No terceiro capítulo da obra “Novo Direito Constitucional Comparado”, o professor Ivo Dantas desvenda questões que envolvem a classificação do Direito Comparado como um ramo autônomo do conhecimento científico, tema que divide opiniões entre os juristas. Na concepção do autor, o Direito Comprado como ciência é um fenômeno recente no mundo, quando nas últimas décadas obteve avanço considerável em termos de produção doutrinária e institucional.
No mundo globalizado, o estudo do Direito Comparado permite a análise de sistemas jurídicos distintos e vigentes, o que pode ter relevância na transformação das sociedades, dentre outros fatores, através do fenômeno da aproximação de modelos jurídicos. Nesse sentido, o Direito Comparado apresenta-se como um objeto de transformação da realidade social, e não como um mero diletantismo cultural.
Nenhum conhecimento científico poderá ser compreendido sem que se delimitem previamente conceitos, objetos e métodos. Essas reflexões filosóficas prévias, objeto da epistemologia, possuem conteúdo valorativo e crítico por parte daquele que desenvolve o estudo científico, não existindo posição “certa” ou “errada”.
As reflexões de ordem epistemológicas são, dessa forma, essenciais no processo de construção do conhecimento científico, por aprimorar o instrumento teórico da ciência acerca dos seus pressupostos e finalidades. Isso se dá, sobretudo, quando se estuda a terminologia científica, que é a linguagem técnica que busca termos claros e unívocos aos vocábulos, pela qual se mede o grau de desenvolvimento de uma ciência, pelo refinamento maior ou menor de seu vocabulário científico.[1]
É nesse sentido que a flexibilidade terminológica do vocábulo Direito, que tanto pode designar o ordenamento jurídico-positivo como o estudo que se efetua sobre ele, agrava-se quando é utilizado na expressão Direito Comparado. Não há entre os estudiosos desse ramo jurídico consenso no que diz respeito a sua denominação, destacando-se expressões como “Governo Comparativo” e “Política Comparativista”, da obra de Ronald H. Chilcote.
Existe grande discussão doutrinária acerca do emprego da expressão Direito Comparado, existindo quem queira substituí-la por outras, como “Direito Estrangeiro”, “História Comparada” e “Legislação Comparada”. Entretanto, tomando como pressuposto que esse ramo do conhecimento se dedica a comparação de sistemas jurídicos vigentes e distintos, e não a um conjunto de regras aplicáveis a uma matéria determinada, como pontua Cañizares, a expressão Direito Comparado se encaixa bem ao seu objetivo.
Nesse ponto, o professor Ivo Dantas esclarece que o Direito Estrangeiro é matéria-prima do Direito Comparado, condição sine qua non deste. Não se trata apenas de citar o direito estrangeiro, de justapor estruturas constitucionais estrangeiras, mas sim re analisá-las e relacioná-las a través de um método comparativo próprio.
Ademais, o Direito Comparado, ao contrário da História Comparada, não se foca na evolução de sistemas ou institutos jurídicos não mais vigentes (passados), mas sim na existência de sistemas e institutos jurídicos diferentes e vigentes, estabelecendo semelhanças e diferenças entre os diversos modelos.
Por sua vez, no que tange ao uso da expressão Legislação Comparada, salienta-se que os estudos a que se dedicam os comparativistas não podem ser reduzidos à identificação da norma posta, dada a imprescindibilidade da análise do contexto em que a norma está inserida, os condicionamentos a que ela está submetida. Nesse ínterim, importante é a reflexão acerca da doutrina e da jurisprudência.
Não existe unicidade no conceito de ciência. Entretanto, pode-se dizer que o vocábulo está ligado não ao objeto que determina a sua existência, mas sim à presença de um rigoroso método de análise que o caracteriza. Ademais, de modo a dirimir eventuais dúvidas acerca da cientificidade do Direito, deve-se partir para a análise das funções da ciência jurídica: interpretação, sistematização e construção.
Ao interpretar, compete ao jurista enxergar o ordenamento jurídico dado ou posto, sem julgar a norma objeto de análise, dizendo-a justa ou injusta. Nesse ínterim, forçoso frisar a importância do desenvolvimento pelo jurista-cientista de uma linguagem jurídica rigorosa e precisa, posta a contribuir para a purificação metodológica dos estudos jurídicos. O estudo do vernáculo, o domínio da gramática e suas particularidades, são essenciais e indispensáveis à criação e aplicação do paralóquio jurídico, e ao conseqüente desenvolvimento da ciência jurídica.
Por outro lado, no que concerne ao relacionamento do jurista-cientista com o ordenamento jurídico objeto de seu estudo, importante é que se diferencia Valor Social e Juízo de Valor.
O Juízo de Valor é matéria ligada à epistemologia, ou seja, a um momento prévio de reflexões filosóficas acerca da delimitação de pressupostos e finalidades do estudo científico. Ao cientista, quando da análise do objeto, só é dado emitir juízos de realidade (juízos de ser), e nunca juízos de valor (dever-ser). Nas palavras de Adrualdo de Lima Catão:
“[...] a diferença entre juízos de realidade e juízos de valor sustenta a concepção de ciência como saber neutro e objetivo, livre da influência dos valores, pois lida com questões factuais e não pode se envolver com subjetividades.”[2]
Já o Valor Social refere-se a algo exterior, objetivo, independente da vontade. Está intimamente ligado a concepção do homem como um ser social, um sujeito dotado de uma pré-compreensão da qual não pode se livrar, consagrada pela coletividade. Essa é a diferença precípua entre Juízo de Valor e Valor Social: enquanto que o primeiro varia de pessoa para pessoa e é dependente da vontade, o segundo simplesmente é, independe da vontade do agente.
Por sua vez, a segunda função da ciência jurídica, a sistematização, está relacionada à agrupação de uma norma solta ao sistema jurídico como um todo, através de análises intra e interssitêmicas. O jurista deve estar preocupado em visualizar o contexto em que foi criada a norma, bem como a justiça do preceito.
Por fim, cabe ao jurista a construção de conceitos que ao estão diretamente indicados na norma, que devem ser adquiridos através da indução. Essas três funções – interpretar, sistematizar e construir -, diferenciam o cientista do direito do legislador.
A doutrina não tem um posicionamento pacífico sobre a cientificidade do Direito Comparado. Alguns doutrinadores, como Edgar Carlos de Amorim, defendem que o Direito Comparado estaria reduzido a um método comparativo aplicado às ciências jurídicas, enquanto outros, como Quirino Ribeiro, defendem o Direito Comparado como Ciência Jurídica.
O professor Ivo Dantas corrobora com essa última visão, apontando que o Direito Comparado não se limita à comparação legislativa entre ordenamentos jurídicos distintos. A verdade é que esse ramo do conhecimento científico possui objeto, método e leis próprias que regem seus institutos, de modo a não estar restrito à indicação características dos sistemas jurídicos pesquisados.
O Direito Comparado tem como objeto específico a pluralidade de ordenamentos jurídicos, e através do método comparativo – caminho a ser seguido -, procura explicar e compreender as similitudes e diferenças dos sistemas estudados, levando-se em conta os condicionamentos sociais e econômicos a que estão expostos. A tarefa última seria o aprimoramento da civilização, marchando-se ao encontro de uma unicidade de direitos.
Nesse contexto, destaca-se também a incontestável autonomia doutrinária e didática que o Direito Comparado vem experimentando nas últimas décadas, face a grande quantidade de publicações, artigos e livros referentes à matéria, bem como face a presença dessa disciplina nos cursos de graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado.
Além das funções inerentes a própria ciência jurídica - interpretação, sistematização e construção -, o Direito Comparado possui objetivos e finalidades específicos.
Ante o desejo de incremento cultural por parte daquele que estuda os sistemas jurídicos estrangeiros, o Direito Comparado se depara com os objetivos pessoais de satisfação intelectual do compararivista. Porém, esse ramo jurídico não se reduz a tão pouco. Pode-se indicar como função prática do Direito Comparado, ainda, o desenvolvimento profissional do comparativista, de forma a proporcionar elementos necessários à melhor compreensão dos institutos jurídicos existentes em outros ordenamentos jurídicos, com vistas a uma tendência de universalização de conceitos no campo da ciência jurídica.
O professor Ivo Dantas aponta que o Direito Comparado não tem, ele próprio, funções práticas, mas as conclusões por ele atingidas é que serão utilizadas por legisladores, magistrados e jurisconsultos para melhor regulamentar os fatos sociais. Ademais, ante a possibilidade de se transportar institutos de uma sociedade para outra, há de se observar os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos.
Interessante transcrever as finalidades do Direito Comparado apontadas por Paolo Biscaretti di Ruffia, a saber:
“1) satisfacción de meras exigencias de orden cultural;
2) interpretación y valoración de las instituiciones juridicas del ordenamiento nacional;
3) notable aportación que la ciencia del derecho constitucional puede proporcionar al campo de la nomotética, es decir, en relación con la política legislativa;
4) la unificación legislativa”.[3]
A aproximação dos modelos jurídicos em busca da unificação de direitos permite que se fale de um fenômeno chamado Recepção Legislativa. Através da Recepção Legislativa permite-se que um ordenamento jurídico importe soluções jurídicas de outro sistema, aperfeiçoando-se internamente. Importante observar, entretanto, os condicionamentos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos.
A Microcomparação permite a comparação de regras, normas ou institutos jurídicos de parte do sistema, quando o comparativista volta-se para o estudo de um setor ou instituto do sistema jurídico. Nesse contexto é que se fala em Direito Tributário Comparado, Direito Penal Comparado, Direito Constitucional Comparado, e assim por diante.
Já Macrocomparação permite a comparação de ordens jurídicas ou sistemas globalmente considerados. É o que acontece, por exemplo, quando se compara o ordenamento jurídico da Itália com o ordenamento jurídico da Inglaterra.
A comparação vertical é objeto da História do Direito, visto que trata da evolução de um instituto em suas diversas fases, dentro de um mesmo sistema jurídico – no sentido de uma comparação histórica intra-sistêmica.
A comparação horizontal, por seu turno, está ligada ao Direito Comparado, vez que esse ramo autônomo da ciência jurídica está voltado à comparação de sistemas jurídicos atuais e vigentes, dentre os quais, preferencialmente, um deles é o sistema nacional. Essa idéia está intimamente ligada à função precípua do Direito Comparado de obtenção de resultados, finalidades e objetivos práticos. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira, in verbis:
“[...] o estudioso estende os olhos pelo horizonte jurídico e focaliza os sistemas atualmente em vigor ente os diversos povos, compara-os, procurando assinalar as suas aproximações e divergências. Tendo em vista o seu próprio direito, ou o objeto de determinado estudo, perquire a maneira pela qual o mesmo assunto encontra tratamento noutro organismo jurídico, indaga de que maneira o legislador de outro país positivou as normas de seu regime, ou como os tribunais as aplicaram e os cientistas o compreenderam. E aqui está em pleno campo do direito comparado”.[4]
Por todos os argumentos expostos, o professor Ivo Dantas demonstrou que o Direito Comparado possui sim caráter de cientificidade, sendo um ramo autônomo do conhecimento jurídico que possui funções próprias de interpretação, sistematização e construção de conceitos. Tal status, porém, só foi conquistado a pouco, quando da individualização de seu objeto, da elucidação de um método para análise de seus institutos, e da notável autonomia doutrinária e didática que experimentou.
É com o Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado em Paris no ano de 1900, que o Direito Comparado aparece oficialmente no cenário jurídico mundial, embora os primeiros esforços de estudos comparados remontem à Antiguidade.
O Direito Comparado representa um esforço do racionalismo para unificar o direito em um mundo dividido e globalizado. Nesse ponto, destacam-se os desdobramentos práticos do estudo comparativista, ante a modificação de perspectiva e de interpretação do sistema jurídico vigente em âmbito nacional, com possível importação de soluções e institutos inovadores.
Primária
- DANTAS, Ivo. Novo Direito Constitucional Comparado - Introdução, Teoria e Metodologia. Recife: Juruá Editora, 2010. 3ª edição. Cap. III.
Secundária
- CATÃO, Adrualdo de Lima. O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores - O estudo comparatista como discurso ético-político. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/7120/o-problema-da-cientificidade-do-direito-comparado-diante-de-uma-nocao-de-ciencia-baseada-em-valores.
- DINAMARCO, Cândido. Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo: RT, 1987.
- PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Comparado e seu Estudo – Revisa da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte: 1955.
- RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Introducción al Derecho Constitucional Comparado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1975.
[1] DINAMARCO, Cândido. Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo: RT, 1987. p. 101-102.
[2] CATÃO, Adrualdo de Lima. O problema da cientificidade do Direito Comparado diante de uma noção de ciência baseada em valores - O estudo comparatista como discurso ético-político. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/7120/o-problema-da-cientificidade-do-direito-comparado-diante-de-uma-nocao-de-ciencia-baseada-em-valores. Consultado em: 24/03/2013.
[3] RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Introducción al Derecho Constitucional Comparado. México: Fondo de Cultura Econômica, 1975. p. 13-15.
[4] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Comparado e seu Estudo – Revisa da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte: 1955. p. 40.
Graduado em Direito pela UFPE. Pós-graduação em Processo Penal pela Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM; Pós-graduando em Direito Constitucional e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Única.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PATRIOTA, CARIEL BEZERRA. Direito e ciência. Uma comparação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2019, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/53908/direito-e-cincia-uma-comparao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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