Resumo: Trata-se de artigo que pretende trazer à debate reflexões sobre a aplicação da prescrição às pretensões deduzidas por herdeiros/sucessores de perseguidos políticos durante a ditadura militar, bem como a necessária distinção da tese da imprescritibilidade aplicada aos próprios perseguidos políticos.
Palavras-chaves: Prescrição. Perseguição política. Herdeiros. Dano moral por ricochete. Imprescritibilidade.
Sumário: 1. Introdução – 2. Necessária diferenciação da imprescritibilidade dos danos morais sofridos pelos próprios perseguidos da prescritibilidade da pretensão em demandas propostas por parentes – 3. Conclusão – 4. Referências
1. INTRODUÇÃO
Em decorrência das violações a direitos fundamentais cometidas durante o período militar, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, firmou-se no sentido de que a pretensão de indenização por danos morais decorrentes pelos atos de tortura pode ser pleiteada a qualquer tempo, não se submetendo ao prazo prescricional quinquenal a que o Estado se sujeita.
Entretanto, é preciso distinguir a hipótese em que a indenização por dano moral é discutida por sucessores/herdeiros (e não pelo próprio perseguido e torturado), sob o fundamento da dor relacionada à perseguição de parente pelo regime militar, naquilo que a doutrina chama de dano moral por ricochete.
2. NECESSÁRIA DIFERENCIAÇÃO DA IMPRESCRITIBILIDADE DOS DANOS MORAIS SOFRIDOS PELOS PRÓPRIOS PERSEGUIDOS DA PRESCRITIBILIDADE DA PRETENSÃO EM DEMANDAS PROPOSTAS POR PARENTES
De início, deve-se registrar que o STJ fixou a tese da imprescritibilidade em ações cujo objetivo é o reconhecimento de danos morais, em face do Estado, pela prática de atos ilegítimos decorrentes de perseguições políticas perpetradas por ocasião do golpe militar de 1964, quando o postulante é o próprio perseguido político[1].
De acordo com o STJ, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem cominar prazo prescricional, de modo que deve prevalecer sobre a regra especial prevista no Decreto n.º 20.910/32.
Consectariamente, não há que se falar em prescrição de ação que visa a implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir correspondente ao direito inalienável à dignidade.
Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PRISÃO ILEGAL E TORTURA DURANTE O PERÍODO MILITAR. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL PREVISTA NO ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. NÃO-OCORRÊNCIA. IMPRESCRITIBILIDADE DE PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DURANTE O PERÍODO DA DITADURA MILITAR. RECURSO INCAPAZ DE INFIRMAR OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto 20.910/32. Isso, porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana.
2. "Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade" (REsp 816.209/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 3.9.2007).
3. "No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição qüinqüenal prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento as suas pretensões" (REsp 1.002.009/PE, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 21.2.2008).
4. Agravo regimental desprovido (AgRg no Ag 970.753/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 12/11/2008).
Nesta esteira, prevaleceu o entendimento de que, os direitos fundamentais como garantidores à convivência digna, livre e igual dos cidadãos, não se submetem à prescrição.
Entretanto, é preciso distinguir a situação em que os herdeiros dos perseguidos políticos demandam o Estado, pleiteando danos morais, em razão de referidos atos de perseguição política, em nome próprio, exercendo uma legitimidade processual ordinária.
O entendimento que aqui se propõe é que, no caso de os demandantes serem sucessores do perseguido político, a tese da imprescritibilidade – aplicada aos perseguidos – não se aplica; trata-se de pleito patrimonial, relacionado a direito próprio, e, portanto, prescritível.
Sobre o tema, há recente decisão do STJ no sentido da prescritibilidade da pretensão em exame, proferida no REsp 1.669.328/SC:
"Quanto à negativa de vigência ao art. 1º do Decreto nº 20.910/32, arts. 12 e 943 do Código Civil e art. 2º da Lei nº 10.559/2002, com relação à proclamação da prescrição, a irresignação não merece prosperar.
Registra-se que não se ignora o entendimento da jurisprudência pela imprescritibilidade de ações indenizatórias decorrente de prisão e demais abusos cometidos durante o regime militar, considerando-se a extrema gravidade dos atos perpetrados, violadores de direito fundamentais. Entretanto, faz-se necessário distinguir se o autor da ação é o próprio sofredor dos danos causados pela repressão política ou seus sucessores.
Sendo o anistiado político o autor da ação, não há falar em prescrição do fundo de direito, visto que, após decorridos cinco anos da promulgação da Carta da República, houve a promulgação da Lei n° 10.559/02, implicando renúncia à prescrição do fundo de direito, conforme pacificado pela jurisprudência do STJ.
Por outro lado, caso a ação seja intentada pelos sucessores, como acontece nesses autos, não há falar em imprescritibilidade ante a patrimonialidade do direito sucessório. No caso concreto, a ação foi proposta pela viúva do suposto anistiado político (Lucy Gomes de Oliveira).
Assim, não estão eles à margem do prazo prescricional. No caso, a prescrição aplicável é a regra geral da prescrição quinquenal prevista no Decreto n° 20.910/32.
Tendo o autor da herança falecido em 1969, e tendo a ação sido proposta em 2015, estão prescritas todas as parcelas pleiteadas na presente ação. Ocorrida a transmissão, por herança, do direito de exigir a reparação do dano moral sofrido pelo de cujus, não se está mais diante de direito imprescritível, de personalidade, e sim de direito patrimonial. Assim, a alegação da incidência da prescrição pode ser formulada a qualquer tempo. Em relação à Fazenda Pública, aplica-se a orientação indicada pelo Decreto n° 20.910/32. Nesse sentido, precedente do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - OMISSÃO DO JULGADO. INOCORRÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARA PREQUESTIONAMENTO. MULTA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 538 DO CPC. EXCLUSÃO - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. MILITAR DA MARINHA DE GUERRA. DESLIGAMENTO. PROBLEMAS PSÍQUICOS. SUICÍDIO. INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO. TERMOS QUO.
(...)
3. É de cinco anos o prazo prescricional da ação de indenização contra a Fazenda Pública, nos termos do art. Io do Decreto 20.910/32, que regula a prescrição de "todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza ". Na fixação do termo a quo desse prazo, deve-se observar o universal princípio da actio nata.
4. No caso, a ação foi ajuizada em 20.11.2003, cerca de quarenta e quatro anos após a ocorrência do evento danoso que constitui o fundamento do pedido, qual seja, o falecimento do ex-combatente de guerra da Marinha do Brasil ocorrido em 23.12.1959, o que evidencia a ocorrência da prescrição.
5. Recurso especial a que se dá parcial provimento." (REsp. 926951/SC, 1ª Turma, Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 02.08.2007)
Ou seja, no caso em apreço, a inércia da parte autora fulminou o suposto direito pleiteado, haja vista que muito mais de cinco anos medeiam a data do ato que constituiria o alicerce do pretenso direito deduzido e a propositura da presente ação. Ainda que se entenda pela imprescritibilidade quanto ao fundo do direito com relação a anistiado, é de ser aplicada a prescrição quinquenal quanto aos retroativos.
Assinale-se, de igual modo, que não merece ser conhecido o Recurso Especial, com base no dissídio jurisprudencial, no que tange à prescrição quinquenal, com fundamento no Decreto 20.910/32, pois as mesmas razões que inviabilizaram o conhecimento do apelo, pela alínea a, servem de justificativa quanto à alínea c do permissivo constitucional.
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso especial e, nesta parte, nego-lhe provimento, com fundamento no art. 255, § 4º, I e III, do RI/STJ.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 15 de setembro de 2017.
MINISTRO FRANCISCO FALCÃO
Relator
(Ministro FRANCISCO FALCÃO, 04/10/2017)"
Deve-se atentar, ainda, que temos a figura, no presente caso, do dano moral pela via reflexa ou por ricochete, pelo qual o ato ilícito atinge a terceiras pessoas, em razão do dano praticado em relação à vítima.
A jurisprudência do STJ tem entendimento pacifico[2] de se reconhecer a legitimidade ativa ordinária de terceiros para pleitear a compensação por dano moral por ricochete, porquanto experimentarem, comprovadamente, os efeitos lesivos de forma indireta ou reflexa.
Entretanto, deve-se ressaltar que o dano moral por ricochete é específico e autônomo ao dano moral direto vivido pela vítima; por esta razão, incabível a aplicação da teoria da imprescritibilidade, a qual é a exceção no Direito Brasileiro.
Como regra, deve-se aplicar as regras civilistas ao caso, incidindo o instituto da prescrição quinquenal aplicada à Fazenda Pública.
A prescrição é instituto destinado à preservação da ordem pública, em benefício do mais alto interesse social, para a estabilidade da segurança jurídica e das relações sociais. Os litígios, portanto, não podem ser eternizados.[3]
A Constituição, que em várias passagens faz referência ao instituto da prescrição (além do art. 37, § 5º, o art. 53, § 5º e o art. 146, III, b), enumera explicitamente as hipóteses de imprescritibilidade: art. 5º, incisos XLII e XLIV. Se a prescritibilidade das ações e pretensões é a regra - pode-se até dizer, o princípio -, a imprescritibilidade é a exceção, e, por isso mesmo, a norma que a contempla deve ser interpretada restritivamente.
O comparecimento em juízo dos sucessores, anos após o fim do movimento militar, vários anos após o falecimento da vítima, postulando indenização, é incompatível com a estabilidade e previsibilidade que se deseja imprimir às relações sociais.
3. CONCLUSÃO
Assim, de acordo com o entendimento aqui esposado, se quem comparece em juízo é o sucessor, para, após o falecimento da vítima, pleitear indenização pelo dano por ela sofrido, que lhe cabe por herança, incide a prescrição na forma da lei de regência para as demandas contra a Fazenda Pública. Trata-se de reparação patrimonial buscada pelo herdeiro ou sucessor, que não mais se reveste da proteção especial destinada aos direitos de personalidade da vítima violados.
4. REFERÊNCIAS
- PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de Direito Privado, Tomo VI, 4ª ed., RT, 1974;
- MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2002;
- OLIVEIRA, Almir de. "Curso de Direitos Humanos". Rio de Janeiro: Forense, 2000;
- CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
[1] No REsp nº 959904 / PR, o Ministro Luiz Fux assim consignou: A exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1.º
[2] Vide REsp 1.076.160-AM, divulgado pelo Informativo 495/STJ.
[3] Nas palavras de Pontes de Miranda, "a prescrição, em princípio, atinge a todas as pretensões e ações, quer se trate de direitos pessoais, que de direitos reais, privados ou públicos. A imprescritibilidade é excepcional" (PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de Direito Privado, Tomo VI, 4ª ed., RT, 1974, § 667, p. 127).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense/RJ<br>Advogada da União. Pós-Graduada em Especialização em Direito Constitucional.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KABOUDI, Layla. Prescritibilidade da pretensão em demandas propostas por parentes de anistiado politico perseguido durante a ditadura militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52119/prescritibilidade-da-pretensao-em-demandas-propostas-por-parentes-de-anistiado-politico-perseguido-durante-a-ditadura-militar. Acesso em: 01 nov 2024.
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