Resumo: Em recente decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de que pessoas transexuais alterem o respectivo nome e sexo indicados no registro civil, independentemente de autorização judicial. O presente artigo tem por objetivo analisar os possíveis reflexos advindos da decisão da Corte Suprema e os demais casos de alteração de nome, segundo a Lei de Registros Públicos.
Sumário: 1.Introdução. 2. Registro civil e a Lei de Registros Públicos. 3. Decisão do Supremo Tribunal Federal. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
De acordo com o ordenamento jurídico, especialmente o Código Civil (artigos 16 a 19), o nome, além de integrar a personalidade, é o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade.
Por ser direito da personalidade, as normas que o tutelam são de ordem pública. Para a Lei de Registros Públicos, o prenome é, em regra, definitivo. Entretanto, é admitida a alteração nos casos de exposição do portador a situações vexatórias, apelidos públicos e notórios, adequação de sexo, reconhecimento tardio de paternidade e inclusão de sobrenome em razão do matrimônio.
Diante da enorme importância individual e social, a identidade é pilar dos direitos humanos, encontrando amparo tanto no plano interno como no internacional. Quanto às pessoas transexuais, o Brasil adota os Princípios de Yogyakarta, que tratam de um amplo espectro de normas de direitos humanos e de sua aplicação a questões de orientação sexual e identidade de gênero.
As questões de gênero ocasionam a urgência de importantes debates e reflexões jurídicas, pois a violência, a estigmatização, o assédio, o preconceito e a exclusão são diariamente vivenciados por pessoas transgêneras.
A aplicação das prerrogativas de direitos humanos deve levar em consideração situações específicas e experiências pessoais. Nesse viés, o Supremo Tribunal Federal, em recente decisão, definiu que a alteração, no registro civil, do nome e do sexo pode ser promovida sem autorização judicial e independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual. O julgado tem por escopo afastar constrangimentos sociais e psicológicos, bem assim efetivar a liberdade individual, possibilitando uma vida digna, ao menos no aspecto identitário, daqueles que não se reconhecem com o sexo biológico.
2. Registro civil e a Lei de Registros Públicos
Enquanto sujeitos de uma relação jurídica, da qual decorrem obrigações e direitos, as pessoa físicas têm registrado e publicado fatos e negócios jurídicos a elas inerentes, que repercutem não apenas na esfera individual mas de toda a sociedade.
De acordo com Luiz Guilherme Loureiro:
“O registro tem por função fixar o estado civil ou estado de família da pessoa natural, provando seu nome, filiação, sua idade e capacidade para os atos da vida civil (v.g., maioridade ou emancipação e inexistência de interdição), o casamento ou a viuvez, entre outros fatos e atos importantes para a identificação e proteção da pessoa natural e para sua vida jurídica e social”.
O direito ao nome, especialmente das pessoas físicas, interessa sobremaneira aos registros públicos. Ao nascer o ser humano recebe um prenome e sobrenomes oriundos do tronco materno e paterno, que o acompanham até a sua morte. Mesmo após a extinção, o indivíduo é lembrado e evocado pelo grupo social pelo nome ostentado durante a vida.
Os sinais jurídicos de cada um estão enunciados no registro civil. Disso decorre a importância do assento de nascimento, obrigatório e gratuito por determinação legal.
O prenome é livremente escolhido pelos genitores no momento do nascimento do filho. Apesar da liberdade individual, não pode expor a criança ao ridículo e deve corresponder ao sexo biológico.
A Lei de Registros Públicos, nos artigos 57 e 58, determina que o prenome é imutável, por ser princípio de ordem pública. O postulado tem por objetivo garantir a segurança jurídica e a estabilidade dos atos da vida civil. Se fosse possível a alteração ao arbítrio de cada um, haveria grande risco de dano aos negócios e interesses de terceiros, incluindo o Poder Público.
Sem embargo, a imutabilidade é relativa. Há possibilidade de alteração em alguns casos. Entre eles é possível citar a exposição ao ridículo, erro gráfico evidente, adoção, tradução de nome estrangeiro, proteção de vítimas e testemunhas de crimes, homonímia que cause embaraço ao portador, apelido público e notório e em decorrência do matrimônio.
A jurisprudência pátria admite a modificação sempre que não se vislumbrar dano à estabilidade e segurança dos atos da vida civil, como é o caso daquele reconhecido no meio social por prenome diverso do consignado no registro civil. Ressalta-se que o interessado não pode prejudicar os apelidos de família, ou seja, o sobrenome perpassado pelos ascendentes, sob pena de descaracterizar o núcleo familiar.
O ordenamento jurídico permite, igualmente, a alteração no primeiro ano após o indivíduo atingir a maioridade, sendo dispensável declinação dos motivos (artigo 56 da LRP). A impossibilidade de descaracterização do núcleo familiar pela supressão ou modificação substancial do apelido de família também se aplica a este caso.
Pela análise das exceções legalmente previstas, verifica-se que os transgêneros, cuja identificação social diverge da registrária, podem alterar o prenome. No entanto, diante do conservadorismo da sociedade e do Poder Judiciário, tal direito, para ser efetivado, necessitava, até então, de autorização judicial e, em muitos casos, o deferimento estava condicionado à cirurgia de transgenitalização. Por sua vez, a alteração do sexo, tratada como questão de estado, dependia da realização do citado procedimento médico.
Alterando o quadro histórico, o Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento da ADI 4275, definiu que a alteração do nome e do sexo biológico por trasngêneros, termo que abarca os transexuais, pode ser realizada diretamente nos cartórios de registro civil e sem necessidade de qualquer procedimento médico.
3. Decisão do Supremo Tribunal Federal
De acordo com Maria Berenice Dias (2016), as sociedades modernas vivem constantes transformações que acabam por refletir nas mais variadas órbitas. Apesar dos avanços, as questões relacionadas à sexualidade ainda são cercadas de mitos e tabus, o que inibe a normatização de situações que fogem dos padrões comportamentais aceitos pela comunidade. Entretanto, a essência da função judicial é assegurar e efetivar direitos, e não exclui-los pelo simples fato de determinados comportamentos se afastarem daquilo que se convencionou chamar de normal.
Sobre a identidade de gênero, a mencionada autora explica:
“Talvez uma das mais instigantes questões que estão a merecer regulamentação para adentrar na esfera jurídica é a que diz com o fenômeno nominado de transexualidade. Por envolver a própria inserção do indivíduo no contexto social, reflete-se na questão da identidade e diz com o direito da personalidade, que tem proteção constitucional. A identificação do sexo é feita no momento do nascimento pelos caracteres anatômicos, registrando-se o indivíduo como pertencente a um ou a outro sexo exclusivamente pela genitália exterior. No entanto, a determinação do gênero não decorre exclusivamente das características anatômicas, não se podendo mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais”.
A discrepância entre o sexo aparente e o biológico gera problemas de diversas ordens, especialmente psicológicos. Em âmbito jurídico, a adequação do nome social à identidade psicossocial é fator que diminui o estigma, a vergonha e afirma o princípio da dignidade da pessoa humana.
Há anos, o movimento LGBT reivindica a alteração do registro civil sem necessidade de modificações corporais ou laudos e pareceres médicos e psicológicos. Tal movimento luta pelo direito de viver e ser reconhecido de acordo com a própria identidade, evitando-se, assim, os constrangimentos diários enfrentados nas mais simples atividades do cotidiano.
A desconformidade entre o aspecto físico e documental, para o movimento transexual e travesti, dificulta o acesso à educação, saúde e justiça, contribuindo para a marginalização de parcela da sociedade, o que a torna mais suscetível à violência.
Nesse contexto e após inúmeras decisões desfavoráveis, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4275/DF, proposta pela Procuradoria-Geral da República. A demanda tinha por objetivo dar interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), no sentido de ser possível a alteração do prenome e gênero no registro civil, mediante averbação no registro original, mesmo sem qualquer procedimento médico cirúrgico.
Para o relator, Ministro Marco Aurélio, é inconstitucional dispositivo legal que estabeleça a exigência de modificação corporal. Contudo, diante das possíveis consequências no plano jurídico e social, estabeleceu as seguintes condicionantes para a alteração: idade mínima de 21 anos e diagnóstico médico observados os critérios do artigo 3º da Resolução 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina, por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto. Destaca-se que tais requisitos não encontraram albergue no voto dos demais Ministros.
De acordo com o Ministro Celso de Mello:
“É preciso conferir ao transgênero um verdadeiro estatuto de cidadania, pois ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de identidade de gênero. Isso significa que os transgêneros têm a prerrogativa, como pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua identidade de gênero.
Essa afirmação, mais do que simples proclamação retórica, traduz o reconhecimento, que emerge do quadro das liberdades fundamentais, de que o Estado não pode adotar medidas nem formular prescrições normativas que provoquem, por efeito de seu conteúdo discriminatório, a exclusão jurídica de grupos minoritários que integram a comunhão nacional. Incumbe, por isso mesmo, a esta Suprema Corte, considerada a natureza eminentemente constitucional dessa cláusula impeditiva de tratamento discriminatório, velar pela integridade dessa proclamação, pois, em assim agindo, o Supremo Tribunal Federal, ao proferir este julgamento, estará viabilizando a plena realização dos valores da liberdade, da igualdade e da não discriminação, que representam fundamentos essenciais à configuração de uma sociedade verdadeiramente democrática”.
De outra face, o Ministro Gilmar Mendes considerou necessária a intervenção judicial para a modificação dos assentamentos civis. Entretanto, seu voto, neste ponto, restou vencido. Para ele, a Lei de Registros Públicos exige decisão judicial, exceto quanto às anotações e averbações obrigatórias, de forma que não se poderia criar tratamento diferenciado em relação aos transgêneros.
Consoante entendimento de Gilmar Mendes:
“Para mim, esse conflito entre a autodeterminação do cidadão e proteção da higidez dos registros públicos é bastante sensível, notadamente porque a Corte não pode antever todas a consequências que uma tal alteração no registro civil é capaz de implicar, como nas relações de direito patrimonial entre particulares, por exemplo. De mais a mais, salvo situações excepcionalíssimas dispostas no art. 110 da Lei de Registros Públicos, a alteração de nome no registro civil já exige autorização judicial para todos (art. 13), independentemente do motivo. A questão da transexualidade não se insere, nem mesmo que se pretenda uma extensão de sentido, em nenhuma das hipóteses legais”.
O Ministro Edson Fachin apresentou uma nova linha e propôs que a mudança no assento de nascimento dos transgêneros ocorra sem necessidade de diagnósticos médico e psicológico e sem decisão judicial.
Este posicionamento foi seguido por Luís Roberto Barroso, que dispensou os critérios fixados pelo relator, e por Rosa Weber, Luiz Fux e Alexandre de Moraes.
Maria Berenice Dias, em nome do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), atuou como amigo da corte no julgamento em tela. De acordo com a professora:
“As pessoas "trans" vivem uma terrível realidade, uma vez que além do preconceito da sociedade, há uma grande demora para a realização de procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Se essas pessoas são vítimas da omissão perversa do legislador, precisam encontrar a resposta na Justiça. Não podem ser duplamente punidas simplesmente por não quererem ou não fazerem a cirurgia e a Justiça não pode impor a ninguém que faça uma cirurgia para poder ter esses direitos à personalidade e à dignidade que lhe são assegurados constitucionalmente”.
Pela análise da decisão, percebe-se que, de maneira histórica, a Corte Suprema do país respeitou a autonomia individual dos que ostentam prenome e gênero diverso daquele indicado no registro civil.
É certo que a alteração revestida de menor burocracia atende aos anseios da comunidade LGBT, ratificando no plano jurídico e social o princípio da dignidade humana, importante vetor do Estado Democrático de Direito.
Não obstante, é imprescindível o balizamento de critérios mínimos para a utilização da nova identidade, uma vez que a interpretação realizada pelo Supremo Tribunal Federal pode trazer prejuízos a terceiros ou ao próprio Poder Público.
Melhor explicando, a Receita Federal, o Poder Judiciário e os credores daqueles que alterem o nome e sexo devem ser informados acerca da respectiva mudança, a fim de que seja afastada eventual confusão entre o nome originário do contribuinte, autor, réu ou devedor e o nome social ora averbado no registro civil, tal como é feito com os que mudam o prenome por intermédio de decisão judicial por motivos outros elencados na Lei 6.015/1973.
4. Conclusão
Ante as transformações sociais e a constitucionalização dos direitos fundamentais, a felicidade e o sexo psicológico devem prevalecer frente a interpretações restritivas da Lei de Registros Públicos. A mudança de paradigma é essencial para a efetivação dos direitos dos transgêneros.
O nome e gênero designados no registro civil, como parte da personalidade, devem estar de acordo com a vivência individual, interna e social. A realização de cirurgia de transgenitalização ou a intervenção do Poder Judiciário não são fatores fundamentais para a segurança das relações interpessoais e dos registros públicos.
A desconexão psico-emocional com o sexo biológico e nome registrário deve ser extirpada pela possibilidade da alteração documental, como forma de proteção do indivíduo e das minorias.
A cláusula geral de respeito à dignidade da pessoa humana e às diferenças devem garantir a plena cidadania, abarcando o equilíbrio do corpo e da mente do transexual. Assim, sob pena de infringência aos postulados constitucionais e internacionais, o Estado brasileiro deve permitir e facilitar que a realidade vivenciada seja espelhada nos assentamentos de quem não se identifica com o sexo indicado por fatores predefinidos.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, ao assegurar o exercício pleno e verdadeiro da identidade sexual e da liberdade de autodeterminação, ameniza as dificuldades enfrentadas ao longo da vida, diminuindo a barreira da discriminação e intolerância contra as pessoais transexuais e transgêneras.
Por fim, vale destacar que o recente julgamento vai ao encontro do entendimento explanado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
4. Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática transformadora. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8ª Ed, revista e atualizada de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014.
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 20a Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e Direitos LGBTI. 7a Ed. Revista dos Tribunais, 2016.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 8a Edição. Salvador: JusPODIVM, 2016, pg. 315-430.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 2a Ed. São Paulo: Método, 2011, pg. 17-55.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33a ed. São Paulo: Atlas, 2017.
Notas:
[1] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 2a Ed. São Paulo: Método, 2011, pg. 18.
[2] DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e Direitos LGBTI. 7a Ed. Revista dos Tribunais, 2016, pg. 227.
[3] Voto proferido pelo ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 4275-DF, pg. 2 do voto.
[4] Voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADI 4275-DF, pg. 3 do voto.
[5] Maria Berenice Dias atuando na qualidade de amigo da corte no julgamento da ADI 4275-DF.
Pós-graduada em Direito Constitucional e Analista Processual do Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Pilar Jimenez. O transexualismo e o direito de alterar o registro civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51465/o-transexualismo-e-o-direito-de-alterar-o-registro-civil. Acesso em: 06 nov 2024.
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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