RESUMO: As políticas de cotas para acesso a universidades, cargos e empregos públicos federais foram implementadas no Brasil visando corrigir desvios históricos de integração do povo negro/pardo. Trata-se de medidas polêmicas que ainda dividem a sociedade. Recentemente o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar as referidas ações afirmativas, julgado-as consentâneas dos valores constitucionais, sobretudo aqueles referentes à igualdade material. Neste trabalho, analisar-se-á as políticas de inclusão brasileiras ora selecionadas, sob o aspecto jusfilosófico da teoria de John Ralws e seu trabalho “Uma teoria da Justiça”.
PALAVRAS CHAVE: ações afirmativas, Uma teoria da justiça, John Ralws, cotas raciais, concursos públicos, universidades.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO – A VIDA DE JOWN RAWLS – UM BREVE RESUMO. 1. UMA TEORIA DA JUSTIÇA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO. 1.1 Guerra Do Vietnã. 1.2 O Movimento Feminista. 1.3 O Movimento Hippie. 1.4 O Movimento Dos Negros Norte-Americanos. 1.5 Brown Vs. Board Education. 1.6 Balanço do Período Histórico. 2. RAWLS E SUA TEORIA 2.1 O Princípio da Eficiência. 2.2 O Princípio da Diferença. 2.3 A Posição Original e o Véu Da Ignorância. 3 – AS POLÍTICAS DE COTAS RACIAIS NO BRASIL. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO – A VIDA DE JOWN RAWLS – UM BREVE RESUMO
O jusfilósofo contemporâneo, John Bordley Rawls, professor da renomada Universidade Norte Americana de Harvard, é dos mais influentes escritores do século XX.
Jonh Rawls, como mundialmente conhecido, era oriundo de família influente e rica, proveniente do Sul dos Estados Unidos. Nascera em 21 de fevereiro de 1921. Seu pai fora ligado à exploração de petróleo e sua mãe, a movimentos políticossociais envoltos na emancipação política da mulher. Durante seu desenvolvimento recebera a educação típica de alguém proveniente de sua classe social, tendo sido admitido na importante Universidade de Princeton, para estudar filosofia, em 1943.
Curioso que seus estudos somente ganharam fôlego em 1946, quando do fim da Segunda Guerra Mundial, dado que fora convocado para combater no pacífico. Em 1949 conclui o curso de filosofia. Após formando continua em Princeton se dedicando aos estudos, fase em que lhe surge a oportunidade de, em 1952/53, ir à Oxford, mediante um convênio firmado entre as Universidades. Lá teve contato com pensadores como H.A.L.Hart e Isaiah Berlin.
Quando de sua volta, em 1953, começa a lecionar na Universidade de Cornell, até 1959; lá se tornara professor efetivo em 1956. Após a fase nesta instituição, surge a oportunidade de lecionar como convidado em Harvard e no M.I.T como efetivo. Escolhendo esta última cátedra, revê sua opção em 1961, aceitando o convite feito por aquela que seria sua casa como famoso professor e escritor. Permaneceu em Harvard até 1991, quando se aposentou. Nesta desenvolveu sua produção acadêmica que lhe daria fama mundial, enfrentando os anos de 1960 e refletindo sobre todas as convulsões sociais que lhe animaram.
Sua carreira acadêmica fora extremamente bem sucedida, conquistando o título de professor universitário em 1976, o mais alto que pode conseguir um acadêmico em sua carreira. Destaque-se que já em 1970 fora nomeado chefe do departamento de filosofia.
Morreu em 2002, vitimado por insuficiência cardíaca.
1. UMA TEORIA DA JUSTIÇA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO
Apesar de ter sua vida acadêmica em grande parte atrelada à Harvard, foi entre 1969/70, em Standford, que Rawls acabara de escrever sua obra prima, intitulada de Uma Teoria da Justiça.
Firme-se que fora em Harvard que seus esforços foram direcionados a acabar de escrever Uma Teoria da Justiça (a obra teve três versões preliminares: 1964-5; 1967-68 e 1969-70).
Interessante é notar que transcorrida a década de grandes mudanças e debates sociopolíticos que então é produzida a versão final de sua obra mais influente. Infere-se disso que durante os acontecimentos houve constante produção e reflexão sobre os pilares de seus pensamentos.
Durante essa década o mundo vivia no contexto da Guerra Fria, em que as duas grandes potências de então (U.R.R.S & E.UA) digladiavam-se pela hegemonia econômica e ideológica. Nesse animus houve alguns paradigmas que consideramos relevantes para ilustrar o momento histórico. No campo bélico guerras deflagradas, como a do Vietnã, e no campo dos movimentos sociais os levantes das feministas, dos hippies e dos negros. Entendemos que particularmente os movimentos pregavam a igualdade material e formal dos seres humanos, à exceção do hippie, que justamente pregava a diferença e o respeito, sob a bandeira da contracultura. Contudo uma perspectiva não utilitarista da igualdade, mas uma visão de que deveríamos ser iguais (objetivamente), apesar das diferenças subjetivas.
Brevemente relataremos os ícones dessa década cheia de mudanças, que até hoje influenciam nosso jeito de viver (ver, pensar, ouvir, sentir).
1.1 Guerra Do Vietnã
Sul e norte vietnamitas digladiaram-se, tendo como matriz ideológica a questão bipolar do mundo de então: capitalismo versus socialismo (nos moldes soviéticos).
Com o financiamento e a participação dos E.U.A em prol do sul, China e U.R.S.S. deram apoio logístico ao Vietnã do Norte, embora não se tenham envolvido diretamente no conflito, conforme fizera a outra potência norte-americana.
Tendo enviado tropas em 1965, para sustentar o governo sulista, os norte-americanos retiraram-se do Vietnã em 1973, sob fortes pressões internas da população do próprio país, que desaprovava o intento. A missão militar foi considerada um fracasso, pois apesar da superioridade bélica e econômica, houve muitas baixas de soldados yankes, além do mais, o principal escopo da empreitada restou infrutífera, dado que em 1975 o Vietnã se unificou sob a alcunha de República Socialista do Vietnã.
Esse evento militar pós-segunda guerra gerou nos cidadãos daquela potência ocidental insatisfação e desaprovação de seu governos e de seus governantes. Os anos de 1960 foram animados por inúmeras reivindicações sociais com diversas ênfases. Além do famoso “paz e amor” dos hippies, contra a guerra, várias questões tal como igualdade material de direitos, meios alternativos de vida, racismo e gênero davam o tom da melodia orquestrada pelos movimentos sociais.
Num contexto macro, eis o mundo que animou a produção intelectual de autor. Uma guerra sem muito sentido, do outro lado do mundo, que intensificou algumas feridas internas desencadeadas por diversas bandeiras insatisfeitas com o chamado “sonho americano”. Questões que vinham desde o Caso DreadScott e a doutrina dos “iguais mas separados”, ganharam nova roupagem e tiveram desfechos inusitados, sobretudo com a atuação da Suprema Corte em casos polêmicos, como o Brown vs. Board Education, conforme mais adiante relataremos.
1.2 O Movimento Feminista
Nem só as questões de raça animaram os debates sociais nos E.U.A. dos anos 1960. O movimento feminista também declamou seus brados.
Numa primeira fase deste, cujo início começa no final do século XIX e culmina no início do XX, lutava-se pelo direito de voto. Nos E.U.A., considera-se que tal movimento encerra-se quando a aprovação da 19ª emenda, em 1919, que passou a garantir o sufrágio para todas as mulheres.
Durante a Década de 1960, considerada o início da segunda fase deste movimento, houve reivindicações de cunho social. Os brados voltavam-se para igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, da divisão das tarefas sociais e, sobretudo, na liberdade do corpo da mulher, tornando-a de fato donas deste, podendo prever quando engravidariam (métodos anticoncepcionais, tal como a pílula) e podendo recusar a relação sexual ao seu parceiro. Desta feita, as mulheres reivindicavam a não submissão aos homens, pois o critério que a sustentava se baseava tão somente nos papéis sociais que recaiam sobre cada sexo. Tal leitura passou a ser revista.
Seja pela bandeira feminista ou mesmo a hippie, o papel social da mulher e a divisão social das tarefas passou por uma reflexão, deflagrada pelos movimentos sociais da década de 1960. Outro elemento que animara os E.U.A. e suas as políticas sociais.
1.3 O Movimento Hippie
Difícil ter passado pelos anos de 1960 sem ter percebido o movimento hippie nos E.U.A., dado que ainda hoje, mais de 50 anos depois, ainda o notamos.
Sem adentrar muito ao âmago do movimento, suas bases místicas, religiosas, a polêmica com as drogas e com o sexo livre (libertário), o modismo ou não que ensejava, o fato é que este movimento social fora estandarte da contracultura ocidental, pregando valores diferentes dos predominantes na classe média norte americana, e por que não dizer, na classe média ocidental mundial. Desde a estética no vestir, nos cortes de cabelo e no estilo de vida, o que se via no plano de fundo era uma crítica aos valores da classe média e da classe dominante. Criticava-se o consumismo, a padronização das vidas, as desigualdades sociais e ao mesmo tempo a massificação da vida em sociedade, produzindo seres humanos iguais, com mesmas aspirações, mesmas formas de pensar e viver, ao mesmo tempo em que se produziam desigualdades sociais (um paradoxo). Lutava-se contra o status quo, de maneira não organizada, por isso a veracidade do movimento, dado que espontâneo. Pregava-se a desigualdade, não social ou econômica, mas pelo diferente estilo de viver, enfatizando a igualdade material (distribuição de riquezas) que deveria iluminar o viver coletivo. Por isso havia muitas comunidades alternativas espalhadas pelas zonas rurais; se o status quo pregava a urbanização (e isso ocorria desde a revolução industrial), defendia-se por via oposta a ruralização; se o padrão do viver em sociedade era o que passou a dominar, buscava-se o viver em comunidade, em que os indivíduos seriam mais próximos e mais iguais. Afora as utopias, interessante é notar que tal movimento conquistou inúmeros de adeptos, pregando o hedonismo, a vida sem regras, uma vida livre dos padrões considerados opressores.
Tudo isso foi mais um dos eventos que selecionamos como relevantes dos agitados anos de 1960. As bases da sociedade norte-americana, que sãos as bases da sociedade ocidental capitalista, estavam sendo contestadas, visando-se as reestruturar. O campo da produção acadêmica e teórica não poderia ser diferente. Como veremos muitas águas passaram pelas letras de Ralws, fazendo algo análogo ao que fizeram os hippies, contestando os padrões existentes.
1.4 O Movimento Dos Negros Norte-Americanos
A escravidão nos E.U.A., embora abolida 1863, esteve presente como questão mal resolvida durante toda a história norte-americana. Desde o caso DreadScott, em que negros do sul foram considerados propriedades e não seres humanos (muito menos cidadãos), até a doutrina dos “iguais mas separados”, que perdurou até a década de 1950 em seu meado, muitas questões raciais mal resolvidas animaram (e por que não dizer que ainda animam) a vida civil dos norte-americanos.
Os panteras negras, movimento de liberdade racial radical, talvez tenham sido um dos brados mais retumbantes dessa luta por igualdade nos E.U.A.. Com ações qualificadas como criminosas por vezes, os envolvidos nas reivindicações deste grupo atuaram com veemência na luta pela igualdade formal e material do povo negro, sobretudo lutando contra abuso de policiais nas periferias de cidades como Nova Yorque, Chicado, São Francisco.
Mas nem só com os Panteras os negros tinham sua voz de protesto. O fato é que durante as décadas de 1950 e 1960 muitas questões de igualdade racial animaram as estruturas político-sociais nos E.U.A.. Talvez, em termos jurídicos, os movimentos dos direitos civis, conquistados por leis oriundas das interpretações da Suprema Corte à Constituição Federal, sejam o melhor elemento para concentrarmos nossa atenção.
O caso Brown versus Board of Education é bem ilustrativo dos debates que estamos a tratar.
1.5 Brown Vs. Board Education
Em 1896 a Suprema Corte Norte Americana julgou o caso Plessy vs. Ferguson, que estabelecera a chamada doutrina “dos iguais, mas separados”. Tal ideia perdurou no consciente coletivo norte-americano, como razoável. Como consequência, negros e brancos frequentavam diferentes locais do espaço público, como bairros e escolas. Tal fator era um empecilho para o desenvolvimento social do povo negro, dado que o acesso à educação restava prejudicado, uma vez que o sistema particular de ensino os excluía pelos preços e o sistema público para estes era de inferior qualidade.
Durante a década de 1950, a Suprema Corte, sob a presidência de Earl Warren, julgou o famoso caso Brown x Board of Education, que visava justamente acabar com a era da segregação racial, a começar pelo sistema educacional. Em dois julgamentos, a Corte firmou que a segregação racial era inconstitucional, devendo os Estados atuar o mais rápido possível de modo a proceder à integração do povo negro no sistema educacional, assim não haveria mais se falar em escolas para brancos e para negros. Apesar de vaga a determinação judicial, este fora um grande passo num país como os E.U.A., em que o racismo sempre esteve presente e sem pudor. Tal precedente, junto com outros, foram minando a doutrina dos “iguais, mas separados” e permitiu que negros frequentassem Universidades até então só para brancos, tal como Harvard.
Importante frisar que com Earl Warren começou nos E.U.A. um conjunto de julgados e atuações mais positivas da Suprema Corte, que ficaram conhecidos sob a alcunha de “ativismo judicial”, isso, pois os juízes passaram a não somente aplicar a letra fria das leis e da Constituição em sua acepção original, mas a interpretá-las de modo construtivo, de olho nas necessidades de seus tempos.
1.6 Balanço do Período Histórico
Vejamos que a década de produção intelectual de Rawls fora rica de debates e polêmicas sobre o direito à igualdade material, à igualdade de oportunidades, a distribuição de riquezas, à aceitação das diferenças.
Não poderia o nosso autor deixar de analisar as questões que passaram diante de seus olhos. Foi com base nesses acontecimentos, os quais não nasceram na década referida, mas que nela se amplificaram, que Rawls desenvolveu os seus conceitos chave. Para eles nos direcionamos agora.
2. RAWLS E SUA TEORIA
John Rawls visa contestar a então doutrina dominante do pensamento anglo-saxão, o utilitarismo clássico, com a sua teoria da justiça, que ele nomina de justiça como equidade.
Grandes pensadores como Stuart Mill e Jeremy Bentham defendiam que não é possível uma sociedade em que haja felicidade para todos, felicidade esta entendida como baseada em escolhas racionais dos indivíduos. Em síntese, os utilitaristas entendiam que seres humanos racionais desejam maximizar a felicidade (os prazeres racionais) e minimizar as dores. Contudo, isso não é possível para todos os membros da sociedade ao mesmo tempo. Prega-se então, que deve o Estado, ciente deste impasse, oportunizar o maior saldo líquido de satisfações, ou seja, que haja a maior felicidade para o maior número de pessoas, não se buscando com isso a felicidade plena e utópica de todos. Desta feita, o infortúnio experimentado por um grupo, se justifica pelos ganhos de outro grupo, contanto que estes sejam maiores em relação à perda dos infortunados. O raciocínio é matemático, logo, quanto maior o número de pessoas felizes em proporção ao número de infelizes haverá justiça social.
Rawls assim sintetiza o pensamento utilitarista:
“A ideia principal é que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas principais instituições estão organizadas de modo a alcançar o maior saldo líquido de satisfação, calculado com base na satisfação de todos os indivíduos que a ela pertencem.”[1]
Contudo o professor de Harvard não conjuga desta posição e justamente contra ela ele constrói sua teoria, baseado na ideia de contrato social e justiça material. Para ele há elementos invioláveis nos seres humanos, que nem a felicidade do maior número de pessoas justifica o desrespeito a estes. Nas palavras do eminente pensador:
“Cada membro da sociedade é visto como possuidor de uma inviolabilidade fundamentada na justiça ou, como dizem alguns, no direito natural, à qual nem mesmo o bem-estar de todos os outros pode sobrepor. A justiça nega que a perda da liberdade para alguns se justifique com um bem maior partilhado por outros. ... em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais.” (2008:34)
Trabalhando com a ideia de que uma sociedade justa deve oportunizar aos indivíduos se desenvolverem, estabelecendo-lhes direitos e deveres e distribuindo as riquezas, dando-lhes igualdade de oportunidades, Rawls parte de duas premissas (princípios) que fundam o alicerce de seu pensamento. São elas:
“Primeira: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas.
Segunda: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos.”[2]
O primeiro dos princípios estabelece direitos e deveres fundamentais. Neste o autor tem em mente as leis objetivamente consideradas. Trabalha-se com o conceito de igualdade formal de todos perante a lei.
Já o segundo princípio se aplica à distribuição de renda e riqueza; logo, trabalha-se com o conceito de igualdade material de acesso às melhores condições socialmente estabelecidas.
Analisando a profundidade do segundo princípio o autor transcreve as seguintes conclusões:
“O segundo princípio se aplica, em primeira análise, à distribuição de renda e riqueza e à estruturação de organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e responsabilidade. Embora a distribuição de riqueza e de renda não precise ser igual, deve ser vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, os cargos de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos.”[3]
“(...) Por fim, com relação ao segundo princípio, a distribuição de renda e riqueza, e de cargos de autoridade e responsabilidade, deve ser compatível tanto com as liberdades fundamentais quanto com a igualdade de oportunidades.”[4]
“O segundo princípio exige que todos se beneficiem das desigualdades permissíveis na estrutura básica. Isso significa que deve ser razoável para cada indivíduo representativo relevante definido por essa estrutura, quando cada qual a considera um empreendimento bem-sucedido, preferir suas perspectivas com a desigualdade a suas perspectivas sem ela. Não se permite que diferenças de renda ou em posições de autoridade e responsabilidade sejam justificadas com base no argumento de que as desvantagens daqueles que se encontram em um posição são contrabalançadas pelas vantagens maiores de outros que se encontram em outra posição. E muito menos ainda as violações à liberdade podem ser contrabalançadas dessa maneira (...)[5].
O autor percebe que o segundo princípio traz consigo duas expressões ambíguas: “benefício de todos” e “acessíveis a todos”. São ambíguas, pois numa sociedade cujos recursos são limitados, eles, os recursos, não são acessíveis a todos; ademais o acesso de um grupo a certas riquezas não implicará benefícios compartilhados a todos os membros da sociedade. Partindo-se do pensamento utilitarista e a refutação da felicidade geral e utópica, nem as riquezas sociais serão acessíveis a todos, nem a sociedade como um todo enriquecerá com a conquista de certos grupos dessas riquezas; logo, as riquezas são acessíveis a uma parte e o benefício delas é compartilhado apenas por parte da sociedade e não por todos. É neste ponto que Rawls desconstrói o pensamento utilitarista.
Ele busca construir uma teoria que possibilite não só que as riquezas sejam bens “acessíveis a todos”, mas que também conforme certos grupos alcancem as benesses sociais, sejam elas usufruídas em “benefício de todos”. Assim, se a elite social produz riquezas, eleva o padrão da vida em sociedade desde a base, em vez de aumentar a desigualdade.
Partindo-se da premissa de que são os conceitos “acessíveis a todos” e “benefício de todos” são independentes entre si, edifica-se o pensamento a seguir exposto, considerando que o primeiro princípio o da liberdade igual perante à lei, tenha sempre o mesmo sentido.
Antes de sistematizar o pensamento, importante mencionar que o autor constrói uma tabela e nela trabalha não só os conceitos “acessíveis a todos” e “benefício de todos”, como também o “princípio da eficiência” e o “princípio da diferença”, partindo-se da premissa de que os indivíduos não são iguais materialmente seja em condições (posição social), seja em capacidade (diferenças intrínsecas de cada ser humano).
Em tabela, Rawls elabora o seguinte raciocínio:
1 – numa sociedade em que há “Igualdade na forma de carreiras acessíveis aos talentos”, mas que prestigia o “princípio da eficiência” será consagrado o “Sistema da Liberdade Natural”;
2 – numa sociedade em que há “Igualdade na forma de carreiras acessíveis aos talentos”, mas que prestigia o “princípio da diferença” será consagrada a “Aristocracia Natural”;
3 – numa sociedade em que há “Igualdade na forma de oportunidades equitativas”, mas que prestigia o “princípio da eficiência” será consagrada a “Igualdade liberal”;
4 - numa sociedade em que há “Igualdade na forma de oportunidades equitativas”, mas que prestigia o “princípio diferença” será consagrada a “Igualdade Democrática”.
Para o autor a “Igualdade Democrática” é a configuração cuja interpretação melhor proporciona a justiça social, dado que oriunda do cruzamento da igualdade na forma de oportunidades equitativas com o princípio da diferença.
Importante ter em mente que Rawls é um (neo) contratualista; logo parte do pressuposto de que em algum momento lógico um pacto para a vida em sociedade é firmada a fim de evitar a vida na natureza e suas vicissitudes. Este tema será melhor abordado quando trabalharmos o conceito de “véu da ignorância”, mais adiante. Importante, apenas salientar, antes de investigar os principais conceitos do autor, que a “loteria do nascimento” não pode impedir que o ser humano se desenvolva, na medida de sua capacidade, mas com igualdade de oportunidade.
Com efeito, todas essas premissas são fundadas naquilo que ele chama de “a posição original”, momento (lógico) em que os indivíduos que participarão da sociedade, sem saber suas futuras posições, decidem com base em que premissas irão se organizar. É mais ou menos análogo a pessoas que visam construir uma empresa e redigem o seu estatuto, sem saber quem serão os diretores e quem serão os operários. Logo, visa estabelecer premissas para que todos vivam bem, sem que tais escolhas sejam parciais, mas imparciais, dado que racionais. A essa ignorância inicial o autor nomeia de véu da ignorância.
Analisaremos os principais conceitos de J. Rawls.
2.1 O Princípio da Eficiência
O princípio da eficiência é calcado no pensamento do economista Vilfredo Pareto, em que eficiência no campo econômico significa que:’
“determinada configuração é eficiente sempre que é impossível modificá-la para melhorar a situação de algumas pessoas, sem ao mesmo tempo, piorar a situação de outras.”[6]
Tal afirmação se direciona para a produção no mercado de consumo. O ponto ótimo de Pareto reflete a ocasião ideal em que um mercado atingiu um patamar em que todos os recursos estão direcionados de modo tão equilibrado, que se se resolver produzir mais de um produto x, ter-se-á que diminuir a produção do produto y. Eis um trade off.
Em contrário senso:
“a distribuição de bens ou um sistema de produção será ineficiente quando houver meios de melhorar ainda mais a situação de alguns indivíduos sem piorar a de outros.”[7]
O princípio da eficiência não está, no campo normativo, ligado necessariamente à justiça, dado que, ao aplicá-lo a este campo, chegamos à conclusão de que um modelo normativo é eficiente se for impossível alterar as normas, para redefinir o sistema de direitos e deveres, para elevar as expectativas de um indivíduo representativo, sem com isso reduzir as expectativas de algum outro.
“Uma disposição da estrutura básica é eficiente quando não há como alterar essa distribuição para elevar as perspectivas de alguns sem reduzir as perspectivas de outros.”[8]
Contudo, a eficiência não está ligada à justiça, dado que se num sistema normativo em que a estrutura básica esteja ligada à escravidão, a alteração de sistema de direitos e deveres, seja em prol dos escravos, seja em prol dos senhores, acaba por afetar a posição dos demais. Logo, há um sistema eficiente, do ponto de vista aqui adotado, mas que não é justo de per si. Desta feita se diferencia o princípio da eficiência do da justiça.
2.2 O Princípio da Diferença
Dentre as combinações possíveis do segundo princípio acima exposto, o autor defende que a interpretação democrática, que resulta da combinação do princípio da igualdade equitativa de oportunidade com o princípio da diferença, é a melhor para se chegar ao que chama de teoria da justiça.
“Uma vez que tentemos encontrar uma interpretação que trate a todos igualmente como pessoas morais, e que não meça a parcela de cada pessoa nos benefícios e nos encargos da cooperação social segundo sua fortuna social ou sua sorte na loteria natural, a interpretação democrática aparecerá como a melhor escolha dentre as quatro opções.”[9]
Pelo princípio da diferença, somente se considera justo um arranjo em que as expectativas mais elevadas dos que estão em melhor situação são consideradas, se e somente se fizerem parte de um arranjo em que as expectativas dos menos favorecidos da sociedade também sejam contempladas. Assim, os ganhos sociais em termos de riquezas (culturais, materiais, morais ...) são usufruídos por todos. Por este princípio a estrutura básica da sociedade se amoldaria de sorte tal que o ganho de um é aproveitado por todos, opostamente ao pensamento utilitarista em que somente alguns podem se beneficiar das riquezas sociais.
“Presumindo-se a estrutura de instituições exigidas pela liberdade igual e pela igualdade equitativa de oportunidades, as expectativas mais elevados dos que estão em melhor situação serão justas se, e somente se fizerem parte de um esquema que eleve as expectativas dos membros mais desfavorecidos da sociedade. A ideia intuitiva é que a ordem social não deve instituir e garantir as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhor situação, a não ser que isso seja vantajoso também para os menos afortunados.”[10]
O autor não defende a igualdade absoluta entre os humanos, mas aduz que, dada às diferenças naturais destes, o arranjo social deve privilegiar aqueles mais capazes, sem com isso esquecer dos menos favorecidos, seja em inteligência ou força.
“Eu não afirmei que, para que todos se beneficiem de um dado arranjo, é preciso que os cargos estejam abertos a todos. Pois pode ser possível melhorar a situação de todos por meio da distribuição de certas prerrogativas e benefícios a determinadas posições, apesar do fato de certos grupos serem excluídos deles.”
(...)
“Na justiça como equidade, a sociedade é interpretada como um empreendimento cooperativo para o benefício de todos. A estrutura básica é um sistema de normas públicas que define um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos a fim de produzir um total maior de benefícios e atribui a cada um deles certos direitos reconhecidos a uma parte dos ganhos.” [11]
Percebe-se que pela interpretação do autor, a justiça como equidade, que visa a definir o sistema de direitos e deveres, assim como esquematizar a distribuição de riquezas, há de se basear no “princípio da diferença”, combinado com a “igualdade na forma de oportunidades equitativas”. Tal combinação não iguala materialmente todos os humanos, nem produz uma sociedade totalmente igualitária, mas permite que a estrutura básica desta seja de tal modo desenhada a permitir que todos que nela vivam usufruam dos ganhos obtidos pelos indivíduos representativos de cada posição social. Desta feita, permite-se que se distribuam as riquezas sociais, sem com isso tolher as diferenças individuais.
2.3 A Posição Original e o Véu da Ignorância
Chega-se aos princípios acima referidos numa situação nominada de “posição original”. As estruturas da sociedade devem ser construídas mediante escolhas racionais, numa posição original em que ninguém sabe ao certo que colocação social assumirá.
Em analogia seria o mesmo que decidir como os jogadores de um time de futebol devem se posicionar em campo, sem saber se seremos técnicos do time, atacantes ou zagueiros. Deste modo distribuímos as funções sem querer com isso nos beneficiar, por isso, pode-se dizer que as escolhas serão racionais.
No verbo do autor:
“Na justiça como equidade, a situação original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria tradicional do contrato social. ... É entendida como situação puramente hipotética, assim caracterizada para levar a determinada concepção de justiça. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, sua classe ou seu status social; e ninguém conhece sua sorte na distribuição dos recursos e das habilidades naturais, sua inteligência, força e coisas do gênero. Presumirei até mesmo que as partes não conhecem suas concepções do bem nem suas propensões psicológicas especiais. Os princípios da justiça são escolhidos por trás de um véu da ignorância.”[12] (Rawls, 2008: 15)
Assim, para se construir uma sociedade justa, parte o autor da teoria contratualista defendendo que os arranjos devem ser firmados por sujeitos racionais que não sabem sua posição no futuro, logo decidirão de modo imparcial. Ademais, a estrutura básica da sociedade deve ser calcada em definição de direitos e deveres iguais a todos, cuidando de estabelecer a igualdade formal entre os indivíduos. Além disso, pelo lado da igualdade material, a distribuição das riquezas deve ser alocado segundo o princípio da diferença, combinado com o princípio da igualdade na forma de oportunidades equitativas. Assim, não se visa tolher os talentos individuais, mas não se joga ao esquecimento os menos afortunados pela natureza ou pela sociedade, dado que a estrutura deve ser tal que permita o desenvolvimento individual, independentemente da loteria do nascimento. Com isso, os ganhos saboreados por cada indivíduo representativo das diferentes classes sociais são por todos experimentados, assim os ganhos auferidos pelos mais favorecidos passam a ser justos à medida que eleva as expectativas dos menos afortunados, num sistema imbricado em que há a distribuição de riquezas entre todos. Elimina-se com isso o trade-off entre melhorar a vida dos ricos, sem que se piore a dos pobres (aumento da desigualdade típica do capitalismo clássico). Na teoria da justiça como equidade, os ganhos daqueles somente são justos se trouxer melhorias para estes, logo a estrutura básica deve estar configurada para isso.
Com todo esse ferramental, pensemos: no Brasil, a questão das quotas para afrodescendentes (em concursos públicos, em vagas nas universidades ou em empresas) é consentânea à teoria da justiça como equidade aqui analisada? Doravante, analisaremos a legitimidade essa questão à luz da teoria de John Ralws.
3 – AS POLÍTICAS DE COTAS RACIAIS NO BRASIL
Primeiramente é importante fazer um corte de objeto neste trabalho. Não se está aqui a estudar o racismo ou fazer juízo de valor acerca da questão dos negros no Brasil. Sabe-se que é tema de grande complexidade e que foge ao alcance da análise pretendida. Aqui apenas se busca analisar, com base em J. Ralws, se as políticas de cotas raciais promovem justiça social, dentro do campo e pensamento do autor.
Pode-se dizer que atualmente as condições no Brasil guardam alguns elementos que indicam certa similaridade com os EUA de Ralws. Há grande protagonismo do Judiciário no cenário político, as reivindicações de diversos movimentos sociais reverberam com cada vez mais força, inclusive as dos negros. Não se quer comparar o Brasil com os EUA, sobretudo em épocas diferentes. Apenas se apontam esses elementos que nos aproximam do pano de fundo do mundo de Rawls, o que revela a atualidade de suas teorias, até porque ainda hoje, nos EUA os debates iniciados naquela época, sobretudo no que tange ao racismo, igualdade de oportunidades e distribuição de riquezas, ainda estão em pauta na agenda política.
Por aqui, duas são as principais leis que consagram ações afirmativas no Brasil atualmente, quando o assunto é “cota racial”. São elas a Lei nº 12.711/2012 e a Lei nº 12.990/2014. Esta última lei institui que “Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.”
Em resumo, os concursos federais para cargos efetivos e empregos públicos têm de observar a reserva (cota) de 20% de cargos aos negros. O acesso às universidades federais também contam com regras que auxiliam o povo negro frequentar regularmente essas instituições de ensino, mesclando renda per capita e cor de pele.
A primeira lei referida é atinente ao acesso ao ensino superior. O foco deste artigo recairá, sobretudo, na lei acerca dos concursos públicos, entretanto, a matriz do pensamento é a mesma, dado que ambas as leis visam consagrar acesso ao estudo em graus mais elevados e ao trabalho na burocracia estatal, elementos esses que podem ser considerados expressão de riqueza social. O acesso ao estudo em graus mais elevados é direito fundamental de segunda dimensão, mas que já foge ao básico, ao “mínimo existencial”, de acordo com a Constituição; tanto que a educação é tratada como direito fundamental no artigo 6º, mas o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística” é estabelecido, “segundo a capacidade de cada um” (artigo 208, V). Logo, não é forçoso concluir que o acesso aos níveis superiores de ensino faz parte da riqueza social, excluindo-se assim do básico, nos termos do artigo 208, I.
Outrossim, os cargos e empregos públicos são também elementos de grande prestígio na sociedade brasileira. Com diversos graus na escala burocrática, existem cargos e empregos públicos que significam para aquele que alça à nomeação e posse elevação do status social e melhorias reais de condições de vida. Com efeito, parte desses cargos e empregos públicos federais garantem ao indivíduo patamares de vida bem acima do mínimo existencial.
O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar os dois temas, acesso às universidades federais e cotas em concursos públicos.
Com relação ao acesso às Universidades Federais, julgando caso específico referente à Universidade de Brasília (UnB), na ADPF nº 186/DF, em 2012, o STF entendeu que o acesso às universidades federais mediante política de cotas é constitucional, pois concretiza a igualdade material. Apenas se ressalvou que a política deve respeitar seu nítido caráter transitório, a fim de não se transformar em uma benesse a alguns instituída em detrimento de toda a sociedade. Vejamos a ementa do julgado:
EMENTA :ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.
IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico- raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.
Mais recentemente, em 2017, analisando a lei de cotas raciais nos concursos públicos federais o STF, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41, declarou a referida lei constitucional. Eis notícia colhida no sítio eletrônico da Suprema Corte[13]:
Plenário declara constitucionalidade da Lei de Cotas no serviço público federal
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu na sessão desta quinta-feira (8) o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 e reconheceu a validade da Lei 12.990/2014, que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, no âmbito dos Três Poderes. A decisão foi unânime.
O julgamento teve início em maio, quando o relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela constitucionalidade da norma. Ele considerou, entre outros fundamentos, que a lei é motivada por um dever de reparação histórica decorrente da escravidão e de um racismo estrutural existente na sociedade brasileira. Acompanharam o relator, naquela sessão, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux.
Na sequência do julgamento na sessão desta quinta (8), o ministro Dias Toffoli lembrou, em seu voto, que quando exercia a função de advogado-geral da União, já se manifestou pela compatibilidade de ações afirmativas – como a norma em questão – com o princípio da igualdade. Para o ministro, mais do que compatível com a Constituição, trata-se mesmo de uma exigência do texto maior, em decorrência do princípio da isonomia prevista no caput do artigo 5º.
Esse entendimento, inclusive, prosseguiu o ministro, está em sintonia com a jurisprudência do STF, que já confirmou a constitucionalidade da instituição da reserva de vaga para portador de deficiência física, bem como a constitucionalidade do sistema de cotas para acesso ao ensino superior público.
O ministro explicou, contudo, que seu voto restringe os efeitos da decisão para os casos de provimento por concurso público, em todos os órgãos dos Três Poderes da União, não se estendendo para os Estados, Distrito Federal e municípios, uma vez que a lei se destina a concursos públicos na administração direta e indireta da União, e deve ser respeitada a autonomia dos entes federados.
O julgamento do Supremo na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, quando foi confirmada a constitucionalidade do sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, foi citada pelo ministro Ricardo Lewandowski em seu voto. Ele recordou que em sua gestão à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi editada a Resolução 203/2015, que reservava 20% de vagas para os negros no âmbito do Poder Judiciário. A resolução levou em conta, segundo ele, o primeiro censo do Judiciário realizado pelo Conselho, que apontou que apenas 1,4% dos juízes brasileiros se declararam negros, e apenas 14% pardos, dados que divergiam dos números do censo demográfico brasileiro de 2010, do IBGE, segundo o qual o percentual da população brasileira que se declarou negra foi de 7,6% e parda 43,1%.
O ministro Marco Aurélio revelou que, nos anos de 2001 e 2002, quando ocupou a presidência do STF, e diante de quadro que persiste até os dias atuais, determinou que fosse inserida em edital para contratação de prestadores de serviço a exigência de reserva de 30% das vagas para prestação de serviços por negros. Para o ministro, uma sociedade justa e solidária repousa no tratamento igualitário, mas é notória a falta de oportunidade para os negros, frisou o ministro, concordando que as estatísticas sobre a questão são vergonhosas.
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, iniciou seu voto citando a história do advogado Luiz Gama (1830-1882), que ficou conhecido como advogado dos escravos, para demonstrar “como tem sido longa a trajetória de luta das pessoas negras em nosso país na busca não só de sua emancipação jurídica, como ocorreu no século XIX, mas de sua emancipação social e de sua justa, legítima e necessária inclusão”.
Ao defender as políticas de inclusão, o decano salientou que de nada valerão os direitos e de nenhum significado serão revestidas as liberdades se os fundamentos em que esses direitos e liberdades se apoiam, além de desrespeitados pelo Poder Público ou eventualmente transgredidos por particulares, também deixarem de contar com o suporte e o apoio de mecanismos institucionais, como os proporcionados pelas políticas de ações afirmativas.
Para o ministro, “sem se reconhecer a realidade de que a Constituição impõe ao Estado o dever de atribuir a todos os que se situam à margem do sistema de conquistas em nosso país a condição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e merecedoras do respeito social, não se tornará possível construir a igualdade nem realizar a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, frustrando assim um dos objetivos fundamentais da República, a que alude o inciso I do artigo 3º da Carta Política”.
Com base não só nos fundamentos já trazidos por todos os ministros, mas também no princípio do direito à busca da felicidade, o ministro se manifestou pela constitucionalidade de medidas compensatórias como a inserida na lei em questão.
Ao também reconhecer a constitucionalidade da norma em debate, a ministra Cármen Lúcia salientou que muitas vezes o preconceito – contra negros ou contra mulheres, entre outros – é insidioso e existe de forma acobertada, e outras vezes é traduzido em brincadeiras, que nada mais são do que verdadeiras injúrias, que indignam. Para a presidente do Supremo, ações afirmativas como a que consta da Lei 12.990/2014 demonstram que "andamos bem ao tornar visível o que se passa na sociedade".
Assim, partimos da premissa de que as referidas leis são constitucionais, nos termos das decisões do STF. Não se visa aqui dizer se há concordância com a decisão do STF ou discordância. Parte-se da decisão da Suprema Corte, que validou as leis no sistema jurídico, para analisar se elas atendem à “igualdade na forma de oportunidades equitativas com o princípio da diferença”.
A grande indagação que se faz é: promovem as ditas leis a Igualdade Democrática, nos termos da teoria de J. Rawls?
A resposta é sim. Vejamos.
A resolução 203/2015 do CNJ informa que dentro do Judiciário Brasileiro, apenas 1,4% dos juízes se declararam negros e apenas 14% pardos. De acordo como censo do IBGE em 2010, apenas 7,6% da população de declarou negra e 43,1% parda.
Vê-se com isso uma clara sub-representação de negros e pardos no Poder Judiciário. Apesar de os dados se referirem somente a este Poder, fato é que não é difícil concluir, numa sociedade como a brasileira, que não é apenas no Judiciário que isso ocorre. Pelo contrário, a segregação de negros na sociedade brasileira é histórica, entretanto, ao contrário dos EUA, aqui há uma certa “camuflagem”. Gilberto Freyre bem exemplifica o discurso mitigador do peso da escravidão no processo civilizatório do Brasil em seu “Casa Grande e Senzala”.
Deixadas à parte as críticas literárias à obra deste eminente sociólogo, no Brasil o racismo se traduz em números. Veja-se a seguinte notícia divulgada no sítio da Empresa Brasil de Comunicação S/A – EBC, tendo por base dados divulgado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítisca)[14]:
IBGE: 50 milhões de brasileiros vivem na linha de pobreza
Cerca de 50 milhões de brasileiros, o equivalente a 25,4% da população, vivem na linha de pobreza e têm renda familiar equivalente a R$ 387,07 – ou US$ 5,5 por dia, valor adotado pelo Banco Mundial para definir se uma pessoa é pobre.
Os dados foram divulgados hoje (15[15]), no Rio de Janeiro, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e fazem parte da pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2017 – SIS 2017. Ela indica, ainda, que o maior índice de pobreza se dá na Região Nordeste do país, onde 43,5% da população se enquadram nessa situação e, a menor, no Sul: 12,3%.
A situação é ainda mais grave se levadas em conta as estatísticas do IBGE envolvendo crianças de 0 a 14 anos de idade. No país, 42% das crianças nesta faixa etária se enquadram nestas condições e sobrevivem com apenas US$ 5,5 por dia.
A pesquisa de indicadores sociais revela uma realidade: o Brasil é um país profundamente desigual e a desigualdade gritante se dá em todos os níveis.
Seja por diferentes regiões do país, por gênero - as mulheres ganham, em geral, bem menos que os homens mesmo exercendo as mesmas funções -, por raça e cor: os trabalhadores pretos ou pardos respondem pelo maior número de desempregados, têm menor escolaridade, ganham menos, moram mal e começam a trabalhar bem mais cedo exatamente por ter menor nível de escolaridade.
Um país onde a renda per capita dos 20% que ganham mais, cerca de R$ 4,5 mil, chega a ser mais de 18 vezes que o rendimento médio dos que ganham menos e com menores rendimentos por pessoa – cerca de R$ 243.
No Brasil, em 2016, a renda total apropriada pelos 10% com mais rendimentos (R$ 6,551 mil) era 3,4 vezes maior que o total de renda apropriado pelos 40% (R$ 401) com menos rendimentos, embora a relação variasse dependendo do estado.
Entre as pessoas com os 10% menores rendimentos do país, a parcela da população de pretos ou pardos chega a 78,5%, contra 20,8% de brancos. No outro extremo, dos 10% com maiores rendimentos, pretos ou pardos respondiam por apenas 24,8%.
A maior diferença estava no Sudeste, onde os pretos ou pardos representavam 46,4% da população com rendimentos, mas sua participação entre os 10% com mais rendimentos era de 16,4%, uma diferença de 30 pontos percentuais.
Desigualdade acentuada
No que diz respeito à distribuição de renda no país, a Síntese dos Indicadores Sociais 2017 comprovou, mais uma vez, que o Brasil continua um país de alta desigualdade de renda, inclusive, quando comparado a outras nações da América Latina, região onde a desigualdade é mais acentuada.
Segundo o estudo, em 2017 as taxas de desocupação da população preta ou parda foram superiores às da população branca em todos os níveis de instrução. Na categoria ensino fundamental completo ou médio incompleto, por exemplo, a taxa de desocupação dos trabalhadores pretos ou pardos era de 18,1%, bem superior que o percentual dos brancos: 12,1%.
“A distribuição dos rendimentos médios por atividade mostra a heterogeneidade estrutural da economia brasileira. Embora tenha apresentado o segundo maior crescimento em termos reais nos cinco anos disponíveis (10,9%), os serviços domésticos registraram os rendimentos médios mais baixos em toda a série. Já a Administração Pública acusou o maior crescimento (14,1%) e os rendimentos médios mais elevados”, diz o IBGE.
O peso da escolaridade
Os dados do estudo indicam que, quanto menos escolaridade, mais cedo o jovem ingressa no mercado de trabalho. A pesquisa revela que 39,6% dos trabalhadores ingressaram no mercado de trabalho com até 14 anos.
Para os analistas, “a idade em que o trabalhador começou a trabalhar é um fator que está fortemente relacionado às características de sua inserção no mercado de trabalho, pois influencia tanto na sua trajetória educacional – já que a entrada precoce no mercado pode inibir a sua formação escolar – quanto na obtenção de rendimentos mais elevados”.
Ao mesmo tempo em que revela que 39,6% dos trabalhadores ingressaram no mercado com até 14 anos, o levantamento indica também que este percentual cresce para o grupo de trabalhadores que tinha somente até o ensino fundamental incompleto, chegando a atingir 62,1% do total, enquanto que, para os que têm nível superior completo, o percentual despenca para 19,6%.
Ainda sobre o trabalho precoce, o IBGE constata que, em 2016, a maior parte dos trabalhadores brasileiros (60,4%) começou a trabalhar com 15 anos ou mais de idade. Entre os trabalhadores com 60 anos ou mais houve elevada concentração entre aqueles que começaram a trabalhar com até 14 anos de idade (59%).
A análise por grupos de idade mostra a existência de uma transição em relação à idade que começou a trabalhar, com os trabalhadores mais velhos se inserindo mais cedo no mercado de trabalho, o que pode ser notado porque 17,5% dos trabalhadores com 60 anos ou mais de idade começaram a trabalhar com até nove anos de idade, proporção que foi de 2,9% entre os jovens de 16 a 29 anos.
O IBGE destaca que os trabalhadores de cor preta ou parda também se inserem mais cedo no mercado de trabalho, quando comparados com os brancos, “característica que ajuda a explicar sua maior participação em trabalhos informais”.
Já entre as mulheres foi maior a participação das que começaram a trabalhar com 15 anos ou mais de idade (67,5%) quando comparadas com a dos homens (55%). Para os técnicos do instituto, esta inserção mais tardia das mulheres no mercado de trabalho pode estar relacionada “tanto ao fato de elas terem maior escolaridade que os homens, quanto à maternidade e os encargos com os cuidados e afazeres domésticos”.
Cresce percentual dos que não trabalham nem estudam
O percentual de jovens que não trabalham nem estudam aumentou 3,1 pontos percentuais entre 2014 e 2016, passando de 22,7% para 25,8%. Dados da pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2017 indicam que, no período, cresceu o percentual de jovens que só estudavam, mas diminuiu o de jovens que estudavam e estavam ocupados e também o de jovens que só estavam ocupados.
O fenômeno ocorreu em todas as regiões do Brasil. No Norte, o percentual de jovens nessa situação passou de 25,3% para 28,0%. No Nordeste, de 27,7% para 32,2%. No Sudeste, de 20,8% para 24,0%. No Sul, de 17,0% para 18,7% e no Centro-Oeste, de 19,8% para 22,2%.
Ele atingiu, sobretudo, os jovens com menor nível de instrução, os pretos ou pardos e as mulheres e com maior incidência entre jovens cujo nível de instrução mais elevado alcançado era o fundamental incompleto ou equivalente, que respondia por 38,3% do total.
Pobreza é maior no Nordeste
Quando se avalia os níveis de pobreza no país por estados e capitais, ganham destaque - sob o ponto de vista negativo - as Regiões Norte e Nordeste com os maiores valores sendo observados no Maranhão (52,4% da população), Amazonas (49,2%) e Alagoas (47,4%).
Em todos os casos, a pobreza tem maior incidência nos domicílios do interior do país do que nas capitais, o que está alinhado com a realidade global, onde 80% da pobreza se concentram em áreas rurais.
Ainda utilizando os parâmetros estabelecidos pelo Banco Mundial, chega-se à constatação de que, no mundo, 50% dos pobres têm até 18 anos, com a pobreza monetária atingindo mais fortemente crianças e jovens - 17,8 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos, ou 42 em cada 100 crianças.
Também há alta incidência em homens e mulheres pretas ou pardas, respectivamente, 33,3% e 34,3%, contra cerca de 15% para homens e mulheres brancas. Outro recorte relevante é dos arranjos domiciliares, no qual a pobreza - medida pela linha dos US$ 5,5 por dia - mostra forte presença entre mulheres sem cônjuge, com filhos até 14 anos (55,6%). O quadro é ainda mais expressivo nesse tipo de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64%), o que indica, segundo o IBGE, o acúmulo de desvantagens para este grupo que merece atenção das políticas públicas.
Chama-se a atenção para as seguintes passagens, as quais para fins de enfatizá-las repetimos:
“A pesquisa de indicadores sociais revela uma realidade: o Brasil é um país profundamente desigual e a desigualdade gritante se dá em todos os níveis.
(...)
Seja por diferentes regiões do país, por gênero - as mulheres ganham, em geral, bem menos que os homens mesmo exercendo as mesmas funções -, por raça e cor: os trabalhadores pretos ou pardos respondem pelo maior número de desempregados, têm menor escolaridade, ganham menos, moram mal e começam a trabalhar bem mais cedo exatamente por ter menor nível de escolaridade”.
(...)
“Entre as pessoas com os 10% menores rendimentos do país, a parcela da população de pretos ou pardos chega a 78,5%, contra 20,8% de brancos. No outro extremo, dos 10% com maiores rendimentos, pretos ou pardos respondiam por apenas 24,8%.
(...)
“Segundo o estudo, em 2017 as taxas de desocupação da população preta ou parda foram superiores às da população branca em todos os níveis de instrução. Na categoria ensino fundamental completo ou médio incompleto, por exemplo, a taxa de desocupação dos trabalhadores pretos ou pardos era de 18,1%, bem superior que o percentual dos brancos: 12,1%.”
(...)
“O IBGE destaca que os trabalhadores de cor preta ou parda também se inserem mais cedo no mercado de trabalho, quando comparados com os brancos, “característica que ajuda a explicar sua maior participação em trabalhos informais”.”
(...)
“Também há alta incidência em homens e mulheres pretas ou pardas, respectivamente, 33,3% e 34,3%, contra cerca de 15% para homens e mulheres brancas. Outro recorte relevante é dos arranjos domiciliares, no qual a pobreza - medida pela linha dos US$ 5,5 por dia - mostra forte presença entre mulheres sem cônjuge, com filhos até 14 anos (55,6%). O quadro é ainda mais expressivo nesse tipo de arranjo formado por mulheres pretas ou pardas (64%), o que indica, segundo o IBGE, o acúmulo de desvantagens para este grupo que merece atenção das políticas públicas.”
Com base nessas passagens, de acordo com o IBGE, num país já desigual, a população negra acaba por sofrer com maior intensidade (vide números) a desigualdade social que é elementar na tessitura social do Brasil (mormente nos estudos e acesso a postos de trabalho).
Com base nesses dados é possível concluir que as ações afirmativas que visam incluir indivíduos que se enquadrem nessa população (negros/pardos) são legítimas e contemplam a “igualdade na forma de oportunidades equitativas com o princípio da diferença”, produzindo assim “igualdade democrática”.
Ora, partindo do pressuposto da herança escravocrata da história brasileira que ainda se traduz em números, como os expostos (fonte IBGE), nada mais justo em termos de igualdade material, que consagrar certos mecanismos de suporte aos indivíduos que compõem essa população (negra e parda). Lembremos que Ralws via o nascimento como uma loteria. De fato, nascermos em certa posição social é mero fruto do acaso. Assim, tão só esse fato não pode ser determinante para o sucesso da vida de um indivíduo em sociedade.
Se pudéssemos logicamente estruturar, nos termos contratualistas (momento lógico e não real), como será nossa vida social, antes mesmo de sabemos que posições teríamos, com certeza edificaríamos mecanismos para que acaso nascêssemos nos grupos sociais desfavorecidos, ainda assim, pudéssemos nos socorrer de mecanismos (políticas públicas) que nos permitissem acessar as riquezas sociais, o bem comum – em bom vernáculo, uma vida boa.
Diga-se que isso não implica eliminar as desigualdades inerentes aos seres humanos. É natural que indivíduos diferentes tenham talentos diferentes, interesses distintos, capacidade mais aguçada para certa área (humanas, biológicas, exatas, artes ...). O sistema de pensamento de Rawls não pretende eliminar essas diferenças inatas. Tanto que para ele o modelo ideal cruza a “igualdade na forma de oportunidades equitativas” com o “princípio da diferença”. Logo, parte da premissa de que diferenças existem, sejam elas individuais ou sociais, mas que a chave da “Igualdade Democrática” está em se garantir “oportunidades equitativas” abertas às diferenças, sejam elas sociais ou individuais. Estas oportunidades devem ser lidas não como a estrita igualdade e todos perante tudo. Deve ser, antes, lida como a oportunidade disponibilizada a indivíduos de certos grupos não incluídos devidamente no processo civilizatório de uma sociedade a valer-se de mecanismos de inclusão prévia e objetivamente instituídos para que alcancem os bens sociais de acordo com suas capacidades e interesses. Há aqui grande espaço ao livre arbítrio individual e consequentemente a responsabilidade do ser sobre as decisões que toma em vida.
Isso é bem ilustrado na figura das cotas dos concursos públicos. Nem todos os negros e pardos pretendem ingressar na carreira pública. Nem todos os negros e pardos serão aprovados. Mas na medida de suas capacidades, considerados os aspectos de exclusão social das camadas sociais a que pertencem, alguns deles alcançarão as mesmas riquezas sociais cujos membros de outros grupos sociais incluídos têm acesso, cargos e empregos públicos, de acordo com o interesse de nestes se investir.
Não quer dizer que todos os negros serão incluídos ou que todos os brancos dividem as riquezas sociais (no caso objeto deste estudo: os cargos públicos ou o acesso ao ensino superior, e que se diga: estão intimamente relacionados). Mesmo com as cotas, ainda assim haverá negros sem o acesso a essas riquezas, seja por opção, seja por capacidade. Entretanto, a questão é que a proporção entre negros e brancos seja em algum momento a mesma ou equivalente. Exemplificando: se há mais ou menos 50% de brancos que não têm acesso aos níveis mais elevados de ensino ou que não têm acesso a cargos e empregos públicos, natural que haja mais ou menos 50% de negros também (números hipoteticamente lançados, mas levando em consideração que praticamente metade da população se declara preta ou parda de acordo com o IBGE). Isso, pois não há diferença de capacidade oriunda da cor da pele; assim nada justifica que a população negra no Brasil seja a que menos têm acesso a estudo e trabalho, ambos nos graus mais elevados, nos termos da pesquisa do IBGE.
Por isso é correto dizer que as leis de cotas raciais (Lei nº 12.711/2012 e a Lei nº 12.990/2014) estão em sintonia fina com a Teoria da Justiça de Rawls, pois não pretendem conferir tratamento privilegiado a grupos sociais, pelo contrário, conferem sim igualdade equitativa de oportunidades aos grupos sociais excluídos da integração civilizatória de nosso processo histórico-social, os negros e pardos, e isso são os números do IBGE que o dizem.
Entretanto há uma ressalva a ser feita quanto à aplicação dessas leis. Como toda regra jurídica, elas devem ser aplicada a fim de atingir o seu escopo. Se elas forem aplicada a certo indivíduo e isso não prestigiar a isonomia, pelo contrário, feri-la, não deverá então incidir no caso concreto.
As referidas leis, com base no princípio da igualdade material (artigo 5º, caput, da Constituição da República), criam regras, que funcionam como mecanismos aos negros e aos pardos para que melhor se incluam na sociedade, inclusive em patamares elevados de ensino e profissão.
Como já defendido em artigo publicado[16]:
Uma norma com estrutura de regra jurídica se aplicada a um caso concreto já reflete a solução de uma ponderação de princípios antecipada pelo Poder Competente (Poder Constituinte ou Poderes Constituídos), sendo que para a sua interpretação e concretização, afiguram-se importantes os postulados, tais quais o da supremacia da Constituição e o da interpretação conforme a Constituição. Eis um simples exemplo que denota como aplicar um dos elementos do sistema jurídico envolve a aplicação de todos, cada qual em sua medida, ressaltando-se a importância de todos.
Contudo, como não há espécie de normas absolutas, até mesmo as regras são passíveis de não ser aplicadas, ainda quando ocorra o fato descrito em sua hipótese de incidência.
Se se escrevesse o oposto, estar-se-ia a justificar a obediência cega às regras, o que significaria para a Ciência do Direito um olhar para trás, um retrocesso.
Interpretar as regras, aplicando-as aos casos concretos, requer a justificação de que os fatos descritos hipoteticamente no enunciado normativo ocorreram no mundo e, por isso, deve incidir a solução já previamente estabelecida no sistema.
Por isso se disse neste trabalho que a interpretação das regras cinge-se visualizar e justificar a hipótese de incidência ao caso concreto, possuindo ônus argumentativo menor que a ponderação de princípios – que deve ocorrer quando não há regras específicas. Eis a técnica da subsunção de há muito conhecida pelo estudioso do Direito.
Se as regras já são os princípios ponderados, equiparando-se à fórmula para a solução de um problema, significa que o Poder Competente (Constituinte ou Legislador) optou por dar prevalecia a um determinado princípio em face de outro. Por isso é correto falar que nas regras já há ponderação (lei do sopesamento – Robert Alexy).
Dessa premissa se extraem outras três:
1 – Para se aplicar uma regra, sua concretização há de fortalecer os fins a que se destina, concretizando o(s) princípio(s) que lhe embasa;
2 – Quando o resultado da aplicação da regra for o de enfraquecer o(s) princípio(s) que lhe embasa, surtindo efeito oposto que aquele desejado em abstrato pelo Poder Competente (Constituinte ou Reformador), ela há de ser afastada no caso concreto, sem que com isso lhe seja declarada a sua invalidade;
3 – Sendo uma regra afastada perante um caso concreto, exsurge uma lacuna em que o intérprete (na maior parte das vezes o Juiz) há de criar uma exceção à regra, não prevista no sistema, por meio de ponderações de princípios que se revelem de acordo com os fatos do caso concreto.[105]
Logo, é possível que se fale em ponderação das regras, que consiste em ponderar o seu elemento axiológico embasador (carga axiológica decorrente do princípio constitucional preponderante) e a finalidade a que se visa promover com os meios consagrados pelas hipóteses descritas no texto.
Dessa premissa é possível concluir:
Se uma regra aplicada a certo caso não concretizar o princípio constitucional que lhe embasa e lhe sustenta (elemento axiológico), há de ser afastado o seu comando normativo (elemento deôntico), criando-se, pois novo comando normativo que figure exceção àquela regra, sem com isso invalidá-la, sendo que a criação dessa nova norma (uma regra prevendo a exceção de outra regra) operar-se-á por sopesamento de princípios.
Robert Alexy já escreveu a seguinte ideia, pensando em princípios jurídicos de direito fundamental, contudo, com as devidas adaptações, é plenamente possível sua utilização no contexto em que se escreve. Ei-la:
“Por meio dos sopesamentos da jurisprudência e de propostas de sopesamento aceitas pela Ciência do Direito, surge, com o passar do tempo, uma rede de regras concretas atribuídas às diferentes disposições de direitos fundamentais, as quais representam uma importante base e um objeto central da dogmática.”[17]
(...)
Contudo, há de se asseverar que superar a aplicação de uma regra é um caso excepcional que demanda carga argumentativa muito maior do que a da ponderação de princípios (quando da produção de regras legislativas ou quando um juiz julga um caso sem regra expressa, ou pondera direitos fundamentais em conflito).
Isso, pois as regras já apresentam solução previsível de um conflito de princípios já ponderado. Logo, demonstrar que os fatos previstos subsumem-se à hipótese de incidência da regra e, ao mesmo tempo, demonstrar que, ainda assim, não se concretiza a finalidade almejada previamente, pelo Poder Competente (Constituinte ou Constituídos), caso seja aplicada a referida regra, requer a demonstração de que o caso é extraordinário e que por isso requer tratamento extraordinário. Somente circunstâncias excepcionais justificam a superação de uma regra sem a declaração de invalidade.
Cria-se assim, uma regra excepcional que tem a pretensão de regulamentar os casos futuros que contenham os elementos fáticos que animaram a sua produção.
Por isso que se falou da importância da argumentação jurídica na ponderação de princípios (agora na ponderação de regras) e a necessidade de uma fundamentação objetiva da interpretação da norma. Disso decorre a possibilidade de universalização do comando criado pelo intérprete, para casos futuros que contenham a mesma configuração fática dantes não prevista pelo Poder Competente.
Assim, ponderar a aplicação de uma regra, em casos excepcionais, de acordo com a concretização teleológica de seu princípio embasador, acaba por criar nova regra (exceção), que com o passar do tempo e de aplicação análoga a outros casos semelhantes acaba por consagrá-la dentro do sistema, seja por meio de súmulas ou precedentes de observância obrigatória, seja por meio de legislação.
Tal fato reforça a importância das regras no sistema jurídico, pois lhes denota a carga axiológica que possuem, enfatiza que sua aplicação não decorre de mera aplicação automática de um comando normativo, valorizando em plano indireto a importância dos princípios e sua respectiva função no ordenamento.
Façamos um exercício.
A Lei nº 12.990/2014 prevê a reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
A regra principal que consagra esse direito está no artigo 1º da Lei, abaixo transcrito:
Art. 1o Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.
§ 1o A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).
§ 2o Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos).
§ 3o A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.
Sem adentrar no mérito dessa ação afirmativa, cuja constitucionalidade já foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal (ADC 41/DF, Rel. Ministro Roberto Barroso), pensemos na seguinte situação: Fulana de Tal, negra, nos termos do artigo 2º da citada lei, se inscreve para o concurso de Juíza Federal de alguma das regiões; vindo a lograr aprovação, seja pelo seu esforço, seja pela política pública que lhe ampara; entretanto, um ano após o exercício desse importante cargo, vê que sua vocação é o Ministério Público, fato que lhe impele a prestar o concurso de Procurador da República, cujo edital está prestes a sair. Antes de imaginarmos se a Fulana de Tal passou nesse outro dificílimo certame, perguntemo-nos: após um ano atuando como Juíza Federal, merece essa pessoa ser destinatária de política afirmativa que visa à inclusão de indivíduos pertencentes a grupos étnico/raciais historicamente excluídos ou desprivilegiados no Brasil? Pode ela ainda ser considerada excluída? Contemplá-la não seria tirar a oportunidade de outra pessoa de fato ainda não incluída nos postos da burocracia brasileira?
Com base no defendido nesse artigo aplicar a referida regra à Fulana de Tal seria uma distorção do sistema, dado que o caso reclama uma superação da regra, tendo em vista que o elemento deôntico por esta perseguido não é atingido, ademais, o elemento axiológico que lha embase é ferido, vez que não prestigia a isonomia.
Frise-se não se está aqui a discutir a política das cotas em concursos públicos. Pelo contrário, está-se a perquirir a sua aplicação, considerando sua validade, entretanto, vislumbrando possível caso de dissonância na aplicação da regra criada, seja por não cumprir a isonomia que embasou o seu exsurgir, seja por não atingir a finalidade ínsita, qual seja, incluir indivíduo pertencente a minoria, cujo processo civilizatório brasileiro não foi justo. Parte-se, pois, da validade da norma em abstrato, com análise de sua aplicação em caso concreto, que a torna inválida, mas apenas para aquele caso.
Assim, voltando ao exemplo anteriormente criado, a Drª. Fulana de Tal terá de concorrer às vagas de Procuradora da República na ampla concorrência apenas, afastando-se a incidência da referida lei, inclusive o seu artigo 3º, isso, pois não há se falar em buscar incluir alguém que já está incluído, nem criar duas chances a um indivíduo que não precisa mais de políticas afirmativas. Um candidato pertencente a grupos raciais/étnicos não minoritários não tem esse privilégio, ainda que não pertença a uma elite econômica ou política, mas por ser socialmente incluído nos moldes criados pela r. lei, não se beneficia de duas oportunidades, quais sejam, concorrer na lista ampla ou na especial, que via de regra possuem notas de corte diferentes, sendo a primeira maior que a segunda lista, fato que justifica a política afirmativa. Se fosse o oposto, não haveria por que criar a referida ação afirmativa.
Portanto, há casos no plano infraconstitucional, em que certas regras jurídicas, constitucionais em tese, podem num caso concreto se configurarem inconstitucionais, pois não concretizam os princípios que lhes são fundadores.
Vê-se que as regras de direito não são absolutas. Assim, há casos em que a peculiaridade do caso, por se afastar dos pressupostos axiológicos que embasaram a norma, deve afastar a incidência da regra, ponderando-se se o escopo desta se alinha com o seu elemento axiológico, se a resposta for negativa, a regra deve ser derrotada no caso concreto. É o exemplo da Dra. Fulana de Tal.
Ora se ela em concurso anterior, valendo-se legitimamente das cotas, conquistou a almejada posição de Juíza Federal, incluindo-se em patamares elevados da burocracia estatal, se tornando membro de Poder (o Judiciário) – logo, não mais sofrendo com as mazelas que afligem o povo negro/pardo no Brasil (de acordo com o IBGE), no que tange à exclusão social[18] – nada justifica que caso ela se sinta vocacionada a ingressar no Ministério Público Federal, ela o faça por meio da política de cotas. Isso, pois não há mais em se falar em concretizar a igualdade material para a Dra. Fulana de Tal; ela já está inserida na alta classe da sociedade, não fazendo jus mais a mecanismos de inclusão, justamente por já estar incluída.
Ademais, certamente a referida doutora poderá diminuir as chances de pessoas que legitimamente se utilizem da política de cotas, vez que pode usufruir da nota dos cotistas para lograr aprovação, ocupando uma vaga das reservadas a negros e pardos, nos termos do artigo 3º da r. lei, conforme o exemplo.
Uma vez que já está inserida na divisão das riquezas sociais, não há mais motivos a conferir tratamento diferenciado.
É célebre a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[19]:
“O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida em função dele.
(...) Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da juridicidade de uma norma diferenciadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes.
De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, calça-se em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado.
(...)
Em síntese: a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada.”
Assim, uma vez cessado o elemento que justifica o tratamento diferenciado (exclusão social de determinado grupo e seus indivíduos), não há se falar em isonomia ao aplicar a regra existente (política afirmativa), que se justifica justamente para desigualar situações desiguais (acesso aos cargos públicos).
O exemplo da Dra. Fulana de Tal envolveu o Judiciário e o Ministério Público, mas bem pode ser aplicado a qualquer cargo/emprego da elite do funcionalismo (Advogados da União, Procuradores da Fazenda, Defensores Públicos, Auditores Fiscais, Delegados da Polícia Federal, Diplomatas, entre outros).
A par do exemplo ora citado, fato é que as políticas de cotas raciais a exemplo das Leis nº 12.711/2012 e nº 12.990/2014 foram declaradas pelo Supremo Tribunal Federal como constitucionais; ademais, são consentâneas com o princípio da Igualdade Democrática desenvolvido por John Rawls em uma Teoria da Justiça, pois visam criar mecanismos que prestigiam a igualdade material (igualdade mediantes oportunidades equitativas), prestigiando o princípio da diferença (critério de discrímen – condição social do povo negro no Brasil). O que se visou com o exemplo, foi apenas demonstrar que não há regra absoluta. Cada caso concreto deve ser criteriosamente analisado a fim de permitir que as políticas de cotas atinjam efetivamente o seu desiderato, qual seja, incluir os excluídos.
Por fim, pode ainda restar alguma indagação acerca do quão bom para a sociedade é ter a política de cotas. Seria o ponto em que John Ralws defende que uma sociedade bem estrutura e que promova a justiça permite que quando certos grupos sociais enriqueçam, toda a sociedade eleve suas expectativas ou a riqueza acabe por ser usufruída, de alguma maneira, por todos.
Pode-se defender que uma sociedade em que a exclusão social anda ao lado de questões raciais não é bom para nenhum de seus integrantes (brancos e negros). Isso acaba por criar estigma, preconceito, retrocesso social, fatores esses que promovem condições para o desenvolvimento do racismo, por exemplo.
No Mapa do Encarceramento – Os Jovens no Brasil, conforme o Ministério dos Direitos Humanos, em 2012, 60,8% da população carcerária brasileira era negra.[20] Tais números só aumentam a estigma negativa, um dos elementos de discriminação da população de negros e pardos, o que acaba por gerar um ciclo vicioso de exclusão. Com certeza, viver numa sociedade com esses valores e dados não enriquece qualquer patamar social, sejam os ricos, os pobres, os brancos, muitos menos os próprios envolvidos.
Destarte, é acertado dizer que cada novo negro que se torne Juiz, Médico, Alto Burocrata, Professor Universitário, etc, cada um deles promove uma elevação nas condições sociais daqueles que não alçaram esses níveis, simplesmente pelo fato de a sociedade se habituar a ver que os altos postos de estudo e de trabalho são locais que não têm cor de pele e nem deveriam ter.
Eventualmente, com o passar do tempo e com a cristalização dessas ações afirmativas chegue o momento em que não nos causará estranheza ver dados do CNJ em que os juízes que se autodeclaram negros ou pardos atinjam proporções similares às suas representações na sociedade. Talvez aí, poderemos dizer que as políticas afirmativas cumpriram sua missão não havendo mais por que promovê-las. Até lá um longo caminho, ao que parece, deverá ser trilhado, para isso nada melhor do que estar em boa companhia, a exemplo das ideias de John Ralws.
CONCLUSÕES
John Ralws elaborou em sua obra “Uma teoria da Justiça” conceitos e ideias que muito podem auxiliar no desenvolvimento do pensamento brasileiro.
Sem deixar de lago a inata desigualdade dos indivíduos, ainda assim, buscou raciocinar como uma sociedade bem estruturada é capaz de distribuir suas riquezas de modo equitativo. Para isso, criou o conceito de “igualdade democrática”, calcada na “igualdade na forma de oportunidades equitativas” e no “princípio da diferença”. O princípio da igualdade formal perante a lei aliado ao princípio da eficiência (princípios estes muito ligados à tradição liberal do pensamento) não solucionam muitos problemas que nós brasileiros experimentamos, dentre eles o fato de a desigualdade social estar intimamente ligada a questões raciais.
De acordo com a Constituição Federal:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Logo, quando o IBGE ou outros órgãos do governo divulgam dados em que expressam que a população negra no Brasil é maioria dentre os mais pobres, é maioria dentre os menos estudados e é maioria dentre a população carcerária, vê-se que é necessário ajustar as oportunidades ofertadas aos seus integrantes, como medida inerente e vital a consagrar os objetivos fundamentais da república, mormente o artigo 3º, I e IV, todos eles muito alinhados com as ideias de Ralws expressos nos conceitos de “igualdade na forma de oportunidades equitativas”, “princípio da diferença” e “igualdade democrática”.
Não se quer dizer com isso que ao final dessas políticas afirmativas, cuja natureza é transitória por essência, a população negra não adentrará aos percentuais da pobreza. O que se diz é que as estatísticas devem refletir que a população negra é tão pobre quanto os brancos, ou num viés mais positivo, é tão instruída e rica quanto os brancos, na mesma proporção em que compõe a sociedade, nos termos de dados estatísticos oficiais. O que não pode persistir é a disparidade dos números que revelam que a desigualdade social ligada à questão racial, muito decorrente das condições díspares oriundas da loteria do nascimento, pois as chances de uma criança negra nascer e não ser bem sucedida são maiores que uma as de uma criança branca, de acordo com os dados do IBGE. A cor da pele não deveria ter qualquer influência no sucesso da vida de um indivíduo.
Sabe-se que há setores da sociedade que ainda são avessos a essas ações afirmativas, tanto que as políticas afirmativas foram debatidas no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, assumindo a posição do véu da ignorância na posição original (Ralws), se não soubéssemos qual nossa posição na sociedade, mas se pudéssemos estruturá-la com leis ideais, com certeza criaríamos mecanismos de desenvolvimento acessível a todo indivíduo, pressupondo que temos o risco de eventualmente passar a viver em grupos desprivilegiados. Assim, a indagação que há de ser feita é se somos favoráveis ou contrários a certas medidas de auxílio (políticas afirmativas) simplesmente por sermos os beneficiários delas ou não. É muito fácil concordar com aquilo que nos é direcionado e que elimina alguma desvantagem que eventualmente possuamos ou nos dê alguma vantagem. A questão toda é argumentar e debater o porquê alimentamos posições desfavoráveis a políticas afirmativas que não nos contemplam. Ademais, outra questão é debater até onde é justo utilizar algo que em tese pode me favorecer.
Seguindo a teoria de Ralws, ainda que indiretamente, todos nós ganhamos com a política de cotas em concursos públicos e de acesso a universidades, pois elas contribuem para avançarmos na superação do racismo estrutural que ainda existe no Brasil. Claro que abusos e fraudes devem ser combatidos. Mas a presença deles não justifica a cessação de política tão importante. O desvio da norma sempre deve ser punido, mas isso pressupõe a manutenção dela no sistema jurídico.
Certamente a concretização da Constituição no ponto em que ela promete promover o ideal de vida boa a todos aumentará o bem estar geral, pois promoverá cada vez mais o bem estar individual, afinal todos querem uma sociedade livre, justa, solidária e acolhedora de todos independentemente do sexo, raça ou religião. As ações afirmativas envolvendo costas para o acesso a universidades federais e cargos e empregos públicos federais é uma das medidas a se prestigiar nesse constante esforço de edificar a justiça social.
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[1] RAWLS, John, 1921-2002. Uma teoria da justiça / John Ralws ; nova tradução, baseada na edição americana revista pelo autor, Jussara Simões ; revisão técnica e da tradução Álvaro de Vita. – 3ª Ed. – São Paulo : Martins Fontes, 2008. – (Coleção justiça e direito), p. 27.
[2] Ibidem, p. 73.
[3] Ibidem, p. 74.
[4] Ibidem, p. 75.
[5] RAWLS, John, 1921-2002. Op. Cit., p. 78-79.
[6] RAWLS, John, 1921-2002. Op. Cit., p. 81.
[7] Idem, p. 81.
[8] RAWLS, John, 1921-2002. Op. Cit., p. 85.
[9] Idem, p, 90.
[10] Ibidem, p. 91.
[11] Ibidem, p. 102.
[12] RAWLS, John, 1921-2002. Op. Cit., p. 15.
[13] http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140, consulta aos 19/12/2017, às 15h21.
[14] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza, consulta aos 19/12/2017, às 15h43.
[15] 15/12/2017.
[16] CARVALHO, Rafael Tawaraya Gualberto de. Normas jurídicas: princípios, regras e postulados. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez. 2017. Disponivel em:<http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.590132&seo=1>. Acesso em: 19 dez. 2017.
[17] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5 – ed. alemã. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp Verlag. 2006. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 175.
[18] Como já dito, o racismo, como elemento do comportamento social, não é objeto desse estudo.
[19] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 20ª Tiragem. Ed. Malheiros. 2011, p, 37-39.
[20] http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-carceraria-e-negra-1, acesso aos 19/12/2017, às 17h25.
Advogado da União. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Direito Constitucional pela Damásio Educacional; Especializando-se em Direito Processual pela PUC-Minas (EAD).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Rafael Tawaraya Gualberto de. O pensamento de John Rawls e as políticas de cotas raciais no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51172/o-pensamento-de-john-rawls-e-as-politicas-de-cotas-raciais-no-brasil. Acesso em: 07 nov 2024.
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