RESUMO: O presente estudo objetiva investigar a proteção jurídica do afeto nas relações familiares no ordenamento jurídico e sua importância tanto para a configuração da entidade familiar, a filiação e o dever de convivência familiar dos pais com os filhos. Ademais, pretende-se verificar o ilícito civil decorrente da omissão do dever de cuidado dos genitores em relação a sua prole que configura o dever de indenizar decorrente do abandono afetivo.
Palavras-chave: Direito de família. Filiação. Socioafetividade. Afeto. Convivência familiar. Paternidade responsável. Dignidade humana. Responsabilidade civil. Abandono afetivo.
RESUMEN: El presente estudio tiene como objetivo investigar la protección jurídica del afecto en las relaciones familiares en el ordenamiento jurídico y su importancia tanto para la configuración de la entidad familiar, la afiliación y el deber de convivencia familiar de los padres con los hijos. Además, se pretende verificar el ilícito civil resultante de la omisión del deber de cuidado de los genitores en relación a su prole que configura el deber de indemnizar derivado del abandono afectivo.
Palabras clave: Derecho de familia. Filiación. Socioactividad. Afecto. Convivencia familiar. Paternidad responsable. Dignidad humana. Responsabilidad civil. Abandono afectivo.
Sumário: 1. As transformações de valores nas relações familiares a partir da Constituição Federal de 1988. 1.2 O Afeto no Código Civil de 2002. 2. O afeto nas três dimensões do direito. 3. Do Abandono Afetivo e do dever de indenizar. Conclusões. Referências.
1. AS TRANSFORMAÇÕES DE VALORES NAS RELAÇÕES FAMILIARES A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Constituição Federal de 1988 surge em meio a um Código Civil desatualizado e a uma legislação ordinária dispersa, a fim de reunificar o direito privado, imprimindo uma nova tábua de valores e trazendo grandes transformações no Direito de Família.
Dois fatores influenciaram de maneira decisiva a transformação da família patriarcal, assim como do direito privado: a urbanização e inclusão da mulher no mercado de trabalho, conferindo maiores poderes econômico e social. Tendo em vista essa mudança social, verificou-se a valorização da figura feminina, a igualdade entre homem e mulher, seguida de uma divisão de tarefas entre os cônjuges no âmbito familiar e a consequente redução da prole, o que possibilitou um maior convívio entre os membros familiares, criando laços de afeto que os unem e os identificam.
Conforme ensina Jacqueline Filgueiras Nogueira: “A nova família perde em número de membros, mas ganha em qualidade de afeto, uma vez que, reduzido o círculo familiar, estreitam os laços de sentimento [...] se tornando uns suportes emocionais dos outros [...]”[1]. O ser, por si só, passou a ser valorizado na relação familiar afastando o interesse patrimonial e institucional que até então existia para dar espaço aos sentimentos pessoais, à busca pela felicidade de cada membro familiar, decorrente do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Familiar), configurando a denominada família eudemonista.
Diante dessa mudança expressiva de valores da sociedade, surge a Constituição Federal de 1988 para contrapor o modelo totalitário do Código Civil de 1916, a fim de elevar o indivíduo, consolidando como núcleo do ordenamento jurídico a dignidade humana, em detrimento dos interesses de cunho pecuniário.
As transformações no Direito de Família foram expressivas, especialmente no que tange ao conceito de família e de filiação. Isto porque passaram a ser reconhecidos outros tipos de família além daquela fundada no matrimônio; entendeu-se que entidade familiar é um grupo de indivíduos ligados voluntariamente por elos afetivos, independente de identidade sanguínea, ou formalidades matrimoniais, com o objetivo de satisfação existencial e emocional tanto pessoal como coletiva.
Nota-se a prevalência dos interesses da pessoa humana no grupo familiar, configurando a família como espaço de realização pessoal e da dignidade humana em que são valorizadas as aptidões de seus membros, bem como seus anseios e sentimentos. Verifica-se a transformação do núcleo do Direito que passa a ser o indivíduo e, mais especificamente, no Direito de Família, a afetividade, conduzindo ao fenômeno jurídico-social denominado de repersonalização das relações civis, em que há a recusa da coisificação da pessoa, para ressaltar a sua dignidade.[2] Ensina Paulo Lôbo:
A repersonalização, posta nesses termos, não significa um retorno ao vago humanismo da fase liberal, ao individualismo, mas é a afirmação da finalidade mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa no grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade – no viver com o outro.[3]
Passou-se a reconhecer situações que antes não eram legitimadas pelo direito e que, apesar de possuírem todas as características da verdadeira paternidade, exceto a origem biológica, eram relegadas pelo direito brasileiro, deixando desprotegidos os filhos criados pelo afeto. A Carta Magna inova ao reconhecer a filiação também às situações de fato, isto é, ao estabelecer que as relações não cobertas pelo manto da consanguinidade, nem pelas formalidades da adoção, mas somente pela afetividade, também devem ser declaradas como legítimas, elevando à condição de filho aquele criado por uma simples relação de amor.
Embora não haja menção expressa ao princípio da afetividade no ordenamento jurídico brasileiro, a Carta Magna vigente apresenta quatro fundamentos capazes de assegurar tal princípio, quando concretiza a igualdade de todos os filhos independentemente da origem, conforme o art. 227, § 6
°, bem como o reconhecimento da adoção advinda do afeto (art. 227, §§ 5º e 6º), como também a previsão do art. 226, § 4º, ao dispor sobre a tutela estatal da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, e, por último, o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente (art. 227).
Esta última regra configura a denominada proteção integral do menor, ao passo que reconhece como direito fundamental da criança a convivência familiar, transformando-a em sujeito de direito, em respeito à dignidade da pessoa humana. O princípio da afetividade também é recepcionado pela Constituição Federal com base no art. 5º, §2º[4], e certamente decorre do princípio da dignidade da pessoa humana.
Ademais, além de o afeto ser elemento jurídico para configuração de uma entidade familiar e da filiação socioafetiva, também é um dever imposto àqueles que detêm o poder familiar, e decorre do dever de cuidado a eles atribuído em relação à prole no que tange ao dever de educação, criação e companhia que os pais devem ter com os filhos (art. 229 da Constituição Federal e 22 da Lei n.º8.069/90), o que advém do princípio da paternidade responsável no sentido de atribuir deveres muito além aos de assistência material àquele que optar, livremente, em gerar um filho (art. 226, §7º, da Carta Magna), como o dever de participar de seu desenvolvimento de forma ativa e positiva para fomentar o saudável desenvolvimento da personalidade de sua prole.
Portanto, verifica-se que o objetivo máximo da nova norma é a felicidade do ser humano, sendo, portanto, imperiosa a tutela constitucional expressa do afeto como valor jurídico, independentemente se resulta de elos de consanguinidade ou de afinidade.
1.2 O AFETO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Não obstante não tenha constado expressamente, a Constituição Federal (como já foi analisado acima), bem como o atual Código Civil reconheceram, ainda que indiretamente, a filiação socioafetiva, alcançando todos os direitos aos filhos do coração, admitindo que tal relação também gera vínculo de parentesco. O art. 1.593, do Código Civil, consagrou o parentesco em duas espécies: o natural, se decorrente da consanguinidade, e o civil, se advindo de “outra origem”, evidenciando a abertura do sistema à recepção de novas formas de elos familiares, independentemente do modo pelo qual foram constituídos. Depreende-se desta regra que os filhos podem provir do casamento, da união estável, da entidade monoparental, ou até mesmo de outra entidade familiar reconhecida implicitamente pelo ordenamento jurídico, sendo indiferente a existência de vínculo biológico ou não. Ensina Maria Benenice Dias:
Existem três critérios para o estabelecimento do vínculo parental: a) critério jurídico – previsto no Código Civil, estabelece a paternidade por presunção, independentemente da correspondência ou não com a realidade (CC 1.597); b) critério biológico – é o preferido, principalmente em face da popularização do exame do DNA; e c) critério socioafetivo – fundado no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa humana, segundo o qual pai é o que exerce tal função, mesmo que não haja vínculo de sangue. A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os três pilares constitucionalmente fixados: plena igualdade entre filhos, desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina da proteção integral.[5] (a grifo nosso)
Neste aspecto, a filiação passa a ser reconhecida pelo simples fato de haver amor, confiança, identidade psicológica e afeto, advindos de uma convivência consistente que dá origem a elos de afinidade e afetividade entre pessoas que, sem haver consanguinidade, se amam e se reconhecem como família. Há valorização do sentimento, há verificação do animus em ser pai ou mãe, em criar uma pessoa como filho, participando de forma efetiva de sua educação e desenvolvimento através do convívio.
Ademais, o afeto também encontra-se presente nas relações familiares protegidas pelo Código Civil quando estabelece que o exercício do poder familiar consiste na direção de criação e educação dos filhos (art. 1,634, I, do CC), o que consagra o direito à convivência familiar entre filhos e pais, assegurando, inclusive, o direito de visitas e estarem em companhia (art. 1.588 do CC),evidenciando que o dever de cuidado na relação parental não é apenas um direito, mas também um dever inerente à condição de genitor.
2. O AFETO NAS TRÊS DIMENSÕES DO DIREITO
Conforme Sérgio Resende de Barros, o afeto aparece, de forma diversa, em cada uma das três dimensões clássicas do Direito.[6] A primeira geração dos direitos pretendeu tutelar os direitos individuais, os quais versam sobre o que o cidadão está autorizado a fazer, constituindo a liberdade individual como direito fundamental do ser humano, ou melhor, constituindo direitos humanos na forma de liberdades individuais.
Dessa forma, o afeto passou a ser reconhecido como direito individual na medida em que foi assegurado o direito de amar alguém e de ser amado, independentemente da origem ou da condição do indivíduo, por livre e espontânea vontade decorrente de uma relação entre pessoas que se afeiçoam em razão de afinidade. O afeto é reconhecido na Constituição Federal como direito individual implícito no art. 5º, § 2º, configurado em uma liberdade constitucional que deve ser tutelada e respeitada.
Após a primeira geração, verificou-se a ineficácia da mera declaração dos direitos fundamentais, ainda que por força de lei, pois a liberdade estava assentada em uma igualdade meramente formal, que não chegava a ser alcançada na prática, diante da disparidade dos meios culturais, sociais e econômicos dispostos na sociedade, o que impedia a realização tanto da liberdade quanto da igualdade, figurando-as, praticamente, como letra morta da lei. Sendo assim, tornou-se necessário garantir a eficácia social dos direitos individuais do homem para que se tornassem uma realidade. Para tanto, foram incentivados os meios sociais, culturais e econômicos como única forma de assegurar os direitos fundamentais, a fim de reconhecer as reais desigualdades existentes no corpo social e a partir daí gerar uma igualdade de direitos entre todos.
Assim, a fim de garantir os direitos individuais, surgiram os direitos de segunda geração, em que se passou a tutelar as categorias mais fracas da sociedade para resguardar a igualdade social ao tratar desigualmente as classes visivelmente desiguais e desprotegidas a fim de atender suas necessidades e anseios, permitindo o exercício dos direitos individuais.
Quanto ao afeto nesta geração, verifica-se que uma relação de afeição gera vínculos, dando ensejo a outros fatos que o direito tutela, devendo ser encarado como fator social, gerador de obrigação e responsabilidade em face da sua importância na sociedade. É fator social, pois gera direitos e obrigações como casamento, filiação, alimentos. Assim, desde sua origem, o afeto, na verdade, obriga de modo natural em razão da força emotiva envolvida em uma relação, desenvolvendo uma função social inerente. O objetivo é coadunar liberdade de afeição à responsabilidade, pois a permissão em lei, também gera obrigações.
Já no século XX, diante dos episódios como as guerras e os genocídios vivenciados, surgiu a preocupação de proteger o homem e sua sobrevivência contra o próprio ser humano. Surgem, assim, os direitos de terceira geração, denominados de direitos de solidariedade, pretendendo tutelar a espécie humana como um todo, constituindo, para tanto, direitos sociais genéricos como direito à paz, à preservação ao meio ambiente, entre outros. São direitos difusos, devendo ser interpretados simultaneamente aos direitos de primeira e segunda geração, evidenciando uma necessária coexistência dessas gerações para que haja a efetiva concretização dos direitos garantidos em lei.
Nesta última fase, o afeto aparece como direito baseado na solidariedade, gerando responsabilidade solidária, ou seja, “obriga todos os sujeitos no necessário a preservar com dignidade o gênero humano”.[7] Assim, o art. 227, da Constituição Federal, imputa tal obrigação à família, mas também à sociedade e ao Estado, criando a regra de que todos devem assegurar condições de dignidade à criança e aos adolescentes, e na falta de um deles, suprir sua ausência de modo efetivo no desenvolvimento e criação do menor.
Em suma, verifica-se que o afeto, de fato, é reconhecido como direito, estando articulado na Constituição Federal entre as três dimensões do direito ao garantir o próprio afeto e seus efeitos, devendo todas as gerações ser interpretadas simultaneamente, completando uma as outras, a fim de consagrar o princípio máximo: a dignidade da pessoa humana.
3. DO ABANDONO AFETIVO E O DEVER DE INDENIZAR
O princípio da dignidade da pessoa humana objetiva enaltecer o ser humano como centro do ordenamento jurídico e de todas as outras coisas, devendo ter prioridade sobre qualquer interesse, e elevado em primeiro plano nas relações civis, dando origem ao fenômeno da personalização, ou da repersonificação do direito. Este princípio visa a assegurar ao homem os direitos e garantias fundamentais previstos em lei, a fim de impedir todo o ato atentatório contra sua dignidade, podendo ser esta interpretada como sinônimo de felicidade. O ser humano para ser plenamente feliz precisa conviver em sociedade, necessita do contato com outros indivíduos, o que dará origem a uma relação assentada no afeto, a qual deve ser tutelada, sob pena de violação a sua dignidade, ao seu direito de ser feliz, garantindo o direito à filiação integral, o que incluiu o direito de ser criado na companhia e na convivência com os pais, desde que não prejudique seu interesse e desenvolvimento.
Conforme demonstrado anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro assegura o direito e o dever dos pais de terem seus filhos em sua companhia, de educa-los, cria-los (art. 229 da Carta Magna e art. 1.634, I, do CC), o que somente é possível através da convivência familiar, sendo esta um direito fundamental da criança e adolescente (art. 227 da Constituição Federal e art. 19 da Lei n.º8.069/30) com prioridade absoluta, decorrente dos princípios da proteção integral (art. 1º, 3º e 4º da Lei n.º8.069/90), do melhor interesse do menor, sendo imprescindível para o desenvolvimento saudável de sua personalidade e concretização de sua dignidade (art. 6º da Lei n.º8.069/90).
Depreende-se do princípio da paternidade responsável, disposto no art. 226, §7º, da Constituição Federal, a faculdade alcançada pela lei aos pais com relação à autonomia para decidir, de forma responsável e consciente, a questão de ter ou não filhos, bem como quantos pretendem e entendem razoável criar; este princípio também pode ser interpretado no sentido da responsabilidade dos pais para com a prole mediante o exercício do dever parental.[8]
O referido dever de paternidade responsável está ligado à socioafetividade, pois a opção em ser pai deriva expressamente dessa autonomia garantida pelo Estado de escolher acerca da concretização da paternidade ou da maternidade, contudo a lei também exige ser essa opção exercida de forma razoável e consciente. Conforme Joubert R. Rezende: “Há uma exigência da participação responsável dos atores sociais na busca da dignidade do ser humano [...]”[9], o que significa que todos, ao exercer o papel de pai ou mãe, ou não, principalmente no momento da escolha por esta qualidade, devem agir de forma responsável a fim de assumir todos os atributos inerentes à filiação.
Portanto, não se impõe a ninguém, nem mesmo aos genitores, o dever de amar, mas sim de cumprir suas obrigações jurídicas em relação a sua prole, deveres que foram assumidos livremente diante do exercício da paternidade responsável ao optar por gerar um filho, impondo-se, assim, o dever não apenas de satisfazer as necessidades vitais, como alimentos, moradia, saúde para que a pessoa sobreviva, mas também que cumpra outros elementos imateriais necessários para uma formação psíquica adequada, sendo o dever de cuidado, exercido através da convivência familiar, imprescindível ao desenvolvimento de um indivíduo com integridade física e psíquica saudável.
A Carta Magna, em seu art. 5º, incisos V e X, prevê expressamente a possibilidade de reparação por danos morais, assim como o Código Civil, em seu art. 186. A base principal que sustenta a reparação do dano moral está assentada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, concretizado no art. 1º, III, da Constituição Federal, e nos direitos da personalidade do indivíduo, evidenciando a preocupação primeira da ordem constitucional vigente de realçar os valores da pessoa humana como núcleo do ordenamento jurídico.
Ao contrário da reparação patrimonial, o dano moral, na verdade, é insusceptível de reparação ao status quo ante, podendo ser, no máximo, compensado por uma obrigação pecuniária a ser custeada pelo agente causador do dano, evidenciando ter muito mais uma função satisfatória do que reparatória. Este instituto também tem certo caráter punitivo ao agente a fim de desestimular novas agressões, quando o condena ao pagamento de quantia pecuniária, tendo função pedagógica tanto pessoal como social, embora não seja o aspecto mais importante da indenização. Assim, verifica-se a dupla função do dano moral: a compensatória e a punitiva/pedagógica, ainda que a primeira tenha destaque quanto esta última no âmbito da responsabilidade civil na relação de filiação.
Atualmente é imperiosa a correta configuração do dano moral de acordo com seu fundamento teórico a fim de evitar a sua banalização, para impedir que meros aborrecimentos do cotidiano deem margem ao pleito de indenização, o que pode dar origem a uma verdadeira industrialização da indenização, o que não é a finalidade do instituto.
De fato, não é qualquer contrariedade à dignidade humana que acarretará dano moral, mas somente aquelas situações que fogem à normalidade, influenciando intensamente no equilíbrio psicológico da vítima, causando-lhe sentimentos negativos, como perturbação psíquica, sofrimento, angústia, depressão, etc.
A valorização da realização pessoal do indivíduo dentro do núcleo familiar, bem como da afetividade nas relações familiares como meio de satisfação pessoal e do grupo mediante a igualdade de seus membros, o respeito mútuo entre eles, o amor e o afeto empenhado na relação passaram a ser tutelados pela ordem jurídica brasileira como valores intrínsecos da instituição familiar, devendo ser respeitados e impostos à todos, sejam partes ou não do grupo familiar, havendo consanguinidade ou não entre seus membros.
Assim, diante da tutela constitucional das relações familiares mediante o reconhecimento da necessidade de afeto entre seus membros como fonte garantidora de felicidade, ou seja, de dignidade humana, inclusive na relação de filiação em que há dever expresso nesse sentido, ou melhor, em exigir que os pais prestem tanto assistência material e moral, de forma integral e plena, na criação, educação e sustento dos filhos, vê-se que qualquer ação ou omissão daqueles nesse sentido pode ser punida, gerando o dever de indenizar a vítima que obteve sua esfera moral violada.
Assim, a omissão dos genitores, tanto biológicos como socioafetivos, no dever de cuidar seus filhos viola um bem jurídico consagrado constitucionalmente, qual seja, o dever de cuidado, proteção e educação de sua prole, omissão esta que, por violar uma imposição legal, pode configurar um dever de indenizar os danos causados decorrente do ilícito civil.
O objetivo da indenização é defendido como forma de compensar o irreversível prejuízo já sofrido pelo filho diante da ausência do genitor na formação e desenvolvimento de sua personalidade, que resultou em danos psíquicos significativos, podendo ser reparados mediante a aplicação da teoria da responsabilidade civil (arts. 186 e 927, do Código Civil) ou pela configuração do abuso do direito (art. 187, do Código Civil).
A condenação não é fixada pela falta de amor, mas sim pela violação dos deveres morais dos pais perante os filhos, ou seja, não se está obrigando ninguém a amar, muito menos o declarando culpado por não sentir afeto, mas sim por não obedecer a um comando legal que obriga todo aquele que gerar um ser humano no mundo de ser responsável pela criação de sua prole, de se incumbir de sua função parental.
A função da indenização é, sobretudo, compensatória, embora se admita o caráter punitivo e dissuassório, a fim de conscientizar os pais sobre o dano causado ao filho, e sinalizando para eles que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.[10] Não se tem culpa por não amar o filho, mas sim por negligenciá-lo, pois incumbe ao pai, no mínimo, manter uma relação de cordialidade com o filho, estando presente no seu desenvolvimento, amparando-o em todas as esferas de sua vida.
Neste sentido, entende o Superior Tribunal de Justiça que os sentimentos de mágoa e tristeza experimentados por filho e causados pela negligência dos genitores configuram dano moral in re ipsa (dano moral presumido, não necessidade de comprovação dos danos):
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012)[11]
Entretanto, é imprescindível a presença dos pressupostos da responsabilidade civil, como a conduta humana voluntária, revelando-se como uma ação ou omissão contrária à ordem legal, capaz de acarretar prejuízo alheio, bem como a culpa do genitor no cometimento de prejuízo gerado ao filho decorrente de sua omissão, sem razão, da criação e da educação do filho, não estando presente em sua vida, ocultando-se da convivência familiar, se sabia da condição de pai, ou de mãe, que lhe era devida e, mesmo assim, se afastou do convívio com o filho. Ademais, impõe-se a verificação do nexo causal entre a conduta e o dano, sendo necessário descobrir se o dano suportado pelo filho encontra relação imediata e determinante com a conduta do pai, ou da mãe. Parece ser este o elemento mais difícil de ser caracterizado no âmbito da filiação, por ter o dano, na maioria das vezes, caráter extremamente subjetivo e poder decorrer de uma cadeia de atos, sendo necessária a interferência de outras áreas como a psicologia, a medicina e a sociologia para revelar a relação entre os acontecimentos, sendo mesmo assim difícil a sua configuração.
Faz-se necessária uma profunda análise sobre o caso mediante perícia, laudos psicológicos e sociológicos sobre a vítima que permitam concluir qual a verdadeira causa que deu origem ao dano a fim de possibilitar a reparação pelo agente, sendo necessário empregar esforços lógicos, dedutivos, no sentido de verificar a ocasião em que os sintomas do dano começaram a se manifestar, se em momento posterior ou anterior ao abandono, ou se existem outras agressões à moral da vítima que ocorreram próximas à manifestação do dano, até mesmo para não decretar uma condenação injusta ao suposto agente.
CONCLUSÃO
Na filiação, os direitos fundamentais dos filhos avultam como prioridade a ser respeitada pelos pais, em razão do princípio da proteção integral do menor, devendo zelar pela sua dignidade, bem como pelo desenvolvimento completo de seus direitos personalíssimos, e, ainda, pela sua igualdade. Dessa maneira, as condutas dos pais devem ser repensadas no sentido de que são fatores determinantes para a determinação da vida dos filhos, seus comportamentos, sua saúde física e mental, e o destino que seguirão, revelando a responsabilidade social da família em criar e educar pessoas dignas como única forma de transformação da sociedade.
O afeto, consagrado como valor jurídico, deve ser entendido não só como instrumento de união familiar, mas também como direito de toda pessoa em ver atendidos suas necessidades imateriais (tanto moral, como intelectual e psíquica), as quais tem de ser proporcionadas pelos pais durante todo o crescimento do menor até, no mínimo, ter sua personalidade formada, considerando ser um direito de todo o ser humano de receber amparo psicofísico enquanto depende de seus genitores para desenvolver plenamente suas potencialidades mediante a participação efetiva dos atores familiares na convivência familiar do filho
Tendo em vista o crescente abandono de crianças e adolescentes, não só no sentido literal da palavra, mas também no sentido de que, mesmo conhecendo os pais, são desassistidas moralmente por eles, torna-se imperioso a tutela dos direitos e deveres na relação familiar, no que tange especificamente à filiação, para fazer valer o princípio da afetividade e da dignidade humana dos menores a fim de impedir atos contrários à função parental que caracterizem prejuízos à personalidade dos infantes.
No caso de descumprimento das funções parentais (ato ilícito), e até mesmo o desvio do exercício regular do dever parental (ato ilícito por abuso do direito), cumulado com a configuração de danos à personalidade do infante, estando presentes ainda os pressupostos básicos da responsabilidade civil (nexo causal e culpa), a reparação por danos morais é um meio de compensar a dor sofrida por aquele que teria direito de ver amparada suas necessidades psíquicas, e assim não foram, não havendo sofrimento mais cruel do que aquele que fere diretamente os sentimentos mais íntimos. Ao mesmo tempo, a indenização deve cumprir um papel pedagógico na sociedade, a fim de alertar sobre a obrigatoriedade da realização das funções parentais de forma plena, ou seja, mediante prestação do sustento alimentar, mas também de alimento para a alma, proporcionado através da relação afetiva entre pais e filhos.
Todavia, a reparação moral no âmbito da filiação deve ser aplicada com cautela, para evitar a banalização do instituto da responsabilidade civil, e ao mesmo tempo não monetizar as relações familiares para não servir como meio de locupletamento ilícito, ou forma de vingança pelos filhos ou por quem os represente em juízo. Se bem aplicada, e com bom senso, a responsabilidade civil nesta esfera pode ser um instrumento importante no direito de família a fim de representar um papel pedagógico nas relações familiares e perante a sociedade. Certo está que os prejuízos morais sofridos pelos menores devem ser reparados com danos morais, pois um ato contrário a sua dignidade humana, ainda mais por quem deveria zelar por ela em primeiro lugar, não pode ficar impune pelo direito, nem mesmo não dar uma resposta compensatória à vítima.
A compensação até pode se dar mediante condenação do genitor a pagar tratamento psicológico ou psiquiátrico especializado nos casos em que se verificar adequado, mas ao mesmo tempo o menor novamente será colocado sobre a arbitrariedade do genitor, pois este pode suspender o pagamento do tratamento e causar ainda mais danos psíquicos ao filho. Então, parece ser mais apropriada a reparação pecuniária pura, não como forma de coagir alguém a amar, nem mesmo para restabelecer uma relação que há muito não existia, pois nestes casos devem ser utilizadas as medidas assecuratórias para coagir a realização da visitação e sua execução, mas sim como forma compensatória e pedagógica, a fim de que gradativamente os genitores tenham consciência de sua responsabilidade frente ao afeto como fator determinante em uma personalidade em formação.
O mais importante é preservar o afeto, e o direito dos filhos de se relacionar com aqueles sobre os quais formaram a figura de pai, ou de mãe, mas, quando não for possível tal relacionamento, a indenização moral é adequada. Ainda que não acarrete verdadeiros benefícios emocionais ao filho, a responsabilização é um meio de repensar a função parental, seu verdadeiro significado e finalidade, a fim de que outros filhos, outras crianças possam ser amadas pelos pais que se deram conta de sua importância na relação paterno ou materno-filial, além de compensar à vítima pelo trauma sofrido. É evidente não ser possível substituir amor por dinheiro, mas não se pode deixar impune o genitor ausente, e ao mesmo tempo não tentar amparar, de certa forma, a vítima pelo abandono afetivo suportado.
REFERÊNCIAS:
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DATA: 24.10.2017.
[1] NOGUEIRA, Jacqueline Filgueras. A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2001.
[3] LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias.São Paulo: Saraiva, 2008.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 297.
[6] BARROS, Sérgio Resende. A tutela constitucional do afeto. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). In: V Congresso brasileiro de direito de família: família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006.
[7] BARROS. Op. cit. p. 887.
[8] SANDRI, Vanessa Berwanger. Princípio jurídico da paternidade responsável: distinção entre planejamento familiar e controle da natalidade. 2006. 31 fl. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Direito) – Faculdade de Ciência Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: <http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/2006_1.htm>. Acesso em: 14.04.2009.
[9] REZENDE, Joubert R. Direito à visita ou poder-dever de visitar: o princípio da afetividade como orientação dignificante no direito de família humanizado. Revista brasileira de direito de família, n° 28, v. 6, fev/mar 2005, p. 154.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FISCHER, ANA PAULA BERLATTO FÃO. A tutela jurídica do afeto na filiação e o dever de indenizar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 out 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50957/a-tutela-juridica-do-afeto-na-filiacao-e-o-dever-de-indenizar. Acesso em: 08 nov 2024.
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