RESUMO: A realidade enfrentada por uma grande quantidade de crianças e adolescentes no Brasil é de descaso por parte do Estado que não se preocupa com a celeridade dos processos de destituição do poder familiar, fazendo com que estes infantes percam, em razão do decurso do tempo e das dificuldades da adoção tardia, a chance de encontrarem um lar. Dados do Conselho Nacional de Justiça comprovam esta situação pela disparidade entre o número de menores institucionalizados e de disponíveis para adoção. Desta forma, abordou-se no presente artigo como se encontra a proteção dos infantes no ordenamento jurídico brasileiro através de uma análise das formas de responsabilização do Estado, bem como a aplicação teoria da perda de uma chance pela doutrina e jurisprudência, a fim de que se tornasse compreensível a necessidade de responsabilização do Estado pela demora no processo de destituição do poder familiar como forma de pressiona-lo a alterar a presente situação.
PALAVRAS-CHAVE: Destituição do Poder Familiar. Teoria da Perda de uma Chance. Responsabilidade Civil. Estado.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. 3. ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE. 4. RESPONSABILIDADE CIVIL POR OMISSÃO DO ESTADO. 5. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. 6. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E O PROCESSO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. 7. CONCLUSÃO. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
Apesar dos prazos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os processos de destituição do poder familiar no Brasil são marcados pela demora, isto se deve a uma soma de fatores, em que os principais são a legislação e a morosidade do Poder Judiciário. Tal fato leva milhares de crianças e adolescentes a ficarem sem um lar, pois muitas vezes são disponibilizados tardiamente para adoção, o que passa a dificultar o processo de adoção, vez que saem do perfil mais procurado, em casos assim verifica-se a possibilidade de aplicar a teoria da perda de uma chance como meio de reparação do dano, seja pelo Estado ou até mesmo pelo juiz.
A Teoria da Perda de uma Chance ganha cada vez mais aceitação na doutrina e jurisprudência pátria, inclusive como forma de responsabilizar o Estado. Tal fato só foi possível pela longa evolução que passou a responsabilidade civil do Estado.
Nesse diapasão, para que se torne compreensível a referida teoria aplicada a demora nos processos de destituição do poder familiar é imprescindível que sejam analisados os tipos de responsabilidade, subjetiva e objetiva, a maneira de responsabilização estatal por danos provocados em virtude de sua omissão, para, por fim, se compreender a responsabilidade civil do Estado pela perda de uma chance pela demora nos processos de destituição do poder familiar.
2. EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Na Época dos Estados Absolutistas, vigorava o princípio irresponsabilidade absoluta do Estado, em que este não respondia pelos seus atos, sendo possível apenas ações em face daquele funcionário que provocou o dano. Contudo, como muitas vezes não se conseguia identificar o causador do prejuízo ou este não tinha como ressarcir o dano a responsabilização restava ineficaz. Esta época ficou marcada por expressões como “The king can do no wrong” (O rei não erra) e “L’État c’est moi” (O Estado sou eu), demonstrando a intangibilidade e a infalibilidade do soberano e, consequentemente do Estado, que no período eram compreendidos como um só. É importante destacar que o Brasil nunca passou por esse período, mesmo durante a vigência da Constituição do Império. (CAVALIERI, 2014)
Com o passar do tempo, a irresponsabilidade foi sendo substituída por uma concepção civilista. Segundo essa concepção, o Estado responderia perante os seus administrados se restasse comprovada a culpa, isto é, passou a vigorar a tese da responsabilidade subjetiva. O Código Civil Brasileiro de 1916, inclusive, em seu artigo 15 adotou a referida teoria. (GONÇALVES, 2015b)
A partir dessa concepção de que o Estado, como ser dotado de personalidade, deveria responder por seus atos, surgem teorias para justificar este dever. Dentre elas está a teoria do órgão que diz que o Estado e seus funcionários são um só, funcionando como se fossem um órgão. O Estado seria um organismo vivo e os seus agentes os órgãos que o compõe, assim as ações tomadas por estes deveriam ser imputadas àquele. A vontade do funcionário, é, na verdade, a vontade da Administração, assim, todas as implicações dessa atuação deverão ser de responsabilidade do Estado.
Surge, posteriormente, a teoria da culpa anônima ou “faute du service”. Passa-se a concepção de que as falhas decorrem do serviço em si e não da ação do agente público individualizadamente. Portanto, para haver responsabilização do Estado é necessário que se comprove a falta ou o defeito no serviço, não sendo necessário apontar qual servidor agiu dolosamente ou de maneira imprudente, com imperícia ou com negligência. Sobre essa teoria muito bem explica Sergio Cavalieri Filho:
Com base nesses princípios publicisticos evoluiu-se da culpa individual para a culpa anônima ou impessoal. A noção civilista da culpa ficou ultrapassada, passando-se a falar em culpa do serviço ou falta do serviço (faute du service, entre os franceses), que ocorre quando o serviço não funciona, funciona mal ou funciona atrasado. Noutras palavras, o dever de indenizar do Estado decorre da falta do serviço, não já da falta do servidor. Bastará a falha ou o mau funcionamento do serviço público para configurar a responsabilidade do Estado pelos danos daí decorrentes aos administrados. [...] (2014, p.285)
A responsabilidade do Estado evoluiu, por fim, para a modalidade objetiva, que é, até hoje, adotada no Brasil. A primeira Constituição a prevê-la foi a de 1946 e assim manteve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 37, §6º, também prevista no plano legal pelo Código Civil de 2002 no artigo 43.
Consiste esta última espécie de responsabilidade em atribuir responsabilidade ao Estado, independentemente da comprovação da culpa do seu agente ou do serviço prestado. A prova da culpa apenas serve como fundamento para ação regressiva do Estado em face do seu agente faltoso, em nada interferindo no seu administrado.
Há que se destacar que, via de regra, aplica-se ao Estado a responsabilidade pautada no risco administrativo, em que se admitem as excludentes de responsabilidade, como culpa de terceiros, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Contudo, em certas hipóteses, adota-se a teoria do risco integral, em que tamanha é a responsabilização estatal que não se admite sequer a demonstração das excludentes de responsabilidade, como ocorre com nos casos de danos ambientais ou danos nucleares.
Por fim, destaca-se que o Supremo Tribunal Federal em tese de Repercussão Geral (RE 1027633-SP) adotou a tese da dupla garantia, em que a ação que vise a responsabilização estatal deverá ser ajuizada em face do Estado e não do agente público. Tal fato consiste em uma segurança ao administrado que terá a garantia da reparação ante a solvência do Estado e, ao mesmo tempo, numa proteção conferida ao agente público, que poderá atuar com independência, só podendo ser responsabilizado regressivamente quando demonstrado o seu dolo ou culpa.
3. ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE
Conforme explicado na presente obra, a responsabilidade passou por um longo caminho até chegar a teoria adotada atualmente. Passou-se da subjetividade para objetividade e da responsabilização apenas por atos comissivos para atribuição de responsabilidade também pelos atos comissivos do Estado. Para tanto, faz-se necessário uma análise de cada uma dessas espécies de responsabilidade.
A doutrina e a jurisprudência pátria apontam que para a caracterização da responsabilidade subjetiva é necessária a presença concomitante de três requisitos, quais sejam: o dano, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial; o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o prejuízo; e principalmente o elemento subjetivo, consistente na culpa, verificada nos casos de imprudência, imperícia, negligência ou dolo.
O fundamento da responsabilidade subjetiva está na vontade, pois só será responsabilizado aquele que não agiu corretamente. É, portanto, uma concepção civilista de responsabilidade pautada na vontade, mesmo nos casos de imprudência, imperícia ou negligência, pois o agente escolheu não tomar todas as cautelas necessária ao praticar determinado ato.
Essa era a teoria utilizada para responsabilização do Estado até a Constituição de 1946 e é ainda hoje bastante utilizada nos diversos ramos do direito, principalmente no ramo do Direito Privado, como as áreas cíveis, consumeristas etc. Assim explica Flavio Tartuce:
Conforme demonstrado, a responsabilidade subjetiva constitui regra geral em nosso ordenamento jurídico, baseada na teoria da culpa. Dessa forma, para que o agente indenize, para que responda civilmente, é necessária a comprovação da sua culpa genérica, que inclui o dolo (intenção de prejudicar) e a culpa em sentido restrito (imprudência, negligência ou imperícia). (2013, p.463-464)
Com o passar do tempo, o sistema da responsabilidade subjetiva, ainda que importante, foi deixando de ser suficiente para regular as novas situações mais complexas, em que os interesses se entrelaçam ou que não se sabe ao certo identificar quem produziu o ato danoso. A culpa deixou de ser elemento principal para regular todas as situações existentes na sociedade. Diante de tais circunstâncias surge a responsabilidade objetiva.
Para a configuração desta modalidade de responsabilidade, diferentemente da supracitada, é necessário que estejam presentes dois elementos: o dano, que como na responsabilidade subjetiva poderá ser patrimonial ou extrapatrimonial; e a relação de causalidade verificada entre a ação e o prejuízo provocado. Para esta espécie de responsabilidade o elemento subjetivo é dispensável, não havendo necessidade da comprovação do fator culpa.
Esta modalidade é aplicada atualmente como forma de responsabilização do Estado, em que este responderá independentemente do fato de seu agente ter praticado qualquer ato ilícito. Apresenta como fundamento a socialização dos custos baseada no princípio da igualdade entre os administrados. Neste sentido explica Celso Antônio Bandeira de Melo:
[...] o fundamento da responsabilidade estatal é garantir uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De consequente, seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica do Estado de Direito. (2005, p.866)
Algumas teorias surgiram visando fundamentar a responsabilidade objetiva. Dentre elas está a teoria do risco, que foi recepcionada pelo Código Civil de 2002 no seu artigo 927, parágrafo único, com a seguinte redação: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Baseia-se a referida teoria no fato de que se alguém exerce atividade que provoca perigos especiais, excepcionais ou diferenciados e, consequentemente, expõe terceiros a uma considerável possibilidade de risco, mesmo sem defeitos, terá de responder objetivamente pelos danos causados, pois uma só pessoa não pode suportar um ônus maior que os demais. Portanto, para que haja a responsabilização baseada no risco é necessário que o risco seja inerente ao exercício da atividade.
Essa teoria do risco é bastante aceita pela doutrina e pela jurisprudência como forma de responsabilização do Estado, sendo conhecida nesses casos como “teoria do risco administrativo”. Segundo ela, como a Administração Pública detém maior poder e maiores prerrogativas que seus administrados, assume os riscos de suas atividades e, desta forma, deverá responder pelos danos objetivamente. Além disso, a atividade administrativa é regida pelo princípio da igualdade, não sendo justo que uns suportem certos prejuízos sozinhos, devendo os ônus e encargos sociais serem rateados entre todos.
Para esta teoria, a responsabilidade do Estado poderá ser afastada nos casos de culpa de terceiro, culpa exclusiva da vítima ou nas situações de caso fortuito ou força maior, pois “o risco administrativo, repita-se, torna o Estado responsável pelos riscos da atividade administrativa, e não pela atividade de terceiros ou da própria vítima, e nem, ainda, por fenômenos da natureza, estranhos à sua atividade” (CAVALIERI, 2014, p.287). Ademais, poderá ser atenuada quando tratar-se de culpa concomitante. Esta é a teoria mais aceita pela doutrina e jurisprudência no Brasil.
Outra importante teoria é a do risco integral, modalidade extremada que admite a responsabilização do agente mesmo nos casos de inexistência do nexo causal, isto é, a pessoa ficará obrigada a indenizar mesmo nos casos de culpa exclusiva da vítima, culpa de terceiro, caso fortuito ou força maior. Tal teoria é aplicada, por exemplo, nos casos de acidente de trabalho, seguro DPVAT e nos casos de danos ambientais.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL POR OMISSÃO DO ESTADO
Outros tais como, como Sergio Cavalieri Filho (2014), compreendem que a necessidade do elemento subjetivo irá depender do tipo de omissão, se genérica ou específica. A omissão genérica ocorre quando o Estado concorre com a força maior, a culpa da vítima ou com o fato de terceiro para resultado danoso e, desta forma, por não ser causa direta e imediata deverá se comprovar a culpa da Administração Pública. Nos casos englobados por esta espécie de omissão não há um dever específico do Poder Público, mas uma obrigação geral decorrente, por exemplo, de um serviço público mal prestado ou do poder de polícia ineficiente.
Por outro lado, nos casos de omissão específica, a omissão estatal contribui diretamente para ocorrência do dano, uma vez que o Estado tem um dever especial de cuidado e de garante da situação. Nesta situação, a responsabilização da Administração será objetiva. É o caso de violência dentro dos presídios, em que os presidiários estão sob a custódia do Estado e este tem o dever de zelar pela integridade física e psíquica deles. Hérika Marques bem explica a forma como se dará a responsabilização do Estado nos casos de omissão:
Na busca de determinar a responsabilidade do Estado por conduta omissiva, é preciso que se descubra qual dos fatos foi decisivo para configurar o evento danoso, ou seja, quem gerou o dano e quem deveria evitá-lo. Assim, o Estado responderá, não pelo fato que diretamente gerou o dano, mas por não ter praticado conduta suficientemente adequada para evitar o dano ou mitigar seu resultado, quando o fato for notório ou perfeitamente previsível. (2012, p.97)
Assim, ao se analisar a situação de milhares de crianças e adolescentes esquecidas em abrigos, devido a demora nos processos de destituição do poder familiar pela ausência de uma atuação adequada e eficiente por parte do Estado e pela morosidade do Poder Judiciário, resta evidenciada a omissão do Estado em realizar ações no sentindo de promover uma reforma legislativa para facilitar e conferir celeridade aos procedimentos de adoção, bem como uma atuação proativa no sentido de melhorar a fiscalização e acompanhamento da situação dos acolhimentos não sendo outra a solução, senão a de responsabilizá-lo.
5. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE
Um dos grandes avanços alcançados nas últimas décadas no instituto da responsabilidade foi o reconhecimento da teoria francesa “perte d’une chance”, que, contudo, ainda encontra muitas dificuldades na sua aplicação pela falta de uma doutrina mais aprofundada sobre o assunto, o que se reflete na jurisprudência e acaba por dificultar o reconhecimento da teoria pela mesma. Nas palavras de Sergio Cavalieri Filho, “caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um benefício futuro para a vítima” (2014, p.98).
Desta forma, pode-se compreender que não há mero prejuízo hipotético, mas trata- se sim de uma chance séria e real de que, sem a ação do agente, o prejudicado pudesse auferir determinada vantagem ou que, pelo menos, não tivesse de suportar determinada perda. Isto é, mesmo que a obtenção do benefício não seja completamente certa, tem-se a indubitabilidade de que a chance foi perdida e que, dentro de um juízo de probabilidade, fosse muito possível e razoável que o prejudicado obtivesse a vantagem.
Sílvio de Salvo Venosa (2014) classifica a teoria da perda de uma chance como uma terceira categoria que ficaria entre os lucros cessantes e o dano emergente. Dano emergente é aquilo que efetivamente perdeu, o prejuízo imediato e que pode ser mensurado, sendo, portanto, o dano mais fácil de ser quantificado. Já o lucro cessante trata-se daquilo que razoavelmente se deixou de ganhar devido o prejuízo que teve de suportar, calculado dentro do bom senso do julgador, ocorrendo, por exemplo quando o prejudicado recebia uma vantagem que foi interrompida em razão da conduta do agente provocador do dano. Como o prejuízo tratado na teoria em estudo não se encaixa em nenhum desses conceitos, mas consiste em dano sério e provável é, portanto, passível de indenização.
Sérgio Savi (2012) sustenta a aplicação da perda de uma chance apoiando-a na cláusula geral de responsabilidade civil, que diz que aquele que causar dano a uma vítima ficará obrigado a indenizá-la e no princípio da reparação integral, que, por sua vez, assegura à vítima o direito ao ressarcimento de todos os prejuízos sofridos na sua integralidade, a fim de que tente ser restabelecido o status quo ante. Assim, o doutrinador afirma a aceitação da teoria pelo ordenamento jurídico brasileiro:
[...] não há, a nosso sentir, no Código Civil Brasileiro em vigor, qualquer entrave à indenização das chances perdidas. Pelo contrário, uma interpretação sistemática das regras sobre a responsabilidade civil traçadas pelo legislador pátrio nos leva a acreditar que as chances perdidas, desde que sérias, deverão ser sempre indenizadas quando restar provado o nexo causal entre a atitude do ofensor e a perda da chance. (2012, p.106)
Isto posto, a indenização devida não será equivalente a vantagem perdida, mas inferior a esta, pois o que se perdeu foi chance de alcançar determinado bem e não o bem em si. Neste sentido, é o entendimento extraído da Ministra Nancy Andrighi no julgamento do REsp 1254141:
DIREITO CIVIL. CÂNCER. TRATAMENTO INADEQUADO. REDUÇÃO DAS POSSIBILIDADES DE CURA. ÓBITO. IMPUTAÇÃO DE CULPA AO MÉDICO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. REDUÇÃO PROPORCIONAL DA INDENIZAÇÃO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. [...] 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional. 5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada.
Assim sendo, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que a perda de uma chance, desde que se trate de um dano sério e real e que se consiga enxergar o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano provocado, mesmo que não haja uma certeza absoluta quanto aos acontecimentos futuros, deverá ser aplicada.
6. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE E O PROCESSO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR
De acordo com o que já fora explanado nessa obra, os processos de destituição do poder familiar levam bastante tempo para sua conclusão. Isto se deve a uma série de fatores, em que os principais são a deficiência da legislação pertinente ao assunto, a demora na solução dos processos pelo Poder Judiciário e a ausência de uma fiscalização e acompanhamento efetivo por parte do poder público das milhares de crianças que se encontram em acolhimentos familiares e institucionais.
O Estatuto da Criança e do Adolescente conferiu tramitação prioritária aos processos regulados por ele, conforme se extrai da leitura do artigo 152 do referido diploma normativo e o artigo 47, no seu §10, no mesmo sentido de tentar conferir celeridade, estabeleceu um prazo de 120 (cento e vinte) dias, prorrogável uma única vez por igual período, para a conclusão dos processos de adoção. Contudo, cumpre destacar uma relevante omissão do legislador brasileiro, que é a ausência de previsão de qualquer sanção àquele que descumprir a previsão normativa. É desta forma que se posiciona Maria Berenice Dias:
A Lei da Adoção garante a tramitação prioritária dos processos, sob pena de responsabilidade (ECA 152 parágrafo único), mas não prevê qualquer sanção. As ações de suspensão e perda do poder familiar precisam estar concluídas no prazo máximo de 120 dias. (2015, p.521)
Outra importante falha verificada no ordenamento brasileiro é a preferência desproporcional à manutenção do menor no seio da família biológica antes de qualquer tentativa de colocação do infante em família extensa ou substituta. Apesar da boa intenção do legislador, que busca manter o menor junto àqueles com os quais mantém vínculos de afetividade e afinidade, há casos em que é evidente que, para preservação do melhor interesse do menor, é mais aconselhável a sua disponibilização para adoção, por exemplo, nos casos de exploração sexual praticada por membros do próprio núcleo familiar, submissão a trabalho escravo, pais usuários de drogas ou ainda em situação de abandono em instituições de acolhimento.
Não se quer dizer aqui que não se deve tentar a reinserção do jovem em meio a sua família natural ou que o processo de destituição do poder familiar deve ocorrer o mais rápido possível sem se observar os trâmites processuais necessários para a garantia do devido processo legal, do contraditório ou da ampla defesa. O que se pretende afirmar é que a tramitação do processo deve ser prioritária e célere, pois envolve interesses de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e que não se pode retardar a destituição devido a tentativas que claramente restarão frustradas de recolocação do menor na família biológica, indo em sentido contrário ao princípio do melhor interesse.
Soma-se a isso o grave problema da morosidade do Poder Judiciário, que devido a enorme quantidade de ações e a pequena quantidade de servidores, estes não conseguem, muitas vezes, concluir os processos em tempo hábil de forma a proporcionar uma solução efetiva aos seus jurisdicionados.
Segundo uma avaliação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresentada em artigo elaborado por Renata Resende Bragança e Antônio Alexandre Pereira Junior para a Revista Uningá Review (2015), há uma disparidade muito grande entre o perfil dos jovens disponíveis para adoção e o sonhado pelos que querem adotar. Apenas 5% dos candidatos estariam dispostos a adotar uma criança com mais de 6 anos de idade e somente 1% aceitaria uma adolescente. A preferência da maioria das pessoas que desejam adotar é por menores de 3 anos, a partir desta faixa etária as possibilidades de se encontrar um lar reduzem-se consideravelmente.
Então, o processo de destituição do poder familiar de várias crianças e adolescente em geral se estende por anos e, assim, a medida que o tempo vai passando, as chances de encontrar um novo lar que atenda às suas necessidades vai desaparecendo, uma vez que só pode disponibilizar uma criança para adoção se ela houver sido destituída da sua família biológica.
Outro dado significativo também apresentado pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) é o que revela a discrepância entre o número de crianças e adolescentes institucionalizados, que totalizam trinta mil quatrocentos e noventa, e o de disponíveis para adoção, que é apenas em torno de cinco mil e vinte. Este dado revela que milhares de infantes estão em abrigos supostamente em situação provisória, mas permanecem longos períodos nestas instituições, pois nem retornam ao seu lar de origem e nem são disponibilizados para adoção ou quando o são já é tarde demais, tendo em vista as dificuldades da adoção tardia. Assim, não interessa uma lei que garanta direitos, como a que estabelece o prazo máximo de 18 (dezoito) meses de permanência da criança e do adolescente nas instituições de acolhimento, se esta lei na prática não é aplicada.
Desta forma, uma enorme quantidade de crianças, devido, essencialmente, a ausência de uma ação mais proativa do Estado, são privadas do seu direito fundamental a convivência familiar, o que provoca consequências psicológicas irreparáveis, prejudicando na formação da sua personalidade, pois devido à ausência do afeto e de uma atenção individualizada os infantes absorvem um sentimento de rejeição e, muitas vezes, de revolta. Ademais, “além das consequências para as crianças abrigadas, até mesmo os pais que buscam a adoção podem sofrer psicologicamente com a demora, ocasionando maiores malefícios ao tempo do processo em geral” (BRAGANÇA; PEREIRA JÚNIOR, 2015, online)
O Estado ao receber essas crianças e adolescentes em suas instituições de acolhimento assume o compromisso de zelar por sua integridade física e psicológica, devendo utilizar-se de todos os meios necessários para o cumprimento desse dever legal, pois, caso contrário, deverá ser responsabilizado pelos danos provocados, o que decorre, na maioria das vezes, da inércia e descaso da Administração Pública com a situação destes cidadãos em formação.
Isto posto, a omissão do Estado em agilizar os processos de destituição do poder familiar, no sentido de promover uma reforma na legislação para criar uma sanção e impor responsabilidade ao funcionário que não cumprir o prazo fixado em lei e relativizar a prioridade de manutenção do menor no seio da família biológica, bem como de solucionar o problema da morosidade do Poder Judiciário, é uma omissão específica, uma vez que está na condição de guardião destes menores que estão em seus abrigos e, em razão da ausência de ações, impede que milhares de crianças e adolescentes sejam adotados.
Agilizar a busca de um lar para esses seres em desenvolvimento deveria ser ação prioritária de uma Estado Democrático de Direito como o é a República Federativa do Brasil, que tem como princípio fundante o da dignidade da pessoa humana, pois não há destino mais triste do que condenar esses jovens a permanecer em abrigos que em muitos casos não atendem os requisitos necessários para seu funcionamento.
O pagamento de indenização aos menores que foram privados do direito à convivência familiar pela ineficiência do Poder Público atenderá ao princípio da dignidade humana, da proteção integral, do melhor interesse da criança e do adolescente, servindo como uma forma de amenizar os danos sofridos e até mesmo como meio de custear os tratamentos psicológicos que certamente serão necessários.
Não se pode deixar que milhares de crianças e adolescentes sofram pela inércia e descaso do Poder Público e atribuir responsabilidade ao Estado por isso é muito mais uma forma de pressioná-lo a alterar a situação atual do que monetarizar o direito desses jovens a convivência familiar, sendo este apenas um meio para um fim muito maior e significativo.
7. CONCLUSÃO
Infelizmente, a realidade do Brasil é bem diferente da esperada, vez que os processos de destituição do poder familiar e consequentemente os de adoção se estendem por longos períodos, não obedecendo o prazo de 120 dias para sua conclusão estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tal fato é decorrência da omissão e descaso da Administração Pública. Em primeiro lugar, em razão da deficiência da legislação que regulamenta a matéria, tendo em vista que além de estabelecer uma preferência desarrazoada de manutenção do menor no seio da família biológica, não apresenta a sanção que deverá ser aplicada nos casos de descumprimento do prazo estabelecido no ECA, isto é, não há previsão de responsabilização para aquele que não obedecer a previsão legal. Segundo, devido a morosidade do Poder Judiciário, que não consegue entregar aos seus jurisdicionados uma solução eficaz.
Portanto, para solução do problema apresentado pelo presente trabalho monográfico não se enxerga outra alternativa, senão a de responsabilização do Estado pela perda de uma chance dessas criança e adolescente pertencerem a um lar e assim receber o afeto e atenção individualizada de que necessitam.
A pretensão com a indenização não é a monetarização do direito à convivência familiar, mas sim de pressionar o Estado a tomar atitudes mais efetivas para solucionar a situação de abandono a que estão sujeitas várias crianças e adolescentes por todo o Brasil, através, principalmente, de uma reforma na legislação pertinente e no judiciário.
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Advogada, Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Joana Nogueira. A responsabilidade civil do Estado pela perda de uma chance nos processos de desconstituição do poder familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56148/a-responsabilidade-civil-do-estado-pela-perda-de-uma-chance-nos-processos-de-desconstituio-do-poder-familiar. Acesso em: 23 dez 2024.
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