RESUMO: A responsabilidade civil objetiva do Estado resguarda ao particular lesado a propositura da demanda reparatória diretamente contra o Estado, o qual deverá indenizá-lo, independentemente de dolo e culpa, em razão do dano ocasionado. Assegura-se, portanto, à vítima a possibilidade de acionar o responsável mais solvente, na medida em que este é, indubitavelmente, detentor de mais recursos financeiros que o servidor público. Além do Estado, as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, como as empresas públicas e as sociedades de economia mista bem assim as concessionárias que efetuem atividades voltadas ao interesse público podem figurar no pólo passivo da demanda de indenização. O mandamento constitucional (Art. 37, § 6º, CRFB) garante ao Estado o direito de regresso ao causador do dano, que agiu na qualidade de agente, quando configurado, em sua conduta, o elemento subjetivo doloso ou culposo. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão exarado no ano de 2006, entendeu, ao interpretar o dispositivo constitucional em comento, que o legitimado passivo na ação reparatória é unicamente o Estado, sustentando a teoria da dupla garantia.
Palavras-chave: pessoas jurídicas de direito privado, demanda de indenização, causador do dano, elemento subjetivo doloso ou culposo, particular, ente estatal.
INTRODUÇÃO
Após diversas evoluções teóricas no curso da história do Direito Administrativo Brasileiro, passando da irresponsabilidade total do Estado à sua integral responsabilidade, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) estabeleceu, em seu art. 37, § 6º, a responsabilidade civil objetiva (extracontratual ou aquiliana) do Estado por ato praticado por agente público no exercício de suas funções.
Tal dispositivo constitucional resguarda ao particular lesado a propositura da demanda reparatória diretamente contra o Estado, o qual deverá indenizá-lo, independentemente de dolo e culpa, em razão do dano ocasionado. Assegura-se, portanto, à vítima a possibilidade de acionar o responsável mais solvente, na medida em que este é, indubitavelmente, detentor de mais recursos financeiros que o servidor público.
Privilegiou-se o particular, já que o ajuizamento contra o agente público, diretamente, demandaria a análise do elemento subjetivo, qual seja, o dolo ou a culpa, dilatando a instrução probatória, em negligência ao direito da vítima de se ver ressarcida de maneira rápida e eficaz.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão exarado no ano de 2006, entendeu, ao interpretar o dispositivo constitucional em comento, que o legitimado passivo na ação reparatória é unicamente o Estado, sustentando a teoria da dupla garantia.
Consagra a teoria da dupla garantia o entendimento de que o particular apenas pode propor a ação indenizatória contra o Estado e, do mesmo modo, somente o ente estatal pode ingressar contra o agente público, nos termos da Lei nº 8.112/90 (ação regressiva), retirando, pois, a faculdade de o particular ajuizar a demanda diretamente contra o agente.
Inicialmente, destaque-se que, além do Estado, as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, como as empresas públicas e as sociedades de economia mista bem assim as concessionárias que efetuem atividades voltadas ao interesse público podem figurar no pólo passivo da demanda de indenização.
O mandamento normativo, previsto no art. 37, § 6º, da CRFB/88 implica no ônus da responsabilidade civil objetiva do Poder Público. Tal responsabilidade, em decorrência de ato comissivo praticado por servidor público, fornece ao particular lesado a vantagem de apenas demonstrar o liame entre o dano gerado e o fato ocasionador da situação danosa.
De fato, “evidenciado o liame causal, não há necessidade de ser provada a culpa do agente da entidade pública, que, de resto, ou se presume, ou mesmo se apresenta como irrelevante quando se cuida de dano injusto” [1].
Nas demandas em geral, como regra, incumbe ao autor a demonstração do fato constitutivo de seu direito, de acordo com o que predispõe o Art. 333, inciso I, do Código de Processo Civil Brasileiro[2].
Um dos pressupostos da responsabilidade objetiva dada ao particular é que o ônus probatório, qual seja, na hipótese estudada, a prova cabal de que um ato da Administração Pública gerou um dano ao particular, inverte-se, na medida em que a demonstração do liame entre a conduta e o evento danoso presume a falha estatal, devendo este alegar a não existência desta. Pondera José dos Santos Carvalho Filho:
A questão relativa à prova leva, primeiramente, em conta a defesa do Estado na ação movida pelo lesado. Diante dos pressupostos da responsabilidade objetiva, ao Estado só cabe defender-se provando a inexistência do fato administrativo, a inexistência do dano ou a ausência do nexo causal entre o fato e o dano[3].
Desse modo, para que a Fazenda Pública se isente de indenizar o particular por eventual dano que lhe é ocasionado, ela deve demonstrar, de forma inequívoca, os fatos extintivos, impeditivos ou modificativos do direito do lesado, seja no que tange à ausência do fato e do dano ou ao rompimento do nexo causal.
Assim é que o Poder Público “não tem que provar que não é culpado; prova apenas que o culpado é a vítima” [4]. Acrescente-se à vítima, um evento da natureza, por exemplo, apto a desconstituir o nexo causal.
Impende ressaltar, concernente ao liame de causalidade que o Estado, quando demandado em juízo, de maneira a atingir a pretensão indenizatória, deve evidenciar as causas excludentes de responsabilidade (força maior, caso fortuito, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro), cujas detêm o condão de desconstituir o nexo causal entre o dano e a conduta da Administração.
Leciona Hely Lopes Meirelles acerca do dever de reparação do ente público:
Para eximir-se dessa obrigação incumbirá à Fazenda Pública comprovar que a vítima concorreu com culpa ou dolo para o evento danoso. Enquanto não evidenciar a culpabilidade da vítima, subsiste a responsabilidade objetiva da Administração. Se total a culpa da vítima, fica excluída a responsabilidade da Fazenda Pública; se parcial reparte-se o quantum da indenização[5].
Com efeito, a culpa concorrente da vítima elucida que a conduta danosa não foi perpetrada por ato exclusivo do Poder Público, o que representaria, se os riscos fossem assumidos de modo interino pelo ente estatal, uma afronta ao princípio da isonomia.
Da mesma forma, as concausas, consideradas aquelas que juntamente a uma excludente, geram o dano, a exemplo de um ato comissivo do Poder Público realizado em concomitância com um evento da natureza, ensejam uma redução no quantum reparatório, na medida em que houve contribuição decisiva para o evento danoso.
Por demonstrar que o ato danoso não decorre de forma exclusiva pelo Poder Público, há uma quebra, não integral, do nexo de causalidade entre o fato e o dano, fazendo com que a pretensão indenizatória não seja atingida nos moldes do requestado pelo particular.
De se ver, destarte, que os pressupostos da responsabilidade objetiva, de fato, permitem ao lesado uma vantagem, se comparada à subjetiva, em que, obrigatoriamente, deve o administrado provar a existência de dolo ou culpa.
Outro ponto relativo à ação indenizatória é no que concerne à condenação do agente que perpetrou o dano na esfera penal. Deve-se observar que tal fato não influi no dever de indenização ou não do Poder Público, nos ditames do Art. 63 do Código de Processo Penal[6].
É que a sentença condenatória imputando pena ao servidor público alude a uma relação jurídica diversa da estabelecida na ação de indenização decorrente de responsabilidade civil, se esta for intentada contra o Estado.
De fato, o Poder Público não faz parte do pólo passivo da ação condenatória bem assim esta se trata de ação penal, na qual se é aferida uma conduta ilícita individualizada em relação a determinado agente.
Com efeito, somente se admite o aproveitamento da condenação penal por negação de autoria ou materialidade do fato, se for “dirigida a pretensão indenizatória diretamente contra o funcionário faltoso; não, porém, quando dirigida esta contra a Administração Pública” [7].
Por outro lado, não se pode olvidar, o fato de o ente estatal deter diversos bônus, como as prerrogativas processuais destinadas à Fazenda Pública no atual ordenamento jurídico brasileiro, o que denota ao particular algumas desvantagens.
Mencione-se que os pagamentos decorrentes de decisão judicial submetem-se a um procedimento especial de execução contra a Fazenda Pública, o sistema de precatórios, previsto no Art. 100 da CRFB/88[8].
Isto porque os bens públicos são dotados de um regime jurídico próprio, dentre o qual se destaca a característica da impenhorabilidade, ou seja, no processo de execução de qualquer dívida decorrente de demanda judicial, os bens do Estado não poderão sujeitar-se à penhora.
De acordo com o mandamento constitucional, ao haver condenação de determinado ente de direito público a alguma espécie de obrigação de dar quantia, expedem-se comunicações, no sentido de incluir verba suficiente a satisfazer os precatórios apresentados até o primeiro dia do mês de julho, na previsão orçamentária do exercício seguinte.
A partir daí, observar-se-á uma ordem cronológica de apresentação dos precatórios, que deverá ser obedecida estritamente, por parte do Presidente do Tribunal, responsável por ordenar o pagamento, de acordo com o disponível em caixa.
De fato, “nota-se que a situação do credor de condenação judicial do Poder Público é extremamente dura, pois o tempo que levará para receber pode variar, se for obedecida a Constituição, de 18 a 30 meses” [9].
O mecanismo, portanto, é bastante burocrático e lento, tendo em vista estar sujeito a um prazo razoavelmente grande e a uma elevada gama de condenações sofridas pela Fazenda Pública, fazendo com que a efetividade das demandas reparatórias seja mínima.
Em verdade, o Poder Público, muitas vezes, descumpre até mesmo o predisposto na Constituição, alargando os prazos que já são avultados. Em que pese tal fato ensejar uma intervenção federal, há centenas de pedidos nesse sentido que nunca foram atendidos e com isso “a responsabilidade do Estado no âmbito de inúmeros Estados e Municípios possui um induvidoso caráter de ficção” [10].
Ademais, como exemplo de outras prerrogativas processuais tidas pelo Poder Público, pode-se citar o prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar, previsto no art. 188, do Código de Processo Civil (CPC) [11] bem como o reexame necessário nas condenações que imputam algum débito à Fazenda Pública, tal como previsto no Art. 475, inciso I, do Código de Processo Civil[12].
Tais institutos dilatam, ainda mais, o tempo de duração de uma ação indenizatória decorrente da responsabilidade extracontratual do Estado.
O mandamento constitucional (Art. 37, § 6º, CRFB) garante ao Estado o direito de regresso ao causador do dano, que agiu na qualidade de agente, quando configurado, em sua conduta, o elemento subjetivo doloso ou culposo.
Incumbe ao Estado, nesse sentido, não havendo acordo administrativo com o agente, no decorrer da ação regressiva proposta, demonstrar os fatos constitutivos do seu direito, ou seja, evidenciar que ao nexo causal entre o fato e o dano resta acrescido do elemento subjetivo doloso ou culposo. Leciona José dos Santos Carvalho Filho:
A causa de pedir da ação a ser ajuizada pelo Estado, por conseguinte, consiste na existência do fato danoso, causado por culpa do agente, e na responsabilidade subjetiva deste. Sendo assim cabe ao Estado, autor da ação, o ônus de provar a culpa do agente, como estabelece o art. 333, I, CPC[13].
Com efeito, o agente público deverá ressarcir o Estado, se restar comprovado que agiu de forma dolosa ou culposa durante a realização do ato. Tal responsabilidade, diferentemente da estatal, é subjetiva, dependendo da configuração da culpa latu sensu.
Saliente-se que não é qualquer conduta estatal que autoriza o ressarcimento por parte do servidor, na medida em que “se o dano tiver sido causado por atividade estatal sem ser possível a identificação do agente, o Estado será obrigado a reparar o dano” [14].
Ademais, “a simples ineficiência administrativa do servidor não configura, por si, causa de responsabilidade civil se não há dolo ou culpa por parte dele” [15].
Decerto, o dever funcional de reger sua conduta com base nos princípios norteadores da Administração Pública, sem restar evidenciado o dolo ou a culpa, enseja a responsabilização administrativa, não o ilícito civil, apto a gerar o dever de indenizar, tendo em vista ser a relação permeada pelo poder disciplinar, o qual pauta os limites da conduta dos servidores públicos.
Frise-se que vigora no ordenamento jurídico pátrio, o princípio da independência das instâncias, nos termos do art. 125, da Lei nº 8.112/90[16]. Isto porque as esferas administrativa, penal e cível, como regra, não interferem umas nas outras. Assim, a decisão exarada em um processo administrativo cominando pena a um determinado servidor não fará coisa julgada no juízo cível, pois as duas instâncias não se confundem.
De acordo com a doutrina de Hely Lopes Meirelles, a exceção ocorre na esfera criminal, na medida em que a sentença que absolve o réu em razão da inexistência do fato e da negativa de autoria impede que se responsabilize ou se aplique qualquer sanção ao servidor nas esferas administrativa e cível[17]. Do mesmo modo, a sentença condenatória, por ser um título executivo judicial, sujeita o agente à reparação do dano e às punições administrativas.
No que concerne à prescrição, ressalte-se que o prazo prescricional de 5 (cinco) anos previsto no Decreto nº 20.910/32 relativo a todas as dívidas ativas da Fazenda Pública não se aplica à ação regressiva em face do agente público.
É que tal ação detém cunho patrimonial, de ressarcimento ao erário, sendo, portanto, imprescritível, nos moldes do que reza o Art. 37, § 5º da CRFB[18]. Entende José dos Santos Carvalho Filho:
... no que concerne à pretensão ressarcitória (ou indenizatória) do Estado, a Constituição assegura a imprescritibilidade da ação. Assim, não há período máximo (vale dizer: prazo prescricional) para que o Poder Público possa propor a ação de indenização em face de seu agente, com o fito de garantir o ressarcimento pelos prejuízos que o mesmo lhe causou[19].
A jurisprudência também vem se posicionando nesse sentido, na medida em que o efetivo prejuízo à Fazenda Pública ocasiona um dano a todos os cidadãos, restando, portanto, indispensável o respectivo ressarcimento, independentemente de prazo. Colaciona-se a ementa do seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. IMPRESCRITIBILIDADE DAS AÇÕES DE RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. ART. 37, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO[20].
Do mesmo modo, de acordo com o Art. 122, § 3º, da Lei nº 8.112/90, é transmissível aos herdeiros e sucessores do culpado, “podendo ser instaurada mesmo após a cessação do exercício no cargo ou na função, por disponibilidade, aposentadoria, exoneração ou demissão” [21].
Outra questão importante acerca do tema é saber a que momento o Estado pode propor a ação regressiva, se somente após o a efetivação do precatório, ou no decorrer da ação indenizatória ajuizada pelo particular.
Sabe-se que para se propor uma ação esta deve estar condicionada à possibilidade jurídica do pedido, ao interesse de agir e à legitimidade das partes[22]. O interesse de agir, por sua vez, caracteriza-se pela utilidade e necessidade daquele provimento jurisdicional ao autor da ação.
A ausência do pagamento concreto do dano, ou seja, quando não se efetuou, de fato, o ressarcimento por meio dos precatórios ao particular lesado, culmina na inexistência de interesse de agir. Em verdade, o exercício do direito de ação, “à evidência, tem como pressuposto lógico a satisfação do pagamento da condenação à vítima do prejuízo” [23].
Entende-se, pois, que tal exercício fora da constituição definitiva do dever patrimonial de indenizar, gera ao Estado um locupletamento, tendo em vista a quantia relativa ao dano, ainda não ter ocasionado um prejuízo ao erário. Não enseja, portanto, o direito à indenização por parte do Poder Público, já que nem ao menos o dano existe. Isto porque:
A só condenação do Estado, mesmo que transitada em julgado a decisão não importa em o imediato interesse processual na ação de indenização a ser movida contra o agente. A não ser assim, ter-se-ia que admitir que, mesmo sem ser tido prejuízo efetivo, o Estado estaria habilitado a postular o ressarcimento em face do agente. Mas como se entender nesse caso o direito de regresso? [24] .
Certo é que o próprio teor da palavra regresso indica a necessidade de o dano ter sido causado e o Estado postular o ressarcimento ao erário, devendo se observar o próprio preceito intrínseco à ação regressiva, como já entendeu a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[25].
A jurisprudência, no entanto, não é uníssona. O supracitado tribunal, desta vez, por meio de entendimento exarado pela 1ª Turma, asseverou não ser necessário o deslinde da ação indenizatória para a propositura da ação de regresso[26].
Não se olvide, outrossim, que, respaldando o entendimento aqui defendido, a ação regressiva, consoante outrora explanado, é imprescritível, não tendo qualquer sentido esta ser proposta antes do efetivo prejuízo à Fazenda Pública, se o Estado foi acionado primeiro.
Por fim, deve-se salientar que o direito de regresso deve ser utilizado de modo irrestrito, não sendo apenas uma garantia ao Poder Público, mas um “dever-poder de promover a ação regressiva contra o agente estatal cuja conduta gerou a condenação” [27].
Ensina Numa Pereira do Vale:
seja qual for a categoria hierárquica do funcionário, seja eletivo ou de nomeação, está sujeito a essa ação, além da criminal, no que couber; e o seu uso ou emprego, sem nenhuma tergiversação, constituirá uma medida de grande potência moralizadora e um poderoso instrumento de educação cívica e política[28].
De fato, propor ação em desfavor do agente que ocasionou dano consubstancia medida eficaz para sanar as deficiências existentes no Poder Público, em obediência estrita aos princípios da Administração, tais como o da moralidade e eficiência, além de instituir uma sanção necessária ao ato danoso gerado, de modo a evitar sua ocorrência reiterada.
A duplicidade da relação jurídica gerada pela responsabilidade extracontratual do Estado nas ações indenizatórias, qual seja, entre o Estado e o particular, bem assim entre o agente público causador do dano e a Administração, faz com que alguns doutrinadores defendam que o Art. 37, § 6º da CRFB/88 alude a duas garantias. Isto porque:
A reparação do dano causado pela Administração a terceiros obtém-se amigavelmente ou por meio da ação de indenização, e, uma vez indenizada a lesão da vítima, fica a entidade pública com o direito de voltar-se contra o servidor culpado para haver dele o despendido, através da ação regressiva autorizada pelo § 6º do art. 37 da CF. O legislador constituinte bem separou as responsabilidades: o Estado indeniza a vítima; o agente indeniza o Estado, regressivamente[29].
Desta feita, a primeira garantia refere-se ao lesado, garantindo-lhe o ajuizamento da ação contra o Estado, ente mais solvente e que responde, de forma objetiva, enquanto a segunda faz menção ao agente público, garantindo que somente o Estado pode intentar a ação, de forma regressiva, após a apuração do dano, contra o servidor, nos moldes da responsabilidade subjetiva. Ensina Odete Medauar:
O preceito constitucional estabelece duas relações de responsabilidade: a) a do poder público e seus delegados na prestação de serviços públicos perante a vítima do dano, de caráter objetivo, baseada no nexo causal; b) a do agente causador do dano perante a Administração ou empregador, de caráter subjetivo, calcada no dolo ou na culpa[30].
Perfilha tal entendimento, o previsto no Art. 122, § 2º da Lei nº 8.112/90[31], tendo em vista garantir ao servidor que, em se tratando de danos causados a terceiros, este responderá apenas perante a Fazenda Pública, em ação regressiva, desconstituindo a possibilidade de o lesado ingressar a ação diretamente contra o servidor público e “...afastando quer a denunciação à lide quer o litisconsórcio” [32].
Com isso, baseando-se em tal posição doutrinária, o único legitimado passivo da ação indenizatória de responsabilidade civil movida pelo lesado é o Estado, na medida em que contra o servidor somente a ação regressiva, cujo objeto é o ressarcimento ao erário, poderia ser proposta.
Portanto, “...o funcionário não pode ser obrigado a integrar a ação que a vítima intenta contra a Administração, no pressuposto de que o legislador constituinte separou as responsabilidades” [33].
No ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF), instado a se manifestar acerca desse assunto, por meio de Recurso Extraordinário, perfilhou o entendimento de que tal dispositivo legal consagra a teoria da dupla garantia[34].
Entendeu o STF que a ação proposta diretamente contra o agente público causador do dano, nesta qualidade, representaria uma sobreposição de etapas, sendo que estas restariam bem delineadas no dispositivo constitucional, o qual preleciona, de forma expressa, estar assegurado apenas o direito de regresso em face do servidor, no caso de dolo ou culpa.
É que, segundo o entendimento, por interpretação literal e congruente do dispositivo constitucional, a ação, a ser primeiramente intentada, seria a indenizatória contra o Estado, e somente depois, se verificada a existência de elemento subjetivo, a regressiva de ressarcimento ao erário, em face do agente causador do dano, por parte da Fazenda Pública, não podendo ser intentada a ação direta contra o servidor, per saltum.
Tal decisão, exarada pela 2ª Turma do STF, passou a prevalecer em muitos tribunais, permeando um benefício exclusivo ao servidor público, na medida em que retirou do particular a faculdade de optar pelo provimento jurisdicional que ele considera mais útil e eficaz ao alcance de seu direito à indenização, qual seja propor a ação contra o Estado ou contra o servidor.
De acordo com Blasi, “as decisões do STF têm (SIC) sido categóricas em não admitir essa possibilidade” [35]. Assim, com a predominância de tal precedente, as ações movidas pelo particular diretamente contra o servidor público restariam carentes de ação, visto que faltaria legitimidade passiva ao agente público na lide indenizatória, sendo, pois, estas extintas sem resolução do mérito.
De se ver, portanto, que, nos ditames da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o mandamento constitucional, perpassado em seu histórico por uma garantia ao particular lesado, passou a nortear, também, uma garantia ao servidor público causador do dano, o que, de fato, não condiz com a verdadeira interpretação da norma, consoante ver-se-á, no decorrer do presente trabalho.
CONCLUSÃO
Verifica-se, pois, que atualmente há controvérsia jurisprudencial em relação à possibilidade de se ingressar com ação indenizatória diretamente contra o servidor público. O Superior Tribunal de Justiça entende haver plenamente essa viabilidade, enquanto o Supremo Tribunal Federal defende a teoria da dupla garantia, somente podendo o Estado demandar contra o servidor, não o particular lesado.
REFERÊNCIAS
[1]. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 191.
[2]. Art. 333. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Vide nova redação do Projeto do Novo CPC (Projeto de Lei 8.046/2010), a qual acrescenta ao dispositivo a ressalva do ônus da prova com base nos poderes do juiz, como no caso das inversões no âmbito da responsabilidade objetiva do Estado, in verbis: Art. 357. O ônus da prova, ressalvados os poderes do juiz, incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/quadro-comparativo-do-cpc-atual-e-pl-8.046-11 Acesso em: 13/8/2014.
[3]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 555
[4]. ZANCANER, Weida. Da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 70.
[5]. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 654.
[6]. Art. 63, CPP. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
[7]. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 190.
[8]. Art. 100, CRFB/88. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim (...)
[9]. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 1024.
[10]. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 1024
[11]. Art. 188, CPC. Computar-se-á em quádruplo o prazo para contestar e em dobro para recorrer quando a parte for a Fazenda Pública ou o Ministério Público. Vide nova redação do Projeto do Novo CPC (Projeto de Lei 8.046/2010), a qual, apesar de estipular o prazo em dobro para qualquer manifestação da Fazenda Pública não reduzirá suas prerrogativas, in verbis: (Art. 106): A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público gozarão de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais, cuja contagem terá início a partir da vista pessoal dos autos. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/quadro-comparativo-do-cpc-atual-e-pl-8.046-11 Acesso em: 14/8/2014.
[12]. Art. 475, CPC. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público. Vide nova redação do Projeto do Novo CPC (Projeto de Lei 8.046/2010), a qual modifica o valor da condenação que não se aplicará o reexame necessário que antes era somente de sessenta salário mínimos, in verbis: (Art 483): § 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que o valor da condenação, do proveito, do benefício ou da vantagem econômica em discussão for de valor certo inferior a: I – mil salários mínimos para União e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II – quinhentos salários mínimos para os Estados, o Distrito Federal e as respectivas autarquias e fundações de direito público, bem assim para as capitais dos Estados; III – cem salários mínimos para todos os demais municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/quadro-comparativo-do-cpc-atual-e-pl-8.046-11 Acesso em: 14/8/2014.
[13]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 579
[14]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 579
[15]. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 211.
[16]. Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
[17]. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 655.
[18]. Art. 37 (...) § 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.
[19]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 581.
[20]. STF - RE: 606224 SE, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA Data de Julgamento: 19/03/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 16-04-2013 PUBLIC 17-04-2013. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23101193/agreg-no-recurso-extraordinario-re-606224-se-stf. Acesso em: 14/8/2014.
[21]. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 655.
[22]. Vide nova redação do Projeto do Novo CPC (Projeto de Lei 8.046/2010), a qual exclui a possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação, in verbis (Art. 17): Para propor a ação é necessário ter interesse e legitimidade. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/quadro-comparativo-do-cpc-atual-e-pl-8.046-11 Acesso em: 14/8/2014.
[23]. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 211.
[24]. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.579
[25]. REsp: 328.391-DF, 2001/0074006-0, T2 - SEGUNDA TURMA, Relator: Ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 08/10/2002. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia Acesso em: 8 de agosto de 2014.
[26]. REsp: 236.837-RS, T1 – PRIMEIRA TURMA, Relator: Ministro Garcia Vieira. Data de julgamento: 03/02/2000. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia Acesso em: 8 de agosto de 2014.
[27]. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P. 1096.
[28]. DO VALE, Numa P. apud CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 215.
[29]. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 654/655.
[30]. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2003. P. 397
[31]. Art. 122. A responsabilidade civil decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiros. (...)§ 2o Tratando-se de dano causado a terceiros, responderá o servidor perante a Fazenda Pública, em ação regressiva.
[32]. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 20 Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 628.
[33]. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2012, p. 169.
[34]. STF, RE 327.904-SP, Rel. Min. Carlos Britto, Data de julgamento: 15.8.2006, Data de Publicação: 8.9.2006. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=327904&classe=RE&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M Acesso em: 14.8.2014
[35]. BLASI, Marcos Chucralla Moherdaui. Panorama atual da responsabilidade do Estado em matéria de serviços públicos na jurisprudência do STF. Revista Eletrônica de Direito Adminstrativo Econômico, Bahia, 2001, n. 25
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIOGO, Cristiane Sampaio. Ações indenizatórias e regressivas por parte do Estado e a teoria da dupla garantia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 ago 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50599/acoes-indenizatorias-e-regressivas-por-parte-do-estado-e-a-teoria-da-dupla-garantia. Acesso em: 08 nov 2024.
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