1. Introdução
A laicidade é tema de reiteradas discussões e reflexões no contexto contemporâneo. É inegável que tal configuração social dissociada de um conceito de religião dominante e/ou associada ao Estado é um dos paradigmas político-sociais mais difundidos e pacificados – ao menos na dimensão teórica – na base da organização da sociedade ocidental (enquanto espaço coletivo) dos dias atuais.
Assim sendo, o objetivo principal do presente artigo é traçar análises sobre o conceito de laicidade à luz da teoria de sistemas idealizada por Luhmann. Pretende-se defini-la enquanto um acoplamento estrutural e, como tal, um sistema independentemente forjado, mas cujos mecanismos foram incorporados pelo e têm influência no funcionamento contemporâneo e na reflexão autopoietica do Direito.
2. Sistemas Sociais
De acordo com a teoria proposta por Niklas Luhmann (1995), um sistema social pode ser entendido como uma unidade constituída por quatro características basilares e bastantes importantes: é fechada e, portanto, cria seus próprios limites de operação; é autoreferencial, visto que atua com base em operações próprias; é autoreprodutora, já que suas diferenciações acabam por produzir subsistemas e gerar autonomias relativas; e, por fim, é autopoietica.
Dessa forma, um sistema é composto por um espaço interno bem delimitado e organizado a partir de elementos correlatos selecionados. Tal identificação interna desses elementos é o que possibilita a separação – até certo nível – de um dado sistema do seu chamado “ambiente” complementar, que abarca todos os componentes sociais externos ao sistema em questão. Ainda que insulados até determinado ponto, os sistemas ainda encontram-se inseridos de maneira indissociável na sociedade complexa em que se localizam (LUHMANN, 1995).
Consequentemente, é certo que um sistema não consegue se desenvolver e se manter funcional de uma forma completamente afastada de seu ambiente. A contrariedade a esse fato implica não apenas na transformação desse sistema em incoerente e insustentavelmente apartado, mas também dirime quaisquer possibilidades de realizar os imprescindíveis processos de adaptação e de evolução internas. Isso acontece porque esse ciclo de desenvolvimentos é advindo diretamente da incorporação de elementos de sistemas diversos em um dado sistema restrito, com o fim de operar os seus próprios elementos (LUHMANN, 1995).
O que possibilita que um sistema se porte dessa maneira autorreflexiva é o seu supramencionado fechamento operacional, que faz com que exista a concepção entorno e com relação e base nele sejam construídos os sistemas como entes próprios. Estes são definidos fundamentalmente, então, pela sua diferença com o entorno. A partir disso, mais uma vez, pode-se notar também que o entorno é tão importante para um sistema como ele próprio (LUHMANN, 1995).
É importante notar que essa integração intersistemas não é pautada em uma mera cópia reiterada da organização interna do(s) sistema(s) cuja(s) estrutura(s) foi(foram) importada(s). De fato, o sistema que a(s) adquire(m) nem ao menos necessita reconhecê-la(s) em seu interior. Essa importação é funcional, ou seja, os mecanismos são apreendidos e, em seguida, adaptados ao sistema que os toma emprestado. Dessa maneira, o sistema incorporador os molda a seus processos comunicativos próprios e eles passam a trabalhar de uma maneira dissemelhante àquela que acontece no sistema de origem (NEVES, 2005; LUHMANN, 1995).
Isso posto, é importante tratar de um dos conceitos chave para essa teoria: a autopoiese. Essa ideia versa que os sistemas produzem por si mesmos e em seu interior os seus próprios elementos, mas isso não implica na perda de sua capacidade de observação, no sentido de perceber que poderiam atuar de forma diferente da que fazem e adaptarem mecanismos alheios (LUHMANN, 1995).
Portanto,
everything that happens belongs to a system (or to many systems) and always at the same time to the environment of other systems. Every determinacy presupposes carrying out a reduction, and every observation, description, and conceptualization of determinacy requires giving a system reference in which something is determined as an aspect of either the system or its environment. Every change in a system is a change in the environment of other systems (LUHMANN, 1995, p. 177).
Outro ponto de extrema importância para a teoria de Luhmann (1995) é a noção de contingência, que delimita o campo das possibilidades de um sistema. Seguindo esse raciocínio, na medida em que a contingência aumenta, amplifica-se também a complexidade e o grau de frustração e incerteza contidos nos diferentes sistemas sociais. A partir dai, pode-se inserir também as ideias de perigo (que é atribuído ao externo) e risco (que é assumido como sendo uma produção da própria sociedade) em um contexto da concepção de contingência.
3. O Acoplamento Estrutural
Na teoria luhmanniana, o acoplamento estrutural (strukturelle Kopplung originalmente) é o mecanismo através do qual os sistemas sociais diversos se relacionam entre si e com os demais aspectos que pertencem ao seu ambiente. Consequentemente e conforme já foi abordado, um deles se apropria de mecanismos de outro(s) para fins de conduzir seus próprios processos e operações comunicativos de uma maneira reformada (LUHMANN, 2004, pp. 199-207; NEVES, 2005, pp. 54,55).
Tal acontecimento é imprescindível para o funcionamento e para a existência de sistemas completos e diferentes entre si, visto que a hipercomplexidade intrínseca à existência de um dado sistema pressupõe uma série de pré-requisitos que não são satisfeitos puramente nele mesmo. Como consequência, essas lacunas só podem ter sido supridas pela existência de um sistema precedente e superveniente, de cuja estruturação tenha se valido o sistema em questão (LUHMANN, 1995).
É por intermédio desse processo que o sistema gera e reflete sobre os seus elementos internos, sem, para tanto, tomar como seus os elementos ambientais. Essa apropriação de elementos externos não implica, porém, em uma apropriação absoluta de significados, sendo apenas uma forma de importar ferramentas que auxiliem o funcionamento do processo comunicativo do sistema que delas se valeu. Dessa maneira, os significados do sistema anterior são substituídos por entendimentos novos e próprios do novo sistema (LUHMANN, 1995).
Ademais,
o acoplamento estrutural tem um papel importante no processo de evolução de um sistema, já que lhe impinge perturbações frequentes provocadas pela evolução do ambiente acoplado, que admite e estimula indiretamente a evolução do sistema. Esses ruídos são produzidos e, ambos os lados do acoplamento e, no caso de dois sistemas acoplados, essas irritações mútuas geram um fluxo estrutural e ocasionam a evolução recíproca, com a produção de informações para ambos os sistemas, pois, apesar de autopoéticos, ambos podem observar os sentidos produzidos em uma mesma ocorrência no âmbito do acoplamento (NEVES, 2005, p. 57).
Dessa forma, os sistemas externos pensados por Luhmann (1995) geram uma irritação no sistema tomado como referência, passando por reiterados processos comunicativos que agem como um filtro interno para que, então, o sistema se desenvolva e se torne mais complexo. Alguns dos sistemas são mais irritantes que outros e, por consequência, geram mais impacto em outros. Porém, as autonomias dos sistemas são resguardadas, de forma que seus elementos internos são gerados autopoieticamente a partir das irritações sofridas.
4. A Religião como Sistema e sua Privatização
Luhmann (2013,1995) considera a religião como um sistema autopoietico, assim como os demais:
We are forced to see that there is a function system for religion operating worldwide in our modern world society, a system that defines itself as religion through a distinction from other function systems (LUHMANN, 2013, p. 272).
Ainda nesse sentido,
On account of these specially burdens, religion finds itself today in a society whose structures have been reoriented for functional differentiation. In this situation, it does not pose a problem that religion (now) finds itself as one functional system among many. It can keep up with the others concerning operative closure, binary coding, and functional specification (LUHMANN, 2013, p. 209).
Por outro lado, para Luhmann (2013), a diferenciação funcional do sistema religioso se deu de uma maneira distinta do padrão que ocorreu com os demais sistemas. A religião era indubitavelmente hegemônica no contexto social da Idade Média, de forma que continha em si mesma todos os mais diversos aspectos do ambiente social.
Porém, eventualmente, a religião passou a não mais ser enxergada como um sinônimo da e a não mais abarcar a sociedade em sua inteireza. A partir de então, religião e sociedade começaram a ser distinguidas e separadas uma da outra. Luhmann (2013) não entende tal processo como engendrado no seio do sistema religioso.
Essa era maneira através da qual essa distinção deveria acontecer em um sistema marcado pela autopoiese. Entretanto, percebe-se que, na verdade, essa configuração é um fruto direto dos até então nascentes e novos sistemas sociais, que começaram a realizar sucessivas diferenciações funcionais internas, de forma a se afastarem da religião.
Segundo Bachur (2011, pp. 178-180), tal surgimento de diversos sistemas comunicativos diferenciados impossibilitou a perpetuação desse fundamento religioso único, que antes era o paradigma socialmente imposto. Assim, a religião passou a ser enxergada uma característica necessariamente individualizada e, como tal, contida e limitada apenas ao âmago de cada um. Essa “privatização da religião” pressupõe também um fortalecimento autônomo dos demais sistemas frente ao controle religioso.
Logicamente, uma mudança brusca de paradigma como essa engendrou uma reação comportamental negativa por parte da Igreja com o objetivo de garantir a sua hegemonia social. “Esta reação da religião pode ser considerada “inadequada”, por assim dizer, porque implica transferir a poiese de sentido religioso da esfera social, comunicativa, para a esfera individual da consciência, da fé” (BACHUR, 2011, p. 182).
5. Breves Considerações sobre a Laicidade
Diretamente da supracitada noção de privatização da religião, pode ser pensado o paradigma da laicidade estatal. Luhmann conceitua a secularização como
[…] a concept tailored to a polycontexturally observable world in which the contextures of observers are no longer identical (or flawed) from the standpoint of existence or of God. Secularization is therefore a concept that belongs to a society whose structures suggest polycontextural observation—and which thus demands prior decisions about acceptance or rejection (itself a second-order contexture) (LUHMANN, 2013, p. 297).
Esse entendimento surge em uma sociedade cujas novas estruturas são observadas a partir de numerosos contextos essencialmente individualizados e que não são mais idênticos, convergentes e centrados na ideia de um deus único, onipotente e onisciente. Dessa forma, a exaustão de todas as inovadoras possibilidades estruturais dessa sociedade pressuporia uma reflexão previamente realizada sobre aceitação e rejeição de diferenças (LUHMANN, 2013).
Para Luhmann (2013), ao mesmo tempo em que é importante notar que a secularização não implica no desaparecimento de atividades e experiências religiosas diversas, ela não é observada dessa maneira por aqueles que nos sistemas religiosos se inserem. A secularização é entendida por tais pessoas como sendo uma ameaça direta, uma provocação às religiões e, como tal, engendram reações incompatíveis ou culturalmente inaceitáveis por parte desse grupo.
Em uma análise mais pormenorizada, a laicidade pode ser apresentada como possuidora um conceito levemente diferente daquele de laicização, visto que a primeira refere-se mais especificamente ao funcionamento estatal enquanto ordem jurídica e política não permeada pela religião. A segunda teria como cerne, então, o processo social de diminuição de influências religiosas no contexto como um todo.
É importante perceber, porém, que tal divisão é mais um desdobramento de certo preciosismo do que de uma diferenciação prática nos efeitos de ambos os afastamentos da religião. Dessa maneira, determina-se que, enquanto sistema funcional, laicidade e secularidade podem ser entendidas de forma unificada e, como tal, apresentam efeitos bastante semelhantes.
6. A Laicidade como Acoplamento Estrutural do Direito
A partir de tudo que foi anteriormente abordado sobre a teoria de sistemas proposta por Luhmann, pode-se inferir que, em uma sociedade que deixou de ser um mero sinônimo de religião, é natural que os seus sistemas procurem incorporar em suas organizações mecanismos inéditos através de acoplamentos estruturais que partam de outras fontes igualmente importantes na sociedade.
Essa ideia de reflexão diversificada também se aplica no âmbito do Direito, tendo em vista que este é um sistema em si próprio e está invariavelmente inserido no e afetado pelo ambiente inédito e pautado pela diversidade. Como resultado, os ordenamentos deixam de emanar imediata e somente daquilo que consta como padrão na moralidade religiosa ou em fontes similares, em razão de estes já não serem mais considerados como unanimidade social ou como certeza.
Como consequência desse novo entendimento, o Direito internalizou, com bastante intensidade, esse mecanismo de multiplicidade religiosa advindo do sistema laico. Conforme o padrão procedimental apontado por Luhmann, ele foi então adaptado autopoieticamente para se encaixar nos diversos contextos legais e em diferentes níveis de influência pelo planeta, na medida em que previa a religião como integrante do sistema jurídico apenas até o ponto em que é um direito garantido individualmente.
Não menos importante, o escopo legal que transcende esse direito específico coloca-se como insulado – ao menos teoricamente – dos pressupostos religiosos. Tal afirmação é verificável no ordenamento mais basilar de diversos Estados: suas constituições.
A laicidade está presente de forma clara nos textos constitucionais brasileiro, estadunidense, francês etc.. Mesmo que não necessariamente correspondente à aplicação desses ordenamentos na realidade, a presença da laicidade em tais mecanismos já é um importante passo adaptativo e evolutivo no processo autopoietico do Direito como um todo.
Destarte, partindo das reflexões traçadas acima, verifica-se que é por reconhecer a multiplicidade e a ausência de configurações de religião padronizadas e por posteriormente aplicar tal entendimento aos ordenamentos que a laicidade se coloca como um dos mais importantes resultados e um dos mais importantes acoplamentos estruturais do Direito contemporâneo.
7. Referências
BACHUR, João Paulo. A Diferenciação Funcional da Religião na Teoria Social de Niklas Luhmann. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 26, n. 76. jun/2011. pp. 177-226.
LUHMANN, Niklas. A Systems Theory of Religion. Stanford: Stanford University Press, 2013. 320p.
__________. Law as a Social System. Oxford: Oxford University Press, 2004. 498p.
__________. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995. 628p.
NEVES, Rômulo F. Acoplamento Estrutural, Fechamento Operacional e Processos Sobrecomunicativos na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 149p.
Graduanda em Direito. Universidade de Brasília (UnB).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Nayla. A Laicidade como Acoplamento Estrutural do Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jul 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50552/a-laicidade-como-acoplamento-estrutural-do-direito. Acesso em: 12 nov 2024.
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