1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho cinge-se à controvérsia que tange ao instituto da ‘abstrativização’ do controle concreto de constitucionalidade que tem sido verificado em âmbito constitucional e infraconstitucional. Confrontar-se-á, portanto, os modelos de controle de constitucionalidade adotados pelo ordenamento jurídico pátrio, de modo a analisar a vinculação de seus efeitos com base no posicionamento da doutrina e jurisprudência.
2. DESENVOLVIMENTO
O controle concreto é exercido por qualquer órgão judicial (juiz ou tribunal, havendo a necessidade de observância à cláusula de reserva de plenário nesse caso), na apreciação de uma lide onde as partes defendem seus respectivos direitos. Nesse caso, portanto, a inconstitucionalidade é uma questão prejudicial ao pedido principal, e a eficácia da decisão, sob o aspecto subjetivo, limita-se às partes envolvidas no processo, não atingindo a esfera de direitos de terceiros, justamente por tratar-se da apreciação de um caso concreto. Leciona Gilmar Mendes, in verbis:
“[...] o controle de constitucionalidade difuso, concreto, incidental, caracteriza-se, fundamentalmente, também no Direito brasileiro, pela verificação de uma questão concreta de inconstitucionalidade, ou seja, de dúvida quanto à constitucionalidade de ato normativo a ser aplicado num caso submetido à apreciação do Poder Judiciário”.[1]
Já o controle abstrato fundamenta-se na análise da constitucionalidade da lei como objeto principal (autônomo) da causa. A lei, cuja constitucionalidade é questionada, é o único objeto demandado, sendo apreciada por algum órgão dotado de competência originária para a análise da constitucionalidade das leis. Nessa espécie de controle, a decisão produz eficácia erga omnes (isto é, contra todos) possuindo efeito vinculante.
As terminologias utilizadas para adjetivar os tipos de controle são antagônicas entre si: pela perspectiva subjetiva ou orgânica, denominam-se concentrado e difuso; pela perspectiva formal, pela via incidental ou via principal. Por fim, há, ainda, a dicotomia entre o controle concreto e abstrato. No que diz respeito a essa última classificação, perquire-se, como o próprio nomen juris sugere, se o controle é realizado a partir de um caso concreto ou em abstrato. Assim, muito embora a controvérsia cinja-se aqui à “abstrativização do controle concreto”, pode-se, trabalhando com a sinonímia supra apresentada, utilizar outras denominações para o mesmo objeto de estudo.[2]
A abstrativização do controle concreto pode ser resumidamente conceituada como a possibilidade de uma decisão, em sede de controle concreto, ter efeitos erga omnes, aproximando o controle concreto do controle abstrato, sem haver a necessidade de pronunciamento do Senado Federal, tal qual previsto pelo art. 52, X, da CRFB/88.
Gilmar Mendes fala na ocorrência de uma verdadeira mutação constitucional no que diz respeito a regra preconizada pelo art. 52, X, da CRFB/88, posicionando-se na mesma linha Teori Zavascki, também favorável ao efeito vinculante de decisão mesmo em se tratando de controle difuso, ambos posicionamentos em sede doutrinária.[3]
Já em sede jurisprudencial, Gilmar Mendes, enquanto relator da Reclamação n. 4.335/AC, julgada procedente, sustentou que, no contexto da atual Carta Maior, a amplitude do controle abstrato de normas aliada a possibilidade de suspender, liminarmente e com eficácia geral, a eficácia de leis ou atos normativos enfraqueceram a razão de ser do instituto da suspensão da execução do ato pelo Senado. Segundo o relator, a decisão do Supremo Tribunal Federal mesmo em sede de controle concentrado já tem, por si só, efeitos gerais, sendo despicienda a resolução do Senado Federal para suspender a execução de lei, que, in casu, teria apenas efeito de dar publicidade (para que seja a decisão publicada no Diário do Congresso).[4]
No mesmo sentido é o posicionamento de Barroso, ipsis litteris:
“A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há lógica razoável em sua manutenção”.[5]
Parcela mais tradicional da doutrina posiciona-se de maneira contrária, sendo Alfredo Buzaid um de seus expoentes, para quem há a impossibilidade da referida mutação para abstrativizar o controle difuso, pois o art. 469, III, do Código de Processo Civil, preconiza que a apreciação de questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo não faz coisa julgada.[6] Nesse sentido, não poderia ser oposta erga omnes, tendo eficácia apenas inter partes.
Segundo Pedro Lenza, muito embora a tendência ora analisada traga inúmeros benefícios em termos de economia e celeridade processual, além de efetividade do processo, inexistem dispositivos e regras para fundamentar sua aplicação. Nesse sentido, o autor afirma ser necessária uma reforma constitucional – tendo em vista o art. 52, X e o próprio art. 97 da CRFB/88 – para que seja assegurada a constitucionalidade da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso.
Sob o viés legislativo pode-se dizer que a tendência do legislador infraconstitucional é no sentido de que as decisões, mesmo em sede de controle concreto, transcendam efeitos para além das partes envolvidas. Referida ideia está presente no instituto da repercussão geral no recurso extraordinário (art. 543-A do CPC), valendo-se da técnica de amostragem quando houver a multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, cuja linha de raciocínio foi também aplicada para o recurso especial (art. 543-C). Segundo aduz Pedro Lenza, parte-se da análise de situações concretas, com caráter subjetivo e em defesa de direitos individuais das partes, que repercutirão sobre os processos que foram sobrestados.[7]
3. CONCLUSÃO
Muito embora trate-se de uma tendência moderna, e, portanto, ainda pouco difundida entre a maioria dos doutrinadores e aplicada entre os operadores do direito, é inegável que a abstrativização do controle concentrado opera diversas vantagens, resguardando a força normativa da Constituição, sua supremacia e aplicação uniforme, além de impulsionar a celeridade e economia processual, já que não mais seria necessário ajuizar ações abstratas de constitucionalidade diante da eficácia erga omnes de um julgamento via incidental.
Contudo, tal qual afirma Pedro Lenza, inexistem dispositivos ou regras expressos na Constituição sobre a matéria, o que leva parte da doutrina rechaçar a constitucionalidade da referida mutação, que confere poderes demasiadamente grandes ao Judiciário, não previstos pelo constituinte originário, e coloca em risco a separação de poderes e o equilíbrio entre eles.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
ZAVASCKI, Teori Albino. Eficária das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional, 2010, Saraiva, p. 1224.
[2] A título de exemplo, Pedro Lenza em sua obra “Direito Constitucional Esquematizado” vale-se da denominação ‘abstrativização do controle difuso’.
[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, p. 135-136.
[4] Informativo 454 do STF, disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo454.htm#Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle da Constitucionalidade – 1>
[5] BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, p. 129-130.
[6] BUZAID, Alfredo. Da ação direta de inconstitucionalidade no direito brasileiro, p. 87-88.
[7] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado, p. 323.
Advogado, especialista em Direito Público com pós-graduação pela Universidade Anhaguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUTO, Rafael José Farias. "Abstrativização" no âmbito do controle concreto de constitucionalidade: cenário jurídico atual brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50748/quot-abstrativizacao-quot-no-ambito-do-controle-concreto-de-constitucionalidade-cenario-juridico-atual-brasileiro. Acesso em: 02 abr 2025.
Por: CARLOS FREDERICO RUBINO POLARI DE ALVERGA
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: EDUARDO CARLOS RAMALHOSA HORTENCIO
Precisa estar logado para fazer comentários.