RESUMO: Constitucionalismo designa o movimento político-social de busca da limitação do poder estatal. Este movimento não ocorreu de forma homogênea em todos os Estados, sendo possível destacar diversos movimentos constitucionais, como o constitucionalismo inglês, o constitucionalismo norte-americano e o constitucionalismo francês, cada um com suas especificidades. Fala-se em duas grandes fases de evolução do constitucionalismo: constitucionalismo antigo e constitucionalismo moderno. O presente trabalho possui como escopo analisar a evolução histórica do constitucionalismo, desde suas bases mais remotas na antiguidade clássica até chegar ao atual neoconstitucionalismo.
Palavras-chave: Constitucionalismo. Neoconstitucionalismo. Historicidade.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 CONSTITUCIONALISMO. 2.1 CONCEITO. 2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO. 2.2.1 Constitucionalismo antigo. 2.2.2 Constitucionalismo modern. 3 NEOCONSTITUCIONALISMO.
4 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Atualmente, encontramo-nos vivendo o neoconstitucionalismo, representante contemporâneo do movimento político-social denominado constitucionalismo. Para que fosse atingida tal fase, foram necessárias mudanças de paradigma, revoluções e lutas, sempre buscando um mesmo ideal: um modelo de organização política fundada na limitação do poder.
À medida que o movimento constitucional foi evoluindo, novas demandas foram somando-se à busca da limitação do poder político.
No constitucionalismo moderno, despontou a necessidade de proteção de direitos e garantias fundamentais. Pregava-se que a limitação do poder político estatal somente seria alcançada com a consagração de direitos e garantias fundamentais oponíveis em face do Estado.
Frente à urgência de proteção dos direitos e garantias fundamentais, tornou-se indispensável a existência de ferramentas que obrigassem os Estados a respeitarem tais direitos. Foi nesse momento que surgiram as constituições escritas, trazendo em seus textos declarações de direitos acompanhados do respectivo modo de garantia.
Com o neoconstitucionalismo, o foco principal passou a ser a eficácia da Constituição, a concretização dos direitos fundamentais anteriormente positivados, das prestações materiais prometidas à sociedade, buscando tornar o texto constitucional menos retórico e mais efetivo.
É o que será visto a seguir.
2.1 CONCEITO
Na doutrina, não existe uma conceituação uniforme sobre o constitucionalismo.
Segundo André Ramos Tavares, o termo “constitucionalismo” pode ser empregado em quatro diferentes sentidos. No primeiro, o constitucionalismo designa um movimento político-social que tem como finalidade limitar o poder estatal. Na segunda acepção, o termo indica a imposição de que os Estados adotem cartas constitucionais escritas. Numa terceira concepção, o constitucionalismo serve para apontar a função e a posição das constituições nas diversas sociedades. Por fim, o termo constitucionalismo pode ser utilizado ainda para se referir à evolução histórico-constitucional de um determinado Estado. (TAVARES, 2012, p. 23)
Usualmente, emprega-se o termo “constitucionalismo” no primeiro sentido, como sendo um movimento político-social que reivindicou, desde os primórdios, um modelo de organização política fundada na limitação do poder.
Vale ressaltar, entretanto, que o constitucionalismo não foi um movimento homogêneo em todos os Estados; razão pela qual Canotilho faz referência à existência de variados “movimentos constitucionais” (apud TAVARES, 2012, p. 23). Pode-se falar, por exemplo, em constitucionalismo inglês, constitucionalismo norte-americano, constitucionalismo francês, cada um com as suas especificidades.
Uma coisa é certa. O constitucionalismo, em um primeiro momento, não pregava a elaboração de constituições escritas. As constituições escritas são produto do século XVIII (com o constitucionalismo moderno), ao passo que a origem do constitucionalismo remonta aos povos da antiguidade clássica, mais precisamente aos hebreus, como aponta Karl Loewenstein (apud CUNHA JÚNIOR, 2011, p.34).
Mas isso não significa dizer que os povos da antiguidade não possuíam constituição, visto que, onde havia uma sociedade politicamente organizada, já existia uma constituição, pelo menos em sentido material, fixando-lhe os fundamentos e as diretrizes de sua organização[1]. Isso porque, “em qualquer época e em qualquer lugar do mundo, havendo Estado, sempre houve e sempre haverá um complexo de normas fundamentais que dizem respeito com a sua estrutura, organização e atividade”. (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 33)
Dito isso, passe-se à análise dos principais “movimentos constitucionais”.
2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO
Desconsideradas as diferenças de classificações entre os constitucionalistas, é possível falar em duas grandes fases de evolução do constitucionalismo: constitucionalismo antigo e constitucionalismo moderno.
2.2.1 Constitucionalismo antigo
O constitucionalismo antigo compreende o período entre a antiguidade clássica e o final do século XVIII. Nele se destacam as experiências constitucionais do Estado hebreu, das Cidades-Estado gregas, de Roma e da Inglaterra.
No constitucionalismo hebreu, o poder do governante estava limitado pelos dogmas religiosos consagrados na Bíblia (“Lei do Senhor”). Ainda que o poder político do soberano estivesse fundamentado nos Deuses e seus líderes fossem considerados representantes das divindades na terra (típico de um Estado teocrático), tal poder não era absoluto ou arbitrário; os limites bíblicos condicionavam tanto os governados quanto os governantes.
No constitucionalismo grego, a participação popular na condução do processo político (típica de uma democracia) limitava o poder do governante. Nas Cidades-Estado gregas, os cidadãos atuavam nesse processo político seja elegendo os governantes, seja tomando diretamente em Assembleia as principais decisões políticas (vigorava uma democracia direta).
No constitucionalismo romano, com a instauração do governo republicano, o poder do governante estava limitado por um complexo sistema de freios e contrapesos entre os diferentes órgãos políticos.
Por fim, no constitucionalismo inglês, o poder do governante encontrava limites em documentos escritos; documentos estes que não podem ser confundidos com constituições escritas. Durante a idade média, o documento limitador foi a Magna Carta de 1215. Na idade moderna, podem ser citados os seguintes documentos: Petition of Rights (1628); Habeas Corpus Act (1679); Bill of Rights (1689); Act of Settlement (1701).
Acrescente-se, ainda, que na Inglaterra vigorava a supremacia do Parlamento (e não da Constituição): o Parlamento era considerado absoluto, não se vinculando às disposições constitucionais, não havendo, portanto, a possibilidade de controle de constitucionalidade dos atos parlamentares.
Apesar das especificidades típicas de cada movimento constitucional, é possível falar em uma característica comum a todos os movimentos do constitucionalismo antigo: necessidade de limitação e controle do poder político.
Não havia ainda nesse período a imposição de que os Estados adotassem constituições escritas. Essa é uma característica que surge apenas no momento seguinte do constitucionalismo: o constitucionalismo moderno. Nesse ínterim, é importante esclarecer que os documentos escritos do constitucionalismo inglês não são entendidos como constituições escritas. Tais documentos são considerados embriões das constituições escritas e, consequentemente, do constitucionalismo moderno.
No constitucionalismo antigo existiam apenas constituições consuetudinárias, baseadas nos costumes e precedentes judiciais. Esclarecedoras são as palavras de Dirley da Cunha Júnior:
No constitucionalismo antigo, a noção de Constituição é extremamente restrita, uma vez que era concebida como um texto não escrito, que visava tão só à organização política de velhos Estados e a limitar alguns órgãos do poder estatal (Executivo e Judiciário) com o reconhecimento de certos direitos fundamentais, cuja garantia se cingia no esperado respeito espontâneo do governante, uma vez que inexistia sanção contra o príncipe que desrespeitasse os direitos de seus súditos. (2011, p. 8)
2.2.2 Constitucionalismo moderno
O constitucionalismo moderno abrange o período entre o final do século XVIII – com as revoluções liberais americana e francesa - e o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Nessa etapa do constitucionalismo, à ideia de limitação do poder político, soma-se a necessidade de proteção de direitos e garantias fundamentais. Como aduz Canotilho, o constitucionalismo moderno representa uma “técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos” (apud CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 37). Ou seja, a limitação do poder político estatal é alcançada a partir da consagração de direitos e garantias fundamentais oponíveis em face do Estado.
Frente à urgência de proteção dos direitos e garantias fundamentais, tornou-se indispensável a existência de ferramentas que obrigassem os Estados a respeitarem tais direitos. Foi nesse momento que surgiram as constituições escritas, trazendo em seus textos declarações de direitos acompanhados do respectivo modo de garantia.
Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior:
Assim, no constitucionalismo moderno, a Constituição deixa de ser concebida como simples aspiração política da liberdade para ser compreendida como um texto escrito e fundamental, elaborado para exercer dupla função: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio de uma declaração de direitos e garantias fundamentais. (2011, p. 38-39)
O constitucionalismo moderno pode se dividido em duas etapas: constitucionalismo liberal ou clássico e constitucionalismo social.
O constitucionalismo liberal ou clássico estendeu-se do final do século XVIII até o término da Primeira Guerra Mundial. Nessa etapa, fala-se em duas experiências constitucionais relevantes: a norte-americana e a francesa.
No constitucionalismo norte-americano, a limitação do poder político advinha de uma constituição escrita. Nesse momento, foi criada a primeira constituição escrita e dotada de rigidez: a constituição norte-americana de 1787. Esta constituição era caracterizada por ser extremamente concisa ou sintética.
Ao lado desta constituição, surgiram as ideias de supremacia constitucional e de controle de constitucionalidade, acompanhadas do fortalecimento do Poder Judiciário, já que cabia a ele realizar o controle de constitucionalidade das leis e, assim, garantir a supremacia da constituição.
Podem ser citadas, ainda, as seguintes contribuições do constitucionalismo estadunidense: a) consagração da forma federativa de Estado; b) criação do sistema presidencialista; c) adoção da forma republicana de governo e do regime político democrático; d) rígida separação e equilíbrio entre os poderes estatais (sistema do checks and balances).
No constitucionalismo francês, a limitação do poder do soberano decorria também de uma constituição escrita. Trata-se da segunda constituição escrita: a constituição francesa de 1791. Diferentemente da constituição norte-americana de 1787, esta constituição francesa era prolixa ou analítica.
Ao contrário do constitucionalismo norte-americano, em que vigorava a supremacia da constituição, no constitucionalismo francês destacava-se a supremacia do parlamento.
Podem ser elencadas, ainda, as seguintes heranças do constitucionalismo francês: a) separação entre os poderes estatais (ainda que sem a rigidez adotada nos Estados Unidos); b) distinção entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado; c) ideia de soberania nacional.
É importante ressaltar que na égide do constitucionalismo liberal ou clássico, foram consagrados nos textos constitucionais os direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão: os chamados direitos de liberdade. Esses direitos correspondem aos direitos civis e políticos. Os direitos civis são conhecidos na doutrina como direitos de defesa contra as interferências indevidas do Estado ou de terceiros; tais direitos exigem uma abstenção do Estado (direitos de caráter negativo – liberdades negativas). Já os direitos políticos são os direitos de participação, ativa ou passiva, na elaboração das decisões políticas e na gestão da coisa pública. Os direitos de primeira geração destinam-se à proteção do homem individualmente considerado, sendo, portanto, de titularidade individual.
O constitucionalismo social, por sua vez, estendeu-se do final da Primeira Guerra Mundial até o término da Segunda Guerra Mundial. Nessa etapa, destacam-se duas importantes manifestações constitucionais: a Constituição Mexicana (1917) e a Constituição de Weimar (1919).
Tais constituições têm como característica comum a consagração em seus textos de direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão: os chamados direitos de igualdade (não a igualdade formal, perante a lei, mas a igualdade de caráter material, substancial). Esses direitos correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais. Direitos que demandam prestações positivas do Estado para seu atendimento (direitos de caráter positivo). Os direitos de segunda geração destinam-se, à semelhança dos direitos de primeira geração, à proteção do homem individualmente considerado, sendo, portanto, de titularidade individual.
3 NEOCONSTITUCIONALISMO
O neoconstitucionalismo, também chamado por alguns doutrinadores de constitucionalismo contemporâneo, constitucionalismo avançado ou constitucionalismo de direitos, representa a fase atual do constitucionalismo[2].
Essa etapa contemporânea do constitucionalismo emergiu no Pós Segunda Guerra Mundial como resposta às atrocidades cometidas pelos regimes totalitários (a exemplo do nazismo) durante a guerra e, por esse motivo, inaugurou um novo direito constitucional fundado na dignidade da pessoa humana.
Esse é o ensinamento de Marcelo Novelino:
A perplexidade causada pelas terríveis experiências nazistas e pela barbárie praticada durante a guerra despertou a consciência coletiva sobre a necessidade de proteção da pessoa humana, a fim de evitar que pudessem ser reduzidas à condição de mero instrumento para fins coletivos ou individuais e impedir qualquer tipo de distinção em categorias hierarquizadas de seres humanos superiores e inferiores. Se por um lado essas experiências históricas produziram uma mancha vergonhosa e indelével na caminhada evolutiva da humanidade, por outro lado, foram responsáveis pela reação que culminou com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como núcleo central do constitucionalismo contemporâneo, dos direitos fundamentais e do Estado constitucional democrático. (2016, p. 52)
Objetivando proteger e promover a dignidade da pessoa humana, as constituições elaboradas nas últimas décadas preocuparam-se em consagrar em seus textos outras categorias de direitos fundamentais. Fala-se em direitos de terceira, quarta e quinta gerações.
Os direitos fundamentais de terceira geração ou dimensão são os chamados “direitos de fraternidade ou solidariedade”: são direitos de titularidade difusa e coletiva. A exemplo do direito ao desenvolvimento ou progresso, autodeterminação dos povos (art. 4º, CF/88), direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade, direito de comunicação (este último trazido por Paulo Bonavides).
Os direitos fundamentais de quarta geração ou dimensão englobam: democracia, informação e pluralismo (este último elencado por Paulo Bonavides). Dirley da Cunha Júnior e Noberto Bobbio acrescentam, ainda, os seguintes direitos: direito contra manipulações genéticas, direito à mudança de sexo e, em geral, os relacionados à biotecnologia.
Já os direitos de quinta geração ou dimensão, segundo Paulo Bonavides, resumem-se ao direito à paz. Alguns autores ainda defendem como direitos dessa geração os decorrentes das relações virtuais e da cibernética.
Apesar de terem sido consagrados novos grupos de direitos fundamentais, no neoconstitucionalismo a finalidade primordial é garantir a eficácia da Constituição, a concretização dos direitos fundamentais anteriormente positivados, das prestações materiais prometidas à sociedade, buscando tornar o texto constitucional menos retórico e mais efetivo. Ou seja, o objetivo principal não é prever mais direitos na Constituição, a preocupação central é efetivar/concretizar os que já foram previstos. Nesse ínterim, são estabelecidas normas programáticas, metas a serem atingidas pelo Estado, programas de governo, destacando-se a ideia de constituição dirigente ou programática.
Passe-se à análise das características do neoconstitucionalismo.
O neoconstitucionalismo caracteriza-se pela rematerialização constitucional. Isso significa dizer que as constituições contemporâneas tendem a ser prolixas ou analíticas, tratando de temas não essencialmente constitucionais, mas que adquirem status constitucional por estarem positivados na Constituição.
Reconhece-se à Constituição força normativa. A Constituição passa a ser vista como um conjunto de mandamentos e valores obrigatórios e vinculantes, que devem ser respeitados e realizados na prática.
Ao lado da característica anterior, e intrinsecamente relacionada a ela, acrescente-se o reconhecimento da Constituição como norma jurídica dotada de imperatividade e superioridade.
Nas palavras do doutrinador Luís Roberto Barroso:
Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.
Com a reconstitucionalização que sobreveio à 2ª Guerra Mundial, este quadro começou a ser alterado. Inicialmente na Alemanha e, com maior retardo, na Itália. E, bem mais à frente, em Portugal e na Espanha. Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado. A propósito, cabe registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na matéria não eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões de normatividade do constituinte, de um lado, e, de outro lado, as circunstâncias da realidade fática e as eventuais resistências do status quo.
O debate acerca da força normativa da Constituição só chegou ao Brasil, de maneira consistente, ao longo da década de 80, tendo enfrentado as resistências previsíveis. Além das complexidades inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica, padecia o país de patologias crônicas, ligadas ao autoritarismo e à insinceridade constitucional. Não é surpresa, portanto, que as Constituições tivessem sido, até então, repositórios de promessas vagas e de exortações ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. Coube à Constituição de 1988, bem como à doutrina e à jurisprudência que se produziram a partir de sua promulgação, o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada.[3] (grifo nosso)
Como herança do constitucionalismo norte-americano, destaca-se a ideia de supremacia da Constituição. A Constituição é entendida como o centro do sistema jurídico. Seu conteúdo é capaz de condicionar a validade de todo o Direito e de estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política. A Constituição, além de estar, do ponto de vista formal, no topo do ordenamento jurídico, é também paradigma interpretativo de todos os ramos do Direito.
Nesse ínterim, Luís Roberto Barroso aduz:
Antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania do Parlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral. A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe não apenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiência americana: o da supremacia da Constituição. A fórmula envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados em relação ao processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário. Inúmeros países europeus vieram a adotar um modelo próprio de controle de constitucionalidade, associado à criação de tribunais constitucionais.[4]
Essa supremacia constitucional decorre especialmente do conteúdo axiológico que a constituição carrega. As constituições contemporâneas incorporaram explicitamente valores e opções políticas, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais e do bem-estar social.
Esclarecedoras são as palavras de Ana Paula de Barcellos:
As Constituições contemporâneas, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, introduziram de forma explícita em seus textos elementos normativos diretamente vinculados a valores - associados, em particular, à dignidade humana e aos direitos fundamentais - ou a opções políticas gerais (como a redução das desigualdades sociais) e específicas (como a prestação, pelo Estado, de serviços de educação). A introdução desses elementos pode ser compreendida no contexto de uma reação mais ampla a regimes políticos que, ao longo do Século XX, substituíram os ideais iluministas de liberdade e igualdade pela barbárie pura e simples, como ocorreu com o nazismo e o fascismo. Mesmo onde não se chegou tão longe, regimes autoritários, opressão política e violação reiterada dos direitos fundamentais foram as marcas de
muitos regimes políticos ao longo do século passado.
Com a superação desses regimes, diversos países decidiram introduzir em seus textos constitucionais elementos relacionados a valores e a opções políticas fundamentais, na esperança de que eles formassem um consenso mínimo a ser observado pelas maiorias. Essa esperança era reforçada - e continua a ser - pelo fato de tais elementos gozarem do status de norma jurídica dotada de superioridade hierárquica sobre as demais iniciativas do Poder Público. Por esse mecanismo, então, o consenso mínimo a que se acaba de referir passa a estar fora da discricionariedade da política ordinária, de tal modo que qualquer grupo político deve estar a ele vinculado.[5]
Dirley da Cunha Júnior complementa:
A emergência do neoconstitucionalismo logrou propiciar o reconhecimento da dupla dimensão normativo-axiológico das Constituições contemporâneas, ensejando a consolidação de uma teoria jurídica material ou substancial assentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais. Nesse contexto, o discurso jurídico, antes associado a uma concepção formal e procedimentalista, evolui para alcançar uma vertente substancialista preocupada com a realização dos valores constitucionais.
[...]
Essa evolução de paradigma, com o reconhecimento da centralidade das Constituições nos sistemas jurídicos e da posição central dos direitos fundamentais nos sistemas constitucionais, tem propiciado o fortalecimento da posição, de há muito sustentada por nós, em defesa da efetividade dos direitos fundamentais sociais e do controle judicial das políticas públicas. (2011, p. 42-43)
Como forma de assegurar a supremacia da constituição, fez-se necessário o fortalecimento do Poder Judiciário. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, verifica-se o avanço da justiça constitucional sobre o espaço reservado ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo.
Dessa ascensão institucional experimentada pelo Poder Judiciário, decorre o tema do ativismo judicial, que será tratado com maior profundidade no próximo capítulo. Por ora, basta entender que o ativismo judicial está relacionado à participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.
O reconhecimento da centralidade da Constituição no ordenamento jurídico acompanhado do “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico”[6], tem sido rotulado pela expressão “constitucionalização do direito”.
É possível falar em quatro aspectos que caracterizam a constitucionalização do direito:
1º) consagração cada vez maior de normas de outros ramos do Direito no texto constitucional;
2º) interpretação das normas de outros ramos do Direito à luz da Constituição: a chamada “filtragem constitucional”;
Sobre a filtragem constitucional, elucida Luís Roberto Barroso:
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si - com a sua ordem, unidade e harmonia - mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.[7]
3º) eficácia horizontal dos direitos fundamentais: os direitos e garantias fundamentais, inicialmente voltados apenas para as relações entre o Estado e os particulares (eficácia vertical), passam a ser aplicados também às relações entre particulares (eficácia horizontal), independentemente de intermediação legislativa.
4º) limitação do legislador: o legislador, no exercício da atividade legislativa, encontra-se submetido à Constituição, isso porque a validade das leis dependem tanto da sua forma de sua produção, como também da compatibilidade de seus conteúdos com os princípios e regras constitucionais. Ou seja, a lei deve não só observar a forma prescrita na Constituição, mas, acima de tudo, estar em consonância com o espírito, o seu caráter axiológico e os seus valores destacados.
Ao mesmo tempo em que a constitucionalização do direito limita a discricionariedade do Legislativo ou a liberdade de conformação na elaboração das leis em geral, a constitucionalização também impõe ao Legislativo determinados deveres de atuação para realização de direitos e programas constitucionais.
Luís Roberto Barroso alerta ainda que a constitucionalização do direito repercute sobre a atuação da Administração Pública e do Poder Judiciário:
No tocante à Administração Pública, além de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor a ela deveres de atuação, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário, (i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele desempenhado (incidental e por ação direta), bem como (ii) condiciona a interpretação de todas as normas do sistema. [8]
Com o neoconstitucionalismo, foi estruturada uma nova dogmática de interpretação constitucional (“nova hermenêutica constitucional” ou “nova interpretação constitucional”). Como explica Luís Roberto Barroso, ante as especificidades das normas constitucionais, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram ou sistematizaram um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. São eles: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.
Barroso alerta, entretanto, que o fato de existir princípios específicos aplicáveis à interpretação constitucional, não significa dizer que os métodos tradicionais de interpretação do Direito (como o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico) não têm aplicabilidade na interpretação da constituição.
Esclarecedoras são as palavras do doutrinador:
Antes de prosseguir, cumpre fazer uma advertência: a interpretação jurídica tradicional não está derrotada ou superada como um todo. Pelo contrário, é no seu âmbito que continua a ser resolvida boa parte das questões jurídicas. Provavelmente a maioria delas. Sucede, todavia, que os operadores jurídicos e os teóricos do Direito se deram conta, nos últimos tempos, de uma situação de carência: as categorias tradicionais da interpretação jurídica não são inteiramente ajustadas para a solução de um conjunto de problemas ligados à realização da vontade constitucional. A partir daí deflagrou-se o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias, agrupados sob a denominação de nova interpretação constitucional, que se utiliza de um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico.[9]
Por último, mas não menos importante, reconheceu-se normatividade aos princípios. O reconhecimento da força normativa dos princípios tem propiciado a reaproximação entre o Direito e a Ética, o Direito e a Moral, o Direito e a Justiça e demais valores substantivos.
Do exposto, conclui-se que o neoconstitucionalismo representa um amplo conjunto de modificações ocorridas no Estado e no Direito Constitucional.
Ante o exposto, conclui-se que, a despeito das especificidades dos diversos movimentos constitucionais, o constitucionalismo sempre esteve centrado no ideal da limitação do poder estatal. Essa preocupação em construir um modelo de organização política fundada na limitação do poder é observada desde a antiguidade clássica até os dias atuais.
À medida que o movimento constitucional foi evoluindo, novas demandas foram somando-se à busca da limitação do poder político. Com o constitucionalismo moderno, incluiu-se a proteção dos direitos e garantias fundamentais. E com o neoconstitucionalismo, acrescentou-se a concretização dos direitos fundamentais anteriormente positivados.
REFERÊNCIAS
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43620/44697>.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 5.ed. Salvador: JusPodivm, 2011.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 11.ed. Salvador: JusPodivm, 2016.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] No constitucionalismo antigo, a noção de constituição era de um conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o governante e simultaneamente limitadores do poder, ou seja, a noção de constituição era extremamente restrita, uma vez que era concebida como um texto não escrito.
[2] “O prefixo neo parece transmitir a idéia de que se está diante de um fenômeno novo, como se o constitucionalismo atual fosse substancialmente diverso daquilo que o antecedeu. De fato, é possível visualizar elementos particulares que justificam a sensação geral compartilhada pela doutrina de que algo diverso se desenvolve diante de nossos olhos e, nesse sentido, não seria incorreto falar de um novo período ou momento no direito constitucional. Nada obstante isso, fenômeno humano e histórico que é, o constitucionalismo contemporâneo está ligado de forma indissociável a sua própria história (...)”. BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43620/44697>. Acesso em: 08 dez. 2017.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 04 dez. 2017.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 04 dez. 2017.
[5] BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43620/44697>. Acesso em: 08 dez. 2017.
[6] É a conceituação trazida por Luís Roberto Barroso.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 04 dez. 2017.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 04 dez. 2017.
[9] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no brasil. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 04 dez. 2017.
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILLARIM, Cláudio Colaço. Do constitucionalismo antigo ao neoconstitucionalismo: evolução histórica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51662/do-constitucionalismo-antigo-ao-neoconstitucionalismo-evolucao-historica. Acesso em: 05 nov 2024.
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