RESUMO: O princípio da legalidade tributária determina que somente lei formal pode instituir e majorar tributos. Porém, com a Emenda Constitucional 32/2001, a Constituição Federal de 1988 passou a permitir que medidas provisórias versem sobre matéria tributária. O presente trabalho procura avaliar a possibilidade de medidas provisórias criarem e aumentarem tributos, em face do princípio da legalidade.
Palavras-chave: Legalidade tributária. Medidas provisórias. Tributos.
ABSTRACT: Principle of tax legality consists that only the Law can impose or increase a tax. However, according to the Amendment to the Constitution 32 of 2001, the Constitution of the Federative Republic of Brazil 1988 allows that provisional measures deal with tax issues. This work analyzes the possibility of provisional measures institute or increase a tax, regarding to principle of tax legality.
Keywords: Tax legality. Provisional measures. Tributes.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Princípio da legalidade; 2.1 Legalidade geral e estrita; 2.2 Exceções ao princípio da legalidade tributária; 3 Medida provisória; 3.1 Natureza jurídica e características; 3.2 Outros aspectos relevantes; 4. Medidas provisórias em matéria tributária; 4.1 Medidas provisórias e a matéria reservada à lei complementar; 4.2 Medidas provisórias e tributos em geral; 4.3 Medidas provisórias e impostos extraordinários; 5 Conclusão; Referências.
1. Introdução
O Estado, para ter condições de realizar seus fins, necessita de recursos. Para adquirir tais recursos, a Constituição Federal outorgou-lhe o chamado poder de tributar, consistente em criar e cobrar tributos (impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições sociais).
No entanto, a mesma Constituição Federal também impôs limitações a esse poder, através dos princípios constitucionais e das imunidades tributárias.
Dentre os princípios de grande destaque é o princípio da legalidade tributária (ou estrita legalidade), presente no art. 150, I, da CF, o qual veda a instituição e o aumento de tributos sem que lei assim o estabeleça.
A lei a qual se refere o dispositivo constitucional mencionado não é apenas lei em sentido material, mas também em sentido formal, devendo ser emanada pelo Poder Legislativo.
O princípio citado veio reforçar o princípio da legalidade contido no art. 5°, II, da CF, o qual não é exclusivo do direito tributário, sendo extensível a todos os ramos do Direito.
Apesar do que determina a o princípio da estrita legalidade/legalidade tributária, a Emenda Constitucional 32/2001 introduziu o § 2º no art. 62, da CF, que permite a criação e majoração de tributos através de medidas provisórias, que são medidas excepcionais editadas pelo Poder Executivo, em caso de relevância e urgência, dotadas de força e eficácia legais.
Dessa forma, de enorme relevância é a discussão acerca da possibilidade de instituição e majoração de tributos por medidas provisórias, em face das limitações ao poder de tributar, especialmente do princípio da segurança jurídica e, especialmente, da legalidade tributária, uma vez que este exige lei em sentido estrito para instituir e aumentar tributos, e as medidas provisórias embora possuam força legal, são leis apenas em sentido material, e não no sentido formal.
Nesse contexto, o presente trabalho busca discorrer acerca dos princípios da legalidade geral (art. 5º, II, da CF) e da legalidade tributária/estrita (art. 150, II, da CF), definindo suas linhas gerais, bem como as exceções ou ressalvas à sua observância. Busca também trazer os principais aspectos relativos ao instituto da medida provisória, definindo sua natureza jurídica e mencionando suas características, bem como analisar a possibilidade de sua utilização na instituição e majoração de tributos em face do princípio da legalidade tributária, colocando os argumentos trazidos tanto pela doutrina como pela jurisprudência pátrias.
2 Princípio da legalidade
O Estado, para a consecução de seus objetivos, é dotado do chamado poder de tributar. Entretanto, tal poder não é absoluto, uma vez que a Constituição Federal o limita, através das imunidades tributárias e dos princípios constitucionais tributários expressos e implícitos. Dentre os princípios, merece destaque o princípio da legalidade tributária, abordado a seguir.
2.1 Legalidade geral e estrita
Primeiramente cabe destacar o princípio da legalidade geral, previsto no art. 5º, II, da CF, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei.
Referido princípio, que se estende a todos os ramos do Direito (e não apenas ao Direito Tributário), consiste em garantia fundamental do particular, tendo em vista que a intervenção do Estado em sua propriedade só pode se dar mediante autorização legal.
No entanto, em matéria tributária, o constituinte reforçou o princípio contido no art. 5º, II, da CF ao criar o art. 150, I, da CF, o qual veda a exigência ou o aumento de tributos sem que lei assim estabeleça.
Tal dispositivo constitucional enuncia o chamado princípio da legalidade estrita (ou apenas legalidade tributária), segundo o qual a instituição e majoração de tributos deve se dar através de lei em sentido formal (devendo passar por todo o processo legislativo exigido para sua aprovação), sejam eles impostos, taxas, contribuições sociais etc.
Dessa maneira, é perfeitamente possível dizer que o contribuinte somente pode ser onerado (em matéria tributária) em virtude de lei, não havendo espaço para decretos ou outras espécies normativas o fazerem.
Vale ressaltar que a estrita legalidade também encontra previsão no art. 97 do CTN, que diz expressamente que somente a lei pode estabelecer a instituição ou extinção de tributos.
Ao contrário do que pode parecer, a estrita legalidade não se limita à mera autorização para a cobrança de tributos, devendo a lei que institui ou majore tributos conter todos os aspectos fundamentais para se determinar se o particular deve ou não sofrer a tributação. Nesse sentido, tem-se a lição de Luciano Amaro (2011, p. 134):
O conteúdo do princípio da legalidade tributária vai além da simples autorização do Legislativo para que o Estado cobre tal ou qual tributo. É mister que a lei defina, in abstracto, todos os aspectos relevantes para que, in concreto, se possa determinar quem terá que pagar, quanto, a quem, à vista de que fatos ou circunstâncias. A lei deve esgotar, como preceito geral e abstrato, os dados necessários à identificação do fato gerador da obrigação tributária e à quantificação do tributo, sem que restem à autoridade poderes para, discricionariamente, determinar se ‘A’ irá ou não pagar tributo, em face de determinada situação. Os critérios que definirão se ‘A’ deve ou não contribuir, ou que montante estará obrigado a recolher, devem figurar na lei e não no juízo de conveniência e oportunidade do administrador público. (grifos do autor)
Assim, é possível verificar que a legalidade tributária possui maior rigor em relação à legalidade geral, haja vista que a tributação está plenamente vinculada aos ditames da lei (em sentido formal), não abrindo espaço para juízo de valor por parte da autoridade competente. Portanto, pode-se concluir que se trata de uma reserva legal absoluta, que visa dar segurança jurídica ao particular, em face da atuação estatal.
O princípio da estrita legalidade, assim como as demais limitações ao poder de tributar, é garantia fundamental do particular em face da ação estatal. Nesse sentido já decidiu o Supremo Tribunal Federal, como menciona Leandro Paulsen (2010, p. 159):
A CF é clara em seu art. 60, § 4°: ‘Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ... IV – os direitos e garantias individuais.’ O STF, [...], reconheceu que as limitações constitucionais ao poder de tributar constituem direitos e garantias individuais do cidadão enquanto contribuinte atraindo a incidência do já referido art. 60, § 4º, da CF. [...].
Importa ressaltar que a lei instituidora e majoradora de tributo é, em regra, lei ordinária. No entanto, por expressa disposição constitucional, certos tributos somente podem ser instituídos por lei complementar quais sejam: empréstimos compulsórios (art. 148, da CF), imposto sobre grandes fortunas (art. 103, VII, da CF), impostos residuais (art. 154, I, da CF) e contribuições sociais residuais (art. 195, § 4º, da CF).
Em que pese a regra ser a instituição e majoração de tributos por meio de lei, o texto constitucional traz exceções (ou ressalvas) à estrita legalidade, como explanado a seguir.
2.2 Exceções ao princípio da legalidade tributária
A Constituição de 1988 estabelece ainda algumas exceções (ou ressalvas) ao princípio da legalidade tributária, no tocante à alteração de alguns impostos de competência da União. O art. 153, § 1º, da CF faculta ao Poder Executivo alterar as alíquotas do imposto de importação, do imposto de exportação, do IOF e também do imposto territorial rural.
A justificativa para a possibilidade de alteração das alíquotas dos referidos impostos encontra-se no caráter extrafiscal dos mesmos, uma vez que sua principal função não é a arrecadação de recursos, mas sim estimular ou desestimular certas condutas no intuito de regular a economia. Em razão da dinâmica do mercado, há a necessidade de reação, que muitas vezes deve ser rápida para não desestabilizar a economia (ao menos não de maneira drástica), o que justifica a previsão do art. 153, § 1º, da CF.
A faculdade dada ao Poder Executivo de alterar as alíquotas dos impostos extrafiscais (regulatórios de mercado) por meio de decreto não é absoluta, uma vez que os limites e condições previamente estabelecidas em lei.
Assim, abordados de forma panorâmica os principais aspectos do princípio da legalidade tributária, será estudado o instituto da medida provisória no tópico subsequente.
3 Medida provisória
A Carta Magna de 1988 extinguiu o instituto do decreto-lei e, para substituí-lo, introduziu no ordenamento jurídico a chamada medida provisória, mais especificamente em seus arts. 59, V e 62.
De acordo com o art. 62, caput, da CF, as medidas provisórias podem ser adotadas pelo Presidente da República, em caso de relevância e urgência, devendo submetê-las imediatamente à apreciação do Congresso Nacional.
As medidas provisórias ainda são bastante discutidas em sede doutrinária e possuem, natureza jurídica e características específicas, a seguir delineadas.
2.1 Natureza jurídica e características
As medidas provisórias estão contidas dentre as espécies normativas que compreendem a elaboração do processo legislativo (art. 59, V, da CF).
Ademais, apesar de não serem leis no sentido formal, possuem eficácia e força da mesma, por expressa disposição constitucional (art. 62, caput, da CF).
Segundo o professor Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 977) “A cláusula com força de lei, [...], põem-nas em estado de equivalência constitucional com as leis, apenas transitoriamente, como decidiu o Supremo Tribunal Federal. (grifo do autor)
As medidas provisórias possuem quatro características, que são a excepcionalidade, efemeridade, precariedade e o condicionamento. (grifo nosso)
São excepcionais, uma vez que se originam de ato do Presidente da República no intuito de disciplinar certo assunto, ao passo que o meio normal para regulá-lo é a lei emanada pelo Poder Legislativo.
Mais uma vez tem-se o ensinamento de Uadi Lammêgo Bulos (2007, p. 978), no sentido de que as medidas provisórias “configuram lídima exceção permitida pelo constituinte, que autoriza outro órgão, que não seja o Legislativo, a emitir atos cogentes.”.
São efêmeras, pois possuem caráter temporário, devendo ser convertidas em lei dentro de sessenta dias, prazo este prorrogável por igual período. Caso não ocorra a conversão em lei no prazo máximo de cento e vinte dias, a medida provisória perderá sua eficácia, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações dela decorrentes por meio de decreto legislativo (art. 62, § 3º da, CF).
São precárias, ou seja, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2005, p. 117), [...], podem ser infirmadas pelo Congresso Nacional a qualquer momento dentro do prazo em que deve apreciá-las, [...].
Difere das leis formais, já que estas não dependem de apreciação por parte de outro órgão, e, em regra, vigoram por prazo indeterminado, cessando com sua revogação, apenas seus efeitos futuros (ex nunc), enquanto a revogação das medidas provisórias alcança os atos passados (ex tunc).
As medidas provisórias são também condicionadas, sendo necessária a existência de dois requisitos, que são a relevância e a urgência. Tais requisitos devem estar presentes simultaneamente, não bastando que a situação se caracterize apenas pela urgência ou apenas pela relevância, caso em que a medida provisória seria inconstitucional.
Vale ressaltar que, embora disponha sobre assuntos relevantes, para a criação de lei (formal), não é necessário o requisito da urgência, exigido no caso das medidas provisórias.
3.2 Outros aspectos relevantes
Além de todo o exposto, vale ressaltar alguns pontos importantes acerca das medidas provisórias.
As medidas provisórias não podem versar sobre matérias reservadas a lei complementar, previstas no art. 62, da CF, in verbis:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;
II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
III – reservada a lei complementar;
IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Outro detalhe importante é que as medidas provisórias não podem ser reeditadas em uma mesma sessão legislativa, caso tenham sido rejeitadas ou perdido sua eficácia em razão do decurso de prazo (art. 62 § 10, da CF).
Importa ressaltar também que, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, assim como prefeitos municipais, em face do princípio da simetria, podem editar medidas provisórias, desde que as constituições estaduais e leis orgânicas dos Municípios (e do Distrito Federal) autorizem expressamente, respeitados todos os preceitos previstos na Constituição Federal.
Traçados alguns aspectos fundamentais para o entendimento do instituto da medida provisória, será discutida a seguir a possibilidade (ou não) de a mesma instituir ou majorar tributos.
4 Medidas provisórias em matéria tributária
Não é de hoje que a doutrina debate acerca da utilização das medidas provisórias em matéria tributária, especialmente após a Emenda Constitucional 32/2001 introduzir o § 2º dentro do art. 62, da CF.
Muito se questiona se a instituição e majoração de tributos através de medida provisória não afrontariam aos princípios da anterioridade e da legalidade.
A seguir buscar-se-á debater a questão em face do princípio da legalidade, abordando tanto os pontos de vista doutrinários bem como o posicionamento atual em sede jurisprudencial.
4.1 Medidas provisórias e a matéria reservada à lei complementar
Como já mencionado anteriormente, os empréstimos compulsórios, os impostos residuais, as contribuições residuais e o imposto sobre grandes fortunas somente podem ser instituídos e majorados por meio de lei complementar.
No que diz respeito aos empréstimos compulsórios e aos impostos residuais, tem-se a lição de Roque Antonio Carrazza (2009, p. 301):
[...], se o Presidente da República criar ou aumentar empréstimos compulsórios ou impostos residuais a União por meio de medidas provisórias, cairá por terra o objetivo da Constituição Federal de exigir que estes tributos sejam aprovados pela maioria absoluta dos congressistas. Tais medidas provisórias ‘criariam’ ou ‘aumentariam’ empréstimos compulsórios e impostos residuais da União sem a observância do art. 69 da Lei Maior.
Como se vê, não tem qualquer fundamento a utilização de medidas provisórias para instituir ou aumentar empréstimos compulsórios e impostos residuais.
Em relação às contribuições sociais residuais, aplica-se o mesmo raciocínio dos impostos residuais, por força do art. 195, § 4º, da CF, ou seja, devem ser criadas e aumentadas apenas por lei complementar.
Além do mais, como já colocado anteriormente, matérias reservadas à lei complementar não podem ser objeto de medidas provisórias, não havendo que se falar também em criação ou aumento de imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII, CF).
4.2 Medidas provisórias e tributos em geral
Muito se questiona se é possível a majoração e criação de tributos por medidas provisórias.
Antes de iniciar o debate, cabe ressaltar que o Supremo Tribunal Federal atualmente entende ser possível a criação de tributos. Nesse sentido, vale colocar aqui a ementa de acórdão da Suprema Corte citado por Eduardo Sabbag (2009, p. 46):
EMENTA: Recurso extraordinário.2.Medida provisória.Força de lei.3.A Medida Provisória, tendo força de lei, é instrumento idôneo para instituir e modificar tributos e contribuições sociais.Precedentes.4.Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, 2º T., Al-AgR 236.976/MG – rel. Min. Néri da Silveira – j. 17-08-1999)
O que se pode ver é que o argumento da Corte Excelsa é basicamente o de que a medida provisória tem força de lei, sendo, portanto meio hábil a instituir, bem como alterar tributos.
Com a devida vênia, tal entendimento, é no mínimo questionável, uma vez que ter força de lei não significa ser lei, e, como é cediço, em matéria tributária o princípio da legalidade se traduz em uma reserva de lei em sentido estrito, ou seja, de lei que passa por todo o processo legislativo, o que não ocorre com as medidas provisórias, que são criadas pelo Poder Executivo. Reforçando este posicionamento, Luciano Amaro (2011, p. 200) afirma que “[...]; c)[...] a Constituição exige lei para a criação de tributos, e, por isso, não admitiria a medida provisória, que não é lei.” (grifo do autor)
Em suma, embora as medidas provisórias sejam dotadas de força de lei ordinária, o princípio da legalidade tributária exige lei ordinária (em regra) formal, que deve passar por todo o processo legislativo definido pela Constituição Federal, ou seja, deve ser uma lei editada pelo Poder Legislativo.
Portanto pode-se concluir que a possibilidade de instituição e majoração de tributos por medida provisória configura afronta direta ao princípio da estrita legalidade (ou legalidade tributária).
Ademais, pelo fato de as medidas provisórias não serem emanadas pelo Poder Legislativo, tem-se que há também uma afronta ao princípio da separação de poderes. Portanto, a Emenda Constitucional 32/2011 especificamente no que se refere à instituição e alteração de tributos por medida provisória é materialmente inconstitucional. Sobre o tema ensina Roque Antonio Carrazza (2009, p. 289):
[...], obtemperamos que tal Emenda Constitucional, na parte atinente às medidas provisórias, afronta o princípio da legalidade tributária e, por via de conseqüência, a autonomia e interdependência do Poder Legislativo. Viola, pois, a cláusula pétrea do art. 60 § 4º, III, da CF, que estabelece que nenhuma emenda constitucional poderá sequer tender a abolir a separação dos Poderes.
Dessa forma é possível verificar que, a criação e aumento de tributos por medida provisória não se coadunam com os preceitos contidos na Constituição em vigor. Do contrário, de nada valeria o comando do art. 150, I, da CF, que veio para reforçar o princípio da legalidade geral contido no art. 5º, II, da CF, limitando a ação estatal aos comandos de lei formal, garantindo (juntamente com os demais princípios) a tão almejada segurança jurídica.
Vale ainda destacar que por expressa disposição constitucional (art. 59, da CF), leis ordinárias e medidas provisórias são espécies normativas diferentes.
Por questões didáticas, no subtópico seguinte será abordada especificamente a possibilidade de instituição e aumento dos impostos extraordinários mediante medidas provisórias.
4.3 Medidas provisórias e impostos extraordinários
Os impostos extraordinários encontram previsão expressa no art. 154, II, da CF, são de competência da União e podem ser instituídos no caso de guerra externa ou sua iminência, devendo ser suprimidos gradativamente, cessadas as causas de sua criação.
Ressalte-se que tais impostos podem ser cobrados no dia seguinte ao da publicação da lei, uma vez que não precisam respeitar o princípio da anterioridade.
Em razão de seu caráter excepcional e da relevância do evento previsto no dispositivo constitucional (guerra), os impostos extraordinários podem ser cumulativos, bem como ter alíquota e base de cálculo próprias de outros impostos. Acerca do assunto explica Hugo de Brito Machado (2009, p. 349):
As hipóteses de incidência desses impostos extraordinários podem ser livremente estabelecidas pelo legislador, que pode extrapolar a competência tributária da União, inclusive invadir a competência tributária dos Estados e dos Municípios. A Constituição Federal não descreveu o âmbito de incidência desses impostos, outorgando absoluta liberdade ao legislador ordinário, [...].
Pode-se observar que o legislador tem ampla liberdade na instituição do imposto extraordinário de guerra, tudo em razão da importância do assunto. No entanto, existe divergência doutrinária acerca da possibilidade de criação desses impostos por meio de medidas provisórias. (grifo nosso)
Parcela da doutrina defende que seria possível sua criação pelo veículo da medida provisória. Nesse sentido afirma Sacha Calmon Navarro Coelho (2010, p. 2010):
Pois bem, com espeque na relevância e urgência é que deduzimos o cabimento de medidas provisórias em sede de tributação em apenas dois casos, [...]. Friso: [...], poderia se cogitar no uso de medidas provisórias para A) criação de impostos extraordinários de guerra; [...].
Embora em casos de guerra se possa vislumbrar a relevância e urgência, pressupostos estes que ausentes tornam as medidas provisórias inconstitucionais, tal argumento não parece ser suficiente para sustentar sua edição para criar impostos extraordinários.
Roque Antonio Carrazza (2009, p. 299) sustenta que “[...] a Constituição concedeu ao Presidente da República um instrumento muito mais expedido e eficiente para cuidar desses tributos: a decretação do estado de sítio, [...]” (grifo do autor)
Portanto, segundo o autor, na vigência de estado de sítio, decretado em razão de guerra poderia haver a criação de impostos extraordinários, tornando sem sentido sua instituição por medidas provisórias.
No entanto, referido argumento se mostra precário, pois, embora pareça mais lógica a instituição de tais impostos durante o estado de sítio, esta possibilidade por si só não exclui a de eventual edição de medida provisória para tratar dos mesmos (embora pareça uma medida inócua).
Na verdade, por todo o exposto até aqui, é possível observar que a instituição do imposto previsto no art. 154, II, da CF é precedida de um evento relevante e urgente (que seria a guerra), tornando possível sua criação e cobrança pelo veículo da medida provisória (a princípio).
Porém, não se pode esquecer que o mesmo não está isento de obedecer ao princípio da legalidade tributária, que exige lei ordinária formal para sua instituição e majoração.
Embora a guerra seja um evento urgente e relevante, tais características, por si só, são insuficientes para justificar sua criação e aumento por medidas provisórias. Caso não seja assim (como efetivamente não é em razão do entendimento do Supremo Tribunal Federal), estar-se-á diante de uma atenuação injustificada que irá gerar enorme insegurança jurídica para os particulares.
5. Conclusão
O Estado é dotado do Poder de Tributar, expressamente outorgado pela Constituição Federal. No entanto, a mesma Constituição estabelece limites expressos e implícitos.
Dentre as limitações ao poder de tributar, uma das mais importantes é o princípio da legalidade tributária (ou estrita legalidade), que determina que somente a lei em sentido formal (em regra lei ordinária e excepcionalmente lei complementar) pode instituir e majorar tributos, não cabendo às demais espécies normativas versarem sobre os mesmos.
Entretanto, a Emenda Constitucional 32/2011 introduziu o § 2º ao art. 62 da CF, que autoriza a criação e o aumento de tributos por meio de medidas provisórias (desde que respeitado o princípio da anterioridade), o que, em tese, viola a legalidade tributária.
Mesmo diante do que determina o citado princípio, o Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido de que medidas provisórias podem instituir e majorar tributos, sob o argumento de que possuem força de lei.
Porém, o assunto no âmbito doutrinário ainda é questionado, tendo em vista que medidas provisórias, apesar de possuírem força de lei, não são leis em seu sentido formal.
Tendo em vista que o princípio da estrita legalidade exige lei em sentido formal para a instituição e majoração de tributos, caso medidas provisórias o façam, estar-se-á diante de violação ao princípio da separação dos Poderes, previsto no art. 60, § 4º, III, da CF, uma vez que as mesmas, ao contrário da lei formal, não são editadas pelo Poder Legislativo (exigência constitucional em matéria tributária), mas sim pelo Poder Executivo.
Outra discussão relevante é a possibilidade de criação e aumento de impostos extraordinários por medidas provisórias, levando em conta que os mesmos podem ser cobrados em caso de guerra externa ou sua iminência, que se caracterizam como situações urgentes e relevantes, pressupostos de admissibilidade das medidas provisórias.
Por mais que o evento guerra seja dotado de relevância e urgência, pressupostos para a criação de medidas provisórias, os impostos extraordinários, tais como os demais, devem obrigatoriamente obedecer ao princípio da legalidade tributária, ou seja, devem ser instituídos e também aumentados somente por lei ordinária não apenas em sentido material, mas também em sentido formal.
Por todo o exposto, é possível concluir que a autorização para criação e majoração de tributos por medidas provisórias é incompatível com os preceitos basilares contidos na Constituição Federal, o que faz concluir também que o § 2º do art. 62, da CF, introduzido pela Emenda Constitucional 32/2001 é inconstitucional.
Ademais, com a devida vênia, o entendimento da Corte Suprema abriu um precedente perigoso, uma vez que mitiga de forma indevida o princípio da legalidade tributária contido no texto constitucional, gerando insegurança jurídica para o particular que poderá sofrer ônus tributários sem que os mesmos advenham de lei formal.
Nessa linha de pensamento, a interpretação mais coerente, levando em conta o princípio da estrita legalidade como uma das limitações ao poder de tributar é a de que não é possível a criação e a majoração de tributos através de medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo.
Referências
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PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Advogado. Graduado em direito pela Universidade de Fortaleza. Pós-graduado em Direito e Processo Tributários pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOãO AFRâNIO MONTENEGRO JúNIOR, . O princípio da legalidade e a utilização de medidas provisórias em matéria tributária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/50966/o-principio-da-legalidade-e-a-utilizacao-de-medidas-provisorias-em-materia-tributaria. Acesso em: 08 nov 2024.
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