RESUMO: Neste artigo, objetiva-se revisitar a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 66/2010, ante a recente interpretação realizada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2017, no julgamento do Recurso Especial nº 1.247.098/MS. A supressão da referência à separação judicial no artigo 226, § 6º, da Lei Maior fez emergir pertinente discussão acerca da viabilidade das ações de separação judicial. Doutrina e jurisprudência se bipartem sustentando, por um lado, a derrocada do instituto e, de outro, a persistência do mesmo, em razão da não revogação do regramento infraconstitucional disciplinador do pedido de dissolução da sociedade conjugal. Para analisar tal quadro, a pesquisa assume viés explicativo, adotando-se como métodos de abordagem o dedutivo e o dogmático-jurídico, como métodos de procedimento o histórico e o interpretativo e como técnica de pesquisa a bibliográfica e a legal. Espera-se, ao final do presente ensaio, confirmar ou negar a permanência da separação judicial na ordem jurídica vigente.
Palavras-chave: Sociedade conjugal. Dissolução. Separação Judicial. Emenda Constitucional nº 66/2010.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO 1 Panorama histórico 2 A emenda constitucional nº 66/2010 3 A construção jurisprudencial pátria CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
A Emenda Constitucional nº 66/2010, conferindo nova redação ao parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal, viabilizou o divórcio direto, não exigindo mais prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos para a sua concessão. Entretanto, a ausência de revogação expressa da legislação ordinária preexistente que disciplina a possibilidade de dissolução da sociedade conjugal sem a extinção do vínculo matrimonial fez surgir intensa discussão doutrinária e jurisprudencial acerca do alcance da reforma promovida pelo constituinte derivado.
O debate cinge-se à compreensão do significado que deve ser atribuído à supressão da menção à separação judicial no texto da Lei Maior, para que se tenha certeza do que a alteração aqui tratada verdadeiramente representa: se o desaparecimento sem ressalvas do instituto do desfazimento da sociedade conjugal ou a sua transição a objeto de pleito judicial autônomo.
Durante a pesquisa, buscar-se-á traçar o caminho percorrido pela sociedade brasileira, desde o momento em que se vislumbrava o predomínio do dogma da indissolubilidade do vínculo matrimonial até o cenário atual; identificar pormenorizadamente as correntes doutrinárias que se desenvolveram, verificando a nova leitura que deve ser realizada acerca da legislação infraconstitucional, tendo em vista a inovação constitucional empreendida em 2010; bem como examinar a postura adotada pelo Poder Judiciário, em especial, as novas luzes lançadas sobre o tema pela decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça em 2017.
Diante da variedade de interpretações realizadas sobre o texto constitucional reformado, torna-se relevante o confronto das ideias relativas à matéria. Nesse diapasão, este ensaio objetiva contribuir para a discussão jurídica, visto que quanto maior o debate sobre a temática abordada, maiores serão as chances de ver se cumprir o papel para o qual foi elaborada a alteração constitucional em comento. Ademais, somente através do cotejo das diferentes soluções apresentadas se mostra possível um melhor aperfeiçoamento do tema.
1 Panorama histórico
Os institutos responsáveis pelo desfazimento da sociedade e do vínculo conjugal nem sempre existiram no direito brasileiro. Em virtude da colonização lusitana, o Brasil inicialmente aderiu ao dogma da indissolubilidade do vínculo matrimonial, desenvolvido na Europa e consolidado durante a Idade Média com o fortalecimento e crescente influência da Igreja Católica sobre os Estados-Nação.
A Lei Maior de 1824, bem como o regramento infraconstitucional, nada dispunham acerca das relações familiares, permanecendo estas intrinsecamente arraigadas à disciplina estabelecida pela Igreja. Conforme salienta Cahali (2000, p. 41):
[…] nos primeiros séculos, a Igreja foi titular quase absoluta dos direitos sobre a instituição matrimonial; os princípios do Direito Canônico representavam a fonte do direito positivo. Com a proclamação da independência, instaurada a monarquia, nosso direito permaneceu sob influência direta e incisiva do direito da Igreja, em matéria de casamento.
Por séculos, as regras papais foram tidas como única fonte normativa, tendo sido consagrada a indissolubilidade do vínculo matrimonial, passível de desconstituição apenas com a morte de um dos cônjuges. Nesse sentido, ainda persiste a previsão no Código Canônico em seu Capítulo IX, Artigo 1, Cânone 1141: “O matrimónio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa além da morte” (sic).
O movimento migratório, todavia, trouxe às terras brasileiras novas crenças religiosas e, com estas, novas formas de uniões familiares passaram a exigir a tutela estatal. Neste contexto, editou-se o Decreto nº 1.144, em 11 de setembro de 1861, conforme discorre Monteiro (2004, p. 29):
A imigração, porém, com inevitável introdução de novas crenças, tinha de impor a decretação de outra forma de casamento, mais compatível com as circunstâncias. Foi assim que, a 11 de setembro de 1861, surgiu lei regulando o casamento dos acatólicos, a celebrar-se segundo o rito religioso dos próprios nubentes. Tratava-se, sem dúvida, do primeiro passo para a emancipação do casamento da tutela eclesiástica.
Em 15 de novembro de 1889, outra etapa se inicia. A República é proclamada no Brasil sob influência do Iluminismo, que atingiu seu apogeu na Europa no século XVIII. Como reflexo do ideal de liberdade religiosa defendido, o Estado brasileiro torna-se laico. Nenhuma crença mais é professada; ao revés, nos termos do artigo 11 da Lei Fundamental de 1981, era “[...] vedado aos Estados, como à União (…). 2º) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”.
Em decorrência desta nova concepção, o casamento religioso é juridicamente desconsiderado. Consoante determina o parágrafo 4º do artigo 72 da Constituição de 1981: “a República só reconhece o casamento civil [...]”. Nessa linha de intelecção, afasta-se o Código Canônico e surge o Código Civil de 1916, cujo Livro I da sua Parte Especial se dedica ao Direito de Família.
Contudo, mesmo consagrada a laicização do Estado, ainda que de maneira indireta persistiu a afluência das máximas católicas no ordenamento brasileiro; corroborando com essas idéias, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 524) relatam que:
[…] percebe-se forte influência dos cânones romanos no sistema normativo brasileiro. Com efeito, se um dos primeiros atos, com a Proclamação da República em 1889, foi a subtração da competência do direito canônico sobre as relações familiares, especialmente o matrimônio, não há como rejeitar que o nosso primeiro Código Civil, publicado em 1916 (...) incorporou concepções do sistema religioso, até então predominante (grifos nossos).
Nesse diapasão, o Codex Civilista de 1916 regulamentou a dissolução da sociedade conjugal, a qual passou a ser admitida, conforme se vislumbra no artigo 315, quando houvesse a morte de um dos cônjuges, a anulação ou a declaração de nulidade do matrimônio ou o desquite. No que concerne a este último, saliente-se que o vínculo matrimonial permanecia intacto, autorizando-se somente, segundo o artigo 322, a separação dos cônjuges e a revogação do regime matrimonial dos bens.
Consoante a inteligência extraída dos artigos 317 e 318 da Codificação Civil de 1916 o desquite (tímida inovação) apenas possibilitava a propositura da ação fundada em adultério, tentativa de morte, sevícia, injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos consecutivos ou por mútuo consentimento, quando os cônjuges fossem casados por mais de dois anos e manifestassem essa vontade perante o juiz togado para que fosse homologada.
Como se vê, na vigência do Código Civil de 1916, a indissolubilidade do vínculo conjugal foi mantida, ou seja, não obstante pudessem ostentar o status de desquitados, permaneciam os cônjuges impedidos de convolar novas núpcias. Longe de obstar materialmente aos indivíduos a constituição de novas famílias, a ausência de normatização estatal acerca do desfazimento do vínculo conjugal apenas deixava incontáveis reconfigurações familiares à margem do Direito; é o que constatam Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 529):
Nessa fase, há apenas o desquite, instituto de influência religiosa, que gerava apenas a dissolução da sociedade conjugal, com a manutenção do vínculo conjugal, e a impossibilidade jurídica de contrair formalmente novas núpcias, o que somente gerava “famílias clandestinas”, destinatárias do preconceito e da rejeição social. (grifo do autor).
Inúmeras foram as lutas travadas em busca da chancela estatal para um fato já incontestavelmente corriqueiro e havido em grande número: a irremediável dissolução do vínculo matrimonial. Conforme relata Cahali (2000, p. 42):
Entrementes, ainda na vigência da Constituição de 1946, várias tentativas foram feitas no sentido da introdução do divórcio no Brasil, fosse de modo indireto, através do “divórcio disfarçado” representado pelo acréscimo de uma quinta causa de anulação do casamento por erro essencial (art. 219 do CC), consistente na incompatibilidade invencível entre os cônjuges, com prova de que, após decorridos cinco anos da decretação ou homologação do desquite, o casal não restabelecera a vida conjugal; fosse por via de emenda constitucional visando a suprimir do art. 163 daquela Constituição as expressões “de vínculo indissolúvel”, adicionadas ao casamento civil. (grifos do autor).
Em 1975, intentou-se, sem resultado, alterar a Lei Fundamental instituindo o divórcio, mas apesar de a votação alcançar a maioria favorável das Casas, não atingiu o quorum especial de dois terços, exigido pelo artigo 48 do Texto Maior de 1967, pós-emenda nº 1/69. Em sua narrativa, Cahali (2000, p.42) discorre:
Apresentou-se, então, a EC 5, de 12.03.1975, estabelecendo nova redação ao art. 175, §1º, da Constituição de 1969, de modo a permitir a dissolução do vínculo matrimonial após cinco anos de desquite ou sete de separação de fato. Em sessão de 8 de maio de 1975, a emenda obteria maioria de votos (222 contra 149), porém insuficientes para atingir o quorum exigido de dois terços.
Apenas quando a Emenda nº 8/1977 modificou o quorum, passando a Constituição a exigir apenas a maioria absoluta dos votos, foi que o cenário tornou-se propício à aprovação e promulgação da Emenda Constitucional nº 9 de 1977, que deu nova redação ao parágrafo 1º do artigo 175 da Carta Maior de 1967, possibilitando o divórcio. Conforme sustentam Farias e Rosenvald (2010, p. 318):
Até essa data somente o desquite colocava fim ao casamento, sem, entretanto, dissolver o vínculo existente entre marido e mulher. Superava-se uma intensa fase de debates e infundadas preocupações sociais e religiosas, típicas do contexto cultural do individualismo jurídico que impregnou o período oitocentista, admitiu-se a quebra do vínculo matrimonial, quando cessado o próprio afeto.
Com o fito de complementar o conteúdo e dar cumprimento à norma constitucional, editou-se a Lei nº 6.515/1977. A partir daí não se fez mais qualquer referência à terminologia desquite, convertendo-se expressamente as Ações de Desquite em Ações de Separação Judicial. Nos exatos termos do seu artigo 41: “as causas de desquite em curso na data da vigência desta Lei, tanto as que se processam pelo procedimento especial quanto as de procedimento ordinário, passam automaticamente a visar à separação judicial”.
O divórcio foi incluído no rol das formas terminativas da sociedade conjugal previstas em seu artigo 2º e, no parágrafo único do referido dispositivo, estabeleceu-se que o divórcio, bem como a morte de um dos cônjuges, seriam causas de dissolução do casamento. Entretanto, o pedido de dissolução do vínculo conjugal teve seu exercício condicionado à separação judicial. Só poderia pleitear o divórcio aquele que houvesse previamente se separado de seu cônjuge.
A Seção I do Capítulo I da Lei nº 6.515/1977 deu tratamento aos casos e efeitos da separação judicial. Nos artigos 3º e 7º reafirmam-se os efeitos, ao passo em que se determinava a separação judicial como meio eficaz a pôr termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, importando em separação de corpos e partilha de bens.
No que concerne aos casos da dissolução judicial da sociedade conjugal, estes institutos se diferenciavam de acordo com a vontade expressada por um ou ambos os cônjuges. Com efeito, a separação judicial por mútuo consentimento dar-se-ia, nos termos do artigo 4º quando, manifestado perante o juiz, esse consenso fosse por ele homologado e desde que os cônjuges fossem casados há mais de dois anos.
A seu turno, a separação judicial iniciada por apenas um dos cônjuges, prevista no artigo 5º e seus parágrafos, tinha seu pleito admitido em três situações: quando o autor imputasse ao consorte conduta desonrosa ou qualquer ato que importasse em grave violação dos deveres do casamento e que tornasse insuportável a vida em comum; quando se comprovasse a ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo e a impossibilidade de sua reconstituição; ou quando o outro estivesse acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que tornasse impossível a continuação da vida em comum, desde que, após cinco anos, a enfermidade tivesse sido reconhecida como de cura improvável.
Quanto à conversão da separação judicial em divórcio tem-se que, a priori, a transmudação deveria respeitar o interregno mínimo de três anos, contados do pronunciamento judicial (cautelar ou definitivo) que concedera a separação. Era o que preceituava a redação original do artigo 25 da lei em comento, ipsis litteris:
Artigo 25. A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges, existente há mais de três anos, contada da data da decisão ou da que concedeu a medida cautelar correspondente (art. 8º), será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.
A referida normatização também previa interessante hipótese (primitiva previsão de divórcio direto) que visava regularizar a situação de inúmeras famílias previamente constituídas sem a proteção do manto estatal. É o que se extrai da leitura de seu artigo 40, em sua redação original: “No caso de separação de fato, com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completados 5 (cinco) anos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do tempo da separação e a sua causa”. Ressalte-se que tal disposição encontrava-se, nos termos do seu parágrafo 1º, vinculada à ocorrência de uma das causas elencadas nos artigos 4º e 5º e seus parágrafos, referentes à configuração dos casos justificantes da concessão da separação judicial acima tratados.
Portanto, a dissolução do vínculo matrimonial (entendida como o reconhecimento estatal do fim da união conjugal), ainda que admitida, continuou sendo vista com reservas, pelo que se trilhou um pedregoso caminho entre discussões, ponderações e concessões, com vistas a conciliar a antinomia social surgida entre divorcistas e antidivorcistas.
Da análise das concessões realizadas pelos divorcistas, salta aos olhos a imposição de condicionantes ao direito dos indivíduos de pleitearem o divórcio. Conforme preleciona Dias (2010, p. 288):
[…] forte foi a resistência dos segmentos mais conservadores. (...). Para a aprovação da Lei do Divórcio (L 6.515/77), foi necessário manter o desquite, tendo ocorrido uma singela alteração terminológica. O que o Código Civil chamava de desquite (ou seja, não “quites”, alguém em débito para com a sociedade) a Lei do Divórcio denominou de separação, com idênticas características: põe fim à sociedade conjugal, mas não dissolve o vínculo matrimonial (grifos nossos).
No mesmo ano da Emenda Constitucional nº 9 firmou-se, nos termos da Lei nº 6.515/1977, a dicotomia separação-divórcio, de modo que, para fazer jus à concessão do divórcio, exigia-se das partes que promovessem a separação judicial para, em momento posterior, autorizá-las a convertê-la em divórcio.
Com a elaboração da Lei Fundamental de 1988, manteve-se o binômio supra referido, no entanto os prazos se tornaram mais exíguos. O divórcio, nos termos do parágrafo 6º do artigo 226, permaneceu condicionado à comprovação de prévia separação judicial por mais de um ano ou de anterior separação de fato por mais de dois anos.
A legislação infraconstitucional também acompanhou as mudanças perpetradas pelo novo Texto Fundamental, sendo que duas foram as principais leis responsáveis por cumprir tal intento, a saber: a Lei nº 7.481/1989 e a Lei nº 8.408/1992.
Em 1989, a Lei nº 7.841 alterou e revogou dispositivos da Lei nº 6.515/1977, entre estes, o artigo 40, que passou a versar acerca da separação de fato ocorrida a qualquer tempo, desde que transcorrido o lapso de dois anos consecutivos. Além disso, o seu parágrafo 1º foi revogado, excluindo a limitação da concessão do divórcio, diante da separação de fato, antes circunscrito às causas previstas nos artigos 4º e 5º e seus parágrafos.
Em 1992, a Lei nº 8.408 deu nova redação a alguns dispositivos da Lei n. 6.515/1977 e reduziu o lapso temporal do artigo 5º, parágrafo 1º, e do artigo 25 de cinco e três anos, respectivamente, para um ano.
A edição da Lei nº 11.441/2007 trouxe outra grande evolução, acrescentando o artigo 1.124-A ao Código de Processo Civil de 1973, que dispensou a propositura de ação judicial, permitindo o trâmite da separação e do divórcio consensual na via administrativa e sua formalização por meio de escritura pública, desde que enquadrados em específica situação autorizadora dessa simplificação: inexistência de filhos menores ou incapazes; decurso dos prazos constitucionalmente exigidos; concordância na partilha dos bens comuns e demais questões patrimoniais referentes ao fim da sociedade conjugal. Ressalte-se que, não obstante a dispensa da interferência judicial, manteve-se a exigência da presença de advogado.
Comentando acerca da inovação legislativa em referência, Veloso (2010, p.103) registra a extrema importância da Lei n. 11.441/2007, considerando-a verdadeiro marco no Direito brasileiro, notadamente por facultar aos interessados a adoção de procedimento abreviado, simplificado, desburocratizado, fora do âmbito judiciário, onde “o cidadão passou a ter razoável certeza do momento em que começa e da hora em que acaba o procedimento, a solução de seu problema. E isso é fundamental, sobretudo quando se trata de superar a crise dolorosa e aguda na relação familiar”.
Em arremate deve-se afirmar que, como reflexo de todos os embates travados, em 2010 aprovou-se a Emenda Constitucional n. 66/2010, a qual (consoante sua ementa) deu nova redação ao parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal, dispondo sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio e suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos. O referido parágrafo 6º do artigo 226 da Lei Maior passou, simplificadamente, a dispor: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Todavia, diferentemente do que ocorreu quando da promulgação do Texto Constitucional de 1988, a legislação infraconstitucional não foi expressamente modificada e, assim, muitos questionamentos emergiram acerca do real significado da referida alteração, os quais se buscará explorar no capítulo que segue.
2 A emenda constitucional nº 66/2010
Após a promulgação da emenda constitucional nº 66/2010, surgiram duas perspectivas diametralmente opostas acerca da dissolução da sociedade e do vínculo conjugal: enquanto uns sustentam a revogação tácita da separação judicial e o estabelecimento do divórcio direto como direito potestativo, outros defendem que houve apenas a desconstitucionalização do regramento, persistindo o divórcio e suas condicionantes nos moldes previstos no Código Civil.
Com efeito, aqueles que perfilham a tese da mera desconstitucionalização da matéria argumentam que a ausência de estipulação constitucional não poderia significar a revogação dos requisitos, visto que a previsão genérica do divórcio não teria o condão de vedar a atuação (anterior ou posterior) do legislador ordinário, mormente em razão da temática não se revelar materialmente constitucional. Para estes, o silêncio da Lei Maior acarretaria uma ampliação do campo de atuação do legislador infraconstitucional. Sobre isso, Schäfer (2010) leciona:
[…] o emprego de um conceito geral, como é o caso do divórcio, enunciado na Constituição, permite a atuação do legislador que pode adaptar o instituto a novas conformações sociais, de acordo com a realidade política e social. Note-se, no entanto, que o legislador já tinha atuado, motivo pelo qual a cláusula de contenção já funcionou antecipadamente e não pode ser ignorada pelos intérpretes. O fato de eliminar requisitos, portanto, não significa a revogação do direito infraconstitucional. (…) A eliminação de requisitos constitucionais significa liberdade de atuação para o legislador que pode dispor a respeito do término do casamento pelo divórcio, conformando requisitos e procedimentos. (…) a retirada de parâmetros constitucionais, na matéria de Direito Civil, significa desconstitucionalização, ou seja, ocorre a perda de hierarquia constitucional para que a matéria seja regulada em plano infraconstitucional. Retirar do Texto Constitucional não significa revogação, especialmente quando a matéria está regulada no plano ordinário. (grifo nosso).
Destarte, comungando de igual pensamento, Pires (2010) assevera o caráter declaratório da emenda constitucional nº 66 de 2010, afirmando inexistir qualquer incompatibilidade entre a nova redação dada ao parágrafo 6º do artigo 226 da Lei Fundamental e o Código Civil e que a separação judicial continuaria sendo um instituto válido. Não obstante a relevância da minoração da ingerência estatal sobre a família e da viabilização de uma Justiça mais célere e eficaz, o magistrado “[...] não pode decidir de acordo com o que se mostra mais justo e adequado, segundo critérios meramente axiológicos, mas decidir conforme a norma positivada e, na lacuna da lei, aplicar as fontes subsidiárias desta [...]”.
Em contraposição a esse entendimento, diversos estudiosos justificam o fim da separação judicial, invocando a força normativa da Constituição como responsável pela derrocada da legislação ordinária e salientando que só o próprio Texto Fundamental têm o condão de se limitar, pois quando a norma constitucional não contém nenhuma expressão autorrestritiva, deve-se entender que sua eficácia é plena. Adotando este raciocínio, Paulo Lôbo (2010; apud GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2011, p. 543) discorre:
[...] As normas constitucionais não são meramente programáticas, como antes se dizia. É consensual, também, que a nova norma constitucional revoga a legislação ordinária anterior que seja com ela incompatível. A norma constitucional apenas precisa de lei para ser aplicável quando ela própria se limita “na forma da lei”. Ora, o Código Civil de 2002 regulamentava precisamente os requisitos prévios da separação judicial e da separação de fato, que a redação anterior do parágrafo 6, do artigo 226 da Constituição estabelecia. Desaparecendo os requisitos, os dispositivos do Código que deles tratavam foram automaticamente revogados, permanecendo os que disciplinam o divórcio direto e seus efeitos. (grifos nossos).
Apesar de afastar-se da tese do fim da separação judicial, acerca da aplicabilidade da Lei Maior, Silva (2010) esclarece que o silêncio constitucional é eloqüente, pois que ao eliminar os prazos de separação como condição para a dissolução do vínculo conjugal, a Norma Fundamental não facultaria ao legislador ordinário fazê-lo, mas sim baniria essas limitações do ordenamento. Assim, “poder-se-ia falar da força normativa do não escrito. Trata-se de um silêncio afirmativo. A aplicação da norma constitucional deve ser imediata.”
Para aqueles que se inclinam a favor da derrogação dos dispositivos do Código Civil atinentes à separação judicial, a anterior necessidade de aferição de prazos e da culpabilidade de um dos cônjuges constituiria descabida invasão do Poder Público na vida humana, caracterizando séria ofensa à dignidade da pessoa, ao direito fundamental à intimidade e à autonomia da vontade.
A excessiva intervenção do Estado, sujeitando os indivíduos a dois processos judiciais (e ao transcurso de certo lapso temporal entre os mesmos) se afiguraria desmedida. Ademais, se entende que o strepitus fori oriundo da análise da culpa pelo fim do matrimônio e da inviabilidade da vida em comum não se coadunava com a intenção do constituinte originário de preservar a unidade familiar. Como declara Dias (2009):
A violação ao direito à privacidade e à intimidade constitui afronta ao princípio de respeito à dignidade da pessoa humana, cânone maior das garantia individuais. Desse modo, a ingerência do Estado na vida dos cônjuges, obrigando um a revelar a intimidade do outro, para que imponha o juiz a pecha de culpado ao réu, é de ser qualificada como inconstitucional. (…) Só é infiel, só abandona, só agride quem não ama. Tudo isso acontece porque o vínculo afetivo acabou. Portanto, a única causa que leva à separação é o fim do amor. Quem ainda ama quer a punição de quem não mais lhe quer, buscando no Judiciário a apenação do outro com a pecha de culpado.
Chaves (2010), compartilhando da mesma crença, evidencia que essa medida tomada pelo constituinte derivado adéqua a Norma Maior aos valores da sociedade brasileira atual, evitando que a intimidade e a vida privada dos indivíduos e suas famílias sejam expostas no espaço público dos tribunais, provocando constrangimentos, agravando as crises familiares e dificultando o diálogo entre os cônjuges, sempre necessário na busca por uma melhor solução dos problemas oriundos da dissolução da sociedade conjugal.
Além disso, aceitando-se o fim da separação judicial e das demais limitações à concessão do divórcio, restaria minorada a exigência de atuação dos magistrados, visto que, em não optando ou não se podendo optar pelo procedimento administrativo, os sujeitos proporiam apenas uma ação na qual não haveria, em regra, dilação probatória alguma. Nesses termos, com a economia processual decorrente da simplificação da desvinculação conjugal, não só o Poder Judiciário se tornaria mais célere, como também os custos a serem expendidos pelas partes reduzir-se-iam.
De acordo com Dias, em seu artigo “A nova lei do divórcio e a felicidade”, essa providência amenizará a carga de trabalho submetida ao Poder Judiciário, visto que os processos de separação automaticamente se transformarão em ações de divórcio e, como não se exige mais a identificação de culpados, não haverá produção de provas e inquirição de testemunhas; a dissolução do vínculo matrimonial poderá ser concedida mesmo antes de serem resolvidos os aspectos patrimoniais decorrentes da relação conjugal; as questões secundárias levantadas na demanda se restringirão a eventual obrigação alimentar entre os cônjuges e ao uso do nome, caso algum tenha adotado o sobrenome do outro e, havendo filiação, ali definir-se-á também a forma de convivência e a obrigação alimentar dos pais para com os filhos.
Em síntese, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 545), analisando a figura do divórcio incondicionado, apontam-lhe vantagens sobre a mera separação judicial, a saber:
[...] Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas o próprio vínculo matrimonial, permitindo-se novo casamento; sob o viés psicológico, evita-se a duplicidade de processos – e o strepitus fori – porquanto pode o casal partir direta e imediatamente para o divórcio; e, finalmente, até sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, pois, com isso, evitam-se gastos judiciais desnecessários por conta da duplicidade de procedimentos. (grifo do autor).
Diante de todo o exposto, vê-se que a referida corrente doutrinária afirma que a própria natureza jurídica do divórcio teria ganho novo colorido; assim, Gagliano e Pamplona Filho (2011, p. 548/550) ensinam que o divórcio tornou-se “[...] um simples direito potestativo a ser exercido por qualquer dos cônjuges, independentemente da fluência de prazo de separação de fato ou de qualquer outra circunstância indicativa da falência da vida em comum.” (grifo do autor). Führer (2010), dissertando sobre os efeitos da reforma constitucional nº 66 de 2010 (apesar de compreender destino diverso a ser dado à separação judicial), no que tange do pedido de dissolução dos laços conjugais, assim escreve:
[…] a edição da Emenda Constitucional 66/2010 (…) criou o divórcio potestativo, absolutamente desvinculado de qualquer termo ou condição. (…) O reconhecimento do direito de divórcio potestativo, sem termo ou condição, constitui direito fundamental (…) e tem por espeque o princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, o texto em exame é intangível, não podendo ser objeto de emenda extintiva. Como não existe a possibilidade de edição de lei infraconstitucional que, de qualquer forma restrinja ou condicione o direito ao divórcio, a espera de legislação reguladora posterior mostra-se improdutiva. De outra banda, verifica-se que a norma em estudo é daquelas que tem aplicabilidade plena, não necessitando de regulamentação. (grifo do autor).
O divórcio potestativo seria, para alguns, o fundamento conclusivo utilizado para arrematar a discussão acerca da revogação da separação judicial. Com efeito, uma vez despojada do seu papel de condicionante do divórcio, parte da doutrina não vislumbra nenhum vestígio de finalidade que justifique a manutenção da separação judicial no ordenamento brasileiro. Consoante Pereira (2010, p. 469):
O argumento finalístico é que a Constituição da República extirpou totalmente de seu corpo normativo a única referência que se fazia à separação judicial. Portanto, ela não apenas retirou os prazos, mas também o requisito obrigatório ou voluntário da prévia separação judicial ao divórcio por conversão. Qual seria o objetivo de se manter vigente a separação judicial se ela não pode mais ser convertida em divórcio? Não há nenhuma razão prática e lógica para a sua manutenção. (grifo nosso).
Nesse diapasão, Ravache (2011) preconiza a ausência de uma finalidade prática para a manutenção da separação judicial, mesmo que compreendida de forma opcional, pois a separação de fato atenderia o anseio do casal que precisasse de um tempo para decidir pelo divórcio. Além disso, no que concerne à possibilidade de conciliação permitida na separação judicial, nada impediria que após o desfazimento do anterior vínculo conjugal, o mesmo casal convolasse núpcias uma outra vez. A autonomia da vontade, o respeito às minorias e a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (cristalizada no artigo 5º, VI da Constituição Federal), porém, conduzem alguns juristas a pensarem de modo diverso.
Uma vez que se proceda à revista do texto constitucional anterior à reforma, é fácil perceber que não versava propriamente acerca da dissolução da sociedade conjugal. Com efeito, a regulamentação constitucional restringia-se a dispor sobre a forma de dissolução do casamento civil (o divórcio) mencionando-se a separação judicial apenas enquanto seu elemento condicionante, senão, veja-se: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”.
O Código Civil, por outro lado, em seu artigo 1.571, incisos e parágrafo 1º diferenciou nitidamente o término da sociedade conjugal, que ocorreria pela morte de um dos cônjuges, nulidade ou anulação do casamento, separação judicial ou divórcio; do fim do casamento válido (matéria prevista constitucionalmente), concretizado pela morte de um dos cônjuges ou através do divórcio.
Nestes termos, uma terceira corrente doutrinária apregoa: quando o constituinte derivado expurgou a separação judicial do parágrafo 6º do artigo 226, em verdade não teria revogado o instituto autonomamente considerado, mas apenas sua função limitadora do desfazimento do vínculo conjugal. Com efeito, fundados neste raciocínio estes doutrinadores reconhecem (ao lado do direito potestativo ao divórcio) a permanência da separação judicial autônoma; para eles, nenhuma incompatibilidade haveria entre as normas contidas no Codex Civil e as do novo texto constitucional. Assim, dispõe Silva (2010):
A alteração foi no sentido de suprimir os limites constitucionais referentes a prazos para a obtenção do divórcio. A Constituição jamais regulou a separação judicial. Esta matéria sempre foi tratada em legislação infraconstitucional. A separação só era referida, na Constituição, em razão da fixação de prazos para a demanda de divórcio. Logo, a supressão desses prazos, por si só, não tem a força de eliminar do sistema a possibilidade da separação judicial. (grifo nosso).
A atuação do legislador (silenciando o constituinte originário no ponto em que se deveria prever acerca da separação-condição) não seria suficiente para derrogar as disposições infraconstitucionais, visto que a disciplina da dissolução da sociedade conjugal sempre foi matéria alheia à Lei Maior. Outrossim, a alteração constitucional perpetrada não se voltou à sua revogação expressa, impossibilitando, destarte, uma compreensão mais elástica, para além do que preceitua a norma constitucional. É de se refutar, pois, qualquer interpretação baseada exclusivamente na mens legislatoris. Em conformidade com Marques (2010):
O constituinte reformador nada disse sobre a dissolução da sociedade conjugal – matéria, aliás, estranha ao texto constitucional desde sempre, pois, como visto, as Constituições limitaram-se a disciplinar a (in) dissolubilidade do casamento. Com isso, não se pode dizer que a supressão dos requisitos do divórcio venha a afetar a coexistência da separação judicial. (…) além de não haver revogação expressa da separação judicial pela citada Emenda Constitucional, não há qualquer incompatibilidade entre sua redação e o regramento infraconstitucional que prevê aquele instituto. (…) a interpretação com base na “vontade do legislador” significa ignorar totalmente a ciência do direito e a teoria do ordenamento jurídico, com suas regras interpretativas, negando-se validade ao direito posto em favor de um critério eminentemente subjetivo e sem respaldo no texto normativo. (grifo do autor).
É de ver-se que, desde a sua gênese (em 1977), os institutos do divórcio e da separação judicial encontram-se umbilicalmente relacionados, porém, não obstante a proximidade dos seus regramentos, não se pode ignorar a autonomia aí existente. Nesse diapasão, dizer que o pedido de desfazimento do liame conjugal é incondicionado não é o mesmo que afirmar que a separação judicial fora expurgada do ordenamento pátrio. É como se posiciona Branquinho (2010):
Apesar da justificativa apresentada à PEC do divórcio dizer que é artificial a distinção entre sociedade conjugal e o casamento e, por isso, não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite, entendo que tal objetivo não foi alcançado. (…) a nova redação do § 6° do art. 226 da Constituição Federal apenas eliminou 1) a separação (judicial ou de fato) e 2) o elemento tempo como etapas necessárias para o divórcio, mas não proibiu ou fez extinguir a separação judicial ou extrajudicial. A atitude do legislador constituinte derivado apenas desvinculou o divórcio da separação, mas ambos os institutos co- existem: o primeiro como forma incondicionada de extinção do casamento válido (vínculo formal), com ou sem o fim da sociedade conjugal, e o segundo como forma de extinção apenas da sociedade conjugal (união com direitos e obrigações). (grifo nosso).
A duplicidade de processos judiciais, o excessivo transcurso temporal exigido e a imputação de culpas representavam uma ingerência perniciosa do Poder Público exercida no ambiente de maior intimidade do homem – a família, e o constituinte andou bem eliminando tais previsões, mas, a despeito disso, não se mostra consentâneo infirmar a separação judicial. Para Silva (2010):
A imposição da separação como pré-requisito para o divórcio constituía uma intromissão indevida do Estado na esfera da intimidade do casal. Não se deve, porém, partir para o outro extremo, que é o de suprimir a alternativa da simples separação para aqueles que ainda não têm certeza de que pretendem o divórcio.
A defesa da subsistência da separação judicial, pois, não é causa desarrazoada, visto que o seu fundamento de validade reside no direito fundamental à liberdade, definido por Machado Neto (apud GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2008, p. 167) como:
[...] um prius donde há que partir. Originariamente toda conduta é permitida. Todo direito é assim um contínuo de licitudes e um descontínuo de ilicitudes. Daí que o princípio ontológico não seja conversível como o é o juízo analítico “tudo que não é ilícito é lícito” (...). Sobre esse prius da liberdade humana, esse contínuo de licitudes, a determinação normativa vai estabelecendo as ilicitudes.
Outrossim, ainda que se mostrem raras as ações interpostas, não se pode negar às minorias a tutela jurídica de seus direitos quando estes não se mostrem incompatíveis com a legislação vigente. Sobre o assunto, Nascimento e Cardozo (2010) argumentam que, em respeito à vontade dos indivíduos, ainda hesitantes quanto ao divórcio mas decididos quanto à desconstituição da sociedade conjugal, deve-se admitir e viabilizar a separação judicial no sistema jurídico pátrio: “nem se venha redargüir que serão esses casos poucos ou mesmo raros, porque o Direito, em sua modernidade, também tutela e promove a felicidade de minorias”. E no intuito de robustecer tal entendimento, discorre Branquinho (2010):
A princípio, não se poderia falar em perda do pressuposto de validade da separação, pois ela não existia apenas como condição necessária para o divórcio, mas como forma de por fim à sociedade conjugal presente no casamento. Assim, ao eliminar apenas o aspecto condicional para o divórcio, a Constituição Federal garantiu às pessoas naturais o direito de optarem apenas pelo fim da sociedade conjugal (mantendo-se o vínculo matrimonial e a possibilidade de reconciliação) ou o rompimento absoluto do casamento. Dizer que a reconciliação é uma desvantagem, seria subestimar a capacidade civil plena das pessoas, ferindo um direito da personalidade quanto à escolha do estado civil na aferição familiar. Considerar que a separação foi extinta seria impor ao cidadão o rompimento absoluto do vínculo matrimonial, cerceando o direito de reconciliação e de manter a situação jurídica de casado, conforme previsto no Código Civil.
A discussão também se desdobra sobre um dos maiores corolários do direito em comento: a liberdade de consciência e de crença (assegurada a todos no artigo 5º, VI da Constituição Federal). O Brasil, enquanto Estado laico, tem entre seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual se assegure o respeito e a proteção às mais diversas manifestações religiosas. É de se destacar, nesse contexto, o princípio da tolerância, debatido e conceituado em declaração aprovada na Conferência Geral da UNESCO, em sua 28ª reunião (realizada em Paris, aos 16 de novembro de 1995), cujo artigo 1º preceitua:
Artigo 1º - Significado da tolerância
1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. (...).
1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. (...).
1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos.
1.4 (...) A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.
Como se sabe, há religiões que permitem o desfazimento da sociedade conjugal, desde que mantido intacto o vínculo matrimonial. Assim considerar revogada a previsão civilista concernente à separação judicial impossibilitaria o pleito de determinados indivíduos que, sem almejarem profanar suas convicções religiosas, buscam a tutela estatal apenas para pôr termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime de bens. Em consonância com Führer (2010):
[…] não há mais falar em separação como requisito ou pré-condição ao divórcio. (…) Ocorre que a separação judicial sempre teve outra função, além de mera estação de parada e descanso, à caminho do divórcio. Aqueles cujas convicções religiosas não admitiam o rompimento do casamento e aqueles que, por afeição remanescente, respeito aos costumes ou qualquer outro motivo, desejavam preservar o casamento formal sempre preferiram intentar a separação judicial, ao invés do divórcio. (…) a separação judicial (…) passou a ter a função de especialização da liberdade de crença e de exercício e culto e respectivas liturgias (art. 5º, VI, da CF). Para aqueles que não podem se divorciar por razões religiosas, a Constituição Federal também deve acolher remédio apto a garantir a desassociação. Vê-se que, muito mais que simplesmente recepcionada pela Constituição Federal, a separação judicial adentrou a própria Carta Magna como garantia fundamental ao exercício dos dois mandamentos básicos citados. Trata-se de garantia fundamental chamada decorrente ou implícita, prevista no § 2º do art. 5º da CF, porquanto deflui dos princípios e do regime de liberdades constitucionais. (grifo nosso).
A supressão dos condicionamentos impostos à concessão de divórcio, destarte, não significaria a derrocada da separação judicial como um todo, mas a consagração do referido instituto, é dizer, sua elevação a novo patamar, qual seja, o de direito potestativo, embasado diretamente no respeito aos direitos fundamentais salvaguardados pela própria Lei Maior de 1988. E desenvolvendo esta idéia, Führer (2010) expõe:
Como se vê, sua força subjacente, oriunda do contexto da mudança constitucional, elevou o instituto da separação judicial a outro patamar jurídico mais elevado, embora, ao que parece, não tenha sido esta a ideia inicial do projetista da emenda. Não foram recepcionadas todas as limitações, formas e penalidades atinentes à separação (arts. 1.572, 1.573, 1.574, 1.575, p. único do art. 1.576 e 1.578), em função da interpretação lógica em relação ao novo divórcio potestativo: quem pode o mais, pode o menos, pelos mesmos meios.
Por oportuno, importa ressaltar que na V Jornada de Direito Civil, realizada em maio de 2012, foi aprovado o Enunciado nº 514, segundo o qual, a emenda constitucional nº 66/2010 não extinguiu o instituto da separação judicial e extrajudicial.
Ademais, robustece tal entendimento o fato de o Código de Processo Civil de 2015 mencionar a separação no Título III, que trata sobre os procedimentos especiais, ao disciplinar as ações de família em seu Capítulo X, do bem como na Seção IV do Capítulo XV, que dispõe sobre os procedimentos de jurisdição voluntária.
3 A construção jurisprudencial pátria
À semelhança do que ocorre em âmbito doutrinário, jurisprudencialmente também é possível se divisar ao menos as três correntes retro esmiuçadas, quais sejam: aquela que sustenta a não-revogação da legislação infraconstitucional; a que reconhece no divórcio direto a natureza de direito potestativo; a que admite, ao lado do divórcio direto, a separação como direito incondicionado. Assim, dependendo do viés hermenêutico adotado, o comportamento do magistrado será completamente diverso. Daí a importância de se compreender as diferentes implicações práticas decorrentes das concepções suprarreferidas.
Em se adotando linha interpretativa baseada no efeito meramente desconstitucionalizador da Emenda n. 66 de 2010, as estipulações constantes nos artigos 1.571 a 1.582 do Código Civil continuariam regulando a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal. Desse modo, em conformidade com o que preceitua o parágrafo 2º do artigo 1.580, o divórcio direto só seria permitido numa única hipótese: quando comprovada a separação de fato por mais de dois anos. Para os demais pedidos de desfazimento do liame conjugal, seriam necessários a prévia dissolução judicial (ou administrativa) da sociedade matrimonial e o transcurso de um ano de sua decretação.
Em voto proferido nos autos da Apelação Cível n. 70039827159, o Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator Luiz Felipe Brasil (integrante da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), posicionando-se pela desconstituição de sentença que extinguira o feito por impossibilidade jurídica do pedido de restabelecimento de sociedade conjugal, deslinda a celeuma em torno da modificação perpetrada no Texto Maior classificando a regra do parágrafo 6º do artigo 226 como formalmente constitucional, incluída na Constituição àquela época por questões políticas, ou seja, transposta determinada circunstância histórica, a matéria teria sido desconstitucionalizada sem que fosse revogada a legislação firmada no plano infraconstitucional.
Nesse diapasão, apenas por ocasião da propositura da Ação de Divórcio é que as condicionantes deste pleito deveriam ser demonstradas em juízo e, movida a ação sem a devida instrução com documentos que evidenciem a observância de tais requisitos legais, caberia ao juiz intimar a parte autora para emendar a inicial. A título ilustrativo veja-se a ementa de julgamento da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (datado de 23 de fevereiro de 2011), em sede de Agravo de Instrumento, cuja relatoria coube ao Excelentíssimo Senhor Desembargador André Luiz Planella:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DIVÓRCIO. REQUISITOS LEGAIS NÃO COMPROVADOS. HIPÓTESE DE EMENDA DA INICIAL. A Emenda Constitucional n.º 66 não revogou a legislação infraconstitucional, mas, tão somente, desconstitucionalizou a matéria, que continua regulada pelo Código Civil, notadamente em seu art. 1.580 e parágrafos, que estabelece os limites e as condições para o ingresso da ação de divórcio. (AI 70038704821, Rel. Desembargador ANDRÉ LUIZ PLANELLA VILLARINHO, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TJRS, julgado em 23/02/2011, DJ 14/03/2011). (grifo nosso).
Entretanto, apenas um mês depois, sob a relatoria do Excelentíssimo Desembargador Jorge Luís Dall’Agnol, o mesmo órgão fracionário da Corte de Justiça do Rio Grande do Sul seguiu direção contrária, nos autos do Recurso de Agravo n. 70040364887, manifestando-se pela aplicação imediata e plena da emenda, considerando possível a dissolução do casamento através do divórcio sem a observância de prazos de separação pretérita dos cônjuges, e sedimentando este pensar nos seguintes termos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DIVÓRCIO DIRETO. EMENDA DA INICIAL. DESCABIMENTO. APLICAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010. A Emenda Constitucional n. 66/2010 deu nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal estabelecendo que "O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio", suprimindo os requisitos de prévia separação judicial por mais de um ano ou de separação de fato por mais de dois anos. Possibilidade de dissolução do casamento pelo divórcio independente de prazo de separação prévia do casal. Agravo de instrumento provido. (AI 70040364887, Rel. JORGE LUÍS DALL'AGNOL, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TJRS, julgado em 23/03/2011, DJ 05/04/2011).
Nessa mesma linha vem se firmando o posicionamento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, consoante demonstra a apreciação das Apelações Cíveis n. 1.0699.08.091780-9/001(1), 1.0105.10.014668-4/001 e 1.0210.09.062455-7/001 (a primeira, submetida ao crivo da Oitava Câmara Cível e, as outras duas, ao da Terceira Câmara Cível), através das exposições realizadas, respectivamente, pelos Excelentíssimos Senhores Desembargadores Relatores Vieira de Brito, Silas Vieira e Elias Camilo. Nestes julgados restou explicitada a orientação seguida pelos integrantes dos mencionados órgãos, compreendendo-se devida a aplicabilidade imediata, integral e direta da emenda constitucional, a qual seria dotada de eficácia plena e cujo advento teria transformado o instituto do divórcio em direito potestativo, que não mais necessitaria da comprovação da separação de fato ou de direito do casal.
Por intermédio de sua Quinta Câmara Cível, a corte mineira também analisou interessante caso: o Excelentíssimo Senhor Desembargador Mauro Soares de Freitas relatou tratar-se de recurso apelatório interposto desafiando sentença prolatada nos autos de Ação de Separação Judicial Litigiosa, nos quais sobreveio pedido reconvencional de divórcio. A decisão do magistrado singular havia decretado a dissolução da sociedade conjugal (objeto da ação principal) e extinguido o pleito formulado na reconvenção sem resolução de mérito, com fulcro, dentre outras razões, no artigo 267, I, V e VI do Código de Processo Civil. Assim é que, diante do novo texto constitucional transformado pela Alteração Constitucional n. 66 de 2010, acordaram os membros da câmara em reformar o decisum do juiz a quo, nos moldes abaixo transcritos:
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. PEDIDO DE DIVÓRCIO C/C ALIMENTOS FORMULADOS EM SEDE DE RECONVENÇÃO. DESNECESSIDADE DE CITAÇÃO, BASTANDO A SIMPLES INTIMAÇÃO DO AUTOR RECONVINDO (ART. 316 DO CPC). NULIDADE PROCESSUAL AFASTADA. DIVÓRCIO. SUPERVENIÊNCIA DA EC Nº. 66/2010. DESNECESSIDADE DE AFERIÇÃO DO LAPSO TEMPORAL DE SEPARAÇÃO FÁTICA DO CASAL OU DE QUALQUER OUTRA CAUSA ESPECÍFICA DE DESCASAMENTO. (...) RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...). 2) Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº. 66, de 13/07/2010, que deu nova redação ao art. 226, § 6º, da CF/88, é suficiente instruir o pedido de divórcio com a certidão de casamento, sendo irrelevante a discussão sobre o lapso temporal de separação de fato das partes ou qualquer outra causa específica de descasamento. (...) diante da alteração da base normativa do direito material discutido, por força de modificação constitucional, e tendo em vista a ausência de litigiosidade quanto ao pedido de divórcio (f. 68), entendo que deve ser julgada procedente a reconvenção neste ponto. Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso para, reformando a sentença, julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional, decretando o divórcio das partes. [...]. (AC 1.0145.09.536244-1/001(1), Rel. Desembargador MAURO SOARES DE FREITAS, QUINTA CÂMARA CÍVEL, TJMG, julgado em 27/01/2011, DJ 10/02/2011).
Como se vê, uma vez desconsiderado o requisito da separação prévia do casal, a exordial da Ação de Divórcio (acompanhada da Certidão de Casamento) é suficiente para viabilizar a decretação da dissolução do vínculo conjugal.
Ao lado do divórcio direto, desponta também na jurisprudência o tratamento da separação judicial de índole potestativa. Apesar da nova redação do artigo 226, parágrafo 6º da Lei das Leis não derrogar as disposições infraconstitucionais pertinentes à separação judicial, se inaugura uma nova fase em que a diferenciação da dissolução da sociedade conjugal entre as espécies previstas no artigo 1.572, caput, §§ 1º e 2º do Código Civil (quais sejam, separação-sanção, separação-falência e separação-remédio) carece de coerência lógica, visto que “[...] se para o divórcio, que extingue o vínculo conjugal, não há qualquer requisito, com muito mais razão não se pode exigir qualquer requisito para a separação” (AC 1.0134.08.101605-4/001(01), Rel. Desembargador BITENCOURT MARCONDES, Rel. do Acórdão EDGARD PENNA AMORIM, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TJMG, julgado em 24/02/2011, DJ 11/05/2011).
Como se vê, para o pleito da separação judicial, similarmente ao que ocorre em relação ao divórcio, não mais importa por quanto tempo cessou a vida em comum ou o cometimento de faltas matrimoniais pelo outro. Os diferentes tipos de separação, cada qual subordinado ao atendimento de certo requisito de índole temporal, subjetiva ou fática, deram lugar a uma única postulação de caráter potestativo, independente da comprovação de qualquer condição.
Neste sentido, posicionou-se a Excelentíssima Senhora Ministra Maria Isabel Gallotti, apreciando, na condição de relatora, o Recurso Especial 1.247.098/MS, interposto em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que, ao julgar agravo interno em agravo de instrumento, manteve decisão singular determinando a emenda de ação de separação judicial para que fosse adequado o pedido formulado, ante a suposta extinção da separação judicial com o advento da emenda constitucional nº 66/2010.
Para a referida Ministra, analisando a matéria à luz dos critérios de solução de antinomia propostos por Bobbio, em especial, sob o prisma da especialidade, os institutos do divórcio e da separação não se confundiriam. Cada qual produz efeitos próprios nas esferas privadas e pessoais dos cônjuges. Assim, inexistiria incompatibilidade entre o texto constitucional pós-reforma e o regramento infraconstitucional. Impossível, portanto, se sustentar ter havido revogação tácita da matéria. Uma vez ausente revogação expressa do instituto, mostra-se imperioso reconhecer a viabilidade da ação de separação judicial. Por seu teor didático, extrai-se excerto do citado voto, bem como colaciona-se a sua ementa:
(...) Imperioso concluir, portanto, que não ocorreu a revogação tácita da legislação infraconstitucional que versa sobre a separação, dado que a EC n° 66 não tratou em momento algum sobre a separação, bem como não dispôs sobre matéria com ela incompatível. (...)
Percebe-se, assim, que os critérios cronológico e hierárquico são insuficientes para sanar a antinomia aparente suscitada e dirimir da melhor forma a questão, devendo a especialidade orientar a interpretação dos operadores do direito para solução do caso, tendo em vista a mencionada distinção entre os institutos do divórcio e da separação, com suas respectivas repercussões jurídicas nas esferas privadas e pessoais dos cônjuges.
O que foi feito, repise-se, foi a supressão de qualquer requisito referente à separação prévia para requerer o divórcio, e não a supressão do instituto em si. Não há conflito, portanto, entre o disposto na Constituição Federal e o prescrito na legislação infraconstitucional.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N° 66/10. DIVÓRCIO DIRETO. SEPARAÇÃO JUDICIAL. SUBSISTÊNCIA.
1. A separação é modalidade de extinção da sociedade conjugal, pondo fim aos deveres de coabitação e fidelidade, bem como ao regime de bens, podendo, todavia, ser revertida a qualquer momento pelos cônjuges (Código Civil, arts. 1571, III e 1.577). O divórcio, por outro lado, é forma de dissolução do vínculo conjugal e extingue o casamento, permitindo que os ex-cônjuges celebrem novo matrimônio (Código Civil, arts. 1571, IV e 1.580). São institutos diversos, com conseqüências e regramentos jurídicos distintos.
2. A Emenda Constitucional n° 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial.
3. Recurso especial provido.
(REsp 1247098/MS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 14/03/2017, DJe 16/05/2017)
Em igual sentido decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgado sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, cuja ementa segue abaixo.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N° 66/2010. DIVÓRCIO DIRETO. REQUISITO TEMPORAL.
EXTINÇÃO. SEPARAÇÃO JUDICIAL OU EXTRAJUDICIAL. COEXISTÊNCIA.
INSTITUTOS DISTINTOS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE.
PRESERVAÇÃO. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. OBSERVÂNCIA.
1. A dissolução da sociedade conjugal pela separação não se confunde com a dissolução definitiva do casamento pelo divórcio, pois versam acerca de institutos autônomos e distintos.
2. A Emenda à Constituição nº 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio.
3. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei nº 13.105/2015).
4. A opção pela separação faculta às partes uma futura reconciliação e permite discussões subjacentes e laterais ao rompimento da relação.
5. A possibilidade de eventual arrependimento durante o período de separação preserva, indubitavelmente, a autonomia da vontade das partes, princípio basilar do direito privado.
6. O atual sistema brasileiro se amolda ao sistema dualista opcional que não condiciona o divórcio à prévia separação judicial ou de fato.
7. Recurso especial não provido.
(REsp 1431370/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/08/2017, DJe 22/08/2017)
Entrementes, outra relevante indagação emerge: qual seria a atitude mais adequada aos princípios norteadores da nova ordem jurídica a ser tomada pelo magistrado diante de uma demanda em que uma parte pretende a separação e a outra, o divórcio? Com supedâneo na dignidade da pessoa e no direito à liberdade, tendo em vista a identidade entre a causa de pedir remota (substrato fático) e a desvinculação entre os institutos, do qual nasceu o direito fundamental ao desfazimento dos laços matrimoniais, “[...] seria um atentado aos direitos da personalidade impor à pessoa o estado civil de separado se a Lei Maior apenas exige o estado de casado para poder estar divorciado”. (BRANQUINHO, 2010).
Portanto, seguindo-se esta linha de intelecção tem-se que a primazia da autonomia da vontade sobre a excessiva ingerência estatal resultaria na eliminação de todas as condicionantes da dissolução da sociedade conjugal sem, contudo, afastar a viabilidade do seu pedido da ordem jurídica pátria, haja vista a persistência, na Lei Maior, das razões sobre as quais se fundam a Ação de Separação Judicial, bem como por não ter havido a revogação do regramento infraconstitucional que viabiliza a sua promoção.
Nesse diapasão, se propugna que o pedido de desfazimento da sociedade matrimonial deve ser considerado juridicamente possível, desde que um dos cônjuges o requeira e o outro não reconvenha, propondo o divórcio, porque essa proposta se afigura, por hora, a mais viável à consecução dos fins almejados pela Emenda Constitucional n. 66/2010 e por respeito aos princípios estruturantes do Direito de Família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito da pesquisa consistiu na verificação dos diferentes posicionamentos adotados por estudiosos, legisladores e aplicadores do Direito, com o fito de confirmar ou negar a subsistência do instituto da separação judicial na nova ordem jurídica instaurada com a supressão dos requisitos exigidos para a concessão do divórcio, decorrente da aprovação da Emenda Constitucional n. 66/2010.
No cumprimento de tal intento, realizou-se pesquisa explicativa através da qual se buscou fazer um apanhado geral sobre a dissolução da sociedade conjugal, apontando a sua fundamentação jurídica ao longo dos séculos e das Leis Fundamentais elaboradas, até chegar à reforma constitucional perpetrada no Texto Maior de 1988, onde se investigou acerca da revogação, ou não, da legislação ordinária referente ao instituto em testilha, além do comportamento a ser exigido dos operadores do Direito para se efetivar a Norma Fundamental.
Da análise feita sobre a evolução histórica do instituto da dissolução da sociedade e do vínculo conjugal resultou o entendimento de que os intensos debates travados sempre recaíram na discussão acerca da legitimidade da intervenção estatal na desconstituição dos laços familiares outrora firmados através do matrimônio. Dentro deste contexto, em meio a fortes pressões sócio-jurídicas, despontou a emenda constitucional em testilha.
Por intermédio do exame das exposições doutrinárias e jurisprudenciais acerca da temática, identificou-se três posturas assumidas diante do novo texto constitucional: uns asseveram que a emenda apenas desconstitucionalizou a matéria, que permanece regida pelo Código Civil; outros afastam todas as condições anteriormente constantes na Norma Maior, afirmando a derrogação tácita da previsão infraconstitucional da matéria; e ainda há quem sustente o surgimento do direito potestativo à separação judicial.
Após a análise de todo o material coletado e diante de todas as reflexões tecidas no decorrer deste ensaio, corroboradas em especial por excertos de julgados recentes proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça em 2017, bem como pelo deslinde de todo o panorama histórico em que a discussão encontra-se inserida, fica evidente a tendência ao reconhecimento da separação judicial como pedido juridicamente viável, erigida a direito potestativo, nos mesmos moldes que o pleito divorcial.
Apesar de a separação judicial ter recebido forte influxo do desvalor atribuído ao anterior desquite, sendo considerada uma continuidade deste e fruto de maciça e indevida intervenção estatal na esfera mais privada do homem, não há como negar que outras razões de índole estritamente privada, como por exemplo, as convicções religiosas, possam vir a fundamentar o seu pedido autônomo.
Nenhuma incongruência existe entre o pleito incondicionado de separação judicial, embasado na tolerância e no respeito ao pluralismo de crenças, que alicerça todo e qualquer Estado Democrático de Direito, e o fim das limitações à decretação do divórcio.
A dignidade da pessoa pressupõe salvaguarda estatal da liberdade de pensamento, crença e de consciência preconizada expressamente na Constituição Federal. Na execução deste mister, não cabe ao Poder Público inviabilizar o uso desse instrumento jurídico, que se destinaria tão somente à extinção dos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e do regime de bens do casal quando estes desejassem manter o vínculo matrimonial em obediência a certa determinação filosófico-religiosa ou, ainda, por qualquer outro motivo de índole particular.
O clamor pela interferência estatal mínima no ambiente de maior intimidade humana traduz-se, deveras, na concessão aos jurisdicionados de uma maior liberdade de escolha, valorizando a autonomia da vontade, que acabaria por ser maculada na imposição de apenas uma forma de desconstituição da relação matrimonial.
Portanto, não obstante a relevância dos argumentos aduzidos por cada uma das vertentes interpretativas aqui apresentadas, deve-se reconhecer que as recentes alterações legislativas, notadamente o Código de Processo Civil de 2015, bem como o posicionamento doutrinário prevalecente no âmbito das discussões aventadas na V Jornada de Direito Civil e as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça em 2017 sinalizam a consolidação do entendimento pelo qual a separação judicial, com a emenda constitucional nº 66/2010, tornou-se direito potestativo, passível de ser exercido de modo incondicionado pelos interessados.
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Bacharela pela Universidade Federal da Paraíba e Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Servidora Pública do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rebecca Braz Vieira de. Reflexões sobre a separação judicial na ordem jurídica vigente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 fev 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51368/reflexoes-sobre-a-separacao-judicial-na-ordem-juridica-vigente. Acesso em: 06 nov 2024.
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