Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar à comunidade jurídica algumas informações básicas sobre o regime disciplinar aplicado aos notários e registradores, em especial sobre a pena de perda da delegação.
Palavras-chave: Notários. Registradores. Perda da delegação.
Dos notários e registradores
Os notários e registradores são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem são delegados o exercício da atividade notarial e de registro. Esta é a definição legal destes agentes públicos constante da redação do art. 3º da Lei dos Cartórios (Lei nº 8.935/94). São popularmente conhecidos como “os donos dos cartórios”. Para eles, o Poder Público transfere o exercício da função pública de promoção de segurança às relações jurídicas, bens e fatos jurídicos que importam às pessoas e ao direito.
Sobre o assunto, pela relevância, colho trecho retirado do acórdão lavrado pelo Min. Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal - STF, na oportunidade do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 2.415:
Regime jurídico dos servidores notariais e de registro. Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos. A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público. Para se tornar delegatária do poder público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público. Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter partes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extraforenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito. Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos esses a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. (...) As serventias extrajudiciais se compõem de um feixe de competências públicas, embora exercidas em regime de delegação a pessoa privada. Competências que fazem de tais serventias uma instância de formalização de atos de criação, preservação, modificação, transformação e extinção de direitos e obrigações. Se esse feixe de competências públicas investe as serventias extrajudiciais em parcela do poder estatal idônea à colocação de terceiros numa condição de servil acatamento, a modificação dessas competências estatais (criação, extinção, acumulação e desacumulação de unidades) somente é de ser realizada por meio de lei em sentido formal, segundo a regra de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (...) Tendo em vista que o STF indeferiu o pedido de medida liminar há mais de dez anos e que, nesse período, mais de setecentas pessoas foram aprovadas em concurso público e receberam, de boa-fé, as delegações do serviço extrajudicial, a desconstituição dos efeitos concretos emanados dos Provimentos 747/2000 e 750/2001 causaria desmesurados prejuízos ao interesse social. Adoção da tese da norma jurídica "ainda constitucional". Preservação: a) da validade dos atos notariais praticados no Estado de São Paulo, à luz dos provimentos impugnados; b) das outorgas regularmente concedidas a delegatários concursados (eventuais vícios na investidura do delegatário, máxime a ausência de aprovação em concurso público, não se encontram a salvo de posterior declaração de nulidade); c) do curso normal do processo seletivo para o recrutamento de novos delegatários.
[ADI 2.415, rel. min. Ayres Britto, j. 10-11-2011, P, DJE de 9-2-2012.]
Para a disciplina do relevante serviço extrajudicial prestado pelos notários e registradores, a Constituição Federal reservou apenas um artigo:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
Da remuneração
Quanto à remuneração dos notários e registradores, o art. 28 da Lei de Cartórios destaca o direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia. São, portanto, remunerados pelos emolumentos (que têm jurídica de taxa), pagas pelos usuários dos serviços extrajudiciais. Destaca-se que, por vezes, os referidos agentes públicos recebem altíssimas remunerações e não estão sujeitos ao teto remuneratório previsto no art. 37, XI, da Constituição Federal, qual seja, o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A título de exemplo, a arrecadação da 11º Serventia de Registro de Imóveis de São Paulo (SP) foi de R$ 37.157.534,95 (trinte e sete milhões, cento e cinquenta e sete mil, quinhentos e trinta e quatro reais e noventa e cinco centavos)[1] no primeiro semestre do ano de 2019.
Do regime disciplinar
De outro canto, destaca-se que a atividade desenvolvida pelos titulares das serventias de notas e registros, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se a um regime de direito público. Por esta razão, os referidos agentes públicos estão também sujeitos ao regime disciplinar público. Desta forma, acaso pratiquem infrações administrativas, ficam submetidos, após o devido processo legal, às penalidades previstas em lei.
Neste ponto, aponta-se que o regime jurídico disciplinar público está sujeito a obediência a diversos princípios. Quanto ao tema, pela didática, destaco trecho retirado do Manual de Processo Administrativo Disciplinar elaborado pela Controladoria Geral da União[2]:
Na tarefa da promoção da responsabilização mediante processo administrativo disciplinar deve atentar-se não somente aos princípios básicos da Administração Pública, previstos no art. 37 da Constituição Federal. O processo administrativo disciplinar deve observância aos demais princípios acautelados na Carta Magna. Desta forma, aos princípios setoriais expressos na Carta Magna somam-se os de caráter mais amplo, ligados aos direitos individuais e aos processuais, cujos de maior relevância encontram-se elencados a seguir: (...)
Princípio do Devido Processo (...)
Princípios da Ampla Defesa e do Contraditório (...)
Princípio do Informalismo Moderado (...)
Princípio da Verdade Real (...)
Princípio da Presunção de Inocência ou de não culpabilidade (...)
Princípio da Motivação (...)
Observado os princípios acima apontados, ao final de Processo Administrativo Disciplinar – PAD, se configurada alguma infração administrativa, como possíveis penalidades a serem impostas aos notários e registradores, cumpre transcrever os arts. 32 a 36 da Lei dos Cartórios (Lei nº 8.935/94):
Art. 32. Os notários e os oficiais de registro estão sujeitos, pelas infrações que praticarem, assegurado amplo direito de defesa, às seguintes penas:
I - repreensão;
II - multa;
III - suspensão por noventa dias, prorrogável por mais trinta;
IV - perda da delegação.
Art. 33. As penas serão aplicadas:
I - a de repreensão, no caso de falta leve;
II - a de multa, em caso de reincidência ou de infração que não configure falta mais grave;
III - a de suspensão, em caso de reiterado descumprimento dos deveres ou de falta grave.
Art. 34. As penas serão impostas pelo juízo competente, independentemente da ordem de gradação, conforme a gravidade do fato.
Art. 35. A perda da delegação dependerá:
I - de sentença judicial transitada em julgado; ou
II - de decisão decorrente de processo administrativo instaurado pelo juízo competente, assegurado amplo direito de defesa.
§ 1º Quando o caso configurar a perda da delegação, o juízo competente suspenderá o notário ou oficial de registro, até a decisão final, e designará interventor, observando-se o disposto no art. 36.
§ 2º (Vetado).
Como se constata, no caso de falta leve, deve ser aplicada a pena de repreensão (art. 33, I). No caso de reincidência de ilícitos leves ou então na prática de infração que não configure falta mais grave, a pena prevista é a de multa (inc. II). A de suspensão é aplicada no caso de reiterado descumprimento dos deveres ou de falta grave (inc. III). Finalmente, na gradação das sanções, a hipótese de aplicação da pena de perda da delegação, a mais severa das penalidades, não é disciplinada pela Lei dos Cartórios. Há uma verdadeira lacuna normativa legal federal.
Tal fato não é desejável, mormente se considerado os reflexos da aplicação da pena de perda da delegação. A título de exemplo imagine o desfalque financeiro que a referida penalidade representaria ao registrador da 11º Serventia de Registro de Imóveis de São Paulo (SP). De mais a mais, a falta de normatividade em âmbito federal abre espaço ao casuísmo jurisdicional. Para ilustrar, veja-se a emenda dos seguintes julgados, em que se aplicou a pena de perda da delegação:
Processo administrativo disciplinar. Tabelionato de Notas. Não recolhimento de emolumentos, tributos e contribuições previdenciárias. Gerenciamento administrativo e financeiro da serventia extrajudicial que é de responsabilidade do Tabelião. Conduta dolosa, praticada de forma reiterada ao longo de vários anos. Culpa lato sensu configurada. Gravidade das infrações praticadas. Cabimento da pena de perda da delegação. CGJSP - PROCESSO: 142.803/2018. – destacou-se.
Processo Administrativo Disciplinar – Rito do Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo. Demonstração jurídica da atuação dolosa da Titular da Delegação na realização, de forma reiterada, de diversos atos notariais fora do município para o qual recebeu a delegação, com indicação inverídica no instrumento público do local de efetivação do ato notarial. Irregularidades nos livros notariais e no lançamento de despesas indevidas no Livro Diário da Receita e da Despesa. Pena de Perda da Delegação mantida por ser razoável e proporcional aos fatos imputados pela Portaria e provados nos autos – Preliminar rejeitada e recurso não provido. CGJSP - RECURSO ADMINISTRATIVO: 0000160-64.2018.8.26.0076 – destacou-se.
Observe-se nos casos apresentados a penalidade de perda da delegação é fundamentada na “gravidade das infrações praticadas” e na razoabilidade e proporcionalidade, conceitos estes que são de elevada subjetividade.
A lacuna normativa federal se traduz, ao que parece, em ofensa ao princípio da legalidade, princípio este que anima todo o Direito Administrativo, inclusive, e principalmente, em seu âmbito disciplinar.
A doutrina penal[3], aqui aplicável pela gravidade das penalidades administrativas, aponta que o princípio da legalidade se desdobra em quatro subprincípios: a) anterioridade da lei (lege praevia); b) reserva legal (lege scripta); c) proibição de analogia in malam partem (lege stricta); d) taxatividade da lei (ou mandato de certeza — lege certa).
Voltando à leitura das ementas ao norte citadas, não é difícil constatar a existência de ofensa ao princípio da legalidade. Não há conduta previamente tipificada a justificar a pena e as razões apresentadas nos julgados selecionados são de elevada incerteza.
Por outro lado, cumpre destacar que em alguns Estados existe disciplina legal para aplicação da pena de perda da delegação.
No Estado do Paraná existe a Lei Estadual nº 14.277/2003, que traz, em seu art. 196, V, as seguintes hipóteses para aplicação da pena de perda da delegação:
Art. 196. São cabíveis penas disciplinares de:
(...)
V - perda da delegação nos casos de:
a) crimes contra a administração pública;
b) abandono da serventia por mais de trinta (30) dias;
c) transgressão dolosa a proibição legal de natureza grave.
No Estado do Piauí, por sua vez, verifica-se a existência da Lei Complementar Estadual nº 234/2018 que aponta as seguintes hipóteses de perda da delegação:
Art. 39. A perda da delegação, decorrente de processo administrativo, ocorrerá nos seguintes casos:
I - violação das proibições contidas nos incisos XII a XVII do art. 30;
II - a cobrança indevida ou excessiva de emolumentos, ainda que sob a alegação de urgência;
III - rasurar, fraudar ou inserir dados e informações falsas em ato notarial ou de registro;
IV - omitir informação ou prestar declaração falsa às autoridades, inclusive fazendárias;
V - fraudar a fiscalização do Poder Judiciário ou de autoridades fazendárias, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
VI - falsificar, no todo ou em parte, documento público ou particular;
VII - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
VIII - tenham praticado atos ilícitos visando frustrar a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos;
IX - descumprimento, comprovado, da gratuidade estabelecida na Lei no 9.534, de 1997;
X - a conduta atentatória às instituições notariais e de registro;
XI - demonstrem não possuir idoneidade para desempenhar a atividade notarial e de registro.
Parágrafo único. Quando a inflação for punível com a perda da delegação, o juízo competente solicitará previamente, a suspensão do notário ou oficial de registro.
Andou bem o Poder Judiciário, a quem compete a iniciativa do projeto de lei, e o Poder Legislativo dos referidos Estados ao disciplinarem as hipóteses de penalidade de perda da delegação aos notários e registradores. Tal atitude promove segurança jurídica e enseja homenagem ao princípio constitucional da legalidade.
Entretanto, seria louvável que a referida disciplina se desse em âmbito federal, pois os serviços extrajudiciais, e sua disciplina geral, deve ser única em todo o território nacional.
Com estes breves comentários, concluí-se que falta, em âmbito nacional, uma disciplina que atenda ao princípio da legalidade quando o tema abordado é a pena disciplinar de perda da delegação aplicada aos notários e registradores, que são agentes públicos promotores de segurança jurídica e de suma importância para as relações jurídicas em geral.
Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Lei dos Cartórios. Brasília, 1994.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.415 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ayres Britto. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 10 de novembro de 2011.
BRASIL. Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Controladoria-Geral da União. 2017.
SÃO PAULO. Corregedoria Geral do Estado de São Paulo. PROCESSO: 142.803/2018. Jurisprudência Registral e Notarial. São Paulo.
SÃO PAULO. Corregedoria Geral do Estado de São Paulo. RECURSO ADMINISTRATIVO: 0000160-64.2018.8.26.0076. Jurisprudência Registral e Notarial. São Paulo.
PARANÁ. Lei Estadual nº 14.277/2003. Paraná. 2003.
PIAUÍ. Lei Complementar Estadual nº 234/2018. Piauí. 2018.
ESTEFAM, RIOS GONÇALVES, Direito penal esquematizado: parte geral - 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.
Justiça Aberta do CNJ. Disponível em http://www.cnj.jus.br/corregedoria/justica_aberta/? – acesso em 19 de julho de 2019
[1] Fonte: http://www.cnj.jus.br/corregedoria/justica_aberta/? – acesso em 19 de julho de 2019
[2] Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Controladoria-Geral da União . 2017. Pág. 15. Disponível em https://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/manual-pad-versao-janeiro-2017.pdf/@@download/file/Manual%20PAD%20-%20Vers%C3%A3o%20Janeiro%202017.pdf
[3] Direito penal esquematizado: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves; coordenador Pedro Lenza. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2016. Pág. 117
Juiz Substituto do TJCE. Bacharel em Direito pela FACID e Especialista em Direito Processual pela UESPI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Frederico Costa. Comentários sobre a pena de perda da delegação ao Notário e ao Registrador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 ago 2019, 05:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/53242/comentrios-sobre-a-pena-de-perda-da-delegao-ao-notrio-e-ao-registrador. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: JOALIS SILVA DOS SANTOS
Por: Caio Henrique Lopes dos Santos
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