RESUMO: É indubitável que o texto constitucional vigente reconheceu diversos tipos de arranjos familiares para prestigiar a dignidade humana do indivíduo de buscar sua felicidade de acordo com o formato de família que entende mais adequado para atender os seus elos de afetividade. Desta maneira, é imperioso que o direito acompanhe a realidade social e a evolução das relações familiares para reconhecer o poliamor como mais uma entidade familiar merecedora de proteção jurídica a fim de evitar a desigualdade e hierarquia entre as famílias, bem como o enriquecimento sem causa de um de seus membros em detrimento de outros.
Palavras-chave: Direito de Família – Multiplicidade das entidades familiares – Dignidade Humana – Busca pela felicidade – Afetividade – Poliamor.
Sumário: Introdução. 1. O Conceito de Poliamor ou Poliamorismo. 2. Do tímido reconhecimento aos efeitos jurídicos decorrentes do poliamor. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
As transformações no Direito de Família com a edição da Carta Magna de 1988 foram expressivas, especialmente no que tange ao conceito de família, quando passaram a ser reconhecidos outros tipos além daquela fundada no matrimônio; entendeu-se que entidade familiar é um grupo de indivíduos ligados voluntariamente por elos afetivos, independente de identidade sanguínea, ou formalidades matrimoniais, com o objetivo de satisfação existencial e emocional.
A Constituição Federal de 1988 reconheceu diferentes arranjos familiares como forma de entidade familiar, objetivando a busca da felicidade de cada membro familiar, o que decorre do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), entendendo que o Estado não poderia limitar o formato dos elos familiares pretendidos pelos seus membros, já que tal direito está ligado ao direito de autodeterminação de cada cidadão.
Verifica-se a transformação do núcleo do Direito que passa a ser o indivíduo em si e, no que diz respeito ao Direito de Família, aos laços de afeto que regem as relações, pautada na solidariedade entre seus membros (art. 3, I, da CF), e no respeito à dignidade humana de cada um, bem como na igualdade entre todos, sem hierarquia entre homem e mulher, ou entre filhos (art. art. 227, §§ 5 e 6, da CF e art. 1.511 e 1.596 do CC), sempre levando em conta os princípios da afetividade e da função social da família (art. 226, “caput”, da CF).
Consoante afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
A principal função da família e a sua característica de meio para a realização dos nossos anseios e pretensões. Não é mais a família um fim em si mesmo, conforme já afirmamos, mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na relação com o outro.[1]
Assim, considerando que a busca pela felicidade rege o modelo atual de família que se denomina como família eudemonista, cabe discorrer acerca das relações interpessoais amorosas de natureza poligâmica a fim de verificar a existência ou não de proteção jurídica no ordenamento jurídico.
1. O CONCEITO DE POLIAMOR OU POLIAMORISMO
Poliamor é a simultaneidade de duas ou mais relações amorosas paralelas, em que seus membros têm ciência dos vários vínculos afetivos mantidos e aceitam uns aos outros, caracterizando uma relação múltipla e aberta. O conhecimento de todos os membros familiares é que diferencia esta relação das famílias paralelas ou simultâneas, nas quais não se verifica o referido elemento.[2]
O poliamorismo funda-se no princípio da afetividade, o qual representa novo pilar de reconhecimento de entidades familiares no Direito de Família, bem como no direito à busca pela felicidade, e nos princípios da autonomia da vontade, da não discriminação (art. 3º, IV, da CF), da personalidade, e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).
Neste tipo de relação no que tange aos elos mantidos, conhecidos e aceitos pelos seus membros, não haveria a violação do dever de fidelidade recíproca (art. 1.566 do Código Civil), até mesmo porque a letra literal da lei não estipula a fidelidade como sendo aquela exigida entre apenas dois membros, podendo-se presumir, assim, que o referido dever é observado, ainda que na vigência de uma relação múltipla, quando todos os parceiros estão cientes dos demais vínculos amorosos mantidos paralelamente. Além disso, os deveres de lealdade e de respeito exigidos pelo art. 1.724 do Código Civil podem ser enquadrados no poliamor, já que o conhecimento dos diversos vínculos efetivos entre todos os parceiros, representam aquelas obrigações.
Com base nos princípios da igualdade, da liberdade e da função social da família (art. 5º, “caput” e II, da CF), todos os indivíduos são livres para escolher os tipos de relacionamento permanentes e duradouros a que estarão inseridos, ainda que isto comporte um modelo de entidade familiar bastante exótico à clássica família tradicional monogâmica defendida historicamente.
O ordenamento jurídico não pode impedir alguém de amar e ser amado, não sendo cabível a limitação jurídica dos vínculos afetivos àqueles que amam a mais um parceiro, já que não há qualquer justificativa plausível para não reconhecer a proteção jurídica a todos os parceiros envolvidos que se unem com o propósito de constituir família em uma convivência duradoura, pública e contínua.
Analisando o ordenamento jurídico, é certo que este não vetou o exercício livre da sexualidade, nem mesmo das interações subjetivas em qualquer formato, e, assim, no silêncio normativo, aquilo que não é proibido no Direito Privado, é permitido, motivo pelo qual, tratando-se de uma realidade social, é imperioso que o direito evolua para acompanhar as mudanças na sociedade de sua época e reconheça efeitos jurídicos às relações decorrentes do poliamor.
Note-se que a rejeição ao poliamorismo apenas contribuiu para a desigualdade nas relações familiares, criando hierarquia entre os diversos tipos de família, o que não foi o objetivo do poder constituinte ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, e a redução das desigualdades sociais, o bem comum de todos sem qualquer tipo de preconceito como seus objetivos.
Não proteger juridicamente este tipo de entidade familiar é contribuir para o proveito ilícito e o enriquecimento sem causa de um ou demais membros em detrimento de outros, afastando-lhe direitos como alimentos, herança e meação em descompasso com os fundamentos da constitucionalização do direito privado.
2. DO TÍMIDO RECONHECIMENTO AOS EFEITOS JURÍDICOS DO POLIAMOR
Em que pese ainda não seja a corrente majoritária no país, inclusive perante os Tribunais Superiores, verifica-se alguns esforços para garantir os efeitos jurídicos decorrentes do poliamor. O 15º Cartórios de Ofício de Notas do Rio de Janeiro, por exemplo, já registrou por duas vezes uniões poliafetivas.[3]
Também é cabível citar o entendimento da Defensoria Pública de São Paulo quanto à matéria ao editar a Tese Institucional n.º107: ”É possível o reconhecimento de efeitos jurídicos próprios de Direito das Famílias às uniões simultâneas ou paralelas, as quais devem ser conceituadas como entidades familiares.”[4]
Além disso, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se manifestou, em algumas ocasiões, pelo reconhecimento de relações afetivas simultâneas, entendendo que os múltiplos vínculos afetivos não podem vir em benefício de um dos membros. Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. 1)UNIÃO ESTÁVEL PARALELA A OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. O anterior reconhecimento judicial de união estável entre o falecido e outra companheira, não impede o reconhecimento da união estável entre ele e autora, paralela àquela, porque o Direito de Família moderno não pode negar a existência de uma relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50% dos valores recebido a título de pensão por morte pela outra companheira. 2)RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. Descabe a cumulação de ação declaratória com ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio, lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria. Apelação parcialmente provida. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70012696068, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/10/2005)
O referido Tribunal, ao reconhecer uma união dúplice, também determinou a triação dos bens existentes entre o de cujus e duas conviventes. Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO E OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE. PARTILHA DE BENS. MEAÇÃO. "TRIAÇÃO ". ALIMENTOS. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união estável entre a autora e o réu em período concomitante ao seu casamento e, posteriormente, concomitante a uma segunda união estável que se iniciou após o término do casamento. Caso em que se reconhece a união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o réu. Meação que se transmuda em "triação", pela duplicidade de uniões. O mesmo se verificando em relação aos bens adquiridos na constância da segunda união estável. Eventual período em que o réu tiver se relacionado somente com a apelante, o patrimônio adquirido nesse período será partilhado à metade. Assentado o vínculo familiar e comprovado nos autos que durante a união o varão sustentava a apelante, resta demonstrado os pressupostos da obrigação alimentar, quais sejam, as necessidades de quem postula o pensionamento e as possibilidades de quem o supre. Caso em que se determina o pagamento de alimentos em favor da ex-companheira. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70022775605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 07/08/2008)
Embora reconhecida como situação excepcionalíssima, o Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão, reconheceu o direito de uma relação paralela ao casamento, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, bem como da legítima expectativa e da boa-fé, em virtude do expressivo lapso temporal pelo qual perdurou o relacionamento, a dependência econômica da concubina, e sua condição de pessoa idosa. Entretanto, o STJ deixou claro se tratar de uma situação excepcional, esclarecendo que uniões paralelas ao casamento, em regra, não geram qualquer direito. Neste sentido:
RECURSO ESPECIAL. CONCUBINATO DE LONGA DURAÇÃO. CONDENAÇÃO A ALIMENTOS. NEGATIVA DE VIGÊNCIA DE LEI FEDERAL. CASO PECULIARÍSSIMO.
PRESERVAÇÃO DA FAMÍLIA X DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS.
SUSTENTO DA ALIMENTANDA PELO ALIMENTANTE POR QUATRO DÉCADAS. DECISÃO.
MANUTENÇÃO DE SITUAÇÃO FÁTICA PREEXISTENTE. INEXISTÊNCIA DE RISCO PARA A FAMÍLIA EM RAZÃO DO DECURSO DO TEMPO. COMPROVADO RISCO DE DEIXAR DESASSISTIDA PESSOA IDOSA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE E SOLIDARIEDADE HUMANAS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.
INEXISTÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICA.
1. De regra, o reconhecimento da existência e dissolução de concubinato impuro, ainda que de longa duração, não gera o dever de prestar alimentos a concubina, pois a família é um bem a ser preservado a qualquer custo.
2. Nada obstante, dada a peculiaridade do caso e em face da incidência dos princípios da dignidade e solidariedade humanas, há de se manter a obrigação de prestação de alimentos a concubina idosa que os recebeu por mais de quatro décadas, sob pena de causar-lhe desamparo, mormente quando o longo decurso do tempo afasta qualquer riso de desestruturação familiar para o prestador de alimentos.
3. O acórdão recorrido, com base na existência de circunstâncias peculiaríssimas - ser a alimentanda septuagenária e ter, na sua juventude, desistido de sua atividade profissional para dedicar-se ao alimentante; haver prova inconteste da dependência econômica; ter o alimentante, ao longo dos quarenta anos em que perdurou o relacionamento amoroso, provido espontaneamente o sustento da alimentanda -, determinou que o recorrente voltasse a prover o sustento da recorrida. Ao assim decidir, amparou-se em interpretação que evitou solução absurda e manifestamente injusta do caso submetido à deliberação jurisprudencial.
4. Não se conhece da divergência jurisprudencial quando os julgados dissidentes tratam de situações fáticas diversas.
5. Recurso especial conhecido em parte e desprovido.
Ainda que os entendimentos acima mencionados referiram-se a uniões paralelas que não se identificam exatamente com as relações oriundas do poliamor, em que há a ciências dos múltiplos vínculos por todos seus membros, é de suma importância conhecer as decisões que respaldaram àquelas relações. Isto porque, se o sistema jurídico tutela múltiplas relações quando ocorre a violação do dever de fidelidade em virtude da ausência de conhecimento de um de seus membros quanto à multiplicidade dos vínculos, com maior razão tutelará as relações derivadas da escolha de todos os partícipes, de forma livre e consciente.
CONCLUSÃO
Com base no que foi exposto, é imperiosa a mitigação do princípio da monogamia em face dos princípios da dignidade humana, da busca pela felicidade, da afetividade, da autodeterminação, da igualdade, da liberdade e da pluralidade das entidades familiares para ensejar uma solução justa e razoável que proteja juridicamente as relações oriundas do poliamorismo, caso contrário estar-se-ia prestigiando a desigualdade e hierarquia entre as relações familiares, em verdadeiro retrocesso ao Direito Privado e a proteção ao Direito de Família conferida pela Constituição Federal de 1988.
Fechar os olhos ao novo formato de entidade familiar que decorre do poliamor é negar a evolução das relações afetivas e familiares, rejeitando mais uma vez a autodeterminação do indivíduo e a sua liberdade para formar o formada de família como bem desejar, como já ocorreu com as uniões estáveis heterossexuais e homossexuais, as quais, após muita luta, conseguiram garantir sua proteção jurídica.
Já deveríamos ter aprendido que a evolução social e humana apresenta e ainda apresentará diversas formas, variadas e distintas, de o ser humano se expressar e se relacionar para alcançar a sua felicidade plena. Desta forma, não cabe à ordem jurídica, ainda mais quando pautada no Estado Democrático de Direito que roga pela dignidade da pessoa humana, pela igualdade material e a pela liberdade, negar efeitos jurídicos a todo elo de amor que se constitui para formar uma entidade familiar permanente, duradoura, pública, com respeitos entre seus membros e centrada na afetividade.
REFERÊNCIAS:
DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO. TESE INSTITUCIONAL N.º 107. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=61459&idModulo=9706#_ftn37. Acesso em: 26.10.2017.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011. V. 6.
MADALENO, Rolf Hanssen. Escritura de união poliafetiva: impossibilidade. Jornal Carta Forense, São Paulo, Edição n. 114, p. B26. Novembro de 2012.
SOUZA, Giselle. Tabeliã diz que registro de união poliafetiva é evolução do Direito de Família. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-14/tabelia-registro-uniao-poliafetiva-evolucao-direito. Acesso em: 26.10.2016.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1185337/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2015, DJe 31/03/2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. 6ª Ed. São Paulo: Forense, 2015.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70012696068, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/10/2005.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70022775605, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 07/08/2008.
Data: 26.10.2017.
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011. V. 6, p. 98.
[2] MADALENO, Rolf Hanssen. Escritura de união poliafetiva: impossibilidade. Jornal Carta Forense, São Paulo, Edição n. 114, p. B26. Novembro de 2012.
[4] DEFENSORIA PÚBLICA DE SÃO PAULO. TESE INSTITUCIONAL N.º 107. Disponível em: https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Conteudos/Materia/MateriaMostra.aspx?idItem=61459&idModulo=9706#_ftn37. Acesso em: 26.10.2017.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FISCHER, ANA PAULA BERLATTO FÃO. A proteção jurídica do poliamor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 nov 2017, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50962/a-protecao-juridica-do-poliamor. Acesso em: 08 nov 2024.
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