KARINE ALVES GONÇALVES MOTA[1]
RESUMO: Com as mudanças nas estruturas familiares, o Direito de Família aos poucos sofre alterações, buscando sempre a garantia dos direitos fundamentais para os indivíduos e a proteção a família. A Multiparentalidade é um novo formato de família, que busca a efetivação dos laços afetivo sem a exclusão dos laços consanguíneos, trazendo assim a multiplicidade de pais, mães e avós. Um tema inovador, que proporciona incertezas e discussões, sendo necessário muitos estudos e pesquisas para sua compreensão. O presente artigo tem como objetivo analisar os efeitos do reconhecimento da multiparentalidade no ordenamento jurídico, retratando a evolução de sua admissão, através de pesquisas doutrinarias, decisões proferidas em alguns Tribunais de Justiça, analise do tema de Repercussão Geral 622 do Supremo Tribunal Federal – STF e do provimento de nº 63 publicado pelo CNJ em novembro de 2017. Desta forma, o referido trabalho irá pontuar os efeitos gerados com a aplicação do reconhecimento da multiparentalidade.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de Família; Multiparentalidade; Efeitos Jurídicos.
ABSTRACT: With changes in family structures, Family Law gradually changes, always seeking the guarantee of fundamental rights for individuals and their family format. Multiparentality is a new family format, which seeks to achieve affective bonds without the exclusion of consanguineous bonds, thus bringing the multiplicity of parents, mothers and grandparents. An innovative theme, which provides uncertainties and discussions, and many studies and research are needed for their understanding. This article aims to analyze the effects of the recognition of multiparentality in the legal system, portraying the evolution of its admission, through doctrinal research, decisions rendered in some Courts of Justice, analysis of the theme of General Repercussion 622 of the Federal Supreme Court and the provision of no. 63 published by the CNJ in November 2017. In this way, the mentioned work will punctuate the effects generated with the application of the recognition of multiparentality.
KEYWORDS: Family Right; Multiparity; Legal Effects.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. DO INSTITUTO FAMILIAR – 2.1. CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO SOCIAL E JURÍDICA; 3. DA FILIAÇÃO – 3.1. ESPÉCIE DE FILIAÇÃO; – 4. A MULTIPARENTALIDADE – 4.1. REQUISITOS PARA O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE – 4.2. O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE PELO STF NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060-SC, E DA ANÁLISE DA REPERCUSSÃO GERAL – 4.3. PROVIMENTO N 63º DA CNJ – 5. AS CONSEQUÊNCIAS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE NO ÂMBITO JURÍDICO – 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS; 7. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
A afetividade ganha forças e cresce ainda mais com o passar dos anos, e para o Direito de Família ela tem se tornado peça fundamental em um processo para que a solução seja sempre em busca do melhor para criança ou indivíduo envolvido.
Com isso iniciou-se uma questão de escolha, sendo discutido se filiação que deveria prevalecer entre a biológica ou a afetiva. Ocorre que conforme a sociedade avançou, formando um novo padrão familiar, o direito obrigou-se a evoluir, assim surgiu a multiparentalidade, que em partes soluciona a questão de filiação biológica e socioafetiva.
Entretanto, para que ocorresse um entendimento sobre toda essa construção da relação afetiva chegar ao ponto de ser igualada aos laços consanguíneos, explanando um breve conceito das entidades familiares, seguido da filiação, que teve a igualdade entre os filhos garantida na Constituição Federal de 1988, e em seguida a proibição de discriminação com as inovações do Código Civil de 2002.
O reconhecimento da multiparentalidade, abriu um leque de aceitações devido a possibilidade do reconhecimento da parentalidade afetiva sem a exclusão da biológica, logo gerou diversos questionamentos a respeito do âmbito patrimonial, pois, o filho que possui dois pais, ou duas mães, pode pleitear alimentos em face de ambos, bem como fazer parte da linha sucessórias deles.
Desta forma o questionamento sobre a multiparentalidade tratar-se meramente de interesses patrimoniais vem sendo descartado, contudo, no caso concreto, caberá somente ao magistrado, analisar o pleito. Este artigo traz o avanço da parentalidade socioafetiva, tal como, decisões proferidas em prol da multiparentalidade, principalmente a repercussão geral 622º do STF, e a análise do crescimento em decisões favoráveis sobre o assunto.
Todavia, a multiparentalidade destaca-se como um avanço e solução para diversas entidades familiares, que conciliam as relações biológicas e afetivas de um modo harmonioso.
2 DO INSTITUTO FAMILIAR
A unidade básica da coletividade é a família, sendo que o instituto familiar possui uma forte influência no desenvolvimento do indivíduo, refletindo nos costumes, valores e na moral.
As famílias romanas, quais eram famílias patriarcais, hierárquicas, tendo como fins reprodutivos e preocupações acerca da preservação patrimonial foi o modelo familiar adotado culturalmente pelo Brasil.
Conforme Bevilaqua (1943, p.15), “o complexo das pessoas que descendem de um tronco ancestral comum, tanto quanto essa ascendência conserva-se na memória dos descendentes”. As famílias brasileiras evoluíram muito sobre esse conceito, sendo que suas estruturas sofrem alterações a cada momento.
2.1 CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA EVOLUÇÃO SOCIAL E JURÍDICA
Família vem do latim famulus e significa grupo de escravos ou servos pertencentes ao mesmo patrão. No dicionário do Aurélio, família tem variados significados, tais como grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto, grupo de pessoas com ancestralidade comum, pessoas ligadas por casamento, filiação ou adoção. A concepção que vem a ser família, é totalmente variável com o tempo, sendo que depende da evolução da sociedade, suas descobertas científicas e seus costumes, sendo impossível idealizar um conceito sólido do que vem a ser família.
A conceituação de família oferece, de plano, um paradoxo para sua compreensão. O Código Civil não a define. Por outro lado, não existe identidade de conceitos para o Direito, para a Sociologia e para a Antropologia. Não bastasse ainda a flutuação de seu conceito, como todo fenômeno social, no tempo e no espaço, a extensão dessa compreensão difere nos diversos ramos do direito. (VENOSA, 2010)
É inquestionável a importância da família na vida do indivíduo, sendo necessário até para o melhor desenvolvimento do mesmo em sociedade. É visivelmente compreensivo a força das famílias, independentemente de sua estrutura familiar, que atualmente não possuem as mesmas características e padrões formais, os quais eram impostos antigamente.
A concepção de família romana foi modificada pela Igreja Católica, que transformou a união entre homem e mulher em uma instituição sacralizada, indissolúvel, um ato solene e único. A dissolução dessa união era impossível aos olhos da igreja católica, o qual influenciou durante anos no ordenamento jurídico do Brasil.
Conforme as entidades familiares foram evoluindo criando diversos modelos de famílias, tais como as que os casais eram conviventes, não obtendo sua união registrada civilmente, casamentos que eram dissolvidos, filhos advindos de outros relacionamentos, famílias que eram compostas apenas pela mãe ou pelo pai. Desta forma o ordenamento jurídico, absorveu essas mudanças e inovou com a Constituição de 1988.
A Constituição Federal de 1988 foi a responsável pela consagração de todo um rol de princípios fundamentais a receberem proteção constitucional, dos quais muitos se remetem as relações familiares.
Nas palavras de Paulo Lôbo: “um dos maiores avanços do direito brasileiro, principalmente após a Constituição de 1988, é a consagração da força normativa dos princípios constitucionais explícitos e implícitos, superando o efeito simbólico que a doutrina tradicional a eles destinava” (LÔBO, 2011, p.57). Sendo a Dignidade da Pessoa Humana o princípio basilar do ordenamento jurídico. Ele está previsto no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, no inciso III, o qual enuncia que o Estado Democrático de Direito Brasileiro fundamentar-se-á sobre ele, de modo a o tornar um princípio, que deve servir de base para a interpretação dos demais preceitos constitucionais (TARTUCE, 2010).
O direito de família está claramente ligado com à dignidade da pessoa humana, que tem reconhecimento jurídico da igualdade do homem e da mulher, de outros modelos de família e na igualdade dos filhos. Assim, constata-se que, no âmbito do Direito de família, tal princípio repercute essencialmente na ideia de aceitação das plurais modalidades familiares contemporaneamente verificados. Nas palavras de Pereira (2005, p.100), o princípio da dignidade da pessoa humana “significa, em primeira e última análise, uma igual dignidade para todas as entidades familiares”.
Assim, a dignidade da pessoa humana compreende diversos tipos de filiação, impedindo tratamento diferenciados entre filhos de origens diversas e preservando todas as formas de parentalidade.
Segundo o Dicionário Jurídico Compacto (OLIVEIRA NETTO, 2015), filiação significa “relação que existe entre uma pessoa e outra de quem descende em primeiro grau, também, do vínculo de parentesco que liga uma pessoa em relação ao seu pai ou sua mãe”. Esse vínculo mencionado no referido significado é fundamental ao amplo desenvolvimento psicológico, emocional e social dos sujeitos envolvidos na dita relação filial e pode ser constituído de diversas origens, tais como, jurídica, biológica e socioafetiva.
O conceito de filiação evoluiu ao longo da história da humanidade, sendo a principal evolução ocorrida na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, § 6, que declara direitos e qualificações dos filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, proibindo ainda qualquer discriminação relativa a filiação. Esse texto constitucionaltrouxe proteção e validação jurídica para todos os vínculos filiais, especialmente a proibição de qualquer discriminação, sendo esta proibição reafirmada no artigo 1.596, do Código Civil de 2002.
Destaca-se que a filiação possui três espécies, filhos legítimos, ilegítimos e adotivos, porém a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos deixou de existir com a evolução da sociedade e do ordenamento jurídico, sendo que os legítimos são havidos na constância do casamento e o ilegítimo fora do casamento, mas ambos possuem iguais direitos e qualificações, todos são apenas filhos. O ordenamento jurídico estabelece que, para os filhos decorrentes do casamento, há uma presunção de paternidade,enquanto para os havidos fora do casamento, há critérios para o reconhecimento judicial ou voluntário, e para os adotados, há requisitos para sua efetivação.
3.1 ESPÉCIES DE FILIAÇÃO
Conforme mencionado acima, sobre a filiação o Código Civil elenca as hipóteses em que se presume que os filhos foram concebidos na constância do casamento, assim estabelece:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Filiação matrimonial, ou seja, aquela originada na constância do casamento dos pais, seja ele válido, nulo ou anulável, ou até mesmo antes da celebração do casamento, mas nascida durante a sua vigência, por reconhecimento dos pais.
Os incisos I e II do artigo 1.597 repetem alguns princípios do Código Civil de 1916. O primeiro inciso estabelece a presunção de que foram concebidos durante o matrimonio os filhos nascidos em um prazo mínimo de 180 dias (seis meses) a contar do momento em que se estabelece a convivência conjugal, e não da data da celebração do casamento. O segundo inciso estabelece que são filhos havidos durante o matrimonio se nascidos dentro dos 300 dias subsequentes à dissolução do casamento, tenha este ocorrido por morte, separação, divórcio, nulidade ou anulação.
Os incisos III, IV e V do artigo 1.597 trazem hipóteses inovadoras e únicas, no Código Civil sobre a presunção de filhos tidos na constância do matrimônio, concebidos por meio da reprodução humana assistida.
Além do exposto, o reconhecimento da filiação pode ser voluntário, sendo ato pessoal dos genitores, não podendo ser feito por avô ou tutor, sucessores do pai ou herdeiros do filho, salvo os casos efetuados por meio de procuração. O reconhecimento é irrevogável e irretratável, porém pode ser anulado caso seja praticado com vício de vontade, coação, erro, ou se não observar certas formalidades legais.
Referente a filiação ilegítima, o qual não mencionada atualmente, pois filhos são filhos, destaca-se que caso o reconhecimento da filiação não ocorra de modo voluntário, este reconhecimento pode ocorrer de modo judicial, através do ajuizamento de ação de investigação contra o pai, a mãe ou contra ambos. Por fim, o reconhecimento produz efeitos extunc, fazendo constar o fato no Registro Civil, sem qualquer referência à filiação ilegítima.
Frisa-se que a aceitação de uma criança ou adolescente como filho por pessoas maiores, independentemente de seu estado civil tem por finalidade um ato jurídico chamado de adoção, que é simplesmente atribuir a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, sem nenhuma discriminação. Essa relação inicia-se através do vínculo afetivo que ambos desenvolvem. Com a adoção o adotado é desligado de qualquer vínculo jurídico com os pais e parentes consanguíneos, assim assume nome e sobrenome da nova família.
De acordo com Lôbo (2011 p. 35), um dos aspectos mais importantes em razão da promulgação da Constituição de 1988 foi a transformação da natureza socioafetiva em gênero, abrangendo tanto as espécies biológica quanto a as afetivas, devidos aos diversos questionamentos e discussões sobre o vínculo biológico prevalecer sobre o vínculo afetivos ou vice-versa, que surgiu de forma ponderada a possibilidade de as duas espécies prevalecer, surgindo assim, a multiparentalidade.
A multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado (a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado (a) o ama e o (a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos, ocorre que essa legitimação tomou uma proporção maior, e além do reconhecimento do padrasto ou madrasta, muitos pedidos são para o reconhecimento de pessoas que possuem um vínculo afetivo, independentemente de ter uma relação conjugal com o pai ou mãe biológica, exigindo assim do judiciário uma preocupação a respeito do real interesse.
Dessa forma, a multiparentalidade diverge da adoção unilateral em que o cônjuge ou companheiro do pai ou mãe do enteado adota este, o que resulta no total rompimento dos vínculos jurídicos com o outro genitor, salvo os impeditivos de casamento. Nesta modalidade de adoção unilateral, não há alteração da paternidade/maternidade do cônjuge ou companheiro do adotante, bem como do exercício do poder familiar e nos vínculos jurídicos.
A multiparentalidade é uma forma de reconhecer no campo jurídico o que ocorre no dia-a-dia. Afirma a existência do direito a convivência familiar que a criança e o adolescente exercem por meio da paternidade biológica em conjunto com a paternidade socioafetiva.
4.1 REQUISITOS PARA O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
Entendendo o conceito de multiparentalidade, na prática, o Direito passa a legitimar aquele que cria, educa e ama como se seu filho fosse, embora não tenha com ele laços consanguíneos. Assim, é reconhecido juridicamente a filiação afetiva de pai ou mãe com esse filho, sem excluir a filiação consanguínea.
Desta forma vem surgindo duvidas e questionamentos a respeito qual a situação e quais os requisitos necessários para a propositura da ação de multiparentalidade. Ocorre que a multiparentalidade não possui uma legislação própria, assim cada caso é analisado de forma específica, não coexistindo um padrão. Logo, é possível afirmar que a multiparentalidade busca a melhor solução para as partes, principalmente quando envolve menor de idade, a busca é sempre do melhor interesse da criança.
Uma decisão da 3º Turma do Superior Tribunal de Justiça negou recurso de uma mãe que buscou para sua filha o direito do reconhecimento do pai biológico sem a exclusão do pai registral seu pai afetivo. A criança foi registrada pelo homem que convivia com sua mãe em união estável, ocorre que mesmo sem obter certeza da paternidade, escolheu registra-la e cria-la como filha. O recurso foi negado pois os relatores compreenderam que neste caso concreto não seria a melhor solução para a criança.
O Ministro Marco Aurélio Bellizze, relator desse processo, afirmou que concomitância de partenalidades não é uma regra. Segundo ele, só possível o reconhecimento quando houver circunstâncias fáticas que a justifique, "não sendo admissível que o Poder Judiciário compactue com uma pretensão contrária aos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável”.
Conforme o estudo social, o pai biológico não demonstrou nenhum interesse em registrar a filha ou em manter vínculos afetivos com ela. No momento da propositura da ação, a mãe, o pai socioafetivo e a criança continuavam morando juntos. Além disso, ficou comprovado no processo que o pai socioafetivo desejava continuar cuidando da menina.
O relator observou, que esse reconhecimento concomitante é válido desde que prestigie os interesses da criança, o que não ficou demonstrado no processo. “O melhor interesse da criança deve sempre ser a prioridade da família, do Estado e de toda a sociedade, devendo ser superada a regra de que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica, e vice-versa”
As instâncias ordinárias, chegou a conclusão que a ação foi ajuizada unicamente porque a genitora pretendia criar uma aproximação forçada com o pai biológico. Por fim o ministro enfatizou que a própria filha, caso deseje, poderia ajuizar na justiça, futuramente o reconhecimento de paternidade.
Com essa negativa é possível analisar que não existe de fato um padrão, com requisitos para seguir. A multiparentalidade requer um estudo do caso concreto e uma análise de todos os fatores para que seja julgada procedente. Frisa-se que o requisito primordial é os laços afetivos gerado por meio de uma convivência de filho, não obtendo de idade mínima da criança para que seja ajuizada a devida ação.
4.2 O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE PELO STF NO JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060-SC, E DA ANÁLISE DA REPERCUSSÃO GERAL 622
O recurso trata de um pai biológico que recorreu contra um acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais. O caso concreto era de uma pessoa que descobriu após a separação de seus pais, que sua genitora teve um relacionamento extraconjugal o qual resultou em seu nascimento, desta forma a mesma ajuizou ação de reconhecimento de paternidade, o qual através de exame de DNA ficou comprovada a paternidade. Ocorre que o pai biológico não concordou com a paternidade, o qual gerava efeitos patrimoniais, alegando que a filha afirmou que continuaria os vínculos com o pai socioafetivo.
Em sessão realizada em 21 de setembro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Assim, com a maioria dos votos, os ministros negaram provimento ao recurso e decidiram pela decisão de multiparentalidade.
Nesta ação o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), atuou na qualidade de amicuscuriae (amigo da corte), defendendo a igualdade de filiação, conforme mencionado acima sobre filhos legítimos e ilegítimos, os quais não existem mais distinção.
A maioria dos ministros seguiram o mesmo fundamento que não seria necessário a escolha de uma das paternidades, biológicas ou afetiva, sendo que ambas podia ser concomitantemente. Nesse caso foi fixada a tese de repercussão geral 622: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Essa tese serve de paramento para casos semelhantes, em trâmite na justiça ou futuros. Foi um avanço para o direito de família, uma decisão que consolida a afetividade, mostrando que não tem uma modalidade de vínculo que deve prevalecer, colocando assim a filiação afetiva e biológica no mesmo patamar.
Destaca-se que essa tese não soluciona todos os casos de multiplicidade de paternidade ou maternidade, sendo necessário a discussão e análise de cada caso concreto, porém o STF trouxe com essa tese o reconhecimento da existência da multiparentalidade.
4.3 PROVIMENTO N 63º DA CNJ
Recentemente mais uma evolução do Direito de Família, a publicação do Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, que institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, permitindo ainda o reconhecimento voluntário da paternidade e maternidade socioafetiva sem a necessidade do ajuizamento de ação.
Para Ricardo Calderón (2017), diretor nacional do IBDFAM e mestre em Direito Civil, este Provimento vem em um bom momento, pois pode beneficiar um grande número de pessoas. “O Provimento acolhe um Pedido de Providências do próprio IBDFAM, no qual o Instituto demandava a unificação nacional da possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente nos cartórios de Registro Civil. Esta normativa consagra acolhimento extrajudicial do princípio da afetividade, de modo que é possível dizer que ele chega aos balcões dos cartórios. O fato de permitir que as filiações socioafetivas sejam consagradas diretamente nos ofícios registradores, sem necessidade de ação judicial, é mais um evento representativo do fenômeno da extrajudicialização que estamos vivendo no Direito brasileiro”, afirma.
Contudo vale ressaltar que o artigo 14 desse provimento retrata “O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento”. Logo é possível destacar que o mesmo provimentotrouxe consigo diversas discussões, pois alguns doutrinadores interpretaram esse artigo como a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade ocorrer diretamente em cartório de registro, enquanto outros doutrinadores afirmam que a multiparentalidade continua sendo possível apenas em decorrência de ação judicial.
Logo, é possível afirmar que a multiparentalidade é um tema ainda em construção, e que necessita de muitas pesquisas e acompanhamento nas decisões proferidas pelos tribunais, e devido ao provimento 63 ter sido publicado recentemente é meramente necessário discutir sobre o tema, uma vez que garante a possibilidade de garantir a filiação socioafetiva.
5 AS CONSEQUÊNCIAS DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE NO ÂMBITO JURÍDICO
É possível verificar que toda mudança e o novo assusta e causa duvidas, e com o reconhecimento da multiparentalidade não poderia ser diferente, desta forma podemos pontuar os principais questionamentos acima dessa novidade do direito de família.
Inicialmente o direito ao nome é a primeira mudança ocorrida após o reconhecimento da multiparentalidade, juntamente com o direito ao parentesco, após acrescentar ao registro civil o nome de mais uma genitora ou genitor, automaticamente acrescenta-se os dos avós. Desta forma o indivíduo pertencerá a toda a cadeia de parentesco. Imagine um indivíduo sendo reconhecido por mais uma mãe e um pai, sem a exclusão dos biológicos, desta forma essa pessoa passa a ter em seu registro duas mães, dois pais, e provavelmente oito avós. Consequentemente a alteração irá ocorrer em todos os documentos pessoais deste indivíduo.
Obtendo três ou mais pessoas como genitores, principalmente de um menor pode causar alguns conflitos no direito civil, tais como a concessão a emancipação, o qual é necessário a autorização dos pais conforme artigo 5º, parágrafo único, inciso I, do Código Civil, que estabelece: “I - pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos”. Assim, se algum dos genitores não concordar com a emancipação, a lide terá que ser resolvida judicialmente, conforme previsão legal no artigo 1.631 do Código Civil, que estabelece em seu parágrafo único: “Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo”.
Em seguida o tema mais preocupante, a guarda, pois caso o indivíduo seja menor de idade, existe assim, a garantia dos pais quanto a guarda e direito de convivência, imaginando que esse menor tenha duas mães e dois pais, os quatro não iram residir na mesma residência, ocasionando assim uma multiplicidade de obrigações e desejos de convivência com o menor. Quantos conflitos referentes a guarda chegam no judiciário, e com a multiparentalidade quantos mais chegarão? A multiparentalidade para menores traz com ela diversas dúvidas e preocupações. Imaginando que uma um menor tenha em seu registro uma mãe e dois pais, e em um determinado tempo os genitores entram em conflito, transformando a convivência harmoniosa em uma convivência de disputas pela guarda, visitas e moradia do menor.
O tema é preocupante, pois a quantidade de processos existentes nas varas de famílias em consequência da disputa de guarda já é bastante, e com a multiparentalidade envolvendo menores pode ainda mais sobrecarregar o judiciário, fazendo necessário mais atenção e cautela. Frisa-se que a preocupação é quanto o bem-estar do menor, e nessas ações de guarda são os que mais sofrem.
Com a determinação da guarda, acompanha-se a discussão quanto aos alimentos, que para Lôbos (2011, p. 371) “tem o significado de valores, bens ou serviços destinados às necessidades existenciais da pessoa, em virtude de relações de parentesco, quando ela própria não pode prover, com seu trabalho ou rendimentos, a própria mantença”. Alimentos este que é fixado conforme necessidade do reclamante e possibilidade do alimentante. Com a multiparentalidade essa obrigação estende-se a todos os genitores e consequentemente aos avós, a reflexão parte quanto a pensão alimentícia ser fracionada, sendo assim o alimentado prejudicado, devido à grande proporção de inadimplementos.
Destaca-se que futuramente essa obrigação de prestação de alimentos e assistência pode ser invertida, e caso os pais venham necessitar ambos podem ajuizar em desfavor do filho ação de alimentos, conforme previsto no artigo 229 da Constituição de 1988, que determina “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”, logo essa prestação alimentar aos pais é garantida, na hipótese do indivíduo que possui três ou mais genitores em seu registro civil, e estes necessitarem de alimentos, esse seria obrigado a prestar alimentos, sempre analisando a necessidade do requerente versos a possibilidade de pagar do alimentante.
A multiparentalidade sendo admitida, todos os seus efeitos apresentados acima são estendidos, principalmente ao direito à herança. Sendo garantido o direito ao indivíduo a receber herança de quantos pais/mães este tiver. É necessária muita atenção dos juristas ao julgar a ação de multiparentalidade para que não torne uma jogada de interesses para fins financeiros e sucessórios.
No Código Civil, em seu artigo 1.845, determina que “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”, logo é possível verificar que os filhos entram na primeira linha sucessória, sendo de extrema atenção se o interesse, em ser reconhecido civilmente pelo padrasto, madrasta ou outra pessoa em que alega possuir um vínculo sociafetivo, não seja por motivo de interesses patrimoniais.
Conforme foi possível verificar, existe diversos pontos confusos quanto a multiparentalidade, mostrando assim, a necessidade uma legislação própria para que estabeleça um rol básico de qual momento será permitido a propositura da ação. Sendo importante determinar quantos pais/mães serão permitidos acrescentar no registro civil do interessado, porém a questionamentos contrários referente a necessidade de um rol taxativo, vez que as estruturas familiares estão em constantes alterações e esse rol não seria suficiente para atender as diversidades familiares.
Diante de tantas novidades e a falta de uma legislação especifica, a responsabilidade dessas ações ficam cada vez mais na responsabilidade dos juristas, sendo necessário mais cautela e análise de cada caso concreto.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ademais, podemos analisar que a definição de família evoluiu de forma significativa, sendo recebida pelo ordenamento jurídico e modificada cada vez mais. Nesse estudo destacamos o conceito de família, desde a sua evolução social e jurídica, seguimos para uma análise das espécies de filiações, o qual tem papel fundamental para o início da multiparentalidade.
Com a diversidade das entidades familiares e o afeto generoso e despretensioso que as pessoas conseguem sentir pelo próximo, o ordenamento jurídico adaptou-se a um novo formato familiar, a parentalidade socioafetiva, que ultrapassa os laços consanguíneos e os padrões antigos de conceito de família.
Nesse novo formato familiar, a parentalidade afetiva passa a caminhar lado a lado aos laços biológicos, sempre buscando a proteção do indivíduo. Logo, foi possível destacar que a multiparentalidade trouxe a possibilidade de garantir as relações afetivas, juntamente com a relação biológica, sem a necessidade de exclusão, sendo que anteriormente era necessário uma sobrepor a outra.
Ressalta-se que o reconhecimento da multiparentalidade evoluiu recentemente para a possibilidade consensual, conforme provimento do CNJ, buscando assim o direito ao registro civil e as garantias de todos os efeitos jurídicos, de um modo simples e prático para famílias que estão de comum acordo, além de diminuir o fluxo de ações no judiciário.
Contudo, esse fenômeno multiparentalidade ainda será objeto de muito estudo, pesquisas e adaptações para com nossa legislação. Devido aos diversos problemas previsíveis ou não, faz necessário uma legislação especifica, que previna a garantia desse direito a multiplicidade nos registros civis.
7. REFERÊNCIAS
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[1] Professora do Curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo; Mestre em Direito pela Universidade de Marília e doutoranda em Tecnologia Nuclear IPEN/USP. Palmas – TO. E-mail: [email protected]
Bacharelanda do curso de Direito pela Faculdade Serra do Carmo - FASEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPOS, Thaís Mônica de Sousa. Os reflexos do reconhecimento da multiparentalidade no âmbito jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/51919/os-reflexos-do-reconhecimento-da-multiparentalidade-no-ambito-juridico. Acesso em: 02 nov 2024.
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