Resumo: O presente estudo se insere no campo do Direito Processual Civil e discute a natureza da competência definida no momento do ajuizamento de uma dada ação individual de consumo nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais brasileiros, insertos nos foros regionais. Na primeira parte do estudo, são apresentados fundamentos doutrinários relacionados ao instituto processual da competência, seus conceitos, classificações, critérios de determinação e distribuição, bem como as divergências doutrinárias existentes no que concerne a esta temática. Na segunda parte são analisadas, através de estudo da legislação, da doutrina e da jurisprudência brasileiras as regras de competência inseridas na Lei n° 9.099/95, com especial atenção para a diferença entre a competência territorial absoluta e a competência funcional. Na terceira e última parte, utilizam-se as noções e fundamentos ofertados nas duas primeiras partes para solucionar a divergência doutrinária referente à natureza da competência das causas de consumo propostas nos Juizados Especiais Cíveis, insertos nos foros regionais, bem como as consequências da natureza desta competência na realidade prática de ajuizamento de demandas.
Palavras-chave: Competência Funcional, Competência Territorial Absoluta, Foros Regionais e Juizados Especiais Estaduais Cíveis.
Sumário: 1. Introdução; 2. Marco teórico; 3. A polêmica diferença entre competência territorial absoluta e competência funcional; 3.1 Conceito de Competência; 3.2 Critérios de distribuição da Competência; 3.3 Classificação da Competência em Relativa ou Absoluta; 3.4 Da Confusão entre a Competência Territorial Absoluta e a Competência Funcional; 4. Das regras de competência nos juizados especiais cíveis estaduais; 4.1 Das normas insertas no artigo 4° da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995; 4.2 Propositura de ações de consumo no domicílio do consumidor: faculdade ou contingência legal; 4.3. Competência para conhecimento das causas individuais de consumo a serem propostas nos Juizados Especiais insertos nos Foros Regionais; 5. Da competência dos Juizados Especiais insertos nos Foros Regionais; 5.1 Da natureza da competência dos foros regionais; 6. Considerações Finais; Referências.
1. Introdução
No presente estudo busca-se estudar, com a profundidade necessária, a questão da competência para o conhecimento das causas individuais de consumo propostas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais insertos nos foros regionais.
Dentre os objetivos iniciais estão os de solver as divergências doutrinárias e jurisprudenciais no que concerne à natureza da competência sobredita, se absoluta ou relativa, se territorial ou funcional, analisando as consequências da correta classificação e critério de competência na praxe forense.
Para solver a problemática principal levantada, questiona-se, de início, os seguintes aspectos práticos da fixação da competência nos Juizados Especiais: o autor de um processo que deve tramitar nos juizados especiais cíveis tem o direito de ajuizar a ação em seu domicílio ou no domicílio do réu, facultativamente, ou está obrigado legalmente a sempre mover o processo no foro regional do seu domicílio? A regra expressa no parágrafo único do artigo 4° da Lei n° 9.099/95 deve ser afastada por força da interpretação jurisdicional que assevera ser absoluta a competência territorial dos foros regionais?
Utilizando-se do método da revisão bibliográfica e das técnicas indutiva e dedutiva, combinadamente, chegamos a um estudo elaborado em três partes: primeiro, apresenta-se as noções doutrinárias do instituto da competência: seus conceitos, classificações, critérios de distribuição e determinação, divergências doutrinárias e aprofundamento da diferença entre competência territorial absoluta e competência funcional, bem como da competência relativa e absoluta. Em um segundo momento, foram expostas e analisadas as regras de competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e as regras de competência previstas para as causas individuais de consumo. Por fim, na terceira e última parte, são analisadas as lições doutrinárias quanto à natureza da competência dos foros regionais, se valendo dos fundamentos ofertados nas duas primeiras partes da obra.
2. Marco teórico
Há muito tempo, estudiosos do direito vêm estudando formas de aperfeiçoar e elevar o nível de acesso à justiça dos jurisdicionados, seja do ponto de vista quantitativo, seja do qualitativo.
CAPPELLETTI (1988), após longos estudos estatísticos acerca dos problemas comuns enfrentados pelos países no que concerne à temática do acesso à justiça, ofertou soluções para combater os obstáculos então existentes.
Como forma de por em prática as sugestões supra referidas, alguns países criaram instâncias judiciais onde as partes poderiam litigar sem custas e sem a presença de um advogado. No Brasil, com tal desiderato, foram criados os Juizados Especiais, que são exatamente instâncias do Poder Judiciário específicas para analisar processos de menor complexidade e menor valor econômico.
Além dos motivos sobreditos, outra razão primordial que inspirou e deu sentido à criação dos referidos juizados especiais foi a tentativa de combater a morosidade judiciária, através de um processo mais informal, mais instrumental, barato, e, principalmente, célere, pois a ideia reinante até hoje no pensamento dos estudiosos do acesso à justiça é que uma prestação jurisdicional morosa é uma prestação jurisdicional injusta, ineficaz.
Com o mesmo intuito dos Juizados Especiais, a experiência brasileira realizou a implantação dos foros distritais, ou seja, divisões territoriais dentro da mesma comarca que passaram a ser responsáveis exclusivos pelos processos de determinada região dentro da própria comarca.
Com vistas a obrigar o ajuizamento das ações nos foros distritais, a Lei dos Juizados Especiais trouxe a previsão legal de que a competência dos citados foros seria territorial absoluta, ou seja, todos que tenham domicílio no raio de abrangência territorial jurisdicional do citado foro distrital devem propor suas ações nos mesmos.
É pertinente ver, nesse sentido, o que diz o professor Fredie Didier (2015; p.225-226) a respeito do tema:
Para terminar o exame da competência territorial, convém tecer algumas considerações sobre os foros distritais (a divisão do território da comarca, que se faz por distritos; a comarca, produto de uma divisão territorial, é também repartida). A orientação predominante é no sentido de serem considerados tais foros como absolutos, pois a sua instituição decorreria de normas cogentes, para atender à melhor distribuição da justiça. Doutrinadores e alguns tribunais entendem que a distribuição de competência nos chamados foros regionais ou varas distritais – o mesmo acontecendo com as varas federais do interior – é motivada por razões de ordem pública, sendo, portanto, improrrogável. A Justiça Federal divide-se territorialmente em seções judiciárias. Cada Estado-membro corresponde a uma seção. A seção judiciária divide-se, por sua vez, em subseções: distribuição da competência federal dentro do território do Estado-membro. A subseção está para a seção judiciária assim como o distrito está para a comarca. Exatamente em razão disso, tem-se entendido que a divisão territorial da seção judiciária gera hipótese de competência territorial absoluta (equivocadamente tratada como competência funcional),cujo desrespeito admite, por exemplo, o reconhecimento ex officio pelo magistrado [...]
Logo, a fundamentação da corrente doutrinária crescente, que acredita ser a competência dos foros distritais absoluta é o argumento da ordem pública.
Na prática forense, pode acontecer que, dentro da mesma comarca, a depender da interpretação desta matéria ora pesquisada, uma ação seja proposta num distrito da comarca ou em outro.
Por exemplo, na cidade de João Pessoa – PB (comarca), há um foro distrital denominado foro regional de Mangabeira que é responsável pelo conhecimento das ações do bairro de mangabeira e outros bairros circunvizinhos. No entanto, na mesma comarca de João Pessoa – PB, há o denominado foro da comarca da Capital, que abrange o conhecimento das causas dos demais bairros da capital paraibana.
Ocorre que, muitas vezes, o autor de uma suposta ação é domiciliado no bairro de Mangabeira, por exemplo, e o réu da ação tem domicílio no foro da comarca da Capital.
O problema surge quando dados estatísticos demonstram que os juizados especiais do foro da comarca da capital são muito mais céleres que o foro distrital de Mangabeira. Uma ação proposta no foro da capital tem sua primeira audiência marcada em média quatro meses após o ajuizamento de uma ação. Já uma ação proposta no foro distrital de mangabeira chega a ter sua primeira audiência de um a dois anos após o ajuizamento da demanda.
A questão que surge então, ao jurisdicionado, é: como pode se defender a preservação do princípio da isonomia quando dois consumidores, por exemplo, têm o mesmo problema com um produto defeituoso, alegam os mesmos fatos, requerem o mesmo direito, litigam contra o mesmo réu, mas um terá sua prestação jurisdicional ofertada em prazo muito menor que o outro.
Neste ponto, deve-se fazer um esclarecimento: para melhor distribuir e organizar as demandas vem a jurisprudência pátria interpretando que, nas causas dos juizados especiais, a demanda deve ser proposta no foro do domicílio do autor. Interpretação esta que será aqui averiguada se não afronta o disposto no parágrafo único do artigo 4° da Lei 9.099/95.
Se o consumidor que reside em mangabeira, no exemplo supra, tem que propor sua ação no foro distrital de Mangabeira, apesar de o réu possuir domicílio no foro da comarca da capital, ele está fadado e obrigado a receber prestação jurisdicional mais morosa do que o consumidor que tem domicílio no foro da capital.
Investiga-se, portanto, se essa situação não gera, além de uma discriminação social regional, uma situação jurídica de afronta à isonomia e ao devido processo legal, e de que forma se poderia combater esta situação, se por simples mudança de interpretação normativa ou se por necessidade de alteração legislativa.
Embora os doutrinadores pátrios não costumem enfrentar a problemática do ponto de vista ora abordado, por vezes encontramos luzes que podem fixar um marco teórico para a solução do problema. Senão vejamos o que diz o professor Fredie Didier (2015; p.220) quando discorre acerca da competência das ações de consumo:
O Código de Defesa do Consumidor determina que o foro competente para a discussão das relações de consumo é o do domicílio do autor-consumidor (art.101, I, do CDC). É regra que beneficia o consumidor, mas não se trata de regra de competência absoluta, dela podendo abrir mão o beneficiário, elegendo a regra geral (domicílio do demandado).
Vê-se, por este ângulo, que mesmo nas causas de consumo, em que a lei protege o hipossuficiente, o consumidor, este tem a faculdade de escolher demandar no foro do seu domicílio ou no foro do domicílio do réu.
Todavia, quando o consumidor demanda nos juizados especiais, a orientação jurisprudencial que vem prevalecendo afirma que o consumidor, na existência de foro distrital, deve propor sua causa exclusivamente em seu domicílio. O que acaba por anular a faculdade prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Nada obstante, investiga-se ainda se é possível ver no artigo 4° da Lei n° 9.099/95 esta mesma facultatividade conferida ao consumidor no CDC, a fim de resguardar a constitucionalidade da competência territorial absoluta dos foros distritais que foi legalmente prevista na mesma lei aqui citada.
3. A polêmica diferença entre competência territorial absoluta e competência funcional
3.1 Conceito de Competência
É cediço, em doutrina, a lição que afirma ser a competência a medida da jurisdição, o âmbito legal dentro do qual um órgão jurisdicional pode validamente dizer o direito, ou, tecnicamente, exercer a jurisdição (DIDIER, 2015, p.198).
A jurisdição é um dos poderes pertencentes ao povo. E como, das lições da Teoria Geral do Estado, se extrai que o poder é uno e indivisível, essa mesma jurisdição é uma manifestação desse poder uno e indivisível. Todavia, por questões de organização de um Estado com múltiplas funções, objetivos, atribuições e deveres sociais, muitos Estados-nações resolveram criar funções específicas para exercer o seu poder soberano, de forma, também, que este mesmo poder permanecesse sempre democrático e exercido nos limites legais previamente estabelecidos por uma Carta de Princípios, Direitos, Intenções e Programas, a qual se convencionou denominar de Constituição.
A maioria das sociedades ocidentais contemporâneas adotou a teoria da tripartição de poderes – que tem em Montesquieu seu criador. Segundo tal teoria, o poder soberano, uno e indivisível, seria exercido por três funções: a função executiva, a função legislativa e a função judiciária.
À função executiva compete mais detidamente conduzir, gerir e pôr em prática os recursos estatais de forma a perseguir o bem comum da sociedade e outros fins específicos, muitas vezes já descerrados na própria Constituição dos Estados.
À função legislativa compete a elaboração das leis, preceitos normativos, propostos, apreciados e votados pelo povo ou por seus representantes, de forma a expressar, em tese, a vontade da maioria do povo.
À função judiciária, que mais nos importa no presente estudo, compete o poder-dever de dizer o direito, de interpretar as normas jurídicas, de solucionar os conflitos de interesses entre os particulares de um Estado, ou entre este e aqueles. Em outras palavras, à função judiciária compete a jurisdição.
Ante a pluralidade de conflito de interesses, num dado Estado surge a necessidade de criar vários órgãos, todos votados a dizer o direito, ou seja, todos dotados de jurisdição.
Na medida em que passam a coexistir num Estado diversos órgãos com jurisdição, surge outra contingência: a de organizar estes órgãos, atribuir a cada um uma função específica (seja uma matéria específica, uma área ou território específico de atuação, etc.), a de delimitar o poder de, cada um, dizer o direito a algumas situações específicas e previamente estabelecidas. É aqui que surge o instituto processual da competência, exatamente para resolver a delimitação e organização da jurisdição.
Traçando, em apertada síntese esse panorama acima, o professor Leonardo Carneiro da Cunha (2011, p.2) assim se expressa:
[...] A competência serve de delimitador das circunstâncias em que o poder pode ser exercido. Costuma-se dizer que a competência é o limite ou a fração ou a medida da jurisdição. É preciso, contudo, ressalvar essa afirmação: o exercício da função jurisdicional é cometido não apenas a um único órgão, mas a vários deles; cada um é investido pela lei das mesmas atribuições, devendo atuar de acordo com os critérios previamente fixados. A competência estabelece quando cada órgão deve exercer tais atribuições, que são as mesmas para todos. [...] (grifo nosso).
A par destas noções, percebe-se que o instituto da competência permite saber em que condições a atuação de um órgão jurisdicional é legítima, uma vez que as normas jurídicas delimitam o âmbito de incidência da jurisdição de um órgão jurisdicional.
Mais do que um critério de validade, de averiguação de legitimidade da atuação de um órgão jurisdicional, as regras de competência são um critério, um estudo doutrinário que visa organizar a prestação jurisdicional estatal de forma que esta prestação seja eficaz, célere e alcance seus objetivos de pacificação social e justiça.
Sob um olhar mais técnico-processual, o jurista Alexandre Freitas Câmara (2008, p.92) traz uma importante lição, ao afirmar que os pontos relevantes no estudo da competência são os critérios para sua fixação. Senão vejamos:
[...] O centro das atenções no estudo da competência, pois, é a verificação dos critérios de sua fixação, ou seja, dos parâmetros empregados pelo ordenamento jurídico para estabelecer os limites dentro dos quais cada órgão do Judiciário pode exercer a função jurisdicional [...] (grifo nosso).
É precisamente estudando os critérios de distribuição da competência que aqui se busca solucionar a problemática sob análise, qual seja, a de saber se a natureza da competência dos Juizados Especiais insertos nos foros regionais para conhecer de causas de consumo é de competência territorial, relativa ou absoluta, ou é de competência funcional (neste caso, sempre absoluta), etc.
3.2 Critérios de distribuição da Competência
Ao verificar qual o órgão judicial competente para apreciar determinada demanda, primeiro é preciso analisar se o Poder Judiciário do Estado em que o magistrado exerce suas funções é competente para conhecer do litígio. Quer isto dizer que, inicialmente, observa-se se é caso de competência internacional ou de competência interna.
Após fixada a competência interna, a determinação do órgão judicial que julgará a lide obedece a alguns critérios doutrinários de distribuição da competência.
Tais critérios visam, conforme anteriormente sobredito, organizar o serviço de prestação jurisdicional de um determinado Estado, uma vez que, normalmente, há diversos magistrados que atuam em diferentes e inúmeras comarcas, varas, juizados, tribunais, etc.
Como forma de conseguir tal desiderato, a doutrina tradicionalmente sistematizou, na esteira do pensamento de Wach e Chivenda, três critérios de determinação e distribuição da competência interna: o objetivo, o funcional e o territorial (THEODORO JUNIOR, 2007, p.189).
Segundo o referido ensinamento, o critério objetivo se funda na qualidade das partes, no valor ou na natureza da causa.
Já o CRITÉRIO FUNCIONAL, nas palavras do professor THEODORO JUNIOR (2007, p.187):
[...] atende às normas que regulam as atribuições dos diversos órgãos e de seus componentes, que devam funcionar em um determinado processo, como se dá nas sucessivas fases do procedimento em primeiro e segundo graus de jurisdição. Por esse critério, determina-se não só qual o juiz de primeiro grau, como também qual o tribunal que em grau de recurso haverá de funcionar no feito, além de estabelecer-se, internamente, qual a câmara e respectivo relator que atuarão no julgamento.
Da passagem supra exposta, percebe-se que, desde o início, se compreende que o critério funcional distribui competências e atribuições endoprocessuais, ou seja, é uma divisão de tarefas dentro de um mesmo processo.
O mesmo doutrinador supracitado, em outra passagem da mesma obra acima referida, assevera que a competência funcional se relaciona às atribuições dos diferentes órgãos jurisdicionais que atuarão no mesmo processo. Em complemento, aduz THEODORO JUNIOR (2007, p.195) que se pode estabelecer este critério de competência pelas fases do procedimento, pelo grau de jurisdição ou pelo objeto do juízo.
Quanto à questão da fixação pelas fases do procedimento, um bom exemplo é a norma processual civil que afirma ser competente o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição para conhecer da execução fundada em título executivo judicial, nos exatos termos do artigo 516, II, da Lei n° 13.105 de 16 de março de 2015 (CPC).
Desde que o processo se tornou sincrético, ou seja, que é possível executar um título judicial no mesmo processo em que se certificou um direito, a execução dos julgados deixou de ser um processo autônomo para se tornar fase do mesmo processo em que tramitou o processo de conhecimento (hoje, fase de conhecimento). E se a execução agora é uma fase, com peculiaridades e procedimentos próprios, mas que tramita no mesmo processo da fase de conhecimento, necessário se faria determinar a qual órgão judicial compete executar os títulos judiciais. Foi exatamente o que decidiu a norma inserta no artigo 516, II, da Lei n° 13.105 de 16 de março de 2015 (CPC).
Ora, poderia o legislador pátrio estabelecer que a fase de execução dos títulos judiciais, por exemplo, fosse processada e julgada pela última instância que proferiu decisão em um determinado processo, mas assim não o fez. Decidiu o legislador conferir tal atribuição (tecnicamente, competência), ao juízo de primeira instância. Logo, trata-se de política de organização judiciária, que ilustramos para se ter noção que os critérios de determinação, algumas vezes, são discricionários.
Por sua vez, a utilização do critério funcional que se baseia no grau de jurisdição ocorre quando o motivo de distribuição de competência se funda na hierarquia do Poder Judiciário.
Neste caso, o legislador normatizou que determinada causa deveria ser analisada por um órgão de hierarquia maior, certas vezes por conta da maior experiência dos magistrados que compõem os tribunais, outras vezes pela necessidade de se proferir uma decisão colegiada (que será, em tese, mais discutida e melhor votada). É possível ainda que esse critério vise conferir uma garantia, uma prerrogativa de foro, como ocorre nas fixações de competência ratione personae. Nestes casos, por questões de sistematização doutrinária, entende-se que o critério é objetivo, pois decorre da qualidade das partes. Todavia, sob a análise de quem julga, o critério também não deixa de ser funcional.
Da mesma forma, o critério funcional pode ser determinado de acordo com o objeto posto sob análise, ou seja, tal órgão conhece de um objeto, enquanto outro órgão judicial conhece de outro objeto. É o que se dá quando se confere competência para determinado órgão analisar o incidente de inconstitucionalidade (art. 948, do CPC) ou quando um recurso ou ação é distribuído para uma seção especializada em direito público, para citar alguns exemplos apenas.
Atente-se que, de todos os exemplos citados, o critério funcional, de fato, se refere, tradicionalmente, a distribuição de competência, dentro de um mesmo processo. Não é critério de determinação de competência anterior ao processo, nem entre processos diversos. É um critério que visa a distribuição de funções aos diferentes órgãos jurisdicionais sempre dentro do mesmo processo. É uma observação que servirá para a análise do objeto principal deste estudo.
3.3 Classificação da Competência em Relativa ou Absoluta
Há, em doutrina, uma relevante classificação da competência, em relativa ou absoluta, que, na prática processual, carreia consequências de grande monta para a solução da problemática do presente estudo.
Diz-se que uma dada regra de competência é absoluta quando disposta para atender imperativos de ordem e interesse públicos. Na mesma esteira, aduz-se que a competência é relativa quando a norma foi editada para atender e reger o interesse das partes, predominantemente (MARINONI; ARENHART, 2008, p.44).
Alguns autores acabam conceituando essa distinção através das consequências que ela traz à dinâmica processual. Por exemplo, afirmam que o conceito de competência absoluta se liga à característica de alteração e aplicabilidade da norma de competência em razão da vontade das partes, ou seja, se a competência puder ser alterada/modificada se trata de competência relativa, já se a regra de competência for inalterável/imodificável/inafastável pela vontade das partes, estar-se-ia diante de uma norma de competência absoluta (SANTOS, 2008, p.256).
Todavia, na ótica deste estudo, a norma é modificável porque antes se entendeu que se tratava de competência relativa, e não o contrário, ou seja, a norma não é relativa porque é modificável. A característica de se modificar é um atributo das regras de competência relativa, mas só atribuível depois de se identificá-la como relativa. Pensar diferente seria confundir o conceito com as consequências processuais daquele.
Boa conceituação é trazida pelo professor Daniel Amorim Assumpção Neves (2010, p.110-111), que assim explica esta classificação doutrinária:
[...] A existência em nosso ordenamento processual de regras de competência relativa e absoluta se explica em razão de um equilíbrio entre razões políticas divergentes.
As regras de competência relativa prestigiam a vontade das partes, por meio da criação de normas que buscam proteger as partes (autor e réu), franqueando a elas a opção pela sua aplicação ou não no caso concreto. Em razão de sua maior flexibilidade, também a lei poderá modificar tais regras. Surgem assim as regras de competência relativa, dispositivas por natureza e que buscam privilegiar a liberdade das partes, valor indispensável num Estado democrático de direito como o brasileiro. As regras de competência absoluta são fundadas em razões de ordem pública, para as quais a liberdade das partes deve ser desconsiderada, em virtude da prevalência do interesse público sobre os interesses particulares. Nesse caso, não há flexibilização, seja pela vontade dos interessados, seja pela própria lei, tratando-se de norma de natureza cogente que deverá ser aplicada sem nenhuma ressalva ou restrição.
Vê-se, pois, que o professor Daniel Neves não distingue a competência absoluta da relativa em razão da capacidade de modificação da competência, mas na liberdade ou não das partes na escolha da competência.
Passada esta distinção, a doutrina processualista assevera que há critérios de competência que necessariamente são absolutos e outros que podem ser absolutos ou relativos, a depender do regime que a lei empreste as regras de competência.
Nessa esteira, é comum encontrar nos manuais de processo civil a lição que afirma ser sempre absoluta a competência funcional e a competência em razão da matéria (inteligência do art. 62 e art. 267, II, do CPC). Por outro lado, as competências estabelecidas em razão do valor da causa e do território são, em regra, relativas. Contudo, há hipóteses em que estas competências, legalmente, se tornam absolutas (SANTOS, 2008, p.257).
Em razão desta liberdade legislativa para criar normas de competência relativas ou absolutas é que encontramos a figura da competência territorial absoluta (alguns chegam a afirmar competência territorial funcional), que será estudada mais à frente.
No que concerne às características, diz-se que a competência absoluta é imodificável, inalterável, improrrogável, cognoscível de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição. Já a competência relativa teria os atributos opostos da primeira, ou seja, é modificável pela vontade das partes (salvo algumas exceções legais), prorrogável, suscitável num prazo e modo específicos, legalmente previstos, sob pena de preclusão.
Estas noções são imprescindíveis para se discutir a natureza da competência dos Juizados Especiais insertos nos foros regionais, se absoluta ou relativa, se funcional ou territorial e o regime a ser aplicado às causas que tramitam nos referidos foros, na medida em que são estas noções tradicionais que fundamentarão e solverão o nosso problema de pesquisa, conforme se verá adiante.
3.4 Da Confusão entre a Competência Territorial Absoluta e a Competência Funcional
A fixação da competência, com utilização do critério objetivo que leva em consideração o aspecto territorial como o mais relevante na determinação do órgão jurisdicional que atuará num dado processo, em regra, deve obedecer ao regime da competência relativa. Isto significa também dizer, em princípio, que as partes podem optar por não se submeter às normas legais de competência relativa, através, por exemplo, de uma cláusula contratual de eleição de foro ou através do ajuizamento de uma ação num foro diferente das normas legais de competência, desde que tácita ou expressamente consentido pela parte ré. É uma das expressões do princípio da autonomia da vontade das partes no campo processual.
A par da liberdade das partes no que concerne ao critério objetivo da determinação da competência, pelo aspecto territorial, os legisladores, utilizando-se igualmente da sua liberdade em criar normas jurídicas, criaram a figura da competência territorial absoluta, ou seja, um critério de competência que fundamentalmente se baseia no fator territorial para determinar a competência, mas que não confere qualquer margem de autonomia a que as partes modifiquem a regra de competência prevista pelo legislador, ou seja, é uma questão exclusivamente de política legislativa. Muitas vezes essa política visa executar ou orientar uma política pública de melhor administração da justiça, ao menos em tese.
É importante frisar que está tão sedimentada em doutrina que a competência territorial é relativa que, quando o legislador quer modificar esse pensamento doutrinário sempre tem o cuidado de mencionar na norma jurídica que a competência territorial é absoluta ou que ela é imodificável pela vontade das partes.
O sistema jurídico pátrio possui alguns exemplos de normas jurídicas em que o legislador assim procedeu. Senão vejamos o artigo 80 da Lei Federal n° 10.741 de 1° de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).
Art.80. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio do idoso, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores (grifo nosso).
Veja-se que a fixação através do domicílio se refere à utilização do critério territorial, o que levaria a relativizar a competência. Ciente disso, o legislador da regra acima tratou de afirmar que, por mais que ele tenha se utilizado de um critério territorial (o domicílio) a hipótese do artigo acima seria de competência absoluta, logo, competência territorial absoluta.
Nesta mesma toada encontra-se o artigo 209 da Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), abaixo transcrito.
Art.209. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer a ação ou omissão, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores (grifo nosso).
Aqui, da mesma forma do artigo anterior, utilizou-se um critério territorial de fixação de competência (o foro do local), mas, como o legislador já previa que esta norma seria doutrinária e jurisprudencialmente interpretada como referente à competência relativa, tratou de asseverar que a regra criada era de competência absoluta, embora estivesse se utilizando de critério territorial.
É possível encontrar ainda outros exemplos legislativos, a teor do artigo 2°, caput da Lei n° 7.347 de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública), como segue o texto legal:
Art.2°. As ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa (grifo nosso).
Este último artigo de lei é curioso, pois claramente se vê que o legislador quis apenas tornar absoluta a competência do foro do local do dano (ou seja, se utilizando de um aspecto territorial). No entanto, ao invés de afirmar que esta competência seria absoluta, aduziu que a competência seria funcional, confundindo os critérios de determinação de competência e prejudicando outros entendimentos nesta mesma matéria.
O motivo da confusão é a cediça lição doutrinária de que a competência funcional é sempre absoluta, ou seja, impossível de ser modificada pela vontade das partes.
Dos exemplos citados, percebe-se um traço comum: sempre que o legislador quis tornar uma competência territorial absoluta, ele o fez expressamente no corpo do próprio texto de lei. Até porque, por força do princípio da legalidade, cujo artigo 5°, II, da Constituição de República Federativa do Brasil, vigente desde outubro de 1988 (CRFB), “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Significa dizer que se a lei não prevê expressamente a fixação da competência como sendo obrigatória, ninguém é obrigado a propor uma demanda num determinado local.
O argumento da necessidade de explicitar a mudança do regime da competência territorial, de relativa à absoluta, é relevante e pertinente haja vista que a referida mudança de regime causa uma restrição na liberdade das partes, que veem sua autonomia da vontade, sua liberdade de escolher o foro de determinada demanda tolhida por uma norma jurídica.
Toda restrição de liberdade só pode ser procedida por lei, em sentido formal. Não pode simples interpretação jurisprudencial ou doutrinária inovar o sistema jurídico, criar a norma legal, fazer interpretação extensiva em prejuízo da liberdade das partes.
Sabedores desta realidade, os magistrados brasileiros vêm buscando outro recurso para tornar absolutas certas espécies de competência territorial. Ao invés de denominarem a competência de territorial absoluta, pois esta característica deveria vir expressa, passaram a denominar de competência funcional a competência territorial que eles desejam que seja absoluta.
Com essa manobra doutrinária, os magistrados e doutrinadores que assim pensam prescindem de texto expresso de lei para tornar uma dada competência absoluta, pois toda competência funcional é absoluta. Se o caso fosse de competência territorial, ficar-se-ia sempre a discussão se a mesma diria respeito à competência relativa ou absoluta.
O professor DIDIER citando BARBOSA MOREIRA explica de onde vem toda a confusão doutrinária acerca da distinção entre competência territorial absoluta e competência relativa. Vejamos passagem deste eminente jurista, nas palavras do professor DIDIER:
Recente trabalho publicado por Barbosa Moreira parece sistematizar de uma vez por todas o problema da competência funcional e seu verdadeiro conceito. Seu ponto de partida é o art.2° da Lei n° 7.347, que, conforme a digressão que faz ao longo do ensaio, peca no rigor técnico ao invocar a competência funcional. Para justificar seu entendimento, expõe o que rezavam as doutrinas alemã e italiana sobre o tema, afirmando que a primeira definiu a competência funcional de maneira sublime, uma vez que “ela entra em jogo depois da propositura, no curso do processo, à medida que neste se exercitem atribuições diferentes, as quais podem ser conferidas a órgãos também diferentes”; a segunda, a seu ver, desvirtuou o conceito, na medida em que atribuiu a designação também à competência territorial, não admitindo, com isto, a existência de uma competência territorial absoluta, ou seja, que não se modifica. Aliás, é esse o critério que define a competência absoluta. Outrossim, não é surpresa verificar que a legislação brasileira seguiu aqui a doutrina italiana, repetindo equívocos trazidos por Liebman, quando da sua estadia. Não obstante, sugere o renomado autor voltar à concepção alemã, e tratar como territorial a competência que seja definida conforme a geografia (grifos nossos) (DIDIER apud BARBOSA MOREIRA, 2009, 123).
Esclarecedoras são as palavras do professor BARBOSA MOREIRA supramencionadas, quando resume que a competência funcional sempre é fixada depois da propositura da demanda, no curso do processo, ou seja, a competência funcional é uma distribuição interna de competência, sendo incompreensível se falar em competência funcional exterior à realidade do processo, ou fixada antes da propositura de uma ação. Já a competência territorial tem como característica a possibilidade de modificação, sendo imprópria e carente de técnica se falar em competência territorial absoluta.
Trazendo as lições de BARBOSA MOREIRA para a problemática ora estudada, perquire-se se é coerente falar em competência funcional dos foros regionais, pois quando se fixa a competência destes foros está se levando exclusivamente em consideração o território. Ademais, sabe-se que a competência dos foros regionais já é fixada antes da propositura de uma ação. Ora, se a competência funcional só é fixada e distribuída após a propositura da demanda, não haveria nítida incoerência entre as lições doutrinárias e a forma como a competência dos foros regionais vem sendo tratada (como competência funcional)?
É exatamente este ponto que passamos a investigar.
4. Das regras de competência nos juizados especiais cíveis estaduais
4.1 Das normas insertas no artigo 4° da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995
O artigo 4° da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais) trata das normas que fixam a competência no âmbito dos Juizados sobreditos.
Segundo o referido dispositivo legal:
Art. 4º É competente, para as causas previstas nesta Lei, o Juizado do foro: I - do domicílio do réu ou, a critério do autor, do local onde aquele exerça atividades profissionais ou econômicas ou mantenha estabelecimento, filial, agência, sucursal ou escritório; II - do lugar onde a obrigação deva ser satisfeita; III - do domicílio do autor ou do local do ato ou fato, nas ações para reparação de dano de qualquer natureza. Parágrafo único. Em qualquer hipótese, poderá a ação ser proposta no foro previsto no inciso I deste artigo.
No artigo supra transcrito, temos, ao menos, quatro normas diversas de fixação da competência.
Primeiramente, em seu inciso I, está dito que o autor pode propor sua ação no domicílio do réu ou, a seu critério (ou seja, trata-se de uma faculdade), no local onde o réu exerça atividades profissionais ou econômicas ou mantenha estabelecimento, filial, agência, sucursal ou escritório. De logo se vê que o critério escolhido no presente inciso foi eminentemente territorial, e o legislador, coerente com a doutrina, aduziu, expressamente, que a propositura nos diferentes foros mencionados seria facultativa, livre, dependente exclusivamente da sua vontade e, portanto, competência territorial relativa.
No inciso II, está dito que se a demanda tratar da execução de uma obrigação pactuada e no pedido houver pleito de cumprimento desta obrigação, a competência é fixada pelo lugar onde deva ser satisfeita a obrigação. Novamente aqui há um critério territorial de fixação da competência, uma vez que predomina o lugar da satisfação da obrigação. Como critério territorial, também se está diante de competência relativa.
Já no inciso III, a Lei dos Juizados afirma que, nas ações para reparação de danos de qualquer natureza, é competente o domicílio do autor ou do local do ato ou fato. Mais uma vez o referido diploma legal se apoderou do critério territorial para prever outra hipótese e fixar competência. Ante o fato da previsão do critério territorial, temos que concluir que a competência deste inciso igualmente é relativa.
Visando sanar qualquer dúvida ou divergência doutrinária que pudesse vir a existir, o legislador inseriu no artigo 4° da Lei n° 9.099/95 afirmando que em qualquer caso a ação poderia ser proposta no foro previsto no inciso I. Este inciso não fixou de forma absoluta a competência. Muito ao contrário, expressamente asseverou que cabia ao autor escolher se propõe a ação no foro dos diversos domicílios do réu ou não.
Em suma, ao autor, em qualquer hipótese, é permitido propor uma ação no foro do domicílio do réu. É essa a intelecção que se depreende da conjugação do inciso I com o parágrafo único do art.4° da Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais.
Todavia, conforme se verá adiante, entende parte da doutrina e a jurisprudência majoritária que nos Juizados Especiais insertos em foros regionais a competência deve ser fixada, de forma absoluta, pelo foro do domicílio do autor, sob o argumento de que a criação dos foros regionais atendeu a imperativos de ordem pública, exatamente visando apreciar as causas dos jurisdicionados abrangidos no raio territorial onde atua o foro regional, ou seja, esse entendimento tornou absoluta a regra inserta no inciso III da Lei n° 9.099/95 e afastou a vigência do parágrafo único do mesmo dispositivo legal.
Além da agressão ao dispositivo ao qual está sendo negada vigência, questiona-se se a elaboração, aprovação e publicação do artigo 4°, parágrafo único também não visou interesses de ordem pública ou se é possível elaborar alguma norma que não vise o interesse público?
Outrossim, questiona-se se o entendimento jurisprudencial majoritário é capaz de revogar uma lei, pois é velha a lição doutrinária que uma lei só pode ser revogada por outra lei.
Ora, quando se nega vigência a um dispositivo, este passa, na prática, pelas mesmas consequências de uma revogação tácita. Mas neste caso isso parece estar acontecendo, não por força da vigência de uma outra lei, mas por força de entendimento jurisprudencial.
Vistos esses problemas e noções, passa-se a analisar um conflito aparente de normas que fixam competência nas causas de consumo.
4.2 Propositura de ações de consumo no domicílio do consumidor: faculdade ou contingência legal
Ante o entendimento acima exposto, que afirma ser funcional a competência dos Juizados Especiais Cíveis e, portanto, absoluta, sendo fixada com base no domicílio do autor da demanda, analisa-se, neste tópico, se tal interpretação não se choca com a norma inserta no artigo 101, I da Lei n° 8.078 de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), que também prevê hipótese de determinação de competência para as causas de consumo.
Com efeito, nos termos do artigo 101, I, acima mencionado, ação que vise responsabilizar civilmente o fornecedor de produtos e serviços, pode ser proposta no foro do domicílio do autor. É o que diz expressamente o dispositivo em comento. Senão vejamos:
Art.101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:
I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor;
(...)
Observe-se que o dispositivo transcrito confere ao consumidor uma faculdade, qual seja, a de ajuizar sua ação no foro do seu domicílio ou seguir a regra geral de competência, inserta no artigo 46, caput, do CPC, ou no artigo 4° da Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995.
Todavia, apesar da clareza do dispositivo, os tribunais brasileiros divergem quanto a questão de ser uma faculdade ou contingência legal a norma inserta no art.101, I do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Para ilustrar a divergência acima, vejamos alguns julgados.
Entendendo se tratar de competência absoluta, encontramos julgados do STJ, TJ-MS, TJ-RJ, TJ-MG, TJ-ES:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCOMPETÊNCIA RELATIVA. DECLARAÇÃO DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 33, STJ. CONTRATO. RELAÇÃO DE CONSUMO. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. REGRA. RENÚNCIA. DECISÃO AGRAVADA Reforma. (mr) voto vencido: Ação declaratória cumulada com revisional de cláusulas contratuais - Relação de consumo - Renúncia do benefício previsto na legislação consumerista - Escolha aleatória do foro - Impossibilidade - Matéria de ordem pública - Critério determinativo de competência - Declínio de ofício - Possibilidade - Inteligência do art. 6º, VIII do CDC. O magistrado pode, de ofício, declinar de sua competência para o juízo do domicílio do consumidor, porquanto a jurisprudência do STJ reconheceu que o critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de competência absoluta. Havendo renúncia do consumidor ao benefício previsto no art. 101 do CDC, não pode o mesmo escolher aleatoriamente o foro em que deseja demandar, devendo a competência ser fixada de acordo com as regras gerais de competência previstas na legislação instrumental, sem prejuízo do princípio do juiz natural. Não havendo previsão legal que adote o critério de competência do foro em razão do domicílio do advogado da parte. (TJ-MG; AGIN 0645441-35.2011.8.13.0000; Belo Horizonte; Décima Primeira Câmara Cível; Rel. Des. Marcelo Rodrigues; Julg. 15/02/2012; DJEMG 29/02/2012).
Do julgado acima, é possível extrair as seguintes conclusões: aparentemente, o TJMG parece adotar orientação no sentido de que a regra de determinação de competência nas causas de consumo seria absoluta, não havendo qualquer liberdade ao consumidor para escolher onde propor a sua demanda. Todavia, o caso daqueles autos demonstra que o consumidor almejava propor a ação no foro do domicílio do seu advogado e não no domicílio do réu; numa outra parte da ementa acima, afirma o TJMG que se o consumidor renunciar ao foro privilegiado, as normas aplicáveis serão as de legislação instrumental, ou seja, as do Código de Processo Civil, sendo que este aduz, peremptoriamente, como regra geral, que as ações que pleiteiam direito pessoal devem ser propostas no foro do domicílio do réu, o que, no final, acaba relativizando a regra prevista no art.101, I, CDC. É uma contradição no julgado, mas que acaba por beneficiar o consumidor, que, se renunciar ao privilégio de propor a ação no foro do seu domicílio, por ver a sua demanda tramitar no foro do domicílio do réu.
Neste outro julgado, o entendimento do próprio TJMG muda um pouco, por ser outro o desembargador prolator do acórdão. Senão vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO C/C CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. RELAÇÃO DE CONSUMO. DECLINAÇÃO DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO A QUO DA COMPETÊNCIA PARA O FORO DO DOMICÍLIO DO AUTOR POSSIBILIDADE. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA. DOMICÍLIO DO AUTOR. NORMAS DE ORDEM PÚBLICA. AFASTAMENTO DA APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 33 DO STJ. PRECEDENTES. RECURSO NÃO PROVIDO. A competência do foro do domicílio do consumidor, estabelecida pelo art. 101, I, do Código de Defesa do Consumidor, é TERRITORIAL ABSOLUTA, uma vez que se trata de exceção à regra de incompetência, criada para a facilitação da defesa dos consumidores. Consoante precedente do Superior Tribunal de Justiça "Tratando-se de relação de consumo, a competência é absoluta, podendo ser declinada de ofício. Afastamento da Súmula nº 33 do Superior Tribunal de Justiça. " (CC 106.990/SC) (TJ-MS; AgRg-AG 2011.037897-6/0001-00; Campo Grande; Primeira Câmaracível; Rel. Des. Divoncir Schreiner Maran; DJEMS 09/02/2012; Pág. 26) CDC, art. 101
A orientação e o fundamento aqui são diversos: afirma-se que a competência fixada pela regra do art.101, I, CDC é territorial absoluta, apesar de o próprio dispositivo não aduzir isto e ainda se utilizar do termo “podem” e não “devem”. Ainda segundo tal entendimento, o fundamento para tornar absoluta uma regra de competência territorial, segundo o desembargador Divoncir Schreiner, é a facilitação da defesa do consumidor. Ora, mas o próprio consumidor não pode entender que os seus direitos serão melhor defendidos em outro foro que não o seu? Se outro foro for mais célere que o do seu domicílio, não facilitará a defesa dos seus direitos?
Neste próximo julgado é o TJRJ que vem demonstrar o seu alinhamento ao entendimento de que a regra prevista no artigo 101, I, CDC trata de competência absoluta. Senão vejamos:
AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA. AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. COMPETÊNCIA. ARTIGO 101, I DO CDC. NATUREZA ABSOLUTA. DECISÃO DA RELATORA QUE SE MANTÉM. Não obstante os argumentos expendidos pelo agravante, não têm eles o condão de infirmar os fundamentos lançados na decisão hostilizada, não ensejando, assim, a reforma pretendida. Por outro lado, não trouxe o agravante qualquer argumento capaz de elidir a decisão agravada, que amparada nas regras do parágrafo único do artigo 100 do CPC declinou de sua competência para uma das varas cíveis da Comarca de Santa Cruz, em razão de ser o local de domicílio da parte autora. Registre-se que, de acordo com o artigo 100, I, do CPC as ações atinentes relações de consumo devem ser ajuizadas no domicílio do autor. Com isso, havendo legislação específica sobre a questão discutida nestes autos, não cabe falar em aplicação da regra geral do artigo 94 do CPC. Assim, tendo em vista ter o requerente ajuizado a ação em foro diverso de seu domicílio, e sendo este o único interesse jurídico tutelado, outra conclusão não se permite à espécie, senão a ser uma das varas cíveis da regional de Santa Cruz a competente para o processamento da ação de revisão de cláusulas contratuais ajuizada. Ademais, nenhum prejuízo sofrerá o agravante se a ação for processada e julgada no foro de seu domicílio, ao contrário, será amplamente garantido o direito ao acesso à justiça. Nestes termos, nega-se provimento ao agravo interno. (TJ-RJ; AI 0063103-93.2011.8.19.0000; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueiredo; Julg. 07/01/2012; DORJ 14/02/2012; Pág. 120) CDC, art. 101
Segundo o entendimento seguido pelo TJRJ, a regra de competência prevista no artigo 101, I, CDC é de competência absoluta e o declínio para o foro do domicílio do consumidor não o prejudica, mas, ao contrário, facilita o seu acesso à justiça. O que dizer, então, quando se demonstra, no caso concreto, que a propositura da demanda no foro do domicílio do consumidor algumas vezes – e em alguns foros – dificulta a prestação jurisdicional, em face da morosidade de certos foros, o que, por via de consequência, prejudica o acesso à justiça. Não se pode afirmar, a priori, que o critério territorial (do domicílio do consumidor) sempre facilita o seu acesso à justiça. Há variáveis que não dependem do território que afetam o acesso à justiça, tanto em sua acepção substancial quanto formal.
As opiniões dos magistrados são deveras diversas. Já vimos em julgado anterior que um desembargador do TJMG adotou posição inclinada ao entendimento da competência absoluta da regra prevista no artigo 101, I, CDC. Contudo, encontramos posição divergente no próprio TJMG. Veja-se o julgado abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. FORO PRIVILEGIADO. RENUNCIA DO CONSUMIDOR. ESCOLHA ALEATÓRIA DO FORO. IMPOSSIBILIDADE Ofensa ao princípio do juiz natural. A competência do foro do domicílio do consumidor é absoluta, e, portanto, pode o magistrado dela conhecer de ofício. Contudo, pode o consumidor renunciar ao seu foro privilegiado, optando por demandar na sede do fornecedor, ocasião em que não há nenhuma norma jurídica que autorize o magistrado a declinar da competência para a Comarca do consumidor, entretanto, propor ação em domicílio completamente estranho à lide, sem que haja qualquer fundamento legal, contratual ou fático, caracteriza ofensa ao princípio do juízo natural (art. 5º, xxxvii e liii da CF/88). v. V. A conclusão sobre ser a competência, nas ações de consumo, considerada questão de ordem pública, permitindo sua declinação de ofício, é admitida apenas quando tal decisão vier em benefício do consumidor, atendendo-se às disposições dos artigos 6º, VIII, e 101, I, ambos do CDC, como quando o fornecedor, invocando cláusula de eleição de foro, ajuizar a demanda em local que é desvantajoso para o consumidor. (TJ-MG; AGIN 0516858-32.2011.8.13.0000; Belo Horizonte; Décima Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Estevao Lucchesi; Julg. 24/11/2011; DJEMG 10/01/2012) CF, art. 5 CDC, art. 101
Deste último julgado, percebe-se que o desembargador Estévão Lucchesi tenta harmonizar as posições em conflito: primeiro, afirmando que a regra prevista no artigo 101, I, CDC dispõe sobre competência territorial absoluta; segundo, em aparente contradição, assevera que o consumidor pode renunciar à regra que foi estatuída em seu favor para que a ação seja proposta no foro do domicílio do réu. Dizemos contradição porque a doutrina historicamente afirma que as regras de competência absoluta são irrenunciáveis. Mas, concordamos com o magistrado acima quando este conclui que o consumidor pode renunciar ao benefício estatuído em seu favor. Entretanto, o fundamento que utilizamos é que a regra do artigo 101, I, CDC é de competência relativa e, por isso, é possível haver renúncia da norma em comento.
Vejamos agora um julgado recente do Superior Tribunal de Justiça:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONTRATO BANCÁRIO. EMPRÉSTIMO CONSIGNADO. FORO DO DOMICÍLIO DO RÉU. AÇÃO PROPOSTA PELO CONSUMIDOR. RENÚNCIA AO FORO PRIVILEGIADO. POSSIBILIDADE. 1. Segundo entendimento desta Corte, nas ações propostas contra o consumidor, a competência pode ser declinada de ofício para o seu domicílio, em face do disposto no art. 101, inciso I, do CDC e no parágrafo único, do art. 112, do CPC. 2. Se a autoria do feito pertence ao consumidor, contudo, permite-se a escolha do foro do réu, considerando que a norma protetiva, erigida em seu benefício, não o obriga quando puder deduzir sem prejuízo a defesa dos seus interesses fora do seu domicílio. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 18ª Vara Cível de Porto Alegre - RS. (Superior Tribunal de Justiça STJ; CC 108.277; Proc. 2009/0191555-0; SP; Segunda Seção; Relª Minª Maria Isabel Gallotti; Julg. 22/06/2011; DJE 01/08/2011)
Segundo a Min. Isabel Gallotti, a regra consubstanciada no artigo 101, I, CDC traria norma de competência absoluta apenas quando o consumidor estivesse ocupando o polo passivo da relação jurídico-processual. Contudo, quando o consumidor estiver ocupando o polo ativo, caberia a ele propor a ação no foro do seu domicílio ou no foro do domicílio do réu. Embora fundada em premissas doutrinárias equivocadas, a nosso ver, chega-se a uma conclusão benéfica ao consumidor. Dizemos equivocada porque não se pode condicionar à posição processual do consumidor na demanda – se no polo ativo ou passivo – o fato de a regra tratar de competência absoluta ou relativa. Ou a norma se trata de competência absoluta ou não trata. Se tratar, deveria se considerar irrenunciável o foro. É assim que há longos anos discorre a doutrina no mundo inteiro.
Orientação mais purista e consentânea com as lições doutrinárias encontramos no TJES. Porém, não isenta de equívocos doutrinários. Leia-se o julgado abaixo transcrito:
CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA. ART. 557 DO CPC. CABIMENTO. COMPETÊNCIA. FORO DO DOMICÍLIO DO AUTOR. ARTIGO 101, I, DO CDC. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. POSSIBLIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1. É cabível o julgamento monocrático, quando o recurso se insere em uma das hipóteses previstas no artigo 557 do CPC. Eventual nulidade decorrente do julgamento monocrático resta sanada diante da manifestação do órgão colegiado ratificando a decisão do relator. Precedentes do STJ. 2. Com fundamento na facilitação da defesa do consumidor, pode este propor, no foro de seu domicílio, demanda cujo objeto seja relação de consumo. Esta possibilidade decorre da condição pessoal de hipossuficiência e vulnerabilidade do consumidor. 3. O magistrado pode, de ofício, declinar de sua competência para o juízo do domicílio do consumidor, pois o critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de competência absoluta. Precedentes do STJ. 4. Recurso desprovido. (TJ-ES; AGInt-AI 024100918598; Rel. Des. Samuel Meira Brasil Junior; DJES 21/07/2011; Pág. 61) CPC, art. 557 CDC, art. 101
Segundo o desembargador Samuel Meira Brasil Junior, do TJES, a regra expressa no artigo 101, I, CDC, trata de competência absoluta, porém territorial. Esta opinião, segundo pensamos, é o primeiro erro, pois, doutrinariamente, a competência territorial não pode ser absoluta. Todavia, no direito positivo isso é permitido quando se explicita na norma jurídica que se está fixando competência de natureza absoluta. Não é o caso do artigo 101, I, CDC.
Por outro lado, o julgado acima tem lógica interna, na medida em que foi o único que aqui colacionamos que não afirmou ser possível a renúncia do consumidor à regra fixada em seu benefício. Tem, pois, o julgado verossimilhança porque, de fato, as competências absolutas são irrenunciáveis.
Noutra banda, é possível encontrar diversos julgados que perfilam a orientação de que a norma inserta no âmbito do artigo 101, I, CDC se refere à fixação de competência relativa.
Neste sentido, entendendo ser de competência relativa, encontramos julgados do TJ-DF, TJ-RN, TJ-RS, TJ-PB, TJ-SC, TJ-ES, dentre outros. Por todos, vejamos o que pensa a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, no julgado abaixo colacionado.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. DEMANDA PROPOSTA PELO CONSUMIDOR EM FACE DE PRESTADORA DE SERVIÇOS. JUÍZO DIVERSO DO FORO DO DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA RELATIVA. DECLINAÇÃO DE OFÍCIO. NÃO CABIMENTO. 1. A regra prevista no artigo 101, inciso I, da Lei nº 8.078/90, não constitui óbice para que o consumidor ajuíze demanda em foro diverso da localidade onde se situa o seu domicílio. 2. A competência territorial, por ser relativa, pode ser prorrogada, caso não haja provocação da parte interessada, nos termos do artigo 114 do Código de Processo Civil. 3. De acordo com a Súmula nº 33 do colendo Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de competência relativa, é vedado ao magistrado reconhecer de ofício a incompetência do Juízo. 4. Conflito negativo de competência conhecido, para declarar competente o Juízo suscitado. 1ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/ DF. (TJ-DF; Rec 2011.00.2.011294-9; Ac. 555.878; Terceira Câmara Cível; Relª Desª Nídia Corrêa Lima; DJDFTE 10/01/2012).
Neste julgado, alinhado às noções aqui descerradas e à toda tradição doutrinária, a terceira câmara do TJDF, num acórdão da relatoria da desembargadora Nídia Correa Lima, entendeu que a norma inserta no artigo 101, I, CDC fixou nítida regra de competência relativa, não havendo, portanto, óbice a que o consumidor ajuíze ação em foro diverso do seu domicílio.
Em posição semelhante encontramos os seguintes julgados: (TJ-RN; AI 2011.014381-6; Mossoró; Primeira Câmara Cível; Relª Juíza Conv. Fátima Soares; DJRN 31/01/2012); (TJ-RS; AI 63470-78.2012.8.21.7000; Porto Alegre; Décima Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Ergio Roque Menine; Julg. 23/02/2012; DJERS 29/02/2012); (TJ-SC; CC 2011.092472-8; Navegantes; Terceira Câmara de Direito Civil; Relª Desª Maria do Rocio Luz Santa Ritta; Julg. 24/01/2012; DJSC 17/02/2012); (TJ-ES; CC 100100040862; Segunda Câmara Cível; Rel. Desig. Des. Namyr Carlos de Souza Filho; DJES 14/10/2011); (TJ-PB; AI 200.2011.002.974-7/001; Primeira Câmara Cível; Rel. Des. José Di Lorenzo Serpa; DJPB 13/07/2011).
Após o estudo destes julgados, é interessante questionar se não seria mais fácil e eficaz, afora as considerações de técnica jurídica, deixar ao consumidor a oportunidade de decidir em qual foro – se no do réu ou no do autor – será mais fácil e acessível defender os seus direitos? Será que os magistrados sabem melhor que os advogados do consumidor e melhor que este onde será mais fácil e acessível propor as demandas do consumidor?
Vistas estas considerações, e concluída a existência de profunda divergência entre a natureza da competência, passamos a analisar o conflito entre a norma do artigo 101, I do Código de Defesa do Consumidor, seja se admitindo que se trata de competência absoluta, seja admitindo que se trata de competência relativa, e a interpretação jurisprudencial que afirma ser a competência dos foros regionais sempre absoluta, sendo fixada pelo foro do domicílio do autor.
4.3 Competência para conhecimento das causas individuais de consumo a serem propostas nos Juizados Especiais insertos nos Foros Regionais
No tópico anterior, viu-se que há no Código de Defesa do Consumidor uma norma que confere ao consumidor a faculdade de propor causas de consumo no seu domicílio ou no domicílio do fornecedor de produtos e serviços. Viu-se também que parte dos tribunais pátrios entende que a norma não concedeu uma faculdade ao consumidor, tratando-se de uma contingência legal, ou seja, uma norma de competência absoluta.
Apesar da divergência, majoritariamente, mesmo os que acreditam que o art.101, I, CDC tratou de norma de competência absoluta, afirmam que ao consumidor foi conferida a faculdade de propor ações em seu domicílio ou no do réu. A divergência a ser absoluta ou relativa esta competência acabou tendo relevância apenas para se fixar a possibilidade de decretação da incompetência ex officio ou não.
Em suma, é reconhecido ao consumidor ajuizar ações em seu domicílio ou no foro de domicílio do réu.
Por outro lado, foi visto em tópico anterior desta obra, que os tribunais e parte da doutrina brasileira vêm entendendo que a competência territorial dos Juizados Especiais é absoluta, havendo inclusive quem entenda que se trata de competência funcional. Ademais, a corrente jurisprudencial e doutrinária majoritária vem sedimentando o entendimento de que as ações propostas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais insertos em foros regionais devem ser propostas no foro de domicílio do autor, sem qualquer temperamento ou possibilidade de modificação.
Avalia-se, a partir daqui, se este último entendimento supramencionado não retira a eficácia da regra expressa no artigo 101, I, CDC.
Indaga-se: ainda que se entenda que a competência dos foros regionais seja absoluta, o Código de Defesa do Consumidor não é igualmente uma lei de ordem pública? Não seria o artigo 101, I, CDC que concede a faculdade ao consumidor de propor ações no foro do seu domicílio ou no foro do domicílio do réu igualmente de ordem pública, pois visa facilitar a defesa do consumidor em juízo? A determinação, por intermédio de leis estaduais, de que todas as causas, dos foros regionais, devem ser propostas no foro do domicílio do autor não retira a faculdade instituída no art.101, I, CDC, uma vez que ao consumidor não será mais possível propor ações no foro do domicílio do réu, no caso supramencionado, já que o réu tem domicílio no foro da comarca da capital? Uma lei estadual, ainda que de ordem pública, tem o condão de retirar a eficácia de uma lei federal? Uma lei estadual é hierarquicamente superior a uma lei federal?
Além destas considerações, é preciso observar o seguinte: ainda que se trate de competência funcional, qual dispositivo legal autoriza o magistrado a se utilizar do foro do domicílio do autor como a única regra para fixar a competência? As normas insertas no artigo 4° da Lei n° 9.099/95 perderam sua eficácia com o surgimento dos chamados foros regionais?
A interpretação que torna absoluta a competência dos foros regionais não harmoniza as normas do art.4°, incisos e parágrafo único com o artigo 101, I da Lei n° 8.078/90.
Gramaticalmente, os citados dispositivos não se conflitam. Todavia, a interpretação de se fixar a competência exclusivamente pelo domicílio do autor se conflita com o artigo 101, I, CDC.
A única interpretação que aqui se entende como apta a preservar a eficácia das duas normas legais é a de que a competência, tanto a prevista no artigo 101, do Código de Defesa do Consumidor quanto a prevista no artigo 4° da Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais são relativas. Primeiro, porque o parágrafo único do artigo 4° da Lei n° 9.099/95 aduz ser possível aplicar o inciso I do referido dispositivo legal em qualquer hipótese, estabelecendo ser possível propor ações no foro do domicílio do réu ou do autor indistintamente. Segundo, porque a interpretação do artigo 101, I, da Lei n° 8.078/90 convergem para a mesma conclusão, qual seja, a de que o consumidor pode propor ações no foro do seu domicílio ou no domicílio do réu.
É o mesmo pensamento esposado pelo jurista Fredie Didier (2015; p.220), já transcrito neste artigo, em que se afirma que a regra do art. 101, I, do CDC foi instituída em benefício do consumidor e se trata de competência relativa.
As normas do CDC e da Lei n° 9.099/95 são, portanto, harmônicas e qualquer interpretação que estenda ou restrinja o sentido de uma destas normas causará a ineficácia da outra norma.
Ademais, veremos que não há fundamentos doutrinários ou legais para concluir que a competência dos foros regionais seja funcional, ou, absoluta.
5. Da competência dos Juizados Especiais insertos nos Foros Regionais
5.1 Da natureza da competência dos foros regionais
Conforme visto, parte da doutrina processualista pátria afirma que a competência dos foros regionais é funcional e, portanto absoluta. Tal assertiva funda-se no argumento de que as normas que organizam o serviço de administração da justiça são de interesse público, sendo, pois, inafastáveis pela vontade das partes.
O argumento para entender que a competência dos foros regionais é absoluta deriva do fundamento da ordem pública, da melhor distribuição da justiça.
Tal argumento, data venia, é insubsistente e destoante da realidade.
Vale a pena transcrever a crítica do professor DIDER ao pensamento de que “...há quem entenda que, quando fixada para que o órgão jurisdicional possa mais bem exercer as suas funções, a competência territorial é funcional” (DIDIER apud CHIOVENDA, 2015, p.219).
Em pertinente crítica, indaga Fredie DIDIER (2015, p.219):
“[...] Existe alguma regra de competência criada com a consciência de que o magistrado não exercerá da melhor maneira possível as suas funções? Por acaso podemos dizer que, quando se estabelece o foro do domicílio do réu como o genericamente competente (art.94, CPC), não objetivava o legislador que neste foro pudesse o magistrado exercer melhor as suas funções?[...]”
Atente-se para a fragilidade do argumento de que a competência dos foros regionais é absoluta porque nestes os juízes poderão exercer melhor sua função. Com efeito, como bem disse DIDIER, toda regra de competência é criada com o objetivo de que o órgão apontado como competente terá melhores condições que outro de analisar a demanda posta sub judice.
Frise-se que, ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal (STF) inclinar-se-á no sentido de que os foros regionais não detêm competência absoluta. É o pensamento que os doutrinadores depreendem da intelecção do enunciado n. 689 da Súmula da jurisprudência daquele tribunal. Senão vejamos.
Súmula n. 689. O segurado pode ajuizar ação contra a instituição previdenciária perante o juízo federal do seu domicílio ou nas varas federais da capital do Estado-membro.
Ora, sabe-se que as seções judiciárias correspondem ao território de um Estado-membro, sendo divididas aquelas em subseções, que não deixam de ser foros regionais. Contudo, o STF entendeu e sumulou que uma dada ação pode deixar de ser proposta no foro regional para ser proposta no foro do domicílio do réu (DIDIER, 2015, p.226).
Doutra banda, das lições doutrinárias pode-se concluir que a competência dos foros regionais jamais pode ser entendida como funcional, pois a competência funcional é a distribuição da competência dentro de um mesmo processo e depois de ajuizada uma dada ação.
De forma simples, a competência funcional é a distribuição de funções diversas a diferentes órgãos jurisdicionais dentro de um mesmo processo. Não há possibilidade de se denominar de funcional a competência que é fixada anteriormente à propositura de uma ação e que não visa a distribuir funções dentro de um mesmo processo. Conforme já sedimentou BARBOSA MOREIRA, em passagem citada em tópico anterior desta obra, este equívoco se deve ao alinhamento da doutrina brasileira ao pensamento de LIEBMAN, que trouxe da Itália o equívoco lá reinante neste ponto da teoria geral do processo. No entanto, a doutrina alemã leciona ser impossível chamar de funcional a competência que se baseia no território.
No caso dos foros regionais, não há quem questione que o critério utilizado para fixar a competência dos mesmos seja territorial. Muitas das vezes baseando-se no domicílio do autor da demanda.
Com estas considerações, admite-se até que a competência dos foros regionais seja territorial absoluta, mas nunca funcional.
Tem-se que verificar agora se a competência dos foros regionais é territorial relativa ou absoluta.
Sabe-se que, em regra, a competência territorial é relativa. Fazer da competência territorial absoluta é exceção que deve ser expressamente prevista.
Expôs-se, em momento anterior, que todas as vezes que o legislador quis criar competência territorial absoluta, ele o fez expressamente, interpondo, nos artigos de lei, a própria expressão “competência absoluta”.
Outrossim, neste tópico já nos utilizamos da Súmula n° 689 do STF para demonstrar que a mais alta Corte brasileira entende que a competência de foros regionais federais, como o são as subseções judiciárias, não são absolutas, mas relativas.
Ato contínuo, um último argumento demonstra que a intenção do legislador não foi a de criar uma competência absoluta nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, sejam eles insertos nos foros regionais ou não.
O referido argumento se extrai da comparação entre a Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais com a Lei dos Juizados Especiais Federais. Esta, a lei n° 10.259 de 12 de julho de 2001, em seu artigo 3°, §3°, reza o que segue: “no foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta”.
Todavia, em momento algum, a Lei n° 9.099/95 afirma ser absoluta a competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, sejam eles insertos ou não nos foros regionais.
Costuma-se mal interpretar a competência dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais como sendo absoluta por conta do sentido que se empresta ao artigo 51, III, da Lei n° 9.099/95, que assim discorre:
“Art. 51. Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei: [...]
III - quando for reconhecida a incompetência territorial; [...]”
Se ampara a doutrina que defende a competência funcional no fato de que o processo só se extingue sem resolução de mérito, com declaração de incompetência territorial, se reconhecida incompetência absoluta pelo juiz, de ofício, ou se alegada a incompetência relativa pelo réu e reconhecida pelo juiz.
No mínimo é esdrúxula a regra, pois em ambos os casos de incompetência, seja relativa ou absoluta, a solução legal e doutrinária para o caso sempre foi o envio dos autos ao juízo competente, com anulação dos atos decisórios, nos casos de incompetência absoluta, mas jamais a extinção do processo sem resolução do mérito (art. 64, §3°, do CPC).
Ademais, o dispositivo não autoriza se realizar uma interpretação extensiva de que se trata de declaração de incompetência absoluta, nem que o artigo esteja relacionado à questão dos foros regionais, pois pode haver proposição de ações em Juizados que nada tenha a ver com foros regionais. Imagine-se apenas uma comarca em que inexiste foro regional. As causas conhecidas pelos Juizados Especiais Cíveis desta comarca jamais poderiam se utilizar do art.51, III, da Lei n° 9.099/95, então?
Não é a interpretação que melhor se afina ao espírito da Lei n° 9.099/95.
Não havendo, portanto, qualquer dispositivo legal que autorize a interpretação de que a competência territorial dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais seja absoluta, não pode o intérprete assim proceder, pois tal entendimento traz prejuízos a incidência de outras normas, bem como prejuízos, na prática, a alguns jurisdicionados, como o consumidor que prefere propor sua ação no foro do domicílio do réu, por razões, particularíssimas, de celeridade ou, reconhecido melhor entendimento de outro foro ao seu pleito, pois, como se sabe, isso é muito comum.
6. Considerações Finais
Ao cabo do presente estudo, foi possível revisitar as lições doutrinárias acerca do instituto da competência e seus conceitos, demonstrando e exemplificando seus critérios, os diferenciando de outros critérios, mormente, enfrentando-se a árdua distinção entre competência funcional e competência territorial absoluta, tudo com vistas a discutir de forma aprofundada e acurada a questão da competência das causas de consumo propostas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais insertos nos foros regionais.
Com a metodologia da revisão bibliográfica, possibilitou-se ter ampla visão sobre os mais diversos posicionamentos no que concerne ao entendimento dos tribunais pátrios acerca da natureza da competência, tanto em causas individuais de consumo quanto nas mais diversas causas propostas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, citando-se julgados do Superior Tribunal de Justiça, e dos Tribunais de Justiça da Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais dentre outros.
Além da pesquisa jurisprudencial, procedemos a uma apurada revisão bibliográfica doutrinária e legal, em diversos diplomas legislativos pátrios, como: o Código de Processo Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Lei de Ação Civil Pública, a Constituição da República Federativa do Brasil, a Lei dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, a Lei dos Juizados Especiais Federais etc.
Após analisarmos as lições doutrinárias acerca do instituto da competência, bem como, especificamente, a partir das diferenciações tradicionalmente ofertadas entre os critérios de competência territorial e funcional, concluímos que a competência funcional é sempre determinada após o ajuizamento de uma dada ação, tendo como escopo distribuir funções aos mais diversos órgãos jurisdicionais dentro de um mesmo processo, não sendo possível ser fixada antes da propositura de uma ação. Este entendimento está correlato à doutrina processualista alemã. Todavia, muitos doutrinadores brasileiros seguem o pensamento de LIEBMAN, que, por sua vez, se ampara no pensamento de CHIOVENDA e da doutrina italiana, em geral, que não distingue os critérios de determinação da competência territorial do correspondente critério funcional, causando confusões na interpretação dos dispositivos legais que tratam destas competências.
Tal alinhamento à doutrina italiana tem gerado, no Brasil, incompreensões, ausência de técnica, confusões e criações sui generis de institutos jamais descritos na Teoria Geral do Processo, como o é a figura da competência territorial absoluta. Na doutrina alemã, essa figura é absolutamente teratológica, impossível.
Da análise dos dispositivos legais, percebemos que todas as vezes em que o legislador almejou criar uma nova hipótese de competência territorial absoluta o fez expressamente, com a utilização da expressão “competência absoluta”, como é o caso de dispositivos insertos no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do Idoso e na Lei dos Juizados Especiais Federais. Contudo, esta expressão, ou qualquer outra que afirma ser absoluta a competência, não foi inserida na Lei n° 9.099/95. Ao contrário, a intelecção do parágrafo único do artigo 4° desta lei está a indicar competência de natureza territorial relativa, uma vez que confere ao autor a faculdade de ajuizar ações no foro do seu domicílio ou no do domicílio do réu, indistintamente.
A este primeiro argumento em favor da competência territorial relativa das causas que tramitam nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, sejam ou não de consumo, damos o nome de argumento da reserva legal, em homenagem à regra expressa no artigo 5°, II, da Constituição Federal do Brasil.
Outrossim, ao analisar o artigo 101, I, da Lei n° 8.078/90, observamos que, apesar de o artigo estar inserido dentro de uma norma reconhecidamente cogente, de uma lei de ordem pública, ele conferiu uma faculdade ao consumidor de propor ações no foro do seu domicílio ou igualmente no domicílio do réu. E neste ponto, a jurisprudência é esmagadoramente majoritária. Esta, apesar de, em alguns tribunais, reconhecer a referida regra como de competência absoluta, não viu óbice a que o consumidor pudesse escolher entre o foro do seu domicílio ou o do réu. A este último, damos o nome de argumento da interpretação gramatical, pois tal entendimento abstrai-se do verbo “poder” inserto no artigo 101, I, da Lei n° 8.078/90, ou seja, poder indicar faculdade e não obrigatoriedade.
Da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Justiça que a seguem, encontramos algumas contradições e atecnias doutrinárias, uma vez que muitas vezes os magistrados reconhecem como absoluta uma dada competência, com possibilidade de reconhecimento da incompetência de ofício, mas afirmam, inexplicavelmente, que o consumidor pode escolher entre ajuizar a ação no seu domicílio ou no domicílio do réu, e mesmo, que o consumidor teria a possibilidade de renunciar ao benefício instituído exclusivamente em seu favor, ou seja, é contraditório reconhecer uma competência como absoluta e ao mesmo tempo reconhecer a possibilidade de escolha ou modificação da mesma, traço marcante das competências relativas.
Traçando um panorama expressivo e específico do que encontramos nos julgados dos tribunais pátrios pesquisados, chegamos às seguintes conclusões: I - Há tribunais em que impera, jurisprudencialmente, o entendimento de que a competência para conhecer das causas individuais de consumo deve ser fixada em razão do domicílio do consumidor, nos termos do art.101, I, do CDC, sendo que esta regra estabelece uma competência absoluta, uma vez que o CDC é lei de ordem pública que visa a proteger o hipossuficiente (consumidor); II - Há tribunais em que é uníssono exatamente o entendimento contrário, qual seja, o de que a hipótese do art.101, I, do CDC normatizou regra de competência relativa, podendo ser livremente disposta pelo consumidor, sendo impossível ao magistrado declarar sua incompetência de ofício, se a causa não for proposta no domicílio do consumidor; III - Há tribunais em que o entendimento é divergente, havendo quem entenda que o art.101, I, do CDC fixou competência relativa e quem entenda que o dispositivo legal fixou competência absoluta; IV - Há julgados que, curiosamente, afirmam que embora a competência seja sempre absoluta (no caso do art.101, I, CDC), e esta competência tenha sido fixada para facilitar a defesa do consumidor em juízo, este não pode escolher onde ajuizar uma demanda, devendo necessariamente propor ações no foro do seu domicílio. É uma contradição com a ratio essendi da norma; V - O entendimento que afirma ser relativa a competência insculpida no art.101, I, CDC é majoritário nos tribunais de justiça do Brasil. Contudo, o entendimento seguido por algumas turmas do Superior Tribunal de Justiça é de que a referida competência é absoluta. Isso não significa dizer que o STJ sempre entende que o consumidor não possui a faculdade de ajuizar a demanda no domicílio do réu. Ao contrário, demonstramos que há ministros que, apesar de entenderem que a competência insculpida no artigo 101, I, da Lei n° 8.078/90 ser absoluta, o consumidor pode propor a ação utilizando-se da regra geral das leis instrumentais, ou seja, no foro do domicílio do réu. Ao não ler as especificidades dos casos analisados pelo STJ, os magistrados das instâncias inferiores acabam aplicando o entendimento do STJ sem qualquer temperamento e retirando a faculdade conferida ao consumidor no dispositivo consumerista supramencionado.
Nesta mesma esteira, uma vez que os próprios tribunais reconhecem que nas competências relativas é possível às partes modificarem as regras de competência, vemos nesta última observação dois argumentos: o da orientação jurisprudencial majoritária em prol da competência territorial relativa e o do reconhecimento doutrinário de que a utilização do critério territorial gera competência relativa.
Findas estas considerações, posicionamo-nos no sentido de que ao consumidor assiste a faculdade de propor ações seja no seu domicílio seja no domicílio do réu, independentemente de existir em seu domicílio um foro regional, uma vez que esta criação não tem o poder de derrogar a faculdade legal instituída em seu favor no artigo 101, I, da Lei n° 8.078/90.
Para se obter tal conclusão nos utilizamos de interpretação gramatical, de interpretação jurisprudencial majoritária, de interpretação doutrinária, com especial inclinação para a corrente doutrinária processualista alemã, de interpretação legal e constitucional e de interpretação teleológica, tendo em vista que, com exemplos práticos, demonstramos que nem sempre a tramitação de ações no foro do domicílio do consumidor respeita o princípio do acesso à justiça, em sua acepção substancial, ou seja, na acepção que deve respeitar a celeridade, a isonomia e o acesso à ordem jurídica justa, bem como, temos que concluir que nem sempre a proposição de ações no foro do domicílio do consumidor leva à facilitação da defesa dos seus direitos.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao .htm> . Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 2001. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10259.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1° de outubro de 2003. In: Presidência da República. Legislação República Brasileira. Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985. In: Presidência da República. Legislação República Brasileira. Brasília, 1985. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. In: Presidência da República. Legislação República Brasileira. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. In: Presidência da República. Legislação Republica Brasileira. Brasília, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 1995. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em 28mai.2018.
BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. In: Presidência da República. Legislação Republicana Brasileira. Brasília, 2015. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 28mai.2018.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 18ª ed. rev. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v.1.
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Competência no Processo Civil. Material da 5ª aula da disciplina Processo de Conhecimento, ministrada no curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito Processual Civil - Anhanguera-Uniderp|Rede LFG, 2011.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 11ed. rev.ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2009.
____________. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. V. 01. 17ed. —Salvador: Editora JusPodivm, 2015.
MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Curso de processo civil.– 2.ed.rev.atual.São Paulo : Revista dos Tribunais, 2007, V.1.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 2ª ed. São Paulo : Método, 2010.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. – 25ª ed. rev.atual. – São Paulo: Saraiva, 2007, v.1.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Jurisprudência STJ. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 47ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v.1.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Jurisprudência TJPB. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MATO GROSSO DO SUL. Jurisprudência TJMS. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Jurisprudência TJMG. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Jurisprudência TJSC. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANTO. Jurisprudência TJES. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Jurisprudência TJRJ. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Jurisprudência TJRN. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Jurisprudência TJRS. In: DVD Lex Magister. Ed. Magister Ltda. Versão 3.11.03.12. Disponível em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 25jul.2012.
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Direito Processual Civil pelo IBDP e Universidade Anhanguera - SP. Advogado licenciado. Assessor Jurídico do 3° Ofício da Procuradoria Regional do Trabalho da 6ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Hantony Cassio Ferreira da. A questão da Competência das causas individuais de consumo propostas nos Juizados Especiais Cíveis os nos Foros Regionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51801/a-questao-da-competencia-das-causas-individuais-de-consumo-propostas-nos-juizados-especiais-civeis-os-nos-foros-regionais. Acesso em: 02 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: RENAN VINICIUS PIMENTA
Por: Lea Monick dos Santos Caiuby
Por: Laudir Roque Willers Junior
Precisa estar logado para fazer comentários.