Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir o conceito de culpa no divórcio, expresso no Artigo 1.704 do Código Civil e criticar a aplicação do Parágrafo Único do mesmo dispositivo, que defende a aplicação da mesma norma em variados casos concretos de divórcio, prejudicando os bons costumes e sobretudo as vítimas de condutas desonrosas de um casamento.
Sumário: 1. Introdução, 2. Da omissão do legislador com a definição de culpabilidade do divórcio, 3. Do conceito e da natureza jurídica do divórcio, 4. Das análises de casos concretos e da inaplicabilidade da norma auferida, 5. Conclusões, 6. Referências Bibliográficas
Palavras-chave: Culpabilidade no Divórcio; pensão alimentícia; definição de culpa no divórcio; condutas desonrosas.
Abstract:This article aims to discuss the concept of guilt in divorce, expressed in Article 1,704 of the Civil Code and criticize the application of the Single Paragraph of the same provision, which advocates the application of the same rule in various concrete cases of divorce, harming good morals and above all victims of dishonorable conduct.
Keywords: Guilty in Divorce; alimony; definition of guilt in divorce; dishonorable conduct.
1. Introdução
O Código Civil, especificamente na parte especial de Direito de Família, traz em sua redação o artigo 1.704, Parágrafo Único, que versa sobre uma suposta culpabilidade de um dos nubentes pelo término da sociedade conjugal, e elenca a hipótese de um dos nubentes ter que prover a pensão alimentícia ao ex-cônjuge mesmo que este seja autor do motivo determinante do fim do casamento. Sendo assim, cabe o juízo competente analisar o caso concreto antes da aplicação de tal dispositivo.
Uma vez que o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) entrou em um entendimento por meio de seus representantes, de que a culpabilidade do divorcio é inexistente, porém sem nenhuma norma jurídica apontada para conduzir a lacuna deixada pelo legislador.
2. Da extinção da separação e o novo procedimento de divórcio
A partir da Emenda Constitucional 66, do ano de 2010, foi eliminado do Direito Civil brasileiro o instituto da separação. Ou seja, a partir deste ato, os casais não precisam se separar e se divorciarem, sendo necessário apenas o divórcio para colocar fim ao laço matrimonial. Em 2007, surge a Lei 11.441/2007, que versa sobre a possibilidade do divórcio em cartório, na presença do tabelião e de um advogado, desde que não haja filhos menores de idade e litígio no que tange ao divórcio. É evidente que há uma desburocratização a fim de descongestionar as vias judiciais, que sofre com tantas demandas que poderiam ser solucionadas consensualmente.
Porém o divórcio ainda é acompanhado por algumas obscuridades, sendo uma delas o artigo 1.704 do Código Civil: “Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial.” Em seu Parágrafo único, traz a redação: Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.
3. Da omissão do legislador com a definição de culpabilidade do divórcio
De acordo com o Parágrafo Único do artigo 1704 do Código Civil, o legislador claramente deixa abstrato o conceito de culpa, deixando o entendimento a mercê da interpretação do magistrado, que muitas vezes não analisará o caso concreto com afinco, e nem terá condições para fazer essa suposta análise, já que muitas vezes o fim do laço matrimonial independe de culpa.
Não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica, uma vez que a conduta de um dos consortes, violando deveres conjugais, é apenas o sintoma do fim.[1]
O legislador foi omisso neste dispositivo, abrindo espaço para que a doutrina e a jurisprudência solucionasse tal obscuridade, embora ainda tratar-se de matéria de objeção na seara jurídica.
Seria o Estado capaz, por intermédio de leis, definir o conceito de culpa do divórcio? É irrefutável que o casamento é um instituto muito mais complexo que sua definição jurídica. Por muitas vezes, a dissolução da sociedade conjugal independe de culpa, já que usualmente se dão pela inexistência de laços afetivos, uma vez que o ser humano é adepto a alterações e mudanças, evidenciando ainda mais a pujança dos valores sentimentais, sociais, psicológicos e morais.
Uma relação acaba não é por culpa, mas por responsabilidade de ambas as partes, seja porque não cuidaram, seja porque simplesmente o amor acabou, ou porque o desejo se deslocou. Talvez o fim de um amor seja um fenômeno tão misterioso quanto o apaixonamento. Talvez existam duas mágicas opostas, igualmente incontroláveis, uma que faz, outra que desfaz²
Muitos doutrinadores citam como fator de culpabilidade, condutas desonrosas, como agressão, adultério e abandono do lar, que supostamente configuram a culpa pelo fim do casamento. Porém, todas as situações devem ser analisadas com afinco, a fim da decisão ser pertinente com o caso concreto. Dificilmente o Estado conseguirá provar a culpabilidade de um dos nubentes, pois o direito de defesa do outro poderá dar cabimento a culpa recíproca ou até mesmo inverter a culpabilidade.
Lado outro, ante a principiologia constitucional, é inconstitucional discutir culpa no fim do casamento.
Ora, com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e familiar, igualdade material e familiar, liberdade e autodeterminação afetiva, além da privacidade e intimidade familiar, consagrou-se a teoria do direito de família mínimo. O Estado deve intervir minimamente nas relações familiares.[2]
Existe um entendimento por parte de integrantes do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), de que não há mais culpa no divórcio, porém, no ordenamento jurídico não há nenhuma previsão legal. Não existe nenhum rol taxativo para a definição de culpa quanto ao fim do casamento, devendo o juízo competente julgar o caso de acordo com seu entendimento.
4. Do conceito e da natureza jurídica do divórcio
Antes da Resolução do CNJ nº 175, de 14 de maio de 2013, proferida pelo Ministro Joaquim Barbosa, o casamento é a união legal entre um homem e uma mulher, com o objetivo de constituírem família legítima. Após o avanço social expresso na referida resolução, o casamento passou a ser uma união legal entre duas pessoas, independente de seus sexos.
O conceito jurídico do divórcio é o rompimento do vínculo conjugal reconhecido pela lei. O divórcio rompe o vínculo matrimonial, permitindo um novo casamento dos cônjuges divorciados. Ele põe termo ao casamento e aos efeitos civis do matrimônio religioso, mas não modifica os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos.
A natureza jurídica do casamento é doutrinariamente divergente, havendo adeptos da teoria contratualista, como Silvio Rodrigues e Clóvis Beviláqua, que defendem que o casamento é um contrato, celebrado por pessoas físicas capazes, e que envolvem obrigações éticas e patrimoniais.
Em contrapartida, a teoria institucionalista, defendida por Maria Helena Diniz, o casamento é uma instituição social totalmente regulada pelo Estado, não bastando a simples vontade dos nubentes, mas também a de uma autoridade celebrante. Em síntese as duas doutrinas, surge a teoria híbrida, defendida por Flávio Tartuce, que sustenta que o casamento é um contrato na sua formação e uma instituição no seu conteúdo de acordo com o artigo 1.514, CC.
A natureza jurídica do divórcio é de declaração unilateral de vontade, cujos requisitos de validade são exclusivamente aqueles gerais de qualquer ato jurídico ordinário. Isto é, a opinião e a posição eventualmente adotada pelo outro cônjuge são despidas de qualquer relevância jurídica.[3]
Se a natureza jurídica de casamento ainda é discussão nas doutrinas, seria o divórcio fim de um contrato, ou o fim de uma instituição? A suposta culpa pelo fim dos laços matrimoniais se depara em uma situação parecida, pois não tem definição concreta, e é agravada pela neutralidade dos tribunais superiores quanto ao mérito da questão.
5. Das análises de casos concretos e da inaplicabilidade da norma auferida
A análise do caso concreto deve ser feita minuciosamente para que não haja prejuízo à suposta vítima da conduta desonrosa. Imaginemos a hipótese de um pai de família íntegro, prestativo e que realiza todas suas obrigações como marido, pai e companheiro, que trabalha o dia todo para prover o sustento de sua família, sobretudo de seus filhos. Este é surpreendido com uma suposta traição. Este mesmo pai de família, resolve se divorciar pois não conseguiu lidar com tamanho dano psicológico que sofreu após a traição.
De acordo com artigo 1704, Parágrafo Único do CC, se a cônjuge adúltera vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de presta-los, nem aptidão ao trabalho, a suposta vítima do adultério terá de prove-los, gerando uma tremenda injustiça, pois quem fez a escolha de cometer o adultério (motivo do fim do casamento) foi a esposa.
Analisando o caso concreto, muitas incertezas pairam sobre o ordenamento jurídico, sendo a principal delas a hipótese de culpabilidade, a configuração da inaptidão ao trabalho e quanto seria necessário para prover as necessidades da suposta culpada.
Seria o Estado capaz de criar um rol taxativo que apontasse todas possibilidades de culpa na ação de divórcio? Seria a legislação trabalhista competente a definir se a suposta culpada está inapta ao trabalho? Será necessário uma porcentagem, ou um teto salarial para prover as necessidades da adúltera?
Analisado outro caso concreto: uma mãe de família, que trabalha o dia todo, educa seus filhos, realiza as tarefas do lar, tem como marido, um companheiro absorto, que não ajuda na educação dos filhos, que já a agrediu, que está desempregado, é usuário de drogas e para agravar a situação, é sustentado pela própria esposa. Esta, cansada dos problemas do casamento, se envolve com outra pessoa, configurando o adultério.
Levaremos em consideração também hipóteses de tentativa de homicídio, agressões, ameaças entre outros danos morais e físicos sofridos por um dos cônjuges.
Seria a adúltera a culpada pelo fim do casamento? Teria ela que mesmo depois de custear anos e anos a vida do marido desempregado, lhe prover pensão alimentícia prevista no artigo 1.704 do Código Civil? O que seria feito nos casos em que há tentativa de homicídio? Qual seria o critério do juiz para a aplicabilidade da norma?
Tais questionamentos certamente não teriam respostas concretas, já que existem diversas correntes de pensamento que versam sobre a aplicação da culpabilidade. Talvez, o IBDFAM consiga preencher a lacuna que o legislador deixou ao omitir a definição de culpa, mas o legislador generalizou as possibilidades de um dos nubentes prover pensão alimentícia, cabendo exigir-se a análise minuciosa de cada caso concreto e suas particularidades, e não generalizar conforme o artigo citado.
6. Conclusão
O ordenamento jurídico falha em não exigir a discussão e a análise do caso concreto para a aplicação da pensão no divórcio. Comprovado que um dos nubentes cometeu ato desonroso e foi responsável pelo fim da sociedade conjugal, este, não deverá ter direito a pensão alimentícia prevista no artigo 1.704, Parágrafo Único.
Pois além de ferir a dignidade de seu cônjuge, sujeitando-o a problemas psicológicos e sociais, o suposto culpado não poderá ter regalias por descumprir seus deveres conjugais. Isto afronta os bons costumes e é um nítido incentivo para que os nubentes não cumprissem suas obrigações matrimoniais, dando entendimento que mesmo depois de descumprir os deveres conjugais, eles irão pleitear pensão alimentícia da própria vítima da situação.
O Artigo faz uma nítida apologia ao descumprimento da responsabilidade matrimonial, pois confere direitos ao suposto autor do ato desonroso e contrai deveres à vítima deste próprio ato.
7. Referências Bibliográficas:
FÜHRER, Roberto Ernesto . O novo divórcio potestativo: leitura estritamente constitucional, Migalhas, agosto de 2010. Disponível :http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI114840,81042-O+novo+divorcio+potestativo+leitura+estritamente+constitucional Acesso em fev/2018
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. P. 110
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Renovar. p. 179.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadores do Direito de Família. Saraiva. 2ª ed. P. 242/243.
RODRIGUES, Silvio. Comentários ao Código Civil: Parte Especial Direito de Família: do Casamento - Volume 17
[1] FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Renovar. p. 179.
²PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadores do Direito de Família. Saraiva. 2ª ed. P. 242/243.
[2] ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. P. 110
[3] FÜHRER, Roberto Ernesto . O novo divórcio potestativo: leitura estritamente constitucional, Migalhas, agosto de 2010.
Graduando em Direito Faculdade de Educação.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Ivan Bortolin. Pensão alimentícia no divórcio: da inexistência da culpabilidade a análise ética do caso concreto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51356/pensao-alimenticia-no-divorcio-da-inexistencia-da-culpabilidade-a-analise-etica-do-caso-concreto. Acesso em: 06 nov 2024.
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