RODRIGO FRESCHI BERTOLO
(Orientador)[1]
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a possível inconstitucionalidade da imposição do regime da separação de bens às pessoas maiores de setenta anos que contraem matrimônio, abordando a ofensa a princípios constitucionais inerentes à pessoa, como a dignidade, liberdade e igualdade. Via de regra, o Código Civil brasileiro prevê a livre escolha do regime de bens, salvo nos casos em que o próprio diploma impõe o da separação obrigatória, visando uma proteção meramente patrimonial, hipótese que se enquadra o idoso com mais de setenta anos e, também, apenas fundamentada na idade dos contraentes. Ainda se discute a capacidade e a restrição à autonomia da pessoa maior de setenta anos por meio de estudos doutrinários e jurisprudenciais, bem como a obrigatoriedade do regime da separação de bens vista como uma tutela desnecessária ao idoso, a qual cerceia a sua liberdade e autodeterminação, além de violar o princípio da afetividade que norteia o casamento nos dias atuais.
Palavras-chave: Separação Obrigatória de Bens; Dignidade da Pessoa Humana; Liberdade; Idoso; Inconstitucionalidade.
ABSTRACT: The objective of this article is to analyze the possible unconstitutionality of the imposition of the regime of the separation of goods to people over seventy years who contract marriage, addressing the offense to constitutional principles inherent to the person, such as dignity, freedom and equality. As a general rule, the Brazilian Civil Code provides for the free choice of the property regime, except in cases where the law itself imposes that of compulsory separation, aiming at a merely patrimonial protection, a hypothesis that fits the elderly with more than seventy years and, also based solely on the age of the contractors. The capacity and restriction of the autonomy of the person over seventy years of age through doctrinal and jurisprudential studies, as well as the obligation of the separation of property regime seen as an unnecessary guardianship to the elderly, which limits their freedom and self-determination , as well as violating the principle of affection that guides marriage in the present day.
Key words: Compulsory Separation of Goods; Dignity of Human Person; Freedom; Elderly. Unconstitutionality.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 2.1 A autonomia da vontade e a autodeterminação pessoal. 2.2 Da violação à liberdade e à igualdade e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 2.3 O princípio da afetividade e o afeto como direito da personalidade. 2.4 A tutela ao idoso no plano jurídico brasileiro.8 3 O CASAMENTO E A LIVRE ESCOLHA DO REGIME DE BENS. 3.1 O regime obrigatório da separação de bens. 3.1.1 Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. 3.2 Da união estável celebrada por pessoa maior de 70 anos. 4 A INCAPACIDADE NO CÓDIGO CIVIL E A RESTRIÇÃO À CAPACIDADE DO IDOSO. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O casamento indica uma plena comunhão de vida entre duas pessoas, as quais, em virtude do vínculo estabelecido, se tornam companheiras e corresponsáveis pelas tarefas familiares. Sob a ótica civil constitucional corrente, o casamento está envolto pelo princípio da afetividade, o que se contrapõe diretamente ao patrimonialismo característico do Código Civil (CC) de 1916.
O atual Diploma Civil Brasileiro de 2002 trouxe como princípios norteadores das relações civis a socialidade, a eticidade e a operabilidade, buscando, desta forma, suplantar a acentuada proteção patrimonial do Código anterior. Entretanto, muito embora o matrimônio não deva vislumbrar conteúdo econômico direto, resta impossível não reconhecer a presença de efeitos patrimoniais advindos da vida em comum.
Logo surge a necessidade da existência de um regime de bens capaz de regular as relações econômicas do casamento. Como regra geral, o Código Civil contempla a liberdade de escolha no que se refere ao regime de bens, estando, portanto, livre no ordenamento jurídico a opção do regime para o casamento. Ressalvados, todavia, os casos de imposição pela lei do regime obrigatório da separação de bens, afastando a livre deliberação e imperando a determinação legal.
Com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, responsável por grandes renovações dogmáticas, as normas civilistas foram essencialmente atingidas, revelando a indispensabilidade de operar sob a égide dos valores constitucionais, atendendo às referências normativas e principiológicas adotadas pela Carta Magna, sob pena de ferir a sua supremacia e trazer disposições inconstitucionais.
Posto isto, o presente artigo tem como propósito tratar acerca da inconstitucionalidade do regime obrigatório da separação de bens imposto às pessoas maiores de 70 (setenta) anos, previsto no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil brasileiro. Tendo como fundamento o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, da Liberdade e da Igualdade, além de outros direitos da personalidade e princípios que guiam o casamento e o regime de bens.
bordando, ainda, a capacidade para os atos da vida civil e destacando o colateral entre a autonomia da vontade e a proteção meramente patrimonial almejada no caso em tela pelo legislador civilista, violando os direitos fundamentais reportados na Lei Maior e contrariando até mesmo a ideia de um Código Civil voltado para o existencialismo.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição Federal de 1988 prontamente em seu preâmbulo assegurou a liberdade e a igualdade como valores supremos para uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, e, logo em seu artigo 1º, inciso III, proclamou a Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos da República, a qual se tornou um princípio basilar e norteador de onde derivam todos os outros princípios do ordenamento jurídico brasileiro.
A supremacia deste resta evidenciada pelos ensinamentos de Dias (2015, p. 44), “O princípio da dignidade humana é o mais universal de todos os princípios. É um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos.” (grifos dos autores).
A dignidade da pessoa humana não se trata apenas de um valor moral, mas também espiritual intrínseco à pessoa, de tal forma que todo o ser humano deve ser provido desta. O princípio em questão tem sua importância assegurada notoriamente desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a qual criou normas de amparo e proteção ao homem.
A busca pelo bem-estar tanto individual quanto familiar e social se qualifica através dos sentimentos e esforços da pessoa humana, devendo-lhe ser garantidos os direitos necessários para viver com dignidade, como por exemplo, direito à liberdade, à formação de uma família, à vida, à igualdade.
Destarte, é certo dizer que o direito de família está intimamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana. No tocante ao assunto, assegura Gonçalves (2012, p. 27), “O direito de família é o mais humano de todos os ramos do direito.” Cenário onde o referido princípio é o responsável por constituir a base do corpo familiar, propiciando o mais amplo desenvolvimento de todos os seus membros.
Embora a realidade social dificulte as condições para que as pessoas se realizem como cônjuges, pais, filhos, idosos, a dignidade verificada na autodeterminação da própria vida, precisa, necessariamente, ser considerada.
Revela-se, assim, que, qualquer família deve ser formada de modo digno, recebendo tratamento igualitário no que concerne à sua constituição, possibilitando a realização pessoal e social de seus integrantes.
A temática sobre a inconstitucionalidade da norma que impõe o regime obrigatório da separação de bens aos maiores de 70 (setenta) anos, lesiona frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como outros que dele derivam.
Considerando que o mencionado princípio é o cerne dos direitos da personalidade, os quais visam a valorização da pessoa, sendo indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, inatos e necessários, não podendo sofrer quaisquer violações tendentes a agredir à pessoa e à sua dignidade, a observância da autodeterminação pessoal na escolha do regime de bens se torna indispensável para a sua efetiva concretização, o que será tratado a seguir.
2.1 A autonomia da vontade e a autodeterminação pessoal
A valorização da pessoa humana se intensificou por volta do século XX, no período pós-guerra mundial, trazendo uma maior preocupação com a dignidade daquela. Consequentemente se careceu de mecanismos garantidores propensos a viabilizar os direitos de existência que formam a dignidade da pessoa humana.
Neste contexto, há que se mencionar que os direitos fundamentais adquiriram papel significativo nas relações pessoais, contribuindo para que os ideais de constitucionalização fossem aplicados ao direito civil. Assim sendo, o poder da pessoa em exprimir a sua vontade fora alargado, possibilitando a escolha daquilo que julgasse o melhor para a sua vida. Significou o ganho de autonomia em questões que permitiam o exercício da liberdade.
A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito do indivíduo de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente sua personalidade. Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. (BARROSO, 2010, p. 24).
Com um direito civil constitucional, a vontade da pessoa humana se colocou em evidência, enfraquecendo prováveis limitações a esta. Além do mais, os direitos fundamentais previstos na Constituição exigem normas que privilegiem a pessoa, sobretudo a observância de sua vontade e autodeterminação.
Resta claro, pois, que o direito tem buscado assegurar a vontade da pessoa humana sempre que possível, até mesmo em questões de cunho patrimonial, como por exemplo, aquelas pertinentes ao regime de bens. Portanto, a imposição de um regime obrigatório para a pessoa com idade superior a 70 (setenta) anos que deseja convolar matrimônio se torna completamente injustificável, haja vista que configura uma verdadeira limitação à sua vontade e à sua autodeterminação, contrariando os princípios inscritos na Lei Maior.
2.2 Da violação à liberdade e à igualdade e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais, prescreve no caput que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurando a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre outros.
A igualdade perante a lei se traduz pela sábia fala do filósofo grego Aristóteles, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.” Ainda, nas palavras de Moraes (2003, p. 50), [...] “todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico.” Enquanto que o direito à liberdade busca permitir que o cidadão pratique, livremente, qualquer ato, desde que não contrário a lei. Maria Berenice Dias, em seu artigo Novos Rumos do Direito das Famílias, sabiamente pondera:
A Constituição Brasileira, do ano de 1988, é considerada uma das mais avançadas do mundo. Impõe como valor maior o respeito à dignidade humana baseado nos princípios fundamentais da liberdade e da igualdade. Considera a família a base da sociedade e veda qualquer espécie de discriminação (não datado e não paginado).
Com tais valores defendidos amplamente na Carta Magna, o direito civil, especialmente em sua parte de família, sofreu alterações importantes, se desprendendo do caráter patrimonialista imposto nas relações civis reguladas pelo Código de 1916 e buscando a realização pessoal.
Apesar disso, não é possível afirmar que o atual diploma civil superou completamente a patrimonialização das relações civilistas. A imposição do regime da separação obrigatória de bens em razão da idade, por exemplo, constitui uma norma de perspectiva exclusivamente patrimonial, deixando de considerar o afeto e desrespeitando gravemente os direitos inerentes ao ser humano. Além de ofender a dignidade da pessoa, restringe a sua liberdade de celebrar casamento.
Como resultado, tem-se o tratamento daquele com mais de 70 (setenta) anos de jeito desigual se comparado às pessoas mais jovens, o que, indiscutivelmente, restringe a liberdade na escolha do regime de bens que regulará as relações patrimoniais provenientes de seu casamento.
Assim como já explanado, os direitos fundamentais estão intimamente ligados à liberdade e à igualdade e necessitam ser observados tanto nas relações entre Estado e indivíduo quanto nas relações entre particulares. Daí surge a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cuja aplicabilidade é imediata, reconhecendo que as desigualdades não se situam apenas no liame Estado/ indivíduo, mas também, entre particulares, nas relações privadas.
Nessa perspectiva, ensina Lenza (2016, p. 1165), [...] “alguns direitos fundamentais podem ser aplicados às relações privadas sem que haja a necessidade de “intermediação legislativa” para a sua concretização.”
Ora, se a pessoa com idade inferior a 70 (setenta) anos pode escolher livremente o regime de bens que regulará o seu casamento, não parece coerente impor à pessoa que já ultrapassou esta idade um regime que visa tão somente a proteção de seu patrimônio. A não eficácia dos direitos fundamentais de forma horizontal, resta, pois, evidente.
2.3 O princípio da afetividade e o afeto como direito da personalidade
O ser humano é resultado de uma carga valorativa construída no decorrer de sua vida, a qual se edifica por meio de inúmeros fatores, como o convívio social, a família, o patrimônio, entre outros. Cada vez mais é possível observar que esses fatores são organizados levando em consideração o afeto.
Com o princípio da dignidade humana amplamente assegurado pela Carta Magna de 1988, reconhecer o afeto como valor inerente à condição humana é imprescindível, já que uma vida digna, depende, também, de relações baseadas em reciprocidade, amor, cuidado. Assim, o afeto, figura como um legítimo direito da personalidade, o qual pode ser entendido como aqueles direitos voltados à promoção da pessoa na defesa de sua dignidade e essencialidade.
Atualmente, com o propósito de propiciar a igualdade de tratamento e respeito às características individuais, igualmente o bem-estar dos membros da família, as relações familiares passaram a ser fundadas no afeto, e, muito embora a Constituição não trate sobre a afetividade de forma explícita, inegável que além de ser fruto da dignidade humana, também decorre da solidariedade.
Ao passo que a legislação brasileira entendeu que a união estável merece respaldo jurídico e firmou seu reconhecimento como entidade familiar, a afetividade, como consequência, se inseriu no ordenamento jurídico. Outro ponto substancial é a crescente superação dos laços biológicos para a constituição de uma família, o reconhecimento da igualdade de filiação, não se permitindo a diferenciação entre filhos biológicos e socioafetivos, consagrou definitivamente o afeto como um direito fundamental.
Nesse contexto, cabe mencionar importante julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da repercussão geral da socioafetividade, (RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21 e 22.09.2016, publicado no Informativo n. 840 do STF) que, entre outras questões, afirmou juridicamente a imposição do vínculo socioafetivo e reconheceu ser a efetividade um princípio presente no sistema civil-constitucional brasileiro.
A afetividade viabiliza a dignidade da pessoa humana e reafirma a valorização da solidariedade almejada pela Lei Maior, além do mais, no direito de família, as relações surgidas da livre manifestação têm como característica principal a apreciação do afeto, deixando de lado os antigos ideais patrimonialistas insculpidos na entidade familiar.
Há que se referir ainda que, o afeto passou a ter valor jurídico, sendo considerado um direito essencial da pessoa, logo, um direito subjetivo da personalidade, o qual introduziu a afetividade como princípio fundamental das relações familiares.
2.4 A tutela ao idoso no plano jurídico brasileiro
A Constituição Federal brasileira, além de eleger o princípio da dignidade da pessoa humana como norte de toda a legislação vigente, na busca pela proteção do indivíduo, constituiu como um dos objetivos fundamentais da República Federativa a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme disposição de seu artigo 3º, inciso IV.
O caput do artigo 230, por exemplo, evidencia o princípio da igualdade, vedando a discriminação por idade ao dispor que: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando a sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
Pertinente ao assunto, em 1º de outubro de 2003, por meio da Lei n. 10.741, foi instituído o Estatuto do Idoso, considerado um grande avanço nas práticas tendentes a materializar os comandos constitucionais protetivos da classe. Seguindo os referenciais supremos da Constituição, o artigo 4º, do referido Estatuto, também veda expressamente a discriminação ao idoso.
Posto isto, fica evidente que o ordenamento jurídico brasileiro garante uma farta tutela àquele, outro exemplo são as disposições da Lei n. 8.842/94, responsável pela criação da Política Nacional do Idoso. Contudo, lamentável é o descumprimento dos ditames aqui discutidos, pois, nota-se que, a própria legislação civil, por vezes, limita a proteção conferida constitucional e infraconstitucionalmente ao idoso.
Trata-se essencialmente da disposição contida no artigo 1.641, inciso II, CC, a qual, ao estabelecer o regime obrigatório da separação de bens ao maior de 70 (setenta) anos, acaba por discriminar a pessoa em virtude da idade, e, ainda, presume a redução de seu discernimento.
3 O CASAMENTO E A LIVRE ESCOLHA DO REGIME DE BENS
Sob a atual perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, com atenção especial ao direito de família, o casamento, por agregar valores e tradições, está sujeito a inúmeras variações ao longo do tempo. Assim, Venosa ensina (2017, p. 40), “Evidentemente, a conceituação de casamento não pode ser imutável.”
Ainda que passível de futuras alterações conceituais, o casamento pode ser entendido como a união entre duas pessoas, baseada em um vínculo afetivo e reconhecida pelo Estado, cujo objetivo é a constituição de uma família.
Hodiernamente, o casamento tende a privilegiar a realização pessoal fundada no convívio, no afeto e na solidariedade, colocando sua função econômica, por exemplo, em segundo plano. Entretanto, ainda que não evidenciado de pronto, os efeitos econômicos do casamento necessitam da eleição de um regime de bens.
Regime de bens é o conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal (GONÇALVES, 2012, p. 380).
O caput do artigo 1.639, CC, preceitua que: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.” Ainda, o parágrafo único, do artigo 1.640, do mesmo dispositivo, estabelece a possibilidade de os nubentes optar, no processo de habilitação, por qualquer dos regimes estipulados no código. À vista disso, a legislação civil contempla a livre escolha como um dos mais importantes princípios do regime de bens.
Sendo assim, tais dispositivos enunciam, nas palavras de Gonçalves (2012, p. 388) [...] “liberdade de escolherem os nubentes o que lhes aprouver quanto aos seus bens, fundado na ideia de que são eles os melhores juízes da opção que lhes convém, no tocante às relações econômicas a vigorar durante o matrimônio.”
3.1 O regime obrigatório da separação de bens
Conforme já abordado, o regime obrigatório da separação de bens se revela como uma autêntica exceção à autonomia da vontade e à livre escolha que permeia o regime de bens. Trata-se de situações que a lei impõe o respectivo regime, impedindo a manifestação dos contraentes.
Nesse sentido, dispõe o artigo 1.641, do Código Civil, in verbis: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”
Tendo em vista que a temática essencial desse artigo é a inconstitucionalidade da imposição do regime da separação de bens às pessoas maiores de 70 (setenta) anos, importante somente o inciso II, do supracitado artigo. Cabe aclarar ainda que, a redação original da lei previa a obrigatoriedade do regime da separação de bens às pessoas maiores de 60 (sessenta anos), tendo sido alterada somente em 2010, pela Lei n. 12.344. A alteração para 70 (setenta) anos mostra um avanço legislativo, mas ainda assim, não se justifica.
A imposição assume caráter protetivo, cujo objetivo do legislador é impedir a realização de casamento motivado exclusivamente por questões e interesses econômicos.
Das várias previsões que visam negar efeitos de ordem patrimonial ao casamento, nenhuma delas justifica o risco de gerar enriquecimento sem causa. Porém, das hipóteses em que a lei determina o regime de separação obrigatória de bens, a mais desarrazoada é a que impõe tal sanção aos nubentes maiores de 70 anos (CC 1.641 II), em flagrante afronta ao Estatuto do Idoso. A limitação da vontade, em razão da idade, longe de se constituir em uma precaução (norma protetiva), se constituiu em verdadeira sanção (DIAS, 2015, p. 327).
Além do mais, a norma em questão contraria comandos constitucionais importantes, veja:
A hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente, é inconstitucional este ônus (LÔBO, p. 242-243 apud GONÇALVES, 2012, p. 402).
O caráter protetivo da norma acaba por configurar a redução da capacidade do idoso, todavia, a plena capacidade metal deve ser observada em cada caso concreto, sendo inadmissível que a lei a presuma de forma geral. Há que se colocar que a idade não representa, necessariamente, a perda de discernimento.
3.1.1 Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal
Quando ainda vigia o Código Civil de 1916 no ordenamento jurídico brasileiro, o regime da separação obrigatória de bens já era alvo de críticas, a julgar pela incomunicabilidade dos bens particulares e principalmente pela não sujeição dos aquestos (bens adquiridos durante a vida em comum) à comunicabilidade, sequer questionando a participação mútua na aquisição.
Ao ponderar sobre uma possível distorção da proteção almejada pelo referido regime, a jurisprudência da época passou a admitir a comunicação dos bens adquiridos à título oneroso na constância do matrimônio, o que levou o STF a editar a Súmula 377, com o seguinte texto: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.” Fato que enfraqueceu consideravelmente o regime em deslinde.
Mesmo com o declínio do regime da separação obrigatória, o Código Civil de 2002 voltou a empregar a norma em seu artigo 1.641, inciso II, diferindo-se de seu antecessor no limite unificado de idade, sem diferenciação de sexo. Nesse cenário:
A alegação é que o Código atual simplesmente desprezou a orientação da justiça e derrogou a súmula. Assim, para determinar a repartição dos aquestos, seria necessária a prova da efetiva colaboração na aquisição do patrimônio. Porém, a súmula não havia sido editada em razão ele indigitada previsão legal. Seu fundamento é que a convivência leva à presunção do esforço comum na aquisição de bens. Procurou a justiça amenizar os efeitos nefastos da lei que pune quem desobedece à injustificável recomendação de não casar. (DIAS, 2015, p. 332).
Por conseguinte, o diploma entrou no ordenamento jurídico contradizendo os atuais valores sociais e ignorou o entendimento do Supremo, suscitando dúvidas quanto à aplicabilidade da súmula e dividindo opiniões doutrinárias e jurisprudenciais até hoje, principalmente porque ao prever a comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, haverá algo parecido com o regime da comunhão parcial de bens.
3.2 Da união estável celebrada por pessoa maior de 70 anos
Imprescindível trazer que a união estável tem previsão constitucional. O artigo 226, § 3º, da Constituição Federal disciplina que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
O que muito se discute é se na união estável celebrada por pessoa maior de 70 (setenta) anos incide, assim como no casamento, a regra do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, o qual impõe o regime da separação de bens.
Observando o artigo 1.725, do Código Civil, fica demonstrado que o regime da comunhão parcial de bens é o aplicado nas relações patrimoniais decorrentes da união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros.
Porém, dada a equiparação da união estável ao casamento, principalmente no tocante à sucessão, tem-se entendido que as mesmas regras pertinentes ao casamento devem ser aplicadas à união estável. Pois bem, se a pessoa com mais de 70 (setenta) anos de idade ao contrair matrimônio tem a imposição do regime da separação obrigatória de bens, a mesma imposição restará para o idoso que venha celebrar união estável. Esse é o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nesse sentido, tem-se uma importante decisão do STJ a respeito do assunto: (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, segunda seção, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015).
Assim como no casamento, impor a separação obrigatória de bens para o maior de 70 (setenta) anos que vem a realizar união estável, afronta princípios constitucionais fundamentais, além de cercear a livre escolha e reduzir a capacidade do idoso.
Por outro lado, caso haja união estável antecedente ao casamento do idoso, ou seja, se o casal já vivia um relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens, deixa de ser obrigatório o regime da separação, trata-se de decisão unânime da Quarta Turma do do STJ ao julgar um caso com a questão.
Como justificativa para a não aplicação da separação obrigatória, há o fato de que, durante a união estável, o regime é o da comunhão parcial de bens, assim, ao optar pelo casamento, a imposição de um regime mais gravoso seria completamente ilógica.
4 A INCAPACIDADE NO CÓDIGO CIVIL E A RESTRIÇÃO À CAPACIDADE DO IDOSO
No atual diploma civil brasileiro toda pessoa é capaz de direitos e deveres, e, a partir do nascimento com vida se inicia a personalidade civil , estando ela apta a avocar deveres e obrigações tal qual a contrair direitos. A capacidade de fato, ou seja, a plena capacidade civil é adquirida com a maioridade, quando se completa 18 (dezoito) anos e a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Dá-se que, uma vez adquirida a capacidade plena, essa só pode ser afastada em casos expressamente previstos na lei, nos quais as pessoas sofrem limitações ao exercício daquela, pois não possuem aptidão para praticar os atos da vida civil, evidenciando assim, sua incapacidade.
Conforme o artigo 3º do Código Civil, a única hipótese de incapacidade absoluta diz respeito ao exercício de atos civis pelo menor de 16 (dezesseis) anos, o qual necessita de representação. Por outro lado, o artigo 4º do mesmo diploma, estabelece as situações de incapacidade relativa, as quais possibilitam o exercício de atos da vida civil desde que mediante assistência e se referem aos maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos, aos ébrios habituais e viciados em tóxico, aos que não puderem exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente e aos pródigos.
Deste modo, é possível observar que tais pessoas têm sua capacidade restringida (parcial ou totalmente) e o impedimento da prática de atos civis de forma livre gera um condicionamento à vontade do assistente ou representante legal do incapaz. Visa-se resguardar os interesses deste, a fim de que não realize atos prejudiciais, levando em consideração sua idade, seu incompleto desenvolvimento intelectual, bem como a sua sanidade mental atingida por vícios, patologias, etc.
Nota-se que, em nenhuma das circunstâncias mencionadas acima se encontra a pessoa com idade superior a setenta (70) anos, o que leva a deduzir que o implemento da idade não acarreta a perda da capacidade de fato.
Posto isto, não se justifica considerar como incapaz, por decorrência da idade um pouco mais avançada, o maior de setenta (70) anos, não havendo motivação hábil a sustentar a imposição de um regime de bens que além de ferir a autonomia da pessoa, se perfaz de forma autoritária.
A capacidade civil na legislação brasileira não cessa em razão da idade, completados 18 (dezoito) anos, caso não incidam as hipóteses dos artigos 3º e 4º do Código Civil, a pessoa gozará de capacidade até a sua morte. À vista disso, ao impor o regime de separação de bens, a lei restringe a capacidade do idoso, presumindo que sua idade o torna inapto ao exercício dos atos da vida civil.
Tal imposição acaba por furtar a liberdade de escolha do regime de bens que a pessoa maior de setenta (70) anos considera mais apropriado para reger as relações patrimoniais provenientes de seu matrimônio, e, consequentemente, lhe trata como se fosse incapaz, conferindo tratamento diferenciado em relação às demais pessoas, ferindo o princípio da igualdade amplamente defendido pela Constituição Federal.
5 CONCLUSÃO
Diante ao exposto resta claro que o regime obrigatório da separação de bens, previsto no artigo 1.641, do Código Civil, apresenta disposições autoritárias, que se preocupam exclusivamente com o patrimônio, revelando características da lei civilista anterior, e, que além de contrariar princípios da Constituição Federal, coloca em questionamento os pilares interpretativos da própria legislação civil atual.
A imposição do referido regime aos maiores de 70 (setenta) anos que contraem matrimônio (inciso II, art. 1.641, CC), assunto fim do presente artigo, tem como argumento a proteção ao idoso, impedindo que o casamento seja motivado exclusivamente por fins econômicos. Todavia, tal imposição configura uma ofensa direta à livre escolha do regime de bens que vigora no diploma civil e anula previsões constitucionais importantes.
Ao tratar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Carta Magna e alicerce das demais normas, o regime obrigatório da separação de bens se coloca contra o mesmo, violando direitos fundamentais de liberdade, de igualdade, e cerceando a autonomia pessoal do indivíduo.
Além do mais, a imposição feita aos maiores de 70 (setenta) anos constitui verdadeira discriminação motivada tão somente pela idade, restringindo a capacidade do idoso, tratando-o como se incapaz fosse. Sem parâmetros e desconsiderando a individualidade do ser humano, a lei entende que ao atingir esta idade, a pessoa deixa de ter discernimento e não pode mais escolher por si só o regime que regulará as relações patrimoniais de seu casamento.
O regime obrigatório da separação de bens revela um paternalismo exagerado, o qual fere a autodeterminação pessoal e deixa de considerar o afeto e a vontade como diretrizes das relações familiares, o que não condiz com a aplicação da principiologia constitucional.
Posto isto, é possível concluir que a disposição em tela é inconstitucional, principalmente por privilegiar a tutela patrimonial em detrimento da dignidade da pessoa humana. Ademais, constitui uma discriminação insustentável em razão da idade, constrangendo o idoso pessoal e socialmente e tornando-o inerte em face de um patrimônio construído e preservado por ele mesmo até então.
REFERÊNCIAS
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[1] Docente do curso de Direito - Universidade Brasil. [email protected]
Graduanda do curso de Direito - Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALGARO, Nayne Rodrigues. A inconstitucionalidade do regime obrigatório da separação de bens às pessoas maiores de 70 anos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51765/a-inconstitucionalidade-do-regime-obrigatorio-da-separacao-de-bens-as-pessoas-maiores-de-70-anos. Acesso em: 04 nov 2024.
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