A lei 10.406/02, conhecida como Código Civil, institui em seu artigo 769 que “o segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé.”
Em síntese, o Código Civil determina que o segurado deve comunicar sua seguradora todo e qualquer motivo que possa aumentar o risco envolvido na relação securitária e, caso não a informe por má-fé, poderá perder o direito à garantia prevista na apólice.
A questão a ser analisada é, o que seria um incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto?
Para algumas companhias, em caso de seguro de automóvel, por exemplo, as características pessoais do segurado são importantíssimas para aferir o risco e consequentemente calcular o prêmio a ser cobrado. Por esse prisma, não é raro observar seguradoras negando o pagamento da indenização securitária para o segurado que se mudou de endereço e não a informou; ou que passou a usar o automóvel para trabalhar e não informou essa mudança para a seguradora; ou mesmo quando o filho do segurado completou 18 anos e passou a usar o veículo sem que isso tenha sido avisado para a companhia.
Entretanto, é importante considerar que algumas seguradoras extrapolam os limites legais e deturpam a regra contida no artigo 769 acima mencionado, exigindo do segurado informações de ordem privada e íntima, e cuja a implicação no agravamento do risco são bastante questionáveis.
Já são notados no mercado de seguro algumas recusas de pagamento por parte das companhias seguradoras com base na alteração da vida conjugal do segurado. Isto significa que, em alguns casos, as seguradoras se recusam a pagar a indenização securitária ao segurado que se divorciou e não a comunicou, invadindo o direito à privacidade e a intimidade, previstos na Constituição Federal (art. 5.º, inciso X).
É neste contexto que se deve considerar a teoria do adimplemento substancial do contrato, já bem fixada nas diversas fontes do direito. Esta teoria estabelece que, em um contrato de prestações continuadas, como é o caso de alguns tipos de contrato de seguro, o inadimplemento deve ser significativo, considerando o valor total da obrigação, para que seja possível a rescisão do pacto.
Neste sentido é o conceito apresentado por Clóvis Couto e Silva para o adimplemento substancial: "Constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)".
Esta teoria tem encontrado respaldo nos tribunais brasileiros, cuja jurisprudência se firma no sentido de que, se houve o cumprimento de 98% do contrato (prêmios pagos, regras contratuais cumpridas), não é razoável que seja rescindido porque o estado marital do segurado foi alterado, por exemplo.
Veja-se o conceito utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, para aplicar a teoria do adimplemento substancial: “Atualmente, o fundamento para aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito brasileiro é a cláusula geral do art. 187 do Código Civil de 2002, que permite a limitação do exercício de um direito subjetivo pelo seu titular quando se colocar em confronto com o princípio da boa-fé objetiva. Ocorrendo o inadimplemento da obrigação pelo devedor, pode o credor optar por exigir seu cumprimento coercitivo ou pedir a resolução do contrato (artigo 475 do CC). Entretanto, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, e daí a expressão “adimplemento substancial”, limita-se esse direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma iniquidade. Naturalmente, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Poderá o credor optar pela exigência do seu crédito (ações de cumprimento da obrigação) ou postular o pagamento de uma indenização (perdas e danos), mas não a extinção do contrato” - (STJ – Recurso Especial n.º 1.200.105 - AM (2010/0111335-0), relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgamento 19/06/2012)
No caso específico de pequenas alterações da vida íntima do segurado, a teoria do adimplemento substancial possui aplicação prática importantíssima no que diz respeito à continuidade do contrato.
É possível utilizar a teoria acima para, por exemplo, justificar a continuidade do contrato, pagando-se a diferença do prêmio apurado para casos de mudança da vida pessoal do contratante, quitando eventual saldo que não foi pago antes da ocorrência do sinistro, uma vez que a alteração pessoal impacta em valor relativamente pequeno face a cobertura total.
Assim, a teoria do adimplemento substancial possui uma estreita relação com o princípio da função social dos contratos, pois permite a purgação de um valor de prêmio mesmo após a ocorrência do sinistro para que o segurado não perca toda a cobertura em detrimento de uma mudança de seu cotidiano.
Diante do acima exposto, conclui-se que as normas e regras contratuais sobre extinção ou cancelamento de contratos de seguro devem considerar a teoria do adimplemento substancial, da boa-fé objetiva, bem como da função social do contrato. Resumindo, não é razoável negar ao segurado a possibilidade de pagar os eventuais novos valores apurados, preservando seu contrato, quando o inadimplemento em si não é significativo em relação à cobertura total.
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