GUILHERME SABINO NASCIMENTO SIDRÔNIO DE SANTANA[1]
(coautor)
Resumo: O objetivo do artigo é analisar a unidade do Ordenamento Jurídico segundo a concepção de Norberto Bobbio. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujo método empregado é o dedutivo. É dedutivo porque é um processo de análise da informação que utiliza livros e artigos científicos para obter uma conclusão a respeito do problema. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas na área de Direito, mais precisamente na área de hermenêutica, introdução ao estudo do direito e filosofia do direito.
Palavras-Chave: Unidade. Ordenamento Jurídico. Concepção Bobbiana.
Riassunto: L'obiettivo dell'articolo è analizzare l'unità di ordinazione legale secondo il concetto di Norberto Bobbio. È una ricerca descrittiva, il metodo deduttivo utilizzato. È deduttivo perché è un processo di analisi delle informazioni che utilizza libri e articoli scientifici per giungere a una conclusione sul problema. Il lavoro è stato condotto attraverso ricerche bibliografiche nell'area del diritto, più precisamente nell'area dell'ermeneutica, introduzione allo studio del diritto e filosofia del diritto.
Parole Chiave: Unità. Ordine legale Concezione bobbiana.
Sumário: 1. Introdução: Fontes Reconhecidas e Fontes Delegadas – 2. Tipos de Fontes e Formação Histórica do Ordenamento – 3. As Fontes do Direito – 4. Construção Gradual do Ordenamento – 5. Limites Materiais e Formais – 6. A Norma Fundamental – 7. Direito e Força – 8. Conclusão
1. Introdução: Fontes Reconhecidas e Fontes Delegadas
De acordo com Norberto Bobbio, as normas jurídicas nunca nascem sozinhas, ou soltas, mas sim, dentro de um contexto, de forma que elas criam relações específicas entre si. É importante ressaltar que um conjunto, ou sistema, de normas é denominado de ordenamento jurídico; sendo que a palavra “direito”, para Bobbio (1995b, p. 19 - 20), também significa “ordenamento jurídico”. Contudo, para se entender o que é o ordenamento jurídico, é preciso compreender o contexto de criação das regras jurídicas e, por conseguinte, a sua sistematização.
Para o doutrinador Arruda (1942, p. 289 - 290), o Direito existe na sociedade antes mesmo de serem criadas as normas, antes de serem organizadas autoridades. O Direito sempre existiu, segundo Arruda, porque o homem sempre esteve em sociedade, e é impossível se conceber uma interação homem-homem sem a fundamentação de nenhum princípio (ainda que este princípio não tenha sido determinado por uma autoridade). Ainda, de acordo com Arruda (1942, p. 289 - 290), o Direito existe antes mesmo da criação das normas, assim como os raios do círculo são todos iguais antes do círculo ser traçado.
Com o desenvolvimento social e a crescente complexidade da sociedade, tornou-se necessária a sistematização do direito (junto com sua codificação). Dessa forma, nasce o ordenamento jurídico que não é composto por uma ou algumas normas, mas sim por uma infinidade delas, sendo que são criadas mais a cada dia para satisfazer às necessidades da sociedade e de seu tempo, e para controlar a crescente complexidade social.
Existe certa dificuldade em se analisar e identificar todas as normas que constituem um ordenamento porque elas não provêm de uma única fonte, mas de várias. Os ordenamentos que vêm de apenas uma fonte são chamados de ordenamentos simples; os que vêm de várias fontes, ordenamentos complexos. Então, o ordenamento jurídico simplifica o seu entendimento criando duas figuras: o legislador e o súdito (aquele que se submete às normas criadas por aquele). Esta é apenas uma divisão didática, pois a autoridade (o legislador) está difundida por toda a sociedade. Até ordenamentos restritos e pequenos, como os ordenamentos das famílias, são classificados como complexos, pois as normas podem ter surgido – além da autoridade paterna – por tradição/costume dos antepassados (consuetudinário), ou pela interação com outras famílias; podendo ser delegado parte do poder ao filho mais velho ou à esposa.
A complexidade do ordenamento jurídico se dá a partir do momento em que a demanda por normas é tão grande que ele precisa buscá-las em diversas fontes. O “poder supremo” recorre, então, a alguns artifícios: a) busca normas em diversos ordenamentos (recepção) – podendo até ser de ordenamentos anteriores; e b) confere o poder de criar normas a órgãos ou poderes inferiores (delegação).
Assim, podemos dividir as fontes em dois grupos que, segundo Batista e Costa (2006, p. 141), seriam as fontes diretas/primeiras/imediatas (fontes originais) – a própria lei –, propostas pelo poder estatal; e as fontes subsidiárias/indiretas/complementares/secundárias (fontes derivadas) – o costume, a doutrina, a jurisprudência, a equidade, a analogia, os princípios gerais do direito etc. As fontes derivadas podem ser classificadas em fontes reconhecidas e fontes delegadas.
Por fontes reconhecidas (recepção), entendem-se aquelas regras que são criadas socialmente e externamente ao ordenamento jurídico do Estado que as acolhe (Bobbio, 1995a, p. 164), ou seja, são regras já feitas e que são apenas absorvidas pelo ordenamento jurídico. O exemplo mais comum é o costume. Quando o legislador, independentemente de remeter a situações especifica ou não específicas reguladas pela lei, fala sobre o costume, ele está se referindo a normas já existentes. É interessante notar que o costume dá aos cidadãos o poder de criar normas jurídicas através de um comportamento uniforme. Neste caso o costume pode ser enquadrado como fonte delegada, pois aos cidadãos é atribuída a competência de um órgão estatal com poder para criar normas.
Necessário, neste ponto, fazer uma diferenciação entre costume jurídico e o costume não jurídico: Batista e Costa (2006, p. 199) dizem que naquele há uma consciência de sua obrigatoriedade e existe uma “uniformidade da conduta continuada e duradoura respaldada na convicção coletiva que o aprova”, sendo essa característica a que torna o costume jurídico algo obrigatório. No costume não jurídico não se encontram essas características: não existe obrigatoriedade, ele atende a convencionalismos e é facultativo. Já Gilissen (1979, p. 27) sintetiza a definição de costume jurídico quando diz que ele é um conjunto de usos de natureza jurídica que adquirem força obrigatória pela repetição de atos públicos e pacíficos durante um lapso de tempo relativamente longo em um determinado grupo sociopolítico.
Aftalión (1980, p. 307 – 311), por sua vez, define costume jurídico como “a repetição de conduta em interferência intersubjetiva”, sendo coercitivo e coativo. O costume será fonte quando o intérprete, querendo objetivar sua sentença, compara a atitude individual com a atitude coletiva, demonstrando assim que existe uma conduta geral que é aceita por uma comunidade. Por fontes delegadas, entendem-se aquelas regras feitas de forma artificial, que foram emitidas ordens para que elas fossem criadas. Como criador da fonte delegada, pode-se citar o Magistrado, o Executivo, o Legislativo e alguns particulares que criam normas restritas (internas) – e.g., empresas.
Como exemplo de fonte delegada, pode-se citar o regulamento, que serve para especificar uma norma geral criada pelo poder Legislativo, pois este não pode criar normas específicas para cada caso. O Legislativo cria, então, normas gerais, abstratas e genéricas. Outro exemplo do uso de regulamento é pelo poder Executivo – por delegação do poder Legislativo –, que deve tornar exequíveis as normas genéricas criadas pelo Legislativo.
O mesmo se dá com as normas constitucionais e as leis ordinárias. Quanto mais se sobe na hierarquia das normas, mais escassas e mais abstratas e genéricas ficam as normas; quanto mais se desce, mais específicas e mais numerosas. A isso Kelsen (2009, p. 246 - 247) chamou de “escalonamento”, ocorrendo quando uma norma (norma superior) dá origem a uma segunda (norma inferior), sendo que esta estará subordinada àquela. Forma-se assim a imagem de um triângulo (“figurado pela imagem espacial da supra-infra-ordenação”), pois, para ele, o ordenamento jurídico não possui uma estrutura plana (Kelsen, 2009, p. 246 - 247).
Muito discutida é a classificação do poder negocial – outra fonte do direito. Diz Reale (2010, p. 179) que as relações jurídicas também são reguladas por normas “particulares e individualizadas”, pois os homens são dotados de direitos e obrigações e podem criar negócios entre si através de “acordo de vontades” - que é o poder atribuído aos particulares para que eles criem normas e para que eles se regulem. A autonomia da vontade, diz Reale (2010, p. 179), é uma “conquista impostergável da civilização”. Poder-se-ia dizer que o poder negocial está nos limites entre as fontes delegadas e as fontes reconhecidas, pois se for enfatizado o caráter autorregulativo (de criar normas para si próprio) e se for levado em conta que os interesses privados são uma pequena parte de um todo (o poder estatal), então o poder negocial será uma fonte reconhecida. Se for destacada a característica de que o poder negocial é um poder delegado pelo Estado aos particulares para que eles se autolegislem, então o poder negocial será uma fonte delegada.
2. Tipos de Fontes e Formação Histórica do Ordenamento
Todo ordenamento (ou o princípio fundamental dele) se baseia no poder original, também chamado de Fonte das fontes. As normas, como se sabe, provêm de várias fontes, e não só do poder original, pois, se assim fosse, esse seria um ordenamento simples. Existem dois motivos [históricos] para que as normas derivem de várias fontes. O primeiro deles é que os ordenamentos não surgem do vazio, do nada. Anterior a eles existiam normas religiosas, morais, sociais, costumeiras, comportamentais, convencionais; e quando um ordenamento jurídico é criado, ele não ignora por completo essas regras. O ordenamento as absorve e as adapta as suas necessidades, sendo que essas regras limitam, de certa forma, o novo ordenamento (existe aí um limite externo ao poder soberano). Então, o poder originário não é o primeiro historicamente falando, mas sim o primeiro poder jurídico.
O segundo motivo é que a limitação do poder soberano não provém somente do exterior: o próprio poder soberano se limita (autolimitação do poder soberano), pois ele delega competência legisladora a outros órgãos estatais e a particulares. Essa delegação acontece para que a normatização da vida social seja sistematizada. Ocorre aí uma limitação interna do poder normativo originário.
Kelsen (2009, p. 221 – 222) defende a ideia de que existe uma “norma fundamental” (pressuposta), que tem uma forma determinada e que é o ponto de partida para o processo da criação do Direito Positivo e para o processo de criação de outras normas. Nesse caso, a norma fundamental proposta por Kelsen seria a Fonte das fontes, de onde todas as outras normas derivam.
Os motivos citados acima se encaixam nas explicações dos jusnaturalistas(-contratualistas) de como a sociedade passou de um estado de natureza para um estado civil. Para os jusnaturalistas(-contratualistas), o poder civil surge a partir de um contrato social, e existem duas teorias que tentam explicá-lo. A primeira, chamada de hobbesiana, é descrita por Del Vecchio (1979, p. 91 – 105) quando ele diz que o poder civil nasce sem limites (e por consequência, os soberanos também), pois o Estado deveria ter poder suficiente para dominar todas as lutas e paixões sociais (a Inglaterra vivia, naquele tempo, entre guerras internas). Os envolvidos no contrato abdicam de todos os seus direitos, pois todo homem é egoísta e busca para si somente o que lhe é bom independentemente dos interesses dos outros homens, por isso, se os homens não abdicassem de seus direitos, ocorreria a guerra de todos contra todos (todos pensariam que tem direito sobre tudo, e isso causaria uma guerra); o direito natural desaparece ao dar origem ao direito positivo.
Na segunda teoria, chamada de lockiana, Del Vecchio (1979, p. 91 – 105) diz que Locke imprimiu à teoria do contrato social um caráter mais racional, cujo poder civil nasce limitado (e por consequência, a soberania também), pois o seu objetivo é garantir os direitos fundamentais a todos (tutelar os direitos individuais); as pessoas abdicam apenas a uma parte de seus direitos, consentindo certas limitações, pois isso é preciso para que se consiga uma organização politica. Esta segunda teoria diz também que o direito positivado é um instrumento para que o direito natural seja afirmado (Del Vecchio 1979, p. 91 – 105).
Está contemplada, nessas duas hipóteses, a origem da estrutura do ordenamento. Na primeira delas, a limitação do soberano é imposta por ele mesmo; na segunda, os limites são externos. Os limites internos e os externos serão reunidos em uma só teoria (em uma teoria unitária) para se poder falar em um ordenamento jurídico complexo.
3. As Fontes do Direito
Até o presente ponto, já se explanou o que são fontes reconhecidas e delegadas; e fontes originárias e derivadas. É preciso, pois, explicar aqui o que se entende por “fonte”.
Por fonte, entendem-se os atos ou fatos do qual o ordenamento jurídico depende para que as normas jurídicas sejam criadas. Batista e Costa (2006, p. 112) afirmam que, no sentido jurídico, “fonte” é a proveniência, a procedência, a origem das normas, ou ainda: o caminho, o conduto, a via que disponibiliza informações sobre as normas e sobre a criação das normas. Reale (2010, p. 139) define “fonte do direito” como “os processos de produção das normas jurídicas”; contudo, diz que a distinção entre fonte formal e fonte material é desnecessária, e pode causar confusão.
A questão, entretanto, é que não importa quantas são as fontes do direito ou quais são, mas sim, reconhecer que, se existem atos ou fatos dos quais depende o ordenamento jurídico para criação de normas, então o ordenamento jurídico não só regula o comportamento das pessoas. Nele, existem também regras para a criação de novas normas, regras que regulam, que dizem como as normas devem ser produzidas. Essas regras são chamadas de normas de estrutura, elas não são usadas para regular condutas, comportamentos, mas sim para regular a regulamentação desse comportamento, ou seja, elas regulam o comportamento de produzir regras.
A complexidade de um ordenamento jurídico se dá, como já foi dito, quando existe mais de uma fonte do direito, ou seja, quando o direito é criado por diversos setores. Consideremos o ordenamento estatal brasileiro, por exemplo, nele existem regras de conduta e de estrutura – normas que regulam o comportamento das pessoas e normas que regulam a produção de outras normas, respectivamente. Essas normas que regulam a produção de outras normas estão em todos os segmentos estatais: estão presentes no Poder Judiciário (dizendo como os juízes devem emitir sentenças), no Poder Legislativo (dizendo como os legisladores devem produzir as leis), e no Poder Executivo (dizendo como eles devem criar normas internas).
Reale (2010, p. 96 - 97) denomina essas normas de “normas de organização”, ou “normas secundárias”. Essas normas, diz Reale, são normas instrumentais, ou seja, visam ao funcionamento e à estrutura de órgãos, tem como objetivo também disciplinar os “processos técnicos de identificação e aplicação de normas, a fim de assegurar uma convivência jurídica ordenada” (Reale, 2010, p. 96 – 97).
É justamente a frequência dessas normas que criam a complexidade do ordenamento jurídico. Estas normas, contudo, encaixam-se dentro da categoria de normas imperativas de segunda instância (pois a de primeira instância são aquelas que regulam as ações das pessoas), ou de segundo grau, podendo ser classificadas como normas imperativas, permissivas e proibitivas (desdobrando-se essa classificação em outra mais complexa).
Dentre as várias espécies de normas estruturais podemos distinguir nove: 1) normas que comandam ao legislador que ele comande; 2) normas que proíbem ao legislador que ele crie certas normas; 3) normas que permitem ao legislador a criação de algumas normas; 4) normas que comandam que o legislador proíba certos atos; 5) normas que proíbem que o legislador proíba; 6) normas que permitem que o legislador proíba; 7) normas que comandam ao legislador que ele permita; 8) normas que proíbem ao legislador permitir; e 9) normas que permitem que o legislador permita.
4. Construção Gradual do Ordenamento
Tanto os ordenamentos simples quanto os ordenamentos complexos constituem um sistema unitário. A explicação para isso se dá através da teoria do escalonamento, da teoria da norma fundamental, e através da teoria da construção gradual do ordenamento jurídico, todas elaboradas por Kelsen. Como já explanado, Kelsen (2009, p. 246 – 247) dizia que existiam normas superiores e normas inferiores, sendo que estas derivam daquelas; ou seja, uma norma dá origem a outra, a estrutura do ordenamento, dessa forma, pareceria uma pirâmide. Isso quer dizer que as normas de um ordenamento, seja simples ou complexo, não estão no mesmo plano. Partindo-se da base da pirâmide ao topo dela, chega-se à norma fundamental – todo ordenamento terá uma. É a norma fundamental que dá unidades as outras normas, formando assim um conjunto unitário – e que se pode chamar de ordenamento. Essa norma será o termo unificador do ordenamento: sem ela, não existiria ordenamento, mas sim, um amontoado de normas. É por isso que se diz que todo ordenamento jurídico é unitário, porque todas as normas e todas as fontes podem remontar a uma única norma (Reale, 2010, 192 - 197).
Desse modo, o ordenamento jurídico é hierárquico, pois há normas que são superiores a outras. Podemos comprovar essa afirmação com o seguinte exemplo: duas pessoas (pessoa X e pessoa Y) criam um ato executivo, ou seja, a pessoa X deve cumprir uma obrigação contraída com a pessoa Y. As normas criadas pelo contrato deverão estar de acordo com as normas legislativas, e estas deverão estar de acordo com as leis constitucionais. A norma criada pelo contrato está ligada à lei constitucional, mesmo que indiretamente, pois de norma em norma, os princípios fundamentais por elas legislados são repassados às normas inferiores.
Diz-se assim que a pessoa X, ao executar um contrato, praticou um ato executivo, da mesma forma que as normas constitucionais serão chamadas de produtivas (em relação às normas inferiores). Esses dois termos, executivo e produtivo, são relativos, pois as normas constitucionais são produtivas das legislativas, e estas são produtivas das normas criadas pelo contrato. E uma norma pode ser ao mesmo tempo executiva e produtiva: produtiva em relação à inferior, executiva em relação à superior. No modelo piramidal usado nesse estudo, o topo será ocupado pela norma fundamental, que será produtiva, e a base será ocupada por leis ordinárias, que serão executivas. No meio da pirâmide existirão normas produtivas e executivas ao mesmo tempo.
Essa relação de execução e produção pode ser explicada também através de dois termos correlatos: “poder” e “dever”. A produção jurídica é a expressão de um “poder”, e a execução é a expressão/o cumprimento de um “dever”. Uma das acepções da palavra poder se refere à capacidade que o ordenamento atribui a uma pessoa de gerar obrigações. E a obrigação, ou seja, o dever surge quando alguém é submetido ao poder de outra e deve agir de certa forma. Se olharmos a pirâmide de cima para baixo, veremos uma relação de poder indo do ponto mais alto ao ponto mais baixo: o poder constitucional, o poder legislativo ordinário, o poder regulamentar. Se olharmos a pirâmide de baixo para cima, será o contrário, veremos relações de obrigações: obrigação de executar a sentença de um magistrado, obrigação do magistrado de se ater às leis ordinárias, obrigação do Legislador para com a Constituição. Segundo Betioli (2011, p. 203 – 204), o primado hierárquico da pirâmide tem a finalidade de evitar o caos, pois a diferença de níveis evita o choque e o conflito entre normas. Este doutrinador ainda diz que a hierarquia piramidal pode ser analisada apenas do ponto de vista lógico, e não axiológico, pois, desse ponto de vista, uma norma pode ter, na prática, maior significação ética ou econômica do que aquela atribuída a norma a qual ela se subordina (Betioli, 2011, p. 203 - 204).
Embora quase todos os ordenamentos tenham uma estrutura piramidal (no Direito Europeu já é aceito o formato trapezoidal), nem todos terão o mesmo número de planos, pois haverá aqueles em que o Poder Legislativo cria leis constitucionais e leis ordinárias, ou seja, elas estariam no mesmo plano (elas não teriam a mesma importância, estariam, apenas, no mesmo plano de criação), existindo assim um plano a menos. E há os casos em que existiria um plano a mais, é o caso dos Estados Federais, onde existe o poder Legislativo do Estado Federal e o poder Legislativo dos Estados-membros.
5. Limites Materiais e Formais
O poder de criação de normas, quando é delegado, não é ilimitado: o poder superior sempre restringirá o inferior. Essa restrição se dará 1) através do conteúdo e 2) através da forma (limites materiais e formais). O doutrinador Betioli (2011, p. 194) diz que os limites materiais (normas substantivas) regulam e definem as relações jurídicas e criam direitos e deveres nas relações interpessoais, e que os limites formais (normas adjetivas) são de natureza instrumental, ou seja, definem os procedimentos a serem seguidos para efetivar as relações jurídicas. Se uma norma não se limitar à materialidade ou formalidade exigida pelo poder superior, ou seja, se ela regular uma matéria que não a dela, ou se ela regular de uma forma diferente da que lhe foi estabelecida, ela poderá ser expulsa do sistema além de ser declarada ilegítima.
Kelsen (2009, p. 16 – 18) fala sobre a regulamentação positiva e negativa, ou como prefere Bobbio: limites materiais positivos e negativos. Quando a lei permite a realização ou a permissão de determinado ato, ou quando a uma lei delega a um legislador o poder de criar normas ou intervir em sua produção, ou ainda quando a um individuo é dado um poder coercitivo para que possa fazer valer as normas, diz-se que existe aí um limite material positivo. Quando a lei regular a conduta humana de tal forma que não é nem permitida nem proibida uma determinada ação, então se diz que existe aí um limite material negativo (Kelsen, 2009, p. 16 – 18).
Os limites formais fundamentam os processos que os órgãos estatais devem seguir para criar o direito. Este limite quase nunca estará ausente, enquanto que o limite material pode inexistir na relação entre Constituição e lei ordinária, e.g., as Constituições ditas flexíveis – em que as leis ordinárias e as constitucionais têm o mesmo procedimento para alteração. É importante salientar que ambos os limites podem ser encontrados na passagem da lei ordinária para a decisão judicial.
A sentença do juiz pode ser considerada inválida caso ela não verse sobre o conteúdo em questão (limite material). A invalidação de uma sentença pode ocorrer também se o juiz não atender aos critérios processuais necessários, ou seja, o juiz deve seguir os ritos legais processuais.
Existem casos em que o juiz não atende aos critérios/limites materiais, ele baseia sua decisão no princípio da equidade (“juízos de equidade”). Nesta situação, o juiz não se baseará em uma lei preestabelecida – isso é comum em ordenamentos que dão ao juiz certa “liberdade criativa”. O juízo de equidade é uma “autorização” dada ao juiz para que ele produza direito fora dos limites materiais. Radbruch (1979, p. 91) explica que a equidade é a justiça de cada caso particular – a equidade busca a lei do caso individual para depois transformá-la em uma lei geral –, ou seja, a equidade surge para abrandar o excessivo rigor da lei (adaptá-la aos casos imprevistos que não se enquadram dentro da justiça-tipo) e deve ser utilizada não com base na lei, mas sim no fundamento de justiça que a própria lei visa.
Quando a lei ordinária passa ao negócio jurídico, ou seja, quando o direito público passa ao privado, os limites formais são mais levados em conta do que os materiais. É como se, ao direito, importasse menos “o que os homens fazem” do que “o modo como os homens fazem” (como se o direito fosse uma regra formal do agir humano). A prevalência da formalidade sobre a materialidade ganha a aparência de verdade quando se fala da relação entre lei e autonomia privada. Essas normas geralmente versam sobre como os negócios jurídicos devem ser feito, e não sobre que conteúdo eles devem abordar. Existirão, contudo, restrições de conteúdos sobre a autonomia privada em alguns casos: a criação de um testamento, por exemplo, será restrita; as normas dirão como o testador deverá dispor de seus bens no testamento.
6. A Norma Fundamental
A obrigação pressupõe poder, pois o possuidor do poder cria normas (que significam obrigações). Como se sabe, existem as normas constitucionais que derivam do poder constituinte (o poder originário ou poder último), mas esse poder não surgiu do nada, ele foi autorizado, por uma norma superior, a produzir normas inferiores. Essa norma que está acima do poder constituinte é chamada de norma fundamental, e foi detalhadamente estudada e fundamentada por Kelsen. Ela (a norma fundamental) será atributivo-imperativa, pois dará poder aos órgãos constitucionais para criarem novas normas e obrigará os submetidos às normas constitucionais a obedecerem a elas (Kelsen, 2009, p. 225). A norma fundamental não está positivada ou expressa, e se estivesse, diz Kelsen (2009, p. 255), não seria a norma fundamental, e seria preciso subir na hierarquia da pirâmide para achá-la. Esta norma fundamental, sendo pressuposta, pode ser declarada da seguinte maneira: “a sociedade é obrigada a obedecer às normas criadas pelo poder constituinte” (todo o sistema jurídico será legitimado pela norma fundamental).
As normas provenientes de outras fontes devem ser reduzidas a uma só unidade: a norma fundamental. Caso contrário, haverá conflitos dentro do ordenamento. Se uma norma vier de outra fonte, então ela entrará em conflito com a norma fundamental.
Afirma Kelsen (2009, p. 295 – 297) que uma norma jurídica só pertencerá a um ordenamento jurídico se se harmonizar com a norma que define o ordenamento; se ela não se harmoniza, então ela será “antijurídica” e a unidade do ordenamento desapareceria. O ordenamento não pode ser anulado, nem pode ser contradito, então a norma jurídica que assim se comportar será taxada de nula. Mas, para ela assim ser taxada, ela precisa primeiro existir, ou seja, ser objetivamente válida (conforme ao direito), pois uma norma que não existe ou que não foi legitimada ou validada pelo sistema jurídico não pode ser taxada de nula. Para ela ser objetivada juridicamente (validada), ela precisa ser criada por uma autoridade com poder para tal e esse poder deve ser atribuído pela norma fundamental (Kelsen, 2009, p. 295 - 297). Assim, é possível estabelecer se uma norma pertence a um dado ordenamento se conseguirmos fazer com que ela seja reconduzida à norma fundamental; e como o pertencimento a um ordenamento significa validade, então ela será válida. A norma fundamental será o fundamento de validade para qualquer norma de um ordenamento.
A teoria da norma fundamental e a teoria do ordenamento são indissociáveis, pois um ordenamento precisa de uma unidade unificadora e precisa de normas válidas pertencentes a ele. Esta unidade e validade serão pressupostas pela norma fundamental.
Deve-se, neste ponto, ressaltar mais uma vez no que se funda a norma fundamental. Ela é um postulado, ou seja, uma proposição primitiva que não é deduzível, mas que dá base para que outras proposições sejam deduzidas. A norma fundamental, por ser um postulado, é uma convenção (ou uma proposição evidente). Por lógica, a norma fundamental não pode ter fundamento em nenhuma outra, pois, se tivesse, não seria a norma originária.
Se o argumento de que a norma fundamental está no vértice da pirâmide não for aceito, então é preciso sair do sistema jurídico para encontrar o fundamento da norma fundamental; e esse não seria mais um problema jurídico. Para se responder a pergunta “qual é o fundamento da norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo?”, seria preciso partir para a justificação de um poder absoluto, colocando o sistema jurídico dentro de um sistema cósmico (ou de um sistema humano mais geral). Existem três teorias que colocam uma norma superior acima da norma fundamental: o poder de Deus, a lei natural, e uma convenção originária (todas concebidas como a “fonte última” de todo o poder). Kelsen (2009, p. 224 – 226), contudo, fundamenta a norma fundamental não através de um “valor transcendente ao Direito Positivo” ou remetendo-se a “autoridades metajurídicas” (Deus ou a natureza), mas através de um silogismo que pressupõe atos de vontade humanos, ou seja, através de proposições lógicas que remetam a uma força a qual devemos obedecer como fundamento último de uma norma.
A teoria de que “todo poder provém de Deus” afirma que Deus delegou ao legislador constituinte o poder de criar normas jurídicas válidas, sendo necessário se acrescentar mais um grau à pirâmide, um grau superior à norma fundamental. A teoria da lei natural, por sua vez, afirma que temos o dever de obedecer ao poder constituído, esta lei natural deriva não da vontade de um ou mais homens, ou da autoridade deles, mas sim do exercício da razão. Algumas correntes do jusnaturalismo defendem a teoria de que a norma fundamental está fundamentada na lei natural, e esta ordena que se obedeça à razão, que por sua vez ordena que se obedeça aos governantes (teoria da obediência). Por último, a teoria da convenção originária diz que existe um acordo entre aqueles que se reúnem em sociedade e aqueles a quem é delegado o poder de criar normas, ou seja, o dever de obedecer ao poder constituído vem do acordo de vontade daqueles que criaram o contrato social.
7. Direito e Força
Outra indagação sobre a norma fundamental é em relação ao seu conteúdo. A norma fundamental, como já foi dito, obriga as pessoas a obedecerem ao poder originário, que é um conjunto de forças políticas que tomaram o controle da sociedade em determinado momento. Muitos autores interpretam mal essa passagem histórica e cometem o erro de reduzir o direito ao uso da força.
É preciso dizer que poder e força, dentro desse contexto, não tem o mesmo significado. O poder originário é um conjunto de forças [políticas] que instauraram um sistema jurídico, sendo que, em alguns casos, houve o uso de força física (o uso da força física não está implícito na ideia de poder). A instauração de um ordenamento pode ter sido feita através da violência, do consenso, ou através dos dois. O poder originário pressupõe coercitividade, que pode tanto basear-se na violência quanto no consenso. Mas, para que o poder originário seja coercitivo, é necessário o uso da força (nessa segunda explicação, o uso da força refere-se ao poder originário e não à coercitividade).
O direito é fundado em um poder coercitivo que às vezes recorre à força, por isso pode-se dizer que o direito é um conjunto de regras com eficácia reforçada, ou seja, o direito é inconcepto sem o poder. Isso não significa reduzir o direito à força, mas sim dizer que a força é necessária ao direito. Um ordenamento jurídico será válido somente quando for eficaz, ou seja, quando causar o resultado pretendido por ele; e algumas vezes ele precisará fazer uso da força, que será legitimada pela norma fundamental. Essa força é caracterizada, por muitos juristas, como a “coação”, que, segundo Reale (2010, p. 46 - 48), será o que distinguirá o Direito da Moral. Reale (2010, p. 46 – 48) diz ainda que a “doutrina da coação é a verificação da compatibilidade do Direito com a força”, ou seja, o direito é um postulado prático-teórico coercível de como a conduta humana deve ser.
A concepção de direito que se tem neste trabalho é o de direito positivado (como ele realmente é) e não o direito justo (como ele deveria ser). A norma fundamental, baseada nisso, autorizará o uso da força independentemente de ser justa ou não – legitimação jurídica. Se a força for usada corretamente – e da forma justa –, então, além de haver a legitimação jurídica, haverá também a legitimação moral.
8. Conclusão
O ordenamento jurídico não é mera abstração teórica criada de forma pedagógica para se estudar o direito, ao contrário: é uma forma de organização que permite a aplicação direta do direito, possibilitando aos legisladores, julgadores e aplicadores o exercício de suas funções sem a invalidação dos seus atos. Assim, o ordenamento jurídico não é somente um conjunto desorganizado de normas, em verdade, possui uma estrutura complexa, com diferentes tipos de normas que se coadunam para formar uma unidade.
A norma fundamental, de igual maneira, possui função significativa no ordenamento (ou fora dele), legitimando toda a estrutura jurídica e validando todas as normas constitucionais e infraconstitucionais. Além de legitimar a validar o ordenamento jurídico, a norma fundamental possui a importante função de unir e ser o elemento de coesão do ordenamento, escalonando-o e fazendo com que se torne apenas um. Sem a concepção de uma norma fundamental, não é possível se construir uma teoria unitária do ordenamento jurídico.
Referências Bibliográficas
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[1]Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, advogado.
MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Jéssica Cavalcanti Barros. A unidade do ordenamento jurídico segundo uma concepção Bobbiana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2020, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/54870/a-unidade-do-ordenamento-jurdico-segundo-uma-concepo-bobbiana. Acesso em: 23 dez 2024.
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