RESUMO:O direito de personalidade abarca discussões que dizem respeito ao direito à vida e à existência, abordando temas relacionados à evolução da ciência no contexto de pesquisas envolvendo a reprodução humana e o fim da vida. Os debates ganham uma maior dimensão quando se fala de aborto e eutanásia, pois além dos reflexos no campo jurídico, encontram interesse da religião e da moral. O objetivo do trabalho é demonstrar que os direitos à vida e à existência passam pela discussão sobre a autonomia individual da pessoa e também da proteção da vida enquanto um direito fundamental. A pesquisa bibliográfica foi realizada, utilizando-se das abordagens temáticas na doutrina nacional e estrangeira, bem como em disposições legislativas, visando a uma compreensão do tema a partir de diversas concepções.
Palavras-chaves: Autonomia. Pessoa. Estado.
RIGHTS OF PERSONALITY: analysis of the right to life and existence in the light of two controversial issues such as abortion and euthanasia.
ABSTRACT: The right personality embraces discussions concerning the right to life and existence, addressing issues related to the evolution of science in the context of research involving human reproduction and the end of life. Discussions gain a larger when talking about abortion and euthanasia, because besides the reflections in the legal field, finds interest of religion and morality. The objective is to demonstrate that the rights to life and existence are the discussion of the individual autonomy of the person and also the protection of life as a fundamental right. A literature search was performed, using the thematic approaches in national and foreign doctrine as well as laws, aimed at an understanding of the topic from different concepts.
Keywords: Autonomy. Person. State.
SUMÁRIO: 1 Introdução - 2 Direitos da personalidade - 2.1 O reconhecimento da personalidade - 2.2 Os direitos que decorrem da personalidade - 3 Direito à vida e à existência - 3.1 O direito à vida e o aborto - 3.2 A eutanásia e o direito à morte digna - 4 Considerações finais - Referências bibliográficas.
1 Introdução
A dignidade humana acompanha o indivíduo nos diversos estágios da vida, pois lhe é inerente, sendo que sobre o ideal de dignidade se constrói um estatuto jurídico da pessoa e nesse ambiente instalam-se discussões que revelam a complexidade da existência humana.
O direito de personalidade tem ocupado espaço na atualidade no centro de questões polêmicas envolvendo o tema do próprio direito à vida e à existência, no contexto de discussões éticas que se põem diante da evolução da ciência no que diz respeito a pesquisas envolvendo a reprodução humana e o fim da vida.
Em relação ao início da personalidade humana trazem-se à colação os argumentos que consideram a concepção o marco inicial da personalidade jurídica e outros que reconhecem que os direitos do nascituro estariam sob condição suspensiva, e ainda os que entendem o nascimento com vida como o marco inicial da personalidade jurídica.
As discussões não se estancam no direito civil, mas o tema tem reflexos em outras áreas do direito, como no direito penal, quando o Estado criminaliza condutas que considera atentatórias ao direito à vida.
Os debates também ocorrem no campo da religião e da moral, quando as questões atinentes à vida e à morte encontram arrimo em estatutos que não integram o ordenamento jurídico.
O aborto e a eutanásia surgem como principais elementos da discussão, considerando que abordam diretamente o tema do direito à vida, com repercussão na seara jurídica, possibilitando análises a partir da legislação, doutrina e jurisprudência.
O objetivo do trabalho é demonstrar que os direitos à vida e à existência passam pela discussão sobre a autonomia individual da pessoa e também da proteção da vida, bem como sobre a garantia de qualidade de vida.
Dada a natureza do trabalho, a pesquisa bibliográfica apresenta-se como tipologia metodológica adequada, utilizando-se das abordagens temáticas na doutrina nacional e estrangeira, bem como disposições legislativas.
2 Direitos da personalidade
2.1 O reconhecimento da personalidade
A personalidade é concebida como um atributo da pessoa humana, a construção de um conceito de personalidade no campo do direito, levou em consideração a atribuição de direitos ao sujeito e a determinação da capacidade. O direito interessa-se em determinar quando inicia e extingue a personalidade, tendo em vista os reflexos que tem na esfera jurídica.
Os direitos de personalidade seriam inicialmente decorrentes da personalidade jurídica e ao direito caberia dizer a partir de quando, até quando e quem tem esta personalidade.
Hogemann (2008) demonstra que atualmente os direitos de personalidade não estão necessariamente vinculados à noção de personalidade jurídica. Pois estes estão ligados à dignidade humana.
Os direitos da personalidade permeiam o ordenamento jurídico brasileiro, podendo-se observar que o art. 5.º, caput, da Constituição do Brasil, trata de direitos individuais dentre os quais sobressaem o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (SZANIAWSKI, 2005, p. 144).
Para Hogemann (2008, p. 93), os direitos atribuídos à pessoa humana decorrem da dignidade, conforme se pode inferir do trecho abaixo:
O direito à identidade, à liberdade, à igualdade, à existência, à segurança, à honra, à vida privada e o desenvolvimento da personalidade, bem como os bens jurídicos da vida, do corpo, do espírito e da capacidade criadora, todos se encontram representados na dignidade, próprio cerne de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana.
A dignidade humana seria o fator atrativo dos direitos de personalidade, o fato de ser humano já seria suficiente para a titularidade destes direitos.
Sendo essa questão assim definida, as discussões sobre a assunção de direitos e o reconhecimento da personalidade jurídica receberiam um tratamento diferente no campo legislativo.
As legislações de diversos países têm reconhecido o início da personalidade jurídica em momentos diferentes, isso com base em desenvolvimento teórico a respeito.
Tartuce (2011) sistematiza bem acerca das discussões sobre o início da personalidade jurídica, com enfoque no direito civil, abrangendo as teorias que tratam da situação jurídica do nascituro.
Em primeiro passo apontam-se três teorias que abordam o início da personalidade civil, a teoria natalista, a teoria da personalidade condicional e a teoria concepcionalista.
A teoria natalista defende o início da personalidade jurídica com o nascimento com vida, a partir daí nasceria para o indivíduo os direitos de personalidade, ou seja, passaria a ser sujeito de direitos.
Entende Pereira (2001, p. 79) que:
O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito.
Sendo um dos defensores da teoria natalista Pereira (2001) não reconhece o nascituro como pessoa, nega-lhe a persoalidade jurídica. O que leva à compreensão de que há para o nascituro apenas expectativa de direitos.
Tartuce (2007, p. 160) dirige uma pertinente crítica à teoria natalista quando afirma que:
Do ponto de vista prático, a teoria natalista nega ao nascituro mesmo os seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade, caso do direito à vida, à investigação de paternidade, aos alimentos, ao nome e até à imagem. Com essa negativa, a teoria natalista esbarra em dispositivos do Código Civil que consagram direitos àquele que foi concebido e não nasceu. Essa negativa de direitos é mais um argumento forte para sustentar a total superação dessa corrente doutrinária.
O próprio ordenamento jurídico atribui direitos ao nascituro, pelo que não se pode ignorar ser este sujeito de direitos.
A teoria da personalidade condicional, por sua vez, admite que são atribuídos direitos ao nascituro, mas afirma que estes estão condicionados, ou seja, comportam uma condição suspensiva, seriam então direitos eventuais, confundindo-se na prática com a afirmação natalista de que o nascituro teria mera expectativa de direitos (TARTUCE, 2011).
Admitir-se direitos de personalidade ao nascituro é reconhecer que desde a vida intrauterina o não nascido é uma pessoa humana e também possui dignidade. Sob esse aspecto se desenvolve a teoria concepcionista, que aponta o nascituro como titular de direitos.
Nesse campo, em análise ao art. 4.º do Código Civil brasileiro de 1916, Diniz (1998) já afirmava que a legislação atribuía direitos ao nascituro, dotando-lhe de personalidade jurídica. A referida autora defendia que quanto aos direitos personalíssimos o nascituro possuía personalidade jurídica formal, adquirindo a personalidade jurídica material, caso nascesse com vida, alcançando assim os direitos patrimoniais que se encontravam em estado potencial.
O Código Civil brasileiro de 2002 manteve em seu art. 2.º uma redação semelhante ao que estava disposto no art. 4.º do antigo código, não afastando as discussões quanto à condição do nascituro.
No direito brasileiro são várias as referências à proteção do nascituro e a atribuição de direitos, o que têm reforçado a defesa da teoria concepcionista, como exemplos podem-se mencionar a Lei n.º 11.804, de 5 de novembro de 2008, que trata dos alimentos gravídicos e a Lei n.º 11.105, de 24 de março de 2005 que tutela a integridade física do embrião.
Sousa (1995) em análise do direito civil português demonstra que há vida humana no nascituro, asseverando que “[...] desde a concepção, emerge um ser dotado de uma estrutura e de uma dinâmica humanas autônomas, embora funcionalmente dependente da mãe.” (SOUSA, 1995, p. 157/158)
Admite o autor português a tutela da vida do nascituro concebido e reconhece que os ataques ao seu direito à vida são ilícitos, portanto indenizáveis, quando extrapolam às exceções legais.
A tutela pré-natal da personalidade também é defendida por Vasconcelos (2006), quando afirma que os nascituros concebidos são seres humanos que estão em uma fase particular da vida.
Proteção do nascituro é admitida desde a concepção e não no momento da nidação. Nessa direção, Vasconcelos (2006, p. 106) ainda afirma que “O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.”
Não é o direito quem faz nascer a pessoa humana, a qualidade de humano ao indivíduo impõe seu reconhecimento pelo direito (VASCONCELOS, 2006).
Isso permite concluir que ao direito resta reconhecer a personalidade do não nascido decorrente da sua própria condição de ser humano.
2.2 Os direitos que decorrem da personalidade
Uma vez reconhecida a personalidade jurídica ao ser humano e compreendendo-se humano desde à concepção até a morte, cabe verificar quais os direitos que decorrem dessa condição.
Para Borges (2007) os direitos de personalidade se relacionam à autonomia jurídica individual, comportando diversas espécies, compreendendo o direito à imagem, à privacidade, direito ao próprio corpo, direito ao nome, direito à morte digna.
Nesta classificação há diversos desdobramentos em direitos que estão relacionados aos temas abordados pela autora.
França (1975) estrutura uma classificação na qual os direitos de personalidade abrangem integridade física, integridade intelectual e integridade moral. No campo da integridade física, os direitos relacionados à vida, alimentos e corpo; em relação à integridade intelectual abrange-se a liberdade de pensamento, a autoria científica, artística e literária; no campo da integridade moral lista-se um rol de direitos relacionados à liberdade civil, política e religiosa, honra, honorificência, recato, segredo pessoal, doméstico e profissional, imagem e a identidade pessoal, familiar e social.
Considerando as classificações apresentadas, o direito à vida e o direito à existência estão relacionados ao direito ao próprio corpo, direito à morte digna (BORGES, 2007) e à integridade física (FRANÇA, 1975).
No amplo espectro dos direitos de personalidade volta-se a atenção aos direitos à vida e à existência, considerando a proteção da personalidade e o ciclo vital do ser humano.
O direito à vida está posto como um direito humano no artigo III da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas de 1948. Um direito que decorre do fato de ser pessoa humana. Todo ser humano tem direito à vida, sendo este inegavelmente um dos principais direitos de personalidade de onde os demais direitos ganham sentido.
A maioria das constituições democráticas contém no seu rol de direitos fundamentais o direito à vida. Há um compromisso das sociedades humanas em garantir esse direito.
A Constituição do Brasil de 1988, o reconhece como direito fundamental no caput do art. 5.º, “[...] garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]”. Ainda mais no art. 225, caput, ao tratar do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado o tem como essencial à sadia “qualidade de vida”, o que revela uma importante preocupação do Constituinte em não só ter por inviolável o direito à vida, mas ter como alvo uma vida de qualidade.
O direito à vida não se esgota em manter-se a centelha vital, mas o ideal de vida digna está em seu conteúdo.
A proteção jurídica do direito à vida decorre da dignidade própria de cada ser humano, como bem alerta Hogemann (2006, p. 332): “A dignidade da pessoa humana é um princípio que engloba todas as demais normas jurídicas”. A partir da ideia de dignidade é que se tem a proteção da vida, integridade física, psíquica, intelectual e moral do ser humano.
3 Direito à vida e à existência
Dizer do direito à vida e à existência refere-se ao direito de viver e abrange também aspectos relacionados à própria extinção da vida, a morte.
França (1975) inclui o direito à vida na categoria de direitos de personalidade que dizem respeito à integridade física e aqui também inclui as questões relativas à concepção, aborto e eutanásia.
Na classificação feita por Borges (2007) trata-se do direito ao próprio corpo e aí se inclui a integridade física, sendo que a autora coloca em classificação diversa a discussão sobre a eutanásia, no contexto do direito à morte digna.
Na discussão dos extremos tem-se a vida uterina, seu início, sua proteção e considerações sobre a personalidade daquele que está por nascer, bem como a vida humana concebida fora do útero, nos tubos de ensaio, num laboratório.
No outro extremo a morte, a extinção da vida humana, quando se discute a possibilidade de que a morte possa ocorrer por decisão do próprio indivíduo ou de terceiro em circunstância de extremo sofrimento, a eutanásia, a boa morte.
3.1 O direito à vida e o aborto
O direito à vida é apreciado nas sociedades humanas, embora não se tenha por absoluto, mas figura-se como dos mais relevantes.
Religiões de matrizes judaicas e cristãs apregoam o direito à vida como uma dádiva de Deus e a sua expressa proteção estaria no mandamento insculpido no livro do Êxodo, capítulo 20, versículo 13: “Não matarás”. Embora em circunstâncias de práticas abomináveis a morte fosse também expressamente ordenada, há uma relativização da proteção da vida, quando se trata daqueles que desobedecem ao mandamento, a exemplo da vedação aos sacrifícios de crianças. A pena de morte era imposta a quem sacrificasse crianças, como consta do Livro de Levítico, capítulo 20, versículo 2, bem as práticas sexuais ilícitas eram punidas com a morte (Levítico, capítulo 18), da mesma forma a prática de feitiçaria (Levítico, capítulo 20, versículo 6).
A vida não era um direito absoluto na antiga sociedade hebraica, que tinha como legislação maior os textos que hoje estão nos cinco primeiros livros da Bíblia.
Os ensinamentos de Cristo é que põem o direito à vida como um direito pleno, uma vez que ao pregar o perdão e resignificar diversos ensinamentos da antiga aliança, o faz apontando para a prática do perdão, da tolerância e condizente com o tema do amor ao próximo e a Deus, conforme constam dos capítulos 5 ao 7 do Livro de Mateus.
O direito à vida no plano secular encontra proteção em diversos documentos, ressaltando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo III; a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, art. 4.º; o Pacto Internacional deDireitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1968; a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989.
No Brasil, a Constituição de 1988, o traz no caput do art. 5.º. Além disso, no direito brasileiro a proteção da vida também ecoa no Código Penal no Título I, dos crimes contra a pessoa, mais precisamente no capítulo I, dos crimes contra a vida.
O código penal tipifica o homicídio (art.121), a instigação ao suicídio (art. 122), o infanticídio (art. 123), o aborto (arts. 124 a 126). Observa-se aí a tutela da vida humana.
No caso específico do aborto, o direito à vida daquele que está por nascer também alcança uma proteção do direito penal, entretanto permite-se o aborto sentimental e o aborto necessário, na primeira hipótese abrangendo os casos de estupro e no caso do aborto necessário, tem-se por objeto a proteção da vida da mãe, dois casos em que a lei deixa de proteger o direito à vida do nascituro, no caso do aborto necessário, o estado de necessidade o justifica, mas no caso do aborto sentimental a excludente não encontra tão forte justificativa.
Em análise da ADPF 54, o Supremo Tribunal Federal, afastou a incidência penal em relação ao aborto de feto anencefálico, dada a impossibilidade de vida após o nascimento (SILVA NETO, 2013).
Com a decisão do Supremo Tribunal a interrupção da gestação de feto anencéfalo não encontra tipificação criminal, sendo inconstitucional a interpretação de que o caso se trate de aborto.
O aborto seria a interrupção da gestação cerceando o direito à vida daquele que estava por nascer.
Nesse contexto há discussões que envolvem a relação entre o direito à vida do nascituro e direitos fundamentais da gestante.
Mendes & Branco (2013, p. 262) afirmam que:
[...] a ponderação do direito à vida com valores outros não pode jamais alcançar um equilíbrio entre eles, mediante compensações proporcionais. Isso porque, na equação dos valores contrapostos, se o fiel da balança apontar para o interesse que pretende superar a vida intrauterina o resultado é a morte do ser contra quem se efetua a ponderação. Perde-se tudo de um dos lados da equação. Um equilíbrio entre interesses é impossível de ser obtido.
O direito da gestante de decidir sobre seu próprio corpo, em respeito à sua autonomia individual, sobre manter ou não manter uma gravidez, por razões estéticas, sentimentais ou de outra ordem, não pode aniquilar completamente o direito à vida de outra pessoa que está sendo gestada, afinal o feto não é uma mera extensão do corpo da mulher.
Nas questões que tocam ao aborto há uma frequente reação de entidades religiosas quando se discute sobre a descriminalização do aborto, bem como manifestações de defensores da descriminalização.
Quanto a quem professa uma religião de matriz judaica ou cristã, o aborto incidiria não em um crime, mas em um pecado, sendo que o religioso rege-se por um estatuto próprio, ou seja, nas religiões mencionadas observa-se a Torá ou a Bíblia. Independente do Estado criminalizar ou não a prática do aborto, cada membro da entidade religiosa deverá cuidar em não praticar, uma vez que seu estatuto religioso o proíbe.
No plano secular, manter o aborto como um crime ou descriminalizá-lo depende de questões relacionadas a compromissos assumidos pelo Estado. Se há um compromisso do Estado em proteger a vida, diversos serão os meios para tanto, garantir condições dignas de sobrevivência à população, incluindo saúde, educação, trabalho, moradia, dentre outros direitos que estão no plano da garantia de uma qualidade de vida.
Além disso, quando o bem jurídico se mostra muito valioso o direito penal surge para corroborar na sua proteção, assim ocorre com a criminalização de atos contra a vida, como o homicídio, infanticídio, auxílio ou instigação ao suicídio e o aborto, porque em qualquer desses casos o objeto de proteção é a vida humana.
Relativizar o direito à vida intrauterina simplesmente pelo fato de o embrião ou feto ainda não ter vislumbrado o mundo externo, considerando-o como parte do corpo da mãe, não difere muito de sob o argumento de garantir-se a autonomia individual, também permitir outros tipos de atentados à vida como o infanticídio, o abandono de incapaz ou o homicídio.
O aborto na concepção Szaniawski (2005, p. 149) “[...] consiste na interrupção voluntária da gestação seguida ou não de expulsão do concepturo antes de atingir a maturidade.” Revelando-se como “negação do direito à vida”.
Não se trata de proibição do aborto por mera influência religiosa, mas a vedação de atentados contra a vida fundamenta-se no compromisso do Estado de proteção do direito à vida. Mendes & Branco (2013, p. 260) demonstram que “[...] direito à vida obriga o legislador a adotar medidas eficientes para protegera vida em face de outros sujeitos privados. Essas medidas devem estar apoiadas por uma estrutura eficaz de implementação real das normas”.
Ressaltam os autores que somente a proteção penal do direito à vida intrauterina não é suficiente para impedir a interrupção voluntária da gravidez, necessitando de outras medidas de apoio à gestante, envolvendo apoio financeiro, psicológico e social.
3.2 A eutanásia e o direito à morte digna
A sacralidade da vida entre os ocidentais decorre da influência Cristã e Hebraica, considerando que o corpo é habitação do Espírito Santo. Assim, a conservação da vida física ganha uma relevância maior, sobretudo quando o Cristianismo considera que o ser humano só tem oportunidade de redimir-se enquanto estiver no corpo, podendo aí arrepender-se e receber o perdão. Após a morte não restaria outra oportunidade de salvação (Hebreus, capítulo 9, versículo 27).
A partir dessa compreensão há uma resistência entre diversos segmentos cristãos em admitir que a vida seja extinta antecipadamente, o que repulsa a eutanásia.
Szaniawski (2005) noticia que entre os japoneses o suicídio é uma forma de purgar a honra, e os vikings tinha a morte em batalha como a senda direita ao Valhalla, revelando que outras sociedades têm uma visão diferente do fenômeno morte.
Ao tratar do poder de autonomia e a possibilidade da pessoa atuar no plano da realização de sua personalidade conforme a própria consciência, Borges (2007) trata do direito à morte digna.
Há uma discussão sobre as evoluções tecnológicas capazes de prolongar artificialmente a vida da pessoa. O que abre o debate sobre o direito do indivíduo não se submeter a tratamentos que prolonguem a sua vida, ou interromper certo tratamento.
Borges (2007, p. 233) aponta que: “A pessoa tem a proteção jurídica de sua dignidade, e, para isso, é fundamental o exercício do direito de liberdade, o direito de exercer sua autonomia e de decidir sobre os últimos momentos de sua vida.”
Nesse sentido, trata-se da eutanásia e da ortotanásia, a primeira carrega a ideia de boa morte, uma morte sem sofrimento que não teria sido provocada.
Para Bezerra (2007, p. 289):
Na atualidade, associa-se ao termo eutanásia unicamente as ações que têm como finalidade a terminação intencional da vida de um paciente, seja ou não terminal, pelas mãos de um profissional de saúde, a pedido daquele.
A eutanásia recebe um sentido diverso atualmente, admite que a morte seja provocada por um profissional de saúde em pessoa que passa por fortes sofrimentos causados por uma doença incurável num estado terminal, respeitando sua escolha.
A morte ocorre por intervenção de amigos, parentes e médicos do paciente, motivada por compaixão quanto ao doente, conforme entende Borges (2007).
Szaniawski aponta que a eutanásia estaria relacionada ao direito à qualidade de vida, uma vez que para a pessoa “não mais apresentando qualidades mínimas de continuar vivendo dignamente, possuiria o direito de morrer.” (SZANIAWSKI, 2005, p. 159)
No Brasil a eutanásia está tipificada como um crime no art. 121 do Código Penal, uma vez que se enquadra como homicídio privilegiado, ou seja, o homicídio ocorre motivado por piedade, podendo-se considerar o motivo de relevante valor social ou moral, capaz de reduzir a pena de um sexto a um terço.
Ao contrário da eutanásia tem-se a distanásia, ou seja, a morte lenta, que consiste num prolongamento artificial da vida do paciente (SILVA NETO, 2013) e acaba por prolongar o sofrimento, não se permitindo uma morte natural, há uma submissão do paciente a tratamento inútil, o que se chama de obstinação terapêutica.
A ortotanásia, cujo significado é “morte correta”, ou seja, não se prolonga artificialmente o processo de morte, a morte ocorre de forma natural. Para Santoro (2011, p. 133) a ortotanásia:
[...] é o comportamento do médico que, frente a uma morte iminente e inevitável, suspende a realização de atos para prolongar a vida do paciente, que o levariam a um tratamento inútil e a um sofrimento desnecessário, e passa a emprestar-lhe os cuidados paliativos adequados para que venha a falecer com dignidade.
A ortotanásia, por sua vez, não configura um tipo penal no Brasil, pois a morte não é provocada, vez que já se encontra instalado o processo de morte.
Borges (2007, p. 236) afirma que na “[...] ortotanásia, o doente já se encontra em processo natural de morte, processo este que recebe uma contribuição do médico no sentido de deixar que esse estado se desenvolva no seu curso natural.”
Diante do intenso sofrimento o médico poderia agir para amenizar as dores em um paciente terminal. Em qualquer situação o consentimento de quem está sendo submetido a tratamento se torna necessário.
O consentimento informado e esclarecido surge como um requisito para que se realize esse tipo de procedimento, podendo o paciente manifestar antecipadamente sua vontade, sobre tratamentos e cuidados que quer ou não receber, nos termos da Resolução n.º 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina.
As disposições para o final da vida podem estar dispostas num testamento vital, no qual a pessoa, de forma escrita, determina os tratamentos que admite e aqueles que não admite em caso de não poder manifestar sua vontade quando em estado terminal (BORGES, 2007).
A ortotanásia encontra maior aceitação social do que a eutanásia, uma vez que não há interferência direta no processo de morte.
4 Considerações finais
A vida, direito humano fundamental, revela-se enquanto direito de personalidade, indisponível, inalienável, imprescritível. As questões que tocam à vida e à existência levam à reflexões que traduzem o sentido do respeito e proteção de direitos, no contexto do reconhecimento da personalidade humana.
Considerando que desde a concepção a vida humana surge em um estágio peculiar de desenvolvimento, a sua proteção jurídica deve existir, pois o ser que se desenvolve traz consigo a dignidade humana, dessa forma ao nascituro é devido o reconhecimento de direitos, titular que é de direitos de personalidade, dentre os quais o direito à vida.
Assim sendo, ao assumir o compromisso em garantir os direitos fundamentais, o Estado deve reunir esforços para que esses direitos sejam efetivados, acresce-se que não basta mencionar a garantia de um direito fundamental à vida, mas à qualidade de vida, pois as condições de sobrevivência devem também ser asseguradas.
A tutela penal à vida com a tipificação do aborto, infanticídio, instigação ou auxílio ao suicídio, homicídio, ultrapassam discussões de ordem meramente religiosas e configura-se como uma das faces da proteção desse direito fundamental pelo Estado.
No campo das discussões sobre o término da vida em situações de pacientes que estejam em estado terminal, passando por grande sofrimento, abre-se espaço para discutir sobre questões relevantes como a eutanásia e a ortotanásia, sendo que a primeira encontra resistência no ordenamento jurídico brasileiro ao passo que se enquadra como homicídio privilegiado. Quanto à ortotanásia não há que se falar em repressão penal, uma vez que não se encontra tipificada, sendo que para esse caso o processo de morte já instalado, segue seu curso, sem prolongamento artificial da vida.
O início da vida e seu término tem despertado a atenção dos mais diversos segmentos da sociedade, mobilizando religiosos, moralistas, médicos, juristas e outros cientistas, possibilitando o aprofundamento de discussões, sobretudo ao contrapor-se a autonomia individual e a necessidade de intervenção estatal na proteção de direitos.
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Mestre em Direito. Especialista em Direito Público e Eleitoral. Bacharel em Direito - UESC. Professor da Universidade do Estado da Bahia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, João Hélio Reale da. Direitos de personalidade: análise do direito à vida e à existência à luz de duas questões polêmicas como o aborto e a eutanásia. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 mar 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51482/direitos-de-personalidade-analise-do-direito-a-vida-e-a-existencia-a-luz-de-duas-questoes-polemicas-como-o-aborto-e-a-eutanasia. Acesso em: 23 dez 2024.
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