CLARICE PIRES MARQUES
(Orientadora)
RESUMO: O presente trabalho objetiva a reflexão crítica sobre o tema da função social da posse, e sua ligação com o direito à moradia e o direito à propriedade. Inicia-se com um histórico da configuração das moradias no Brasil, evidenciando o aspecto de interesse privado sobre a propriedade, em que possui caráter de mitigação dos direitos sociais. Após, com um viés jurídico que preleciona a função social da propriedade e logo, da posse, é feita uma crítica relacionada às ocupações de imóveis e os sujeitos envolvidos, com o objetivo de mostrar a razoabilidade de prevalência de direitos, sem que não seja mitigado o interesse público. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliografia e a análise documental.
Palavras-chaves: posse; função social; dignidade; moradia; propriedade.
Sumário: Resumo - 1. Introdução - 2. Breve Histórico da Moradia no Brasil- 3. Constituição Federal e Código Civil de 2002: uma vertente sociológica - 4. A questão da moradia no Brasil - 5. Conclusão 6. Referências
1. Introdução
A Constituição brasileira de 1988 prevê a limitação do poder de propriedade por sua função social. Nesse aspecto, a posse, que seria uma situação de fato que aparenta ser propriedade, acabar por se inserir em tal dispositivo, devendo, portanto, ser respeitada e protegida.
Em uma análise histórica, depreende-se que a questão de ocupações de moradias e terras não é novidade, e possui uma nascente. A propriedade foi sempre uma prioridade e por anos tida apenas como um direito. Em oposição a isso, a Constituição também a colocou como um dever. Logo, a propriedade que não esteja em exercício da função social, está em uma situação de ilegalidade.
Quando se coloca a posse como um reflexo da propriedade, pois a aparenta, ela é consequentemente protegida, por mais que exista um título que comprove o último. Dá-se isso por ser uma questão social, e refere-se a direito imóvel, de moradia. É relevante desse modo, a consideração e o estudo das teorias sociológicas da posse, para o entendimento da questão das ocupações, em suas diversas diferenças de sujeitos.
Nesse raciocínio, faz-se uma abordagem breve de como aconteceu o processo de estruturação das moradias no Brasil, com as suas devidas dificuldades, sobretudo com o processo de europeização de grandes cidades, como o Rio de Janeiro, que derrocou na criação das favelas.
Em seguimento, se faz uma análise jurídica das teorias que vigem no Código Civil brasileiro sobre a posse, e a vertente social que a Constituição brasileira de 1988 trouxe sobre o tema, estabelecendo limitações sobre o direito à propriedade, devendo esta, obedecer a uma função social. Por fim, há uma contextualização de acontecimentos recentes que envolvem a problemática das ocupações e da função social, existente em um conflito de interesses, entre proprietários e aqueles que não possuem moradia. O método utilizado foi pesquisa bibliográfica e análise documental.
2. Breve Histórico da Moradia no Brasil
Em vista de uma contextualização da importância da função social da posse, uma base histórica brasileira sobre a o processo de configuração das moradias faz-se de suma relevância, tomando em conta os diversos atores envolvidos, no que se refere aos proprietários e as famílias sem moradias e que ocupam.
Em um primeiro momento, tem-se que a própria divisão inicial das terras brasileiras aconteceu de forma limitada a detentores de poder perante a corte portuguesa, e foi mantida até por volta de 1821, não muito tempo antes da abolição da escravatura, em 1888. O episódio, que teoricamente seria algo plausível, provocou um desequilíbrio maior na organização das moradias, considerando que na verdade, os que eram mantidos como escravos, não tiveram a garantia da moradia. O processo de urbanização é compreendido por Darcy Ribeiro (2015):
Assim, apesar das imensas diferenças que mediavam entre as formações socioculturais europeias e brasileiras, ambas eram fruto de um mesmo movimento civilizatório. Com a industrialização se altera essa constelação urbana no que tinha de fundamental, que era sua tecnologia produtiva, transformando todo o seu modo de ser, de pensar e de agir. Provocaria uma sequencia de alterações reflexas nas sociedades dependentes, de natureza tanto técnica quanto ideológica que, aqui também, transfigurara o caráter da própria civilização. (RIBEIRO, 2015, p. 149).
Soma-se a isso, o processo de europeização de algumas cidades brasileiras, no início do século XX, que consistiu na desapropriação das moradias centrais que não continham aspectos nobres, e assim, contribuiu para a formação das favelas. Isto porque, em razão da importância das grandes cidades brasileiras, principalmente do Rio de Janeiro, na rede de crescimento econômico, provocou um grande fluxo de estrangeiros, que muitos, devido a falta de higiene, acabavam morrendo por doenças contraídas no país, sendo o Rio de Janeiro, por algum tempo, sido conhecido por “túmulo dos estrangeiros” (NOVAIS, 1998). Nesse sentido:
As elites emergentes imputavam-se o dever de livrar o país do que consideravam “atraso”, atribuído ao passado colonial e imperial do país, e visível na aparente confusão dos espaços urbanos, povoados de ruas populosas e barulhentas, de habitações superlotadas, de epidemias que se alastravam com rapidez pelos bairros, assolando continuamente as grandes capitais litorâneas.(NOVAIS,1998, p.132)
Contemporaneamente, o Movimento dos Sem Terra e Movimento dos Sem Teto tem relevância luta política pela reforma agrária, ocupações de terras e propriedades imóveis abandonadas, que fatidicamente não estão exercendo a função social da propriedade, e a partir disso, agem em prol da função social da posse.
Nesse sentido, quando se é analisado os diversos pontos de vista da questão da posse atualmente, por mais que se fale em direitos, não é possível negar a história. É ela quem refuta a verdade sobre os problemas de terra e moradia que muitos precisam enfrentar rotineiramente, quando não possuem um lugar seguro para residir, enfrentam psicologicamente às situações em que são colocados.
Importante frisar que os pontos evidenciados, possuem um teor eminentemente social, revelando-se desde o começo com tendências higienistas, e de segregação social. A nova tendência constitucional, entretanto, evidencia uma proteção jurídica diante dessa problemática.
3. Constituição Federal brasileira de 1988 e Código Civil brasileiro de 2002: uma vertente sociológica
Juridicamente os conceitos de propriedade e de posse colaboram para a compreensão da visão e postura que o Estado deve manter-se em caso de conflito de direitos, e assim, garantir que os deveres também sejam exercidos.
O conceito de propriedade, baseando-se nos preceitos do Código Civil de 2002 e na Constituição Federal, é limitado. Por mais que muitos autores tragam em suas respectivas doutrinas como direitos absolutos, como o faz Carlos Gonçalves, não o é. Exemplo disso é o trazido no artigo 170 inciso III da Constituição Federal, que prevê que a propriedade deve estar exercendo uma função social, limitando então, tal direito, impondo um dever. Sendo assim, quando uma propriedade encontra-se abandonada, vazia, sem cumprir tal função, ela está em uma situação ilegal. O segmento a seguir, do artigo de Samara Costa, sobre a função social da posse, explica a conceituação da propriedade, tendo em evidência sua ligação com a posse:
Em referência à tradição, os direitos reais são tidos como absoluto. Entretanto, Diniz (2006) adverte que admitir a existência de direitos estritamente absolutos é negar a própria existência do direito. Ainda sobre a polêmica, aponta Venosa apud José Oliveira Ascensão que o caráter absoluto dos direitos reais deve ser visto em paralelo com os direitos relativos. Nesse ínterim, permite-se inserir o instituto da função social também na pose e propriedade como instrumento que transcende o absolutismo dos direitos reais e se apresenta como limitador dos interesses privados ante aos coletivos, de ordem social. (COSTA, 2012, p.)
É nesse sentido de ilegalidade que se pode colocar a função social da posse. A posse é defendida mesmo em face do proprietário. Afere-se, portanto, que a represália contra as ocupações que estão em evidência corriqueiramente, devem ser observadas criticamente e não apenas pelo viés do direito do proprietário e do papel mediador da polícia em tais situações. A decisão do juiz que defere a desocupação é exteriorização da vontade da lei, o que deve ser questionado se é de fato a que está sendo imposta.
Colocadas as teorias da posse, sendo elas a subjetiva de Savigny, objetiva de Ihering e as sociológicas de Silvio Perozzi Raymond Saleilles e Hernando Gil, é considerado que no Direito Civil brasileiro segue-se a teoria objetiva de Ihering. A teoria preconiza que sempre que haja o exercício dos poderes de fato, inerentes à propriedade, existe posse, com as devidas exceções, que se caracterizam como detenção (GONÇALVES, 2010).
Em conformidade com os artigos 5º, XXIII, 182 §2º e 186, todos da Constituição Federal de 1988, o dispositivo civil tem um teor sociológico, em que se coloca como critério primordial, a função social da propriedade. Em um sentido lógico, sendo a posse uma situação de fato que aparenta propriedade, a função social citada se estende e por isso mesmo, deve ser protegida.
Veja-se que a disposição de refletir sobre os diversos sujeitos que estão envolvidos nas ocupações de propriedades por exemplo, já pode ser pautada pela própria legislação. Coloca o proprietário como detentor de um direito pleno, todavia, com limitações.
4. A Questão da Moradia no Brasil
O entendimento histórico e legislativo é basilar para um posicionamento crítico acerca das ocupações de imóveis, que é acontecimento sempre presente no decorrer dos anos do Estado. A situação decorre de interligações de setores sociais e econômico.
A partir disso, como forma de visualização prática, a reintegração de posse do Hotel Aquarius, em 2014, em São Paulo, aconteceu de forma truculenta, e coloca em pauta a discussão entre o previsto no art. 6º da Constituição Federal do Brasil, que é o direito à moradia, como também, o direito à propriedade, também constitucionalmente previsto, no art. 5º inciso XXII. Ambas as partes possuem direitos constituídos, mas no caso em questão, estão em conflito.
Nesse contexto, a forma que a reintegração de posse aconteceu, como foi judicialmente decidida para que ocorresse no hotel Aquarius, revela a tendência que acompanha o Brasil desde a sua formação. O local que foi submetido à reintegração, viviam várias famílias, cerca de duzentas, ocorreu com violência, o que faz refletir sobre a razoabilidade da decisão: teria o direito à propriedade, mesmo que não estivesse cumprindo sua função social, uma sobreposição ao direito à moradia, e ainda, se é proporcional realizar a reintegração por meio da força, mesmo que presentes idosos, crianças e acima de tudo, cidadãos. Diante de uma matriz histórica, tais fatos representa uma mantença da prevalência dos direitos privados aos sociais, através inclusive, do abuso de poder. Coloca de forma coerente Darcy Ribeiro (2015):
[...] A ordem social brasileira, fundada no latifúndio e no direito implícito de ter e manter a terra improdutiva, é tão fervorosamente defendida pela classe política e pelas instituições do governo que isso se torna impraticável. É provável que a União Democrática Ruralista (UDR), que representa os latifundiários no Congresso, seja o mais poderoso órgão do Parlamento. É impensável fazê-la admitir o princípio de que ninguém pode manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade, a fim de devolver as terras desaproveitadas à União para programas de colonização.(RIBEIRO, 2015, p.152)
As contradições existentes na discussão sobre a problemática revelam argumentos coerentes pendentes de ambos os lados, entretanto, com um desfecho que revela a derrocada de interesses intrínsecos à uma elite brasileira. O previsto constitucionalmente, e a construção doutrinária sobre o tema, não é fatidicamente observado, como se pode deferir de acontecimentos como a reintegração do Hotel Aquarius. Além de terem que ocupar para terem moradia, sobrevivem de forma precária, vulneráveis a riscos à própria vida como o evidenciado no incêndio no prédio ocupado por famílias sem-teto em maio de 2018, no centro de São Paulo.
5. Conclusão
Depreende-se do desenvolvimento, a importância da compreensão que a função social é uma amplitude da sociabilidade. Ela direciona que os direitos particulares não são os únicos que necessitam ser resguardados, o social deve ser respeitado sem ser lesionado. A proteção da posse está disposta justamente com a intenção de evitar a violência e pela busca da paz social. A necessidade de moradia que gera as ocupações das propriedades.
O caráter democrático e de direito da Constituição Federal de 1988, preocupa-se com questões como esta, e dispõe explicitamente do que deve ser preponderado. Entretanto, fatidicamente, não é o que se observa, com a deturpação interpretativa para a aplicação da legislação. Além disso, ocorre uma delonga para uma solução resolutiva da problemática. Há muitas pessoas sem casa, e ainda, muitas casas sem gente. Se a moradia é um direito, e a função social da posse um dever, a ocupação de lugares abandonados não deveria ser tomado como ilegal.
Juridicamente, há mecanismos suficientes para se realizar a ponderação entre o direito à propriedade e ao de moradia, sem que com isso, aconteçam desfalques e privilégios para alguns, pois na falta de responsabilidade com um dever, como o da função social da posse, o direito à moradia pode ser exercido, ainda que com carências estruturais que devem ser reparadas pelo poder público.
6. Referências
______. Código Civil (2002). Lei no. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:. Acesso em: 04 mai. 2017.
Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:. Acesso em: 04 mai. 2017.
COSTA, Samara Danitielle. A função social da posse. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 104, set 2012. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12222>. Acesso em abr 2017.
GALVÃO, César. Incêndio em prédio de SP foi causado por curto-circuito em tomada no 5º andar, diz secretário.2018. Disponível em: .
GONÇALVES, Carlos Roberto; Direito das Coisas: Coleção Sinopses Jurídicas; v.3. 11 ed. Reform. São Paulo: Saraiva, 2010.
LUCHETE, Felipe. Entenda a briga judicial que levou à reintegração de posse em São Paulo. 2014. Disponível em: .
NOVAIS, Fernando A; SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil. V. 03. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3. Ed. São Paulo: Global, 2015.
Graduanda do 5º ano do Direito da Universidade Federal do Rio Grande.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Daniela Lustosa. Função social da posse: o direito à moradia digna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/52225/funcao-social-da-posse-o-direito-a-moradia-digna. Acesso em: 01 nov 2024.
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