RESUMO: O presente artigo busca fazer uma análise das principais características do princípio constitucional da legalidade e de seus desdobramentos no âmbito de atuação da Administração Pública. Fazendo uso da doutrina especializada e da legislação correlata, buscou-se apresentar o papel do princípio da legalidade no atual estágio do pensamento jurídico. É certo que o conceito de legalidade sofreu mutações com o passar do tempo e não representa mais apenas uma legalidade estrita. O Estado Democrático de Direito demandou uma releitura desse princípio, o que trouxe diversas implicações para a Administração Pública.
PALAVRAS-CHAVE: Princípios; Legalidade; Juridicidade; Administração Pública.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 3. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE EM RELAÇÃO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. 4. EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Os princípios ocupam uma posição de alta relevância em nosso ordenamento jurídico. São considerados pela doutrina pós-positivista, especialmente de Robert Alexy e Ronald Dworkin, uma espécie do gênero normas jurídicas, ao lado das regras, e, portanto, possuem força normativa (CARVALHO FILHO, 2014, p.19). Além disso, eles são dotados de diversas funções no ordenamento jurídico: fundamentadora, interpretativa, supletiva, integrativa, diretiva e limitativa (BONAVIDES, 2013, p. 293).
Todos esses entendimentos doutrinários fundamentam a visão de que os princípios são normas-chaves de todo o sistema jurídico, conforme o ensinamento de Paulo Bonavides:
A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reverenciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais. (BONAVIDES., 2013, p. 296).
Nesse contexto, as constituições modernas, especialmente a Constituição Federal de 1988, consagram diversos princípios em seus textos, que são fundamentais para a aplicação do direito e possuem normatividade como normas jurídicas.
Um dos princípios mais importantes para o devido funcionamento da sociedade é o da legalidade, previsto no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal. Essa norma limita o poder de atuação estatal, bem como protege a liberdade individual que corresponde ao princípio da autonomia da vontade. Além dessa legalidade genérica, é de suma importância a legalidade que rege a atuação da Administração Pública, prevista de forma específica no art. 37, caput, da Constituição Federal.
Segundo Hely Lopes Meirelles, são doze os princípios básicos da Administração Pública de observância permanente e obrigatória: legalidade, moralidade, impessoalidade ou finalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, motivação e supremacia do interesse público (MEIRELLES, 2013, p. 89). Os cinco primeiros estão previstos expressamente no art. 37, caput, da Constituição Federal, sendo a legalidade o objeto do presente estudo.
2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O princípio da legalidade está previsto de forma genérica no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, que preceitua que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Para Marcelo Novelino, trata-se de uma garantia individual, que tem o propósito de proteger direitos fundamentais e valores diversos, especialmente a liberdade, a propriedade e a segurança jurídica (NOVELINO, 2017, p. 398). Essa proteção ocorre através da limitação do poder estatal, que deve ser exercido conforme os preceitos constitucionais e com fundamento legal.
Um dos precedentes históricos mais importantes do princípio em análise foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Esse documento, de inspiração jusnaturalista e liberal, consagrou diversos princípios relacionados à liberdade do indivíduo em relação ao Estado. Comentando essa Declaração, discorre Dirley da Cunha Júnior:
Os Homens são livres, na medida em que a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei (art. 4º). A vida em sociedade exige sacrifícios que justificam a limitação do exercício dos direitos fundamentais. Nesse sentido, observe-se que a Declaração, ao reconhecer que o exercício concomitante dos direitos fundamentais por todos e cada um dos homens exige uma coordenação ou disciplina que impeça as colisões, conferiu à lei, e somente a ela, o papel de coordenação, regulação e limitação desses direitos. (CUNHA Jr., 2013, p. 577).
Dessa forma, o princípio da legalidade surgiu como uma expressão do pensamento liberal, que buscava proteger o indivíduo em face das ingerências estatais muito comuns no período absolutista.
Segundo Marcelo Novelino, a “lei” a que se refere o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal não é apenas a lei em sentido estrito, mas deve alcançar também as demais formas de atos normativos primários:
Para sua plena realização, o princípio exige a elaboração de lei em sentido estrito, veículo supremo da vontade do Estado, elaborada pelo Parlamento. Todavia, quando a Constituição preceitua que 'ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei' (CF, art. 5º, II), esta deve ser interpretada em sentido amplo. Por isso, observadas as limitações materiais e formais, a imposição de deveres pode ser veiculada por todos os atos normativos primários compreendidos no artigo 59 da Constituição: emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. (NOVELINO, 2017, p. 398).
Dessa forma, a legalidade é uma forma especial de proteção dos direitos individuais e sociais e de limitação do poder de atuação estatal. Especialmente em países democráticos, é necessário que as obrigações derivem de atos editados pelos representantes legítimos da população no Poder Legislativo, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
No texto constitucional de 1988, além da forma genérica de legalidade prevista no art. 5º, inciso II, também há previsões específicas desse princípio em relação à Administração Pública (art. 37, caput), e em relação ao exercício do poder de tributar (art. 150, I).
Por fim, vale ressaltar que o princípio da legalidade não se confunde com o princípio da reserva legal. De acordo com Marcelo Novelino, a legalidade consiste na submissão às leis em sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas elaboradas de acordo com a Constituição; por sua vez, a reserva legal é aplicável sobre matérias específicas, que devem ser veiculadas exclusivamente por leis em sentido estrito (NOVELINO, 2017, p. 398).
3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE EM RELAÇÃO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O princípio da legalidade está previsto, no art. 37, caput, da Constituição Federal, como um dos princípios que regem a atividade administrativa, ao lado da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Essa previsão é um desdobramento específico do princípio previsto no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, voltado especialmente para conformar a atuação dos administradores públicos ao direito.
Apesar de, como visto, o princípio da legalidade em sentido genérico ter origens antigas, especialmente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a legalidade como princípio vetor da atuação administrativa é mais recente em nosso ordenamento. Com efeito, Hely Lopes Meirelles afirma que esse princípio passou a ser imposição legal apenas com a Lei 4.727/65, que rege a ação popular e considera nulo o ato lesivo ao patrimônio público que possua ilegalidade de objeto (MEIRELLES, 2013, p. 91). Já no âmbito constitucional, a legalidade administrativa ganhou previsão expressa apenas com a Constituição Federal de 1988.
No entendimento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, há uma bipolaridade no Direito Administrativo, representada, de um lado, pela liberdade do indivíduo e, por outro, pela autoridade da Administração, da qual decorrem dois princípios fundamentais: a legalidade e a supremacia do interesse público sobre o particular (DI PIETRO, 2013, p. 64). Dessa forma, a legalidade é essencial não só para limitar a atuação estatal de forma genérica, mas também para limitar, de forma específica, a atuação da Administração Pública, que executa as leis de forma mais direta em relação aos indivíduos.
Sobre o conceito de legalidade administrativa, leciona Hely Lopes Meirelles:
A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.(MEIRELLES, 2013, p. 90, grifo do autor).
Ademais, conforme o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho, é de suma importância o efeito do princípio da legalidade no que diz respeito aos direitos dos indivíduos, de modo que o princípio significa que a garantia desses direitos depende de sua existência, concluindo o autor que: “havendo dissonância entre a conduta e a lei, deverá aquela ser corrigida para eliminar-se a ilicitude” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 20).
É notável, portanto, a relevância do princípio da legalidade administrativa, que subordina a atividade administrativa, a qual muitas vezes envolve a restrição de direitos, à fundamentação legal. Sem fundamento legal, o administrador público não pode agir.
Nesse contexto, cumpre ressaltar que a liberdade de atuação dos indivíduos difere da liberdade de atuação do administrador público. Enquanto o indivíduo pode fazer tudo que não lhe seja vedado por lei (princípio da autonomia da vontade), o administrador público pode fazer somente aquilo que seja permitido por lei. Nesse sentido, afirma Hely Lopes Meirelles: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (MEIRELLES, 2013, p. 91).
Com o propósito de proteger os indivíduos e assegurar o respeito à legalidade, o ordenamento jurídico prevê diversos instrumentos processuais, como o habeas corpus (art. 5º, , da CF), o mandado de segurança (art. 5º, , da CF, a ação popular (Lei 4.717/65) e a ação civil pública (Lei 7.347/85).
4 EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA
O entendimento inicial em relação ao princípio da legalidade administrativa, em razão da inspiração liberal que motivou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, era de que a Administração poderia fazer tudo o que não fosse proibido por lei. O princípio gerava, assim, uma vinculação negativa, semelhante ao princípio privado da autonomia da vontade. Esse posicionamento foi adotado com a Constituição de 1891, que instaurou um Estado Liberal de Direito no Brasil (DI PIETRO, 2013, p. 29).
Esse posicionamento também vinculava a atuação administrativa apenas às normas jurídicas expressas no ordenamento, sem considerar outros princípios e postulados normativos. Bastava que a atuação estivesse de acordo com a lei para que fosse válida. Isso decorria do fato de que o Estado Liberal representou uma ruptura com o Estado Absolutista, notadamente permeado por abusos de autoridade. Portanto, a preocupação maior era garantir liberdade do indivíduo em face do Estado.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, foi a Constituição de 1934 que consagrou a vinculação positiva do princípio da legalidade:
A partir da Constituição de 1934 pôde-se falar em Estado Social de Direito, um Estado prestador de serviços, que foi ampliando a sua atuação para abranger as áreas econômica e social, com o consequente fortalecimento do Poder Executivo. O princípio da legalidade ampliou-se para abranger os atos normativos baixados pelo Poder Executivo, com força de lei, e estendeu-se a todo o âmbito da atuação administrativa. O princípio da legalidade passou a significar que a Administração só pode fazer o que a lei permite (princípio da vinculação positiva). (DI PIETRO, 2013, p. 29).
Nesse sentido, o Estado Social de Direito implicou uma releitura da legalidade administrativa. Não bastava que a atividade respeitasse a lei em sentido estrito; tornou-se necessário observar outras espécies de atos normativos. Além disso, houve um distanciamento entre a legalidade administrativa e o princípio da autonomia da vontade. Dessa forma, a legalidade deixou de significar apenas uma necessidade de não violação da lei e passou a representar também a necessidade de a atuação estar prevista em lei para ser legítima.
Em um terceiro estágio, inaugurado no Brasil pela Constituição de 1988, o princípio da legalidade passou por uma nova ampliação de significado com a adoção de um Estado Democrático de Direito. Com efeito, “duas ideias são inerentes a esse tipo de Estado: uma concepção mais ampla do princípio da legalidade e a ideia de participação do cidadão na gestão e no controle da Administração Pública” (DI PIETRO, 2013, p. 29).
Nessa nova concepção, o princípio da legalidade passou a ser visto como sinônimo de juridicidade. Exige-se, portanto, uma submissão não só à lei, mas a toodo o Direito (DI PIETRO, 2013, p. 30). A atuação administrativa deve observar todos os princípios e regras do ordenamento jurídico, ainda que não estejam expressos em leis, bem como buscar resguardar o interesse público.
No mesmo sentido afirma Hely Lopes Meirelles:
Além de atender à legalidade, o ato do administrador público deve conformar-se com a moralidade e a finalidade administrativas para dar plena legitimidade à sua atuação. Administração legítima só é aquela que se reveste de legalidade e probidade administrativas, no sentido de que tanto atende às exigências da lei como se conforma com os preceitos da instituição pública.
Cumprir simplesmente a lei na frieza de seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. A administração, por isso, deve ser orientada pelos princípios do Direito e da Moral, para que ao legal se ajunte o honesto e o conveniente aos interesses sociais.(MEIRELLES, 2013, p. 91).
Seguindo essa mesma ideia do novo estágio do princípio da legalidade em relação à atuação da Administração Pública, a Lei 8.429/92 tipifica como atos de improbidade administrativa, em seu art. 11, aqueles que violam os princípios da Administração Pública, com previsão expressa do princípio da legalidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O princípio da legalidade deve pautar toda a atuação dos administradores públicos e existe como forma de proteger os indivíduos e os seus interesses contra atos sem fundamento legal. É a legalidade que limita o poder estatal e garante ao cidadão o exercício de todos os seus direitos fundamentais.
Sem o princípio em análise, os indivíduos ficariam sujeitos a abusos de poder e arbitrariedades por parte dos agentes públicos. Dessa forma, o princípio também tem a função de permitir o controle da atividade da Administração Pública pelos demais Poderes da República.
Inicialmente, a legalidade correspondia a uma vinculação negativa, permitindo que o administrador praticasse qualquer ato que não violasse as leis, como ocorre na esfera privada. Posteriormente, o conceito de legalidade foi ampliado para gerar uma vinculação positiva, e passou a significar que o administrador não pode atuar sem permissão legal, uma vez que as leis correspondem ao exercício indireto do poder pelo povo. Por fim, no entendimento atual, a legalidade passou a ser sinônimo de juridicidade e foi ainda mais ampliada.
Atualmente, não basta que a Administração Pública atue de acordo com a lei e apenas quando ela permitir. Conforme demonstrado, o conceito de “lei” no âmbito do princípio da legalidade não abrange apenas a lei em sentido estrito, mas também os demais atos normativos primários. Além disso, é necessário levar em consideração a teoria pós-positivista da força normativa dos princípios, de modo que o princípio da legalidade implica também a observância dos demais princípios do ordenamento jurídico, que também são normas jurídicas. Logo, a atividade administrativa deve observar todo o sistema jurídico pátrio de regras e princípios para que seja legítima.
A busca do bem comum deve sempre pautar a atividade administrativa, que envolve tanto recursos públicos quanto as liberdades públicas. A legalidade é um dos princípios essenciais para que esse objetivo seja alcançado. Sem o respeito à legalidade em sentido amplo, a atuação administrativa jamais será legítima.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
CUNHA Jr., Dirley da. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.
Advogado, graduado em Direito pelo Instituto de Educação Superior da Paraíba - IESP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Caio Felipe Caminha de. Análise do princípio da legalidade e sua evolução em relação à Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51621/analise-do-principio-da-legalidade-e-sua-evolucao-em-relacao-a-administracao-publica. Acesso em: 05 nov 2024.
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