RESUMO: Este artigo tem como objetivo demonstrar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade ou não de os Tribunais de Contas exercerem o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público, principalmente à luz do que dispõe a Súmula nº 347 da Corte Suprema. O trabalho expõe que, não obstante existirem decisões monocráticas no sentido da insubsistência da referida Súmula nº 347, em virtude do sistema de controle de constitucionalidade vigente na Constituição Federal de 1988, tal enunciado não foi formalmente revogado. Assim, as Cortes de Contas, no exercício de suas atribuições, podem apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, afastando a aplicação da respectiva lei ou ato normativo no caso concreto sob exame.
Palavras-Chave: controle de constitucionalidade, Tribunais de Contas, Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breves notas sobre o controle de constitucionalidade. 2.1. Controle concentrado de constitucionalidade. 2.2. Controle difuso de constitucionalidade. 3. Controle de Constitucionalidade pelos Tribunais de Contas. 3.1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. 3.2. A relevância da apreciação da constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público pelos Tribunais de Contas. 4. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A possibilidade da realização do controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas merece destaque, para fins de pesquisa, pois é tema controverso na doutrina e na jurisprudência.
Os Tribunais de Contas, como órgãos de controle externo da Administração Pública, ao realizar o exame da legalidade dos atos que acarretam despesas ou geram receitas, podem deparar-se com atos administrativos fundamentados em leis ou atos normativos inconstitucionais. Assim, surge a questão relativa à possibilidade ou não de os Tribunais de Contas efetuarem o controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos do Poder Público.
A partir da não aplicação de leis ou atos normativos inconstitucionais, os Tribunais de Contas podem evitar, por exemplo, a execução de despesas indevidas, bem como a concessão irregular de renúncia de receitas pelos órgãos e entidades da Administração Pública, contribuindo, assim, para a preservação do erário.
Portanto, torna-se relevante verificar qual é o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, constituindo-se, assim, o objetivo deste artigo.
2. BREVES NOTAS SOBRE O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Apresentam-se, a seguir, breves notas sobre o controle de constitucionalidade jurisdicional, baseadas nas obras de Mendes (2015) e Lenza (2016).
Inicialmente, cumpre mencionar que o controle de constitucionalidade decorre do princípio da supremacia da Constituição. Assim, as leis e os atos normativos editados pelo poder estatal devem estar em consonância com os preceitos da Constituição, já que esta ocupa o topo da pirâmide normativa, de acordo com a teoria de Hans Kelsen.
Para que seja possível a realização do controle de constitucionalidade, a Constituição deve ser rígida, ou seja, deve possuir um processo mais dificultoso de alteração em relação às demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Ademais, deve-se também atribuir competência a um órgão para realizar tal função.
Pode-se classificar o controle de constitucionalidade jurisdicional em concentrado (austríaco) ou difuso (americano), conforme adiante exposto.
2.1. Controle concentrado de constitucionalidade
O controle concentrado de constitucionalidade, também denominado austríaco, pois foi previsto na Constituição Austríaca de 1920, sob a inspiração de Hans Kelsen, caracteriza-se pelo fato de se atribuir a um órgão jurisdicional superior ou a uma Corte Constitucional a competência para o julgamento das questões constitucionais. Daí vem a sua qualificação como concentrado, pois o exame da compatibilidade da norma ou do ato normativo com a Constituição concentra-se em um único órgão.
No Brasil, o controle concentrado de constitucionalidade é realizado pelo Supremo Tribunal Federal - STF, tendo como parâmetro a Constituição Federal, e pelos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, tendo como parâmetro as respectivas Constituições Estaduais e a Lei Orgânica do Distrito Federal.
O controle concentrado também tem por característica ser exercido mediante a interposição de uma ação perante o órgão competente, a exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI, que é marcada pela abstração, pois não se está diante da análise de um caso concreto em que há um litígio entre as partes.
Busca-se, na ADI, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, em tese, que está em desconformidade com a Constituição. A procedência da ADI declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo impugnado, extirpando-os do ordenamento jurídico com efeitos, via de regra, ex tunc, ou seja, retroativo, e erga omnes, vale dizer, contra todos.
No plano federal, além da ADI genérica, o STF é competente para julgar as seguintes ações no âmbito do controle concentrado: Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO e a Representação Interventiva – ADI Interventiva.
2.2. Controle difuso de constitucionalidade
O controle difuso de constitucionalidade, também denominado americano, pois tem origem no julgamento do caso Marbury versus Madison, em 1803, pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, caracteriza-se pelo fato de que pode ser efetuado por qualquer juízo ou tribunal do Poder Judiciário. Daí vem a sua qualificação como difuso, pois o exame da compatibilidade da norma ou do ato normativo com a Constituição pode ser efetuado, repita-se, por qualquer juízo ou tribunal do Poder Judiciário.
Diferentemente do controle concentrado, o controle difuso de constitucionalidade é efetuado durante o exame de um caso concreto levado ao Poder Judiciário. Assim, a declaração de inconstitucionalidade ocorre incidenter tantum, ou seja, incidentalmente, e possui efeitos, via de regra, apenas entre as partes do processo (inter partes) e ex tunc, embora o STF já tenha dado efeitos ex nunc ou pro futuro a tal declaração.
Cabe mencionar que deve ser observada a denominada cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal de 1988 – CF/88, quando um tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo mediante controle difuso. Nesse sentido, o referido dispositivo constitucional estatui que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
3. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS
Diante do que já foi apresentado, resta evidente que os Tribunais de Contas não possuem competência para exercer o controle concentrado de constitucionalidade das leis ou dos atos normativos do Poder Público. Tal competência, conforme já visto, é restrita ao Supremo Tribunal Federal ou ao Tribunal de Justiça Estadual ou do Distrito Federal, conforme o caso.
Por sua vez, no que tange à possibilidade ou não do exercício do controle difuso de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas, é importante diferenciar a declaração de inconstitucionalidade da não aplicação de leis inconstitucionais.
Nessa esteira, passa-se a examinar o que a jurisprudência do STF dispõe sobre a possibilidade do exercício do controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas.
3.1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria
Não obstante a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, que será demonstrada neste trabalho, o STF possui o seguinte entendimento consignado em sua Súmula nº 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” (BRASIL, 1963).
Em consonância com a referida súmula, inicialmente é importante fazer a distinção entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais. Os Tribunais de Contas não declaram a inconstitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. A Corte de Contas, ao se deparar com uma lei ou ato normativo que considere inconstitucional, apenas deve afastar a aplicação da referida lei ou ato normativo no caso concreto.
Nesse sentido, Fernandes esclarece o seguinte:
Aos Tribunais de Contas não compete a declaração de inconstitucionalidade de lei, competência essa restrita aos órgãos do Poder Judiciário. O que lhes assegura a ordem jurídica, na efetivação do primado da Constituição Federal no controle das contas públicas, é a inaplicabilidade da lei que afronta a Constituição, pois "há que se distinguir entre declaração de inconstitucionalidade e não aplicação de leis inconstitucionais, pois esta é obrigação de qualquer tribunal ou órgão de qualquer dos poderes do Estado". (FERNANDES, 2000, p. 30)
Sobre a apreciação da constitucionalidade das leis pelos Tribunais de Contas, Mileski explica o seguinte:
Logicamente que apreciar a constitucionalidade não significa poderes para decretar a inconstitucionalidade das leis e dos atos do poder público. Contudo, como qualquer decisão decorrente de avaliação jurídica deve, necessariamente, repercutir num efeito prático, pois, se assim não fosse, tratar-se-ia de uma decisão inócua, pode-se afirmar que a apreciação de constitucionalidade realizada pelo Tribunal de Contas, embora não possa produzir a retirada do mundo jurídico das leis e atos analisados, opera o efeito de negar executoriedade aos textos examinados, obstando a continuidade de sua utilização, no sentido de evitar os decorrentes prejuízos de natureza jurídica, econômica e financeira. (MILESKI, 2003, p. 248)
Ademais, cumpre mencionar que os Tribunais de Contas, ao apreciarem a constitucionalidade das leis ou atos normativos do Poder Público, devem observar a cláusula de reserva de plenário prevista no art. 97 da Constituição Federal de 1988.
Em relação à Súmula nº 347 do STF, Fernandes faz o seguinte alerta:
[...] essa Súmula vem sendo relativizada (não entendida de forma absoluta) pelo STF, em posicionamentos monocráticos, conforme a decisão liminar do MS nº 25.888 exarada pelo Ministro Gilmar Mendes que deferiu o pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 39/2006) que impedia a Petrobras de realizar o chamado processo licitatório simplificado. (FERNANDES, 2017, p. 10)
Nesse sentido, transcreve-se, por oportuno, excerto da citada decisão monocrática exarada pelo Ministro Gilmar Mendes no bojo do MS nº 25.888:
Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando a Petrobrás, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor da Súmula n° 347 desta Corte, [...]. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988." (MS 25888 MC, Relator Ministro Gilmar Mendes, Decisão Monocrática, julgamento em 22.3.2006, DJ de 29.3.2006) (BRASIL, 2006)
Conforme descrito na citação acima, a Súmula nº 347 do STF foi editada em 1963, na vigência, portanto, da Constituição de 1946. Naquela época, no âmbito do concentrado de constitucionalidade, havia apenas a possibilidade de interposição, pelo Procurador-Geral da República, da Representação de Inconstitucionalidade, para os efeitos de intervenção federal.
Como a legitimação para provocar o controle concentrado de constitucionalidade era restrita, considerava-se que outros atores poderiam apreciar a constitucionalidade das leis, tais como o Chefe do Poder Executivo e os Tribunais de Contas, estes últimos nos termos da Súmula nº 347 do STF.
Contudo, na visão do Ministro Gilmar Mendes, a Constituição Federal de 1988, ao ampliar os legitimados para provocar o controle abstrato, conforme previsto no art. 103 da Carta Magna, tornou insubsistente o teor da Súmula nº 347 do STF.
Vale mencionar que, em sentido contrário ao posicionamento do Ministro Gilmar Mendes, há uma decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio, a qual considerou que a Súmula nº 347 do STF continua válida:
2. Descabe a atuação precária e efêmera afastando do cenário jurídico o que assentado pelo Tribunal de Contas da União. A questão alusiva à possibilidade de este último deixar de observar, ante a óptica da inconstitucionalidade, certo ato normativo há de ser apreciada em definitivo pelo Colegiado, prevalecendo, até aqui, porque não revogado, o Verbete nº 347 da Súmula do Supremo. De início, a atuação do Tribunal de Contas se fez considerado o arcabouço normativo constitucional. (MS 31439 MC, Relator Ministro Marco Aurélio, Decisão Monocrática, julgamento em 19.7.2012, DJe de 7.8.2012) (BRASIL, 2012)
Contudo, recentemente, o Ministro Alexandre de Moraes, mediante decisão monocrática nos autos do Mandado de Segurança nº 35.410, oriundo do Distrito Federal, adotou entendimento no mesmo sentido do Ministro Gilmar acerca da insubsistência da Súmula nº 347 do STF. Conforme restou consignado na fundamentação de sua decisão, para o Ministro Alexandre de Moraes:
É inconcebível, portanto, a hipótese do Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecer a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência, obviamente, ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988.
[...]
Com efeito, os fundamentos que afastam do Tribunal de Contas da União – TCU a prerrogativa do exercício do controle incidental de constitucionalidade são semelhantes, mutatis mutandis, ao mesmo impedimento, segundo afirmei, em relação ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ (DIREITO CONSTITUCIONAL. 33. Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 563 e seguintes):
O exercício dessa competência jurisdicional pelo CNJ acarretaria triplo desrespeito ao texto maior, atentando tanto contra o Poder Legislativo, quanto contra as próprias competências jurisdicionais do Judiciário e as competências privativas de nossa Corte Suprema.
[...]
A Constituição Federal não permite, sob pena de desrespeito aos artigos 52, inciso X, 102, I, “a” e 103-B, ao Conselho Nacional de Justiça o exercício do controle difuso de constitucionalidade, mesmo que, repita-se, seja eufemisticamente denominado de competência administrativa de deixar de aplicar a lei vigente e eficaz no caso concreto com reflexos para os órgãos da Magistratura submetidos ao procedimento administrativo, sob o argumento de zelar pela observância dos princípios da administração pública e pela legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, pois representaria usurpação de função jurisdicional, invasão à competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal e desrespeito ao Poder Legislativo. (BRASIL, 2017)
Diferentemente da posição exposta doutrinariamente pelo Ministro Alexandre de Moraes acerca da impossibilidade do exercício do controle incidental de constitucionalidade pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, conforme consta da citação anterior, o STF admitiu a realização de tal controle pelo CNJ, na Petição 4.656, oriunda da Paraíba, cujo julgamento ocorreu no final de 2016, sendo que o acórdão foi publicado no final de 2017. Conforme trecho da ementa do referido julgado:
3. Insere-se entre as competências constitucionalmente atribuídas ao Conselho Nacional de Justiça a possibilidade de afastar, por inconstitucionalidade, a aplicação de lei aproveitada como base de ato administrativo objeto de controle, determinando aos órgãos submetidos a seu espaço de influência a observância desse entendimento, por ato expresso e formal tomado pela maioria absoluta dos membros dos Conselho. (BRASIL, 2016)
A Ministra Cármen Lúcia, relatora do acórdão mencionado, em sua fundamentação aduz que:
[...] há de se ter em conta a distinção entre a conclusão sobre o vício a macular lei ou ato normativo por inconstitucionalidade, adotada por órgão jurisdicional competente, e a restrição de sua aplicação levada a efeito por órgão estatal sem a consequência de excluí-lo do ordenamento jurídico com eficácia erga omnes e vinculante. (BRASIL, 2016)
Assim, mais uma vez constata-se, agora no âmbito da jurisprudência do STF, a diferenciação que é feita entre declaração de inconstitucionalidade efetuada por órgão jurisdicional e a restrição de aplicação da lei por órgão estatal.
Ademais, a relatora cita lição doutrinária de Hely Lopes Meirelles no sentido de que o Executivo “não é obrigado a acatar normas legislativas contrárias à Constituição ou a leis hierarquicamente superiores”. Tal entendimento, para a relatora, também pode ser estendido aos órgãos administrativos autônomos, como o Tribunal de Contas da União, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Nacional de Justiça.
Portanto, verifica-se que a jurisprudência do STF ainda não é firme quanto à insubsistência da Súmula nº 347 do STF diante do sistema de controle de constitucionalidade vigente na Carta Magna de 1988. Não obstante a existência de decisões monocráticas em sentido contrário, como as apontadas neste trabalho, fato é que a Súmula nº 347 não foi formalmente revogada pelo STF.
A recente decisão colegiada do STF na Petição 4.656 no sentido de que o Conselho Nacional de Justiça, órgão de natureza administrativa, assim como os Tribunais de Contas, pode afastar, por inconstitucionalidade, a aplicação de lei, é um indicativo de que a Corte Suprema, mesmo no atual sistema de controle de constitucionalidade vigente na Constituição Federal de 1988, considera que a sua Súmula nº 347 ainda continua válida.
3.2. A relevância da apreciação da constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público pelos Tribunais de Contas
A Constituição Federal de 1988, dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito, reforçou as competências dos Tribunais de Contas para o exercício do controle das contas públicas. Nesse sentido, o STF, na ementa da ADI 215-PB, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello, reconheceu a importância dada aos Tribunais de Contas pela Constituição Federal de 1988:
Com a superveniência da nova constituição, ampliou-se, de modo extremamente significativo, a esfera de competência dos tribunais de contas, os quais foram investidos de poderes jurídicos mais amplos, em decorrência de uma consciente opção política feita pelo legislador constituinte, a revelar a inquestionável essencialidade dessa instituição surgida nos albores da república. A atuação dos tribunais de contas assume, por isso, importância fundamental no campo do controle externo e constitui, como natural decorrência do fortalecimento de sua ação institucional, tema de irrecusável relevância. (ADI 215 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/1990, DJ 03-08-1990 PP-07234 EMENT VOL-01588-01 PP-00028) (BRASIL, 1990)
Schmitt em sua tese de doutorado “Tribunais de Contas no Brasil e Controle de Constitucionalidade” assevera que os Tribunais de Contas são efetivos custodes in nomine populi, guardiões em nome do povo:
[...] em razão das profundas modificações que vem sendo produzidas na forma de prestação da atividade administrativa, que busca sua maior eficiência através de estruturas de execução de serviços mais leves e ágeis, o que implica profundas alterações no regramento legal da ação administrativa, hoje focada em uma administração pública gerencial, como aponta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, impondo assim desafios aos órgãos de controle da gestão da coisa pública para se adequarem, de forma célere, às demandas exigidas pela modernidade, o que é igualmente seu dever, como bem aponta Roberto Dromi, e necessário para que se mantenham como guardiões, em nome do povo, da res publica, os efetivos Custodes in nomine populi. (SCHMITT, 2006, p. 170 a 171)
Nesse contexto, os Tribunais de Contas são Cortes especializadas no julgamento de matérias relativas à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos e entidades da Administração Pública, no que tange à legalidade, à legitimidade, à economicidade, à aplicação das subvenções e à renúncia de receitas.
Assim, no exame dos atos administrativos que acarretam despesas ou geram receitas, os Tribunais de Contas podem verificar que tais atos administrativos fundamentam-se em leis ou atos normativos inconstitucionais.
Portanto, é fundamental que os Tribunais de Contas tenham competência para, no exercício de suas atribuições, apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, nos exatos termos da Súmula nº 347 do STF.
Tal competência é haurida diretamente da Constituição Federal e decorre da teoria dos poderes implícitos, conforme destacou a relatora Ministra Cármen Lúcia na fundamentação de seu voto na Petição 4.656:
Cuida-se de poder implicitamente atribuído aos órgãos autônomos de controle administrativo para fazer valer as competências a eles conferidas pela ordem constitucional. Afinal, como muito repetido, quem dá os fins, dá os meios. (BRASIL, 2016)
Ademais, conforme assentado pela Ministra Cármen Lúcia no referido julgamento, a apreciação da constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público pelos órgãos administrativos autônomos, como os Tribunais de Contas, “conjuga-se com o ideal da sociedade aberta de intérpretes, preconizada por Peter Häberle”(BRASIL, 2016). Sobre a teoria do citado jurista alemão, Lenza explica o seguinte:
Häberle observa que, dentro de um conceito mais amplo de hermenêutica, “cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (...); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (...). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (...). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional”. (LENZA, 2016, p. 190)
Dessa forma, os Tribunais de Contas, em virtude de sua especialização no exame das contas públicas, ao apreciarem a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, podem contribuir para o processo da hermenêutica constitucional, bem como para a preservação do erário, ao se evitar que despesas possam ser efetuadas com base em leis ou atos normativos que apresentem uma inconstitucionalidade “chapada”, conforme expressão cunhada pelo Ministro Sepúlveda Pertence.
Isso sem prejuízo da apreciação definitiva da questão pelo Poder Judiciário no âmbito do controle de constitucionalidade, em virtude do princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988.
Nesse contexto, o campo de atuação dos Tribunais de Contas ganha relevo principalmente diante de leis ou atos normativos inconstitucionais que acarretam o aumento indevido das despesas com pessoal ou do endividamento público nos pequenos municípios brasileiros. Sabe-se que, por vezes, as leis ou atos normativos editados em tais entes federados carecem da observância da devida técnica legislativa, seja sob o ponto de vista formal, seja sob o material.
Ademais, a atuação dos Tribunais de Contas nesses casos pode ganhar maior importância se ela for tempestiva, já que o controle de constitucionalidade efetuado pelo Poder Judiciário pode demorar a ocorrer, concretizando prejuízos ao erário.
Por fim, arremata-se o assunto com a pertinente conclusão de Schmitt:
Como se demonstrou, os Tribunais de Contas não só detêm competência, poder, como dever, para, ao se depararem com atos administrativos sujeitos à sua fiscalização, examinarem sua compatibilidade com o texto constitucional, o que devem fazê-lo, de plano, considerando que a Constituição é o vetor de legitimação destes atos. Essa análise de compatibilidade constitucional inclui-se no poder/dever de todos os poderes/funções do Estado de interpretarem as leis infraconstitucionais em face da Carta da República, como já de há muito assente no direito brasileiro em memoráveis manifestações de juristas tais como Pontes de Miranda, Castro Nunes, Francisco Campos, Moreira Alves, Victor Nunes Leal, Carlos Maximiliano, Hahnnemann Guimarães, Adroaldo Mesquita da Costa e tantos outros aqui enumerados, que percebem que, sem o reconhecimento desta faculdade aos órgãos componentes quer do Executivo, quer do Legislativo, estar-se-á procedendo a capitis diminutio de suas atribuições/competências constitucionais, o que também configura inconstitucionalidade. (SCHMITT, 2006, p. 192)
4. CONCLUSÃO
Os Tribunais de Contas não possuem competência para exercer o controle concentrado de constitucionalidade das leis ou dos atos normativos do Poder Público. Tal competência é restrita ao Supremo Tribunal Federal ou ao Tribunal de Justiça Estadual ou do Distrito Federal, conforme o caso.
Por sua vez, de acordo com a Súmula nº 347 do STF: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.
Contudo, vale ressaltar que os Tribunais de Contas não declaram a inconstitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público. A Corte de Contas, ao se deparar com uma lei ou ato normativo que considere inconstitucional, apenas deve afastar a aplicação da referida lei ou ato normativo no caso concreto.
Verificou-se, neste trabalho, que a jurisprudência do STF ainda não é firme quanto à insubsistência da Súmula nº 347 do STF diante do sistema de controle de constitucionalidade vigente na Carta Magna de 1988. Não obstante a existência de decisões monocráticas em sentido contrário, fato é que a Súmula nº 347 não foi formalmente revogada pelo STF.
A recente decisão colegiada do STF na Petição 4.656 no sentido de que o Conselho Nacional de Justiça, órgão de natureza administrativa, assim como os Tribunais de Contas, pode afastar, por inconstitucionalidade, a aplicação de lei, é um indicativo de que a Corte Suprema, mesmo no atual sistema de controle de constitucionalidade vigente na Constituição Federal de 1988, considera que a sua Súmula nº 347 ainda continua válida.
Por fim, cumpre mencionar que os Tribunais de Contas, em virtude de sua especialização no exame das contas públicas, ao apreciarem a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, podem contribuir para o processo da hermenêutica constitucional, bem como para a preservação do erário, ao se evitar que despesas possam ser efetuadas com base em leis ou atos normativos que apresentem uma inconstitucionalidade “chapada”, conforme expressão cunhada pelo Ministro Sepúlveda Pertence.
REFERÊNCIAS
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Pós-Graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Auditor Federal de Finanças e Controle do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MONTEIRO, Adonias Fernandes. Controle de Constitucionalidade pelos Tribunais de Contas na visão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 mar 2018, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51496/controle-de-constitucionalidade-pelos-tribunais-de-contas-na-visao-da-jurisprudencia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 05 nov 2024.
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