspecto mais científico.
Miguel Reale destaca a importância do contrato como instrumento necessário de cálculo econômico, no qual não se devia permitir que chegasse a uma situação de desigualdade contratual, devendo manter as partes em equilíbrio. Admite o autor a possibilidade de revisão contratual por onerosidade excessiva e também por alguma causa superveniente.
Em 1991, Judith Martins-Costa publicou um artigo sobre a teoria da imprevisão e os planos econômicos governamentais, em que defendia o equilíbrio entre as prestações em relação contratual, como a seguir se aduz:
A doutrina mais moderna vem corroborando a idéia de direito justo em matéria contratual, tendo em vista que devem ser agregados, aos tradicionais princípios da autodeterminação e da autovinculação, os da equivalência objetiva e o da proporcionalidade medida, que tornariam possível a revisão judicial de um contrato desequilibrado. [11]
Segundo Judith Martins Costa, a cláusula rebus sic stantibus assegura os princípios sociais, pois obedece à boa-fé objetiva que deve existir em todas as relações contratuais, principalmente nos casos de inflação, ou nos casos de intervenção estatal na economia, procurando o equilíbrio entre as partes, revelando, desta forma, persecução da justiça.
No início da década de 90, Maria Helena Diniz catalogava alguns requisitos para a possibilidade da revisão contratual que deveria ser:
a) o contrato comutativo e de execução continuada; b) a alteração radical das condições econômicas; c) a ocorrência de onerosidade excessiva para uma das partes e de benéfico exagerado para a outra; d)a imprevisibilidade e o caráter extraordinário dessa modificação.[12]
Desta forma, o que se garante é a possibilidade de revisão contratual quando cláusulas levassem a ruína uma das partes contratantes, pois a ordem jurídica não estaria cumprindo seu objetivo de assegurar a igualdade econômica.
Clóvis do Couto e Silva pensa que o princípio da autonomia da vontade só é possível num sistema social e econômico viável, com moeda sólida e ausência da intervenção estatal dentro da economia. Ainda mais quando se é levado em consideração a boa-fé que deve existir em todos os contratos, partindo desta premissa chegando à teoria da base objetiva do contrato.
Por esta teoria, o contrato tem como base a boa-fé, ocorrendo uma tensão ou desequilíbrio a vontade tem que ser relativizada, principalmente em situações supervenientes derivadas da inflação ou atos governamentais na economia, o que segundo este doutrinador, modificava o pacta sunt servanda no Brasil.
4. CONCLUSÃO
Hodiernamente, vê-se a grande atuação dos contratos de massa, sendo uma das partes hipossuficiente devido a sua mera aderência e a não possibilidade de discutir as cláusulas contratuais, resultando, assim, desequilíbrio entre os envolvidos.
Neste contexto o Código Civil de 2002 visou relativizar o brocardo latino pacta sunt servanda, o contrato faz lei entre as partes, possibilitando sempre a aplicação do justo, através de revisões contratuais, e retirando efetivamente os efeitos de cláusulas nulas de pleno direito.
A antiga fórmula rebus sic stantibus visa à possibilidade de revisão contratual se este resultar em onerosidade excessiva para uma das partes, desequilíbrio contratual devido a fatos imprevisíveis, se houver ofensas a direitos da personalidade, a boa-fé objetiva e principalmente a função social do contrato.
Cabe ainda salientar que na prática jurídica pouco se utiliza a possibilidade de revisão contratual, vigorando o ânimo existente no Código Civil de 1916, sob a égide do pacta sunt servanda, portanto, faz-se necessário maior atuação por parte dos advogados, juízes, e aplicadores do direito em geral, dos preceitos presentes neste trabalho, com o intuito de obter maior justiça nas relações contratuais.
REFERÊNCIAS
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[1] BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no código civil e no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 37.
[2] ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p. 49.
[3] GOMES, Orlando. Transformações gerais no direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 10.
[4] BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Trad. Fernando Miranda. Coimbra: Coimbra, 1969. p. 298.
[5] GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 14.
[6] FIÚZA, Ricardo. Novo código civil comentado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 298.
[7] SANTOS, João Manuel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938. p. 212.
[8] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1959. v. 3. p. 20.
[9] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 23.
[10] GOMES, Orlando. Contratos. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 35.
[11] MARTINS-COSTA, Judith. A teoria da imprevisão e a incidência dos planos econômicos governamentais na relação contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 670, p. 41-48, ago. 1991, p. 42
[12] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 31.
Bacharel pela Faculdade de Direito de Franca. Pós-graduada pela Universidade Católica Dom Bosco. Procuradora Municipal de São Carlos/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Silvia Maria de Paula. Evolução histórica da cláusula rebus sic stantibus. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50507/evolucao-historica-da-clausula-rebus-sic-stantibus. Acesso em: 13 nov 2024.
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