Resumo: O presente artigo pretende tratar de um debate acerca da liberdade de expressão e o discurso de ódio, a partir da análise de um julgamento concreto empreendido pelo Supremo Tribunal de Federal no início do século XXI, envolvendo o antissemitismo como forma de racismo. Do entendimento fático e jurídico que motivaram o resultado final desse julgado, empreender-se-á uma leitura e discussão sobre os limites (in)visíveis traçados entre a licença poética das obras literárias e a possível apologia ao crime que dela, muitas vezes, se disfarça. Ver-se-á como o precedente judicial prolatado pela Suprema Corte influenciou, juridicamente, o olhar crítico de casos análogos. E, por fim, será posta em cheque a opinião desta articulista sobre a temática abordada.
Palavras chave: Antissemitismo. Racismo. Liberdade de Expressão. Discurso de Ódio. Direitos Fundamentais.
Abstract: This article intends to deal with a debate about freedom of expression and hate speech, based on the analysis of a concret judgment undertaken by the Supreme Court at the beginning of the 21st century. From the factual and legal understanding that motivated the final result of this judgment, a reading and discussion will be undertaken on the (in) visible limits drawn between the poetic license of literary works and the apology to the crime that, many times, it disguise. It will be seen how the judicial precedent given by the Supreme Court influenced, legally, the critical view of analogous cases. And, finally, the opinion of this writer on the subject will be questioned.
Keywords: Ellwanger Case. Freedom of Expression. Hate Speech. Fundamental Rights.
Sumário: 1.Introdução. 2. Caso Ellwanger: Nos Bastidores do Julgamento do Século. 3. Liberdade de Expressão, Discurso de Ódio e Democracia: As Três Parte de uma Quimera. 4. Entre a Defesa de uma Ideologia e a Apologia ao Crime: Direitos Fundamentais em Rota de Colisão. 5. A Repercussão Jurídica do Caso Ellwanger na Jurisprudência Atual: Um Romance em Cadeia. 6.Conclusão. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O artigo em tela será elaborado por meio de um método de abordagem indutivo, eis que partiremos da observação de um caso concreto, o julgamento do Habeas Corpus 82.424, para chegarmos à conclusão geral sobre a raiz da problemática abordada no litígio, que o transcende e perfaz como indicador de qual caminho percorrer quando diante do entrave entre direitos fundamentais inscrito na Carta Magna.
O tema em si, em que pese possa ser sintetizado pelas expressões “discurso de ódio” e liberdade de expressão”, vai além muito delas, colocando em pauta que tipo de democracia que se constrói no cenário brasileiro, suas nuances entre o livre arbítrio concedido pelo caput e incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[1] e a ameaça de que aquele, sem mecanismo de freio, venha a ensejar a criação de um regime totalitário. Este, conforme veremos, mais a frente, caracteriza-se pela autoridade que as leis positivas recebem para sua legitimidade final, e está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza.
O motivo da escolha de um assunto central que se origina na ocorrência ou não de práticas voltadas ao antissemitismo, e deságua na judicialização do que seria considerado um atentado ao próprio Estado Democrático de Direito, vem a ser a relevância que tal prática assume quando realizamos, atualmente, uma leitura da nossa Constituição. Como esta deve ser lida? Que método de interpretação melhor se coaduna com os Princípios, objetivos e direitos fundamentais nela positivados? Em que pese vivamos no sobredito Estado Democrático de Direito veremos que, não raro, adentramos a uma zona cinzenta quando debruçados sobre o tripé “liberdade de expressão”, “discurso de ódio” e “democracia”.
Destarte, utilizando-se dos métodos procedimentais de estudo de caso e bibliográfico, abordaremos o antissemitismo em território nacional, com o posterior enfrentamento dos aspectos doutrinários do tripé supracitado, seguido da divisão e (re) solução no que toca à colisão entre os direitos fundamentais em contenda, para, ao final, vermos como posiciona-se, hoje, a Corte Maior do país. Por fim, serão feitos os apontamentos próprios da articulista, cuja pretensão, desde já consigna, não é ser taxativa ou esgotar a matéria.
2. CASO ELLWANGER: NOS BASTIDORES DO JULGAMENTO DO SÉCULO
Ponto de partida deste trabalho veremos, em breve síntese, os fatos e os fundamentos jurídicos que embasaram o emblemático Caso Ellwanger, o qual veio, nos anos supervenientes à sua finalização, ditar paradigmas sobre o objeto discutido na lide. Adentremos, pois, no julgamento do Habeas Corpus 82.424, realizado em 17 de Setembro de 2003.
Siegfrid Ellwanger foi um autor e editor gaúcho responsável pela publicação e comercialização de diversos livros que continham hostilidade aos judeus, sobressalta, dentre eles, a obra “Holocausto Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século”, de autoria própria daquele, publicado sob o pseudônimo de S. E. Castan. O cerne da obra em conjunto com as demais publicadas, as quais seguem a mesma linha, repousa no negacionismo da existência do holocausto, imputando aos judeus todas as responsabilidades pelas tragédias registradas na Segunda Guerra. Até mesmo o genocídio de 6 milhões de judeus nos campos de concentração é apresentado como uma farsa concebida por eles próprios, como estratégia sórdida destinada a fazer chantagem com o resto do mundo e abrir horizontes que permitam a sua hegemonia.
Ante tais fatos, foi instaurada ação penal pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, na qual denunciado o autor e editor como incurso na prática do crime descrito no artigo 20 da Lei 7.716/89, com redação dada pela Lei 8.081/90. Em primeira instância, fora proferida sentença de absolvição do réu, ao argumento de que os textos não incitavam ou induziam a discriminação ética do povo judeu. No entanto, houve reforma do julgado, em sede de apelação, por entender o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ter havido discriminação racial e que a intenção única do apelado era propagar uma realidade alicerçada em ideologia que chegava às raias do fanatismo, sendo, portanto, imposta a condenação do réu à pena de dois anos de reclusão. Restou consignado, ainda, tratar-se de crime imprescritível, por configurar a prática de racismo, consoante inciso XLII do artigo 5 da CRFB/88.[2] Impetrado habeas corpus contra a condenação retro perante o E. Superior Tribunal de Justiça, este a manteve, sob o fundamento de inexistência de ilegalidade naquela, reforçando a imprescritibilidade da pretensão punitiva estatal no delito em que tipificado o paciente.
Chegando a matéria para deslinde na Suprema Corte, por meio de novo habeas corpus impetrado pelo paciente, sob o argumento de impossibilidade de incidência da imprescritibilidade do crime de racismo às condutas perpetradas pelo paciente, pois, em sua defesa, de racismo não se tratava, a Corte Maior decidiu, por maioria de 7 votos a 3, pela manutenção da condenação de Siegfried Ellwanger no crime de racismo, e a consequente imprescritibilidade que o acompanha.
Inúmeras foram as abordagens para se atingir a decisão final, porém nos restringiremos, aqui, àquelas que nos direcionam para os tópicos posteriores.
De plano, ficou registrado que o racismo, para fins de definição legal, deve ser visto como uma prática que não se resume apenas em noções antropológicas ou sociológicas, mas vai além disso, sendo visto como o segregacionismo cultural e sociológico que visa além um controle ideológico de dominação política e subjugação social, ao menosprezar, humilhar, rebaixar determinada classe ou grupo de pessoas.
Dito isso, interessante apontarmos que foi bastante frisado o ponto de não ter havido qualquer violação à liberdade de expressão e pensamento, porque garantias constitucionais como o são, não gozam de caráter absoluto, e quando colidentes com uma prática vedada pelo próprio texto constitucional, não podem servir de justificativa para exclusão de ilícitos.
Destarte, sob a égide do Princípio da Proporcionalidade, do método da concordância prática e de uma interpretação teleológica sistemática realizada pelos Ministros julgadores, concluiu-se que os postulados da Igualdade e da Dignidade Pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à liberdade de expressão, que não pode e não deve ser exercida com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público.
Uma vez levantadas as cortinas do julgamento que tratou, por primeira vez, no cenário brasileiro, do chamado discurso de ódio, passemos, então, a verificar como identificá-lo e coibi-lo no contexto das liberdades democráticas.
3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DISCURSO DE ÓDIO E DEMOCRACIA: AS TRÊS PARTES DE UMA QUIMERA
Cumpre esclarecermos, desde já, para fins de informação e contextualização, o significado do termo “quimera” utilizado na titulação do tópico em voga. Na mitologia grega, a quimera era um ser formado por três partes, quais sejam, a cabeça de um leão, o corpo de uma cabra e a calda de uma serpente. Com o passar do tempo, o termo “quimera” foi sendo usado para denominar a combinação de elementos incongruentes ou a representação de algo utópico.
O discurso de ódio, embora acima abordado na perspectiva do antissemitismo, caminha por variadas formas, graus e pensamentos. O medo do outro, do ser humano “diferente”, e a desconfiança levam à discriminação que se expressa pelo discurso do ódio, ou hate speech, na doutrina norte americana. A dizer, o discurso de ódio vem a ser uma manifestação de intolerância e agressividade, de raiz ideológica, que tem como alvo classe ou grupos minoritários. A título de exemplo vejamos o caso esposado no tópico anterior.
Embora o discurso de ódio não esteja expressamente descrito na Constituição Federal de 1988, nela podemos observar diversos mecanismos que o blindam, como, por exemplo, os já mencionados incisos IV e XLII do artigo 5º daquela, assim como quando preceitua, em seu artigo 3, IV, que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação. (BRASIL, 1988).
Podemos afirmar, portanto, que o discurso de ódio é uma realidade intrínseca ao nosso cotidiano, como, abaixo, podemos ver no caso brasileiro envolvendo a jornalista e apresentadora Rachel Scheherazade, a qual entoou um discurso polêmico e raivoso defendendo os “vingadores” que espancaram e amarram um jovem nu preso pelo pescoço através de uma trava de bicicleta a um poste no Rio de Janeiro, afirmando que:
“No país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. O Estado é omisso, a polícia é desmoralizada, a Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro. (...) O contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E, aos defensores dos Direitos Humanos, que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido. ”
Agora que sedimentada de que discursos de ódio se disseminam cada vez mais, seja via literatura como no caso Ellwanger, seja pela mídia, a pergunta que se faz é como identificar um discurso de ódio?
Para tanto, adotaremos a doutrina norte americana, em um cotejo analítico entre as posições do juiz Learned Hand e do autor Cass Sustein, na obra deste intitulada #Republic, aplicando o chamado “teste de perigo claro e presente”. O referido termômetro para se verificar o discurso de ódio consiste na vedação de proibição de censura às manifestações de pensamentos, a menos que estas gozem de perigo claro e iminente. Na posição tomada por Learned Hand, este rejeitada no aludido teste, por considerar que o princípio da liberdade de expressão simplesmente não protegia a incitação explicita ou direta à violência, mesmo que nenhum perigo fosse iminente. A sugestão de Hand era de que a mera sugestão de um ato possível preconceituoso/discriminatório/violento estaria resguarda pela Constituição, porém acaso houvesse a explicitação expressa dessa prática, seria passível de censura/punição, sem proteção constitucional.
Lado outro, Sustein aduz que o ideal seria o balanceamento da abordagem de Hand no sentido de que se, e somente se, as pessoas estiverem explicitamente incitando a violência, clamando-a sem ambiguidade, seu discurso não mereceria proteção, quando, e somente quando, produzisse um sério risco à segurança pública, iminente ou não.
Filiamo-nos, aqui, a posição de Cass Sustein, uma vez que o grau de subjetividade do discurso quando realizado um juízo de valor por terceiro vem ser muito alto. Logo, há que se ter em mente a diferença entre a censura, vedada pelo nosso legislador constituinte, e a proteção dos direitos fundamentais, sob pena de corrermos o risco de vetar e judicializar opiniões contrarias às nossas, e, assim, propagar e incrementar a segregação criada pelo discurso de ódio.
Nesse passo, é plausível afirmarmos que o discurso de ódio, embora por natureza divergente, pode existir numa democracia, sem a ela sobrepor-se. Isso porque o discurso origina-se literalmente do exercício da liberdade de expressão, garantida constitucionalmente a todos. Inclusive, a própria liberdade de expressão é corolário direto da democracia brasileira, a qual assegura o livre arbítrio/liberdade como regra geral a todos no território nacional.
Segundo Chequer (2011, p. 17), a liberdade de expressão em sentido amplo é justificada por vários motivos que podem ser encontrados em duas grandes categorias. Ela teria uma importância instrumental, como um meio para a realização de um fim, na primeira categoria, e na segunda, seria importante não só pelas consequências que trouxesse, mas por sua essência. Em sentido estrito, a liberdade de expressão "por se referir a ideias, opiniões, pensamentos, não está condicionada à verdade" (REVEL apud CHEQUER, 2011, p. 12).
Cumpre-nos esmiuçar o que seria expressão e pensamento, sendo este uma derivação daquela. O ato de pensar é algo pessoal, íntimo e literalmente ocorrido na mente do ser humano, daí não passível de punição o simples pensamento ou ideia, sob pena de punir-se o ser humano por ser literalmente humano. Diferente é o caso quando o pensamento se exterioriza nas diferentes formas já vistas acima, como através de escritos, palavras e afins. Nisso entram os limites da liberdade de expressão, a qual demanda contenção quando invadida a esfera de proteção de outros direitos fundamentais, resguardados constitucional e infra constitucionalmente.
Destarte, a despeito de aderirmos à formulada mitigada de Cass Sustein acerca da punição do discurso de ódio, não podemos deixar de nos questionar: se não existe uma verdade universal e absoluta e todos são livres para expressarem-se, como dosar até onde o exercício da liberdade de expressão, em uma democracia, pode afetar o outro? É possível esboçar uma linha entre o direito de se expressar e o dever de não atingir o outro?.
Pensamos que estas perguntas remanescem sem respostas exatas, sendo a liberdade de expressão, a democracia e o discurso de ódio conceitos opostos que se atraem formando um poder inerente à sociedade, nas suas práticas sociais rotineiras, que influenciam diretamente à evolução. Porém, conquanto aceitemos essa quimera, não nos esquivamos de tentar sair da rota de colisão criada por ela, logo abaixo.
4. ENTRE A DEFESA DE UMA IDEOLOGIA E A APOLOGIA AO CRIME: DIREITOS FUNDAMENTAIS EM ROTA DE COLISÃO
Os direitos fundamentais eram absolutos e ilimitados até o século XVIII, tendo como base o Direito Natural pregado por John Locke, exercendo o Estado, papel apenas garantidor. Dentro dessa logica contratualista, temos que o Direito da Natureza, muitas vezes usado para fundamentar a instituição de regimes autoritários, ditatoriais e totalitários, seria a liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim. (HOBBES, 2003, p. 112)
Não de outra maneira, Thomas Hobbes define o Estado de Natureza como a guerra de todos contra todos, sendo nele o homem o lobo do homem. Ora, certo é que enquanto perdurado o Estado e Direito da Natureza não poderia haver para nenhum homem a segurança e paz necessárias para viver. Nesta esteira, surge o contrato social, pelo qual o homem concordaria junto a seus semelhantes em colocar o poder de decisão e regulação da coletividade nas mãos de uma entidade, com o fim de manterem-se em pé de igualdade, porém também passíveis de punição, diante da transgressão das normas por aquela instituída. Tal entidade viria ser chamada por Hobbes de Leviatã, o qual por sua figura mitológica representaria o Estado nascente.
É este Estado que, ultrapassando séculos de história, nos remete à interpretação evolutiva e histórica do nosso ordenamento jurídico, encabeçado pela Constituição de 1988. Sendo desde 1824 a Constituição o maior diploma jurídico, para o qual todas as legislações devem convergir, forçoso entender como aquela merece ser interpretada.
Para tanto, propomos aqui a adoção da leitura moral da Constituição trazida por Ronald Dworkin, o qual assevera que a leitura moral dispõe que todos nós - juízes, advogados e cidadãos - interpretemos e apliquemos esses dispositivos abstratos considerando que eles fazem referência a Princípios morais de decência e justiça. (DWORKIN, 2006, p.2). Indo contrariamente à corrente interpretativista da Constituição, a qual reza que o intérprete, mas, principalmente, os juízes, ao interpretar a Constituição, devem se limitar a captar o sentido dos preceitos expressos ou, pelo menos, tidos como claramente implícitos (textura semântica), a leitura moral melhor converge com os adeptos do não interpretativismo, os quais pregam mais pela concretização dos direitos consagrados no texto constitucional que por sua interpretação formalista. Princípios de justiça, de liberdade e igualdade deveriam falar mais alto, compondo o “projeto” constitucional de uma sociedade que se preze democrática, ao invés de uma subserviência cega a uma leitura redutora do princípio democrático.
Nesse trilhar não poderia, por exemplo, o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal ser interpretado sem olvidar os Princípios e objetivos fundamentais, a própria normatização infraconstitucional dada pela Lei 7.716/89, além da conceituação fornecida pela doutrina nacional e alienígena sobre o termo “racismo”.
O risco de esvaziamento dos direitos fundamentais, acaso interpretados isoladamente, comprometeria o Princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, o qual significa:
“a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”
Tendo em vista o postulado normativo supra, convém-nos admitir, como já moldado pelo presente trabalho, que os direitos fundamentais podem entrar em aparente conflito em certas situações. Aparente porque a solução encontra-se abraçada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência ao depararem-se com esse cenário. A rota de colisão mencionada no título deste tópico se dissolve pela preponderância do direito fundamental mais adequado ao caso concreto, por meio de um sopesamento entre todos os direitos envolvidos, quedando-se dominante aquele que melhor se adeque à proteção do postulado maior da dignidade da pessoa humana. A isso denominamos de Princípio de harmonização constitucional, o qual vai ao encontro da postura não interpretativista por nós defendida neste artigo, quando não dito ao interprete como agir.
Percebemos, assim, que a leitura moral é mais um componente dessa suposta “Caixa de Pandora” que gerou intensos debates no mundo jurídico: quando o exercício de um direito se torna um crime?
Ainda que para definir com precisão essa ocorrência nos seja difícil dizer, resta certo que, uma vez configurada a colisão, a solução não é outra senão a ponderação entre os direitos fundamentais despontados no caso. Para além disso, afirmamos que a Constituição merece ser interpretada por meio do método cientifico espiritual, desenvolvido por Carl Friedrich Rudolf Smend, para quem há uma ordem de valores e um sistema cultural que precedem o texto constitucional, os quais devem ser o objeto maior de proteção do intérprete. Para Smend, a Constituição é caracterizada como um “processo de integração”, em consonância com a dinâmica da sociedade. Assim, o melhor significado e alcance atribuído à norma constitucional será aquele que, no caso concreto enfrentado, melhor privilegia os valores do povo que conferem legitimidade à sua Carta Magna.
Por consequência do acima exposto, nos cabe dizer que a controvérsia entre os direitos fundamentais num mesmo caso concreto, encontra sua tábua de salvação na doutrina, já agasalhada pela jurisprudência, como pudemos ver na narrativa do caso Ellwanger.
Desta feita, contemplaremos como o precedente gerado no habeas corpus que semeou este artigo influenciou nas jurisprudências seguintes.
5. A REPERCUSSÃO JURÍDICA DO CASO ELLWANGER NA JURISPRUDÊNCIA ATUAL: UM ROMANCE EM CADEIA
Neste tópico, iremos transcrever dois precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal, que abordam a temática da liberdade de expressão e sua extrapolação para o crime de racismo, e qual fora a posição desta Corte em cada um deles.
Abaixo, vejamos um julgado do ano de 2016:
“EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CRIME DE RACISMO RELIGIOSO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. IMPRESCRITIBILIDADE. PREVISÃO CONSTITUCIONAL EXPRESSA. LIVRO. PUBLICAÇÃO. PROSELITISMO COMO NÚCLEO ESSENCIAL DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Não se reconhece a inépcia da denúncia na hipótese em que a tese acusatória é descrita com nitidez e o acusado pode insurgir-se, com paridade de armas, contra o conteúdo veiculado por meio da respectiva peça acusatória. 2. Nos termos da jurisprudência do STF, “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social” (HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003), de modo que o conceito jurídico associado ao racismo não pode ser delineado a partir de referências raciais ancoradas em compreensões científicas há muito superadas. Assim, a imprescritibilidade de práticas de racismo deve ser aferida segundo as características político-sociais consagradas na Lei 7.716/89, nas quais se inserem condutas exercitadas por razões de ordem religiosa e que se qualificam, em tese, como preconceituosas ou discriminatórias. 3. A liberdade religiosa e a de expressão constituem elementos fundantes da ordem constitucional e devem ser exercidas com observância dos demais direitos e garantias fundamentais, não alcançando, nessa ótica, condutas reveladoras de discriminação. 4. No que toca especificamente à liberdade de expressão religiosa, cumpre reconhecer, nas hipóteses de religiões que se alçam a universais, que o discurso proselitista é da essência de seu integral exercício. De tal modo, a finalidade de alcançar o outro, mediante persuasão, configura comportamento intrínseco a religiões de tal natureza. Para a consecução de tal objetivo, não se revela ilícito, por si só, a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas. 5. O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior. 6. A discriminação não libera consequências jurídicas negativas, especialmente no âmbito penal, na hipótese em que as etapas iniciais de desigualação desembocam na suposta prestação de auxílio ao grupo ou indivíduo que, na percepção do agente, encontrar-se-ia em situação desfavorável. 7. Hipótese concreta em que o paciente, por meio de publicação em livro, incita a comunidade católica a empreender resgate religioso direcionado à salvação de adeptos do espiritismo, em atitude que, a despeito de considerar inferiores os praticantes de fé distinta, o faz sem sinalização de violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais. 8. Conduta que, embora intolerante, pedante e prepotente, se insere no cenário do embate entre religiões e decorrente da liberdade de proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de expressão religiosa. Impossibilidade, sob o ângulo da tipicidade conglobante, que conduta autorizada pelo ordenamento jurídico legitime a intervenção do Direito Penal. 9. Ante a atipicidade da conduta, dá-se provimento ao recurso para o fim de determinar o trancamento da ação penal pendente. ” (grifei)
Da ementa do julgado supra podemos ver que o Supremo Tribunal Federal entendeu que é possível a condenação de um líder religioso por discurso de ódio proferido contra outras religiões, porém, há a ressalva de que dependerá do caso concreto, ou seja, das palavras que foram proferidas e da intenção do líder religioso de suprimir ou reduzir a dignidade daquele que é diferente de si. Desse modo, não é qualquer crítica de um líder religioso a outras religiões que configurará o crime de racismo. Por conta disso, a Suprema Corte entendeu pela absolvição do réu no caso em tela, ante a falta de dolo na imputação.
Noutra banda, o próprio Supremo quando se deparou com novo caso de incitação ao ódio por líder religioso, proferiu diverso julgamento, no ano de 2018:
“Recurso ordinário em habeas corpus. Denúncia. Princípio da correlação. Observância. Trancamento da ação penal. Descabimento. Liberdade de manifestação religiosa. Limites excedidos. Recurso ordinário não provido. Inexiste violação do princípio da correlação quando há relação entre os fatos imputados na denúncia e os motivos que levaram ao provimento do pedido da condenação. O direito à liberdade religiosa é, em grande medida, o direito à existência de uma multiplicidade de crenças/descrenças religiosas, que se vinculam e se harmonizam – para a sobrevivência de toda a multiplicidade de fés protegida constitucionalmente – na chamada tolerância religiosa. Há que se distinguir entre o discurso religioso (que é centrado na própria crença e nas razões da crença) e o discurso sobre a crença alheia, especialmente quando se faça com intuito de atingi-la, rebaixá-la ou desmerecê-la (ou a seus seguidores). Um é tipicamente a representação do direito à liberdade de crença religiosa; outro, em sentido diametralmente oposto, é o ataque ao mesmo direito. Como apontado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgado recorrido, a conduta do paciente não consiste apenas na “defesa da própria religião, culto, crença ou ideologia, mas, sim, de um ataque ao culto alheio, que põe em risco a liberdade religiosa daqueles que professam fé diferente [d]a do paciente”. Recurso ordinário não provido. “ (grifei)
Interessante apontarmos que em ambos os julgados vemos o Supremo bebendo da fonte do Caso Ellwanger, inclusive, para fundamentar a condenação do julgamento supra, o Eminente Ministro Relator Luiz Edson Fachin assim o disse:
“ No cognominado caso Ellwanger, o Tribunal enfrentou a questão atinente à imprescritibilidade de suposta conduta preconceituosa voltada à comunidade judaica. Na ocasião, assentou-se que “com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana”, de modo que “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.” (HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, grifei).”
Por arremate, embora sejam divergentes os entendimentos nos julgados transcritos alhures, vemos que o Supremo Tribunal Federal vem tecendo o que chamamos de “romance em cadeia”, expressão cunhada por Ronald Dworkin, eis que motivadas suas decisões sobre a mesma temática, no precedente por ele mesmo proferido mais de uma década atrás. Isso não significa que o tribunal ou juiz deva sempre igualar suas decisões com a anterior, pois como defendemos, necessária se faz a analise casuística para aplicação do Direito.
O que vemos, de fato, aqui, é o que apregoa Dworkin, no sentido de que ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio de que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores, o qual, realmente, é tomado como um todo, o propósito ou o tema da prática até então. (DWORKIN, 2005, p.238).
À vista de tais considerações, demonstramos aqui a importância do Caso Ellwanger e sua abordagem dentro da jurisprudência e do cenário social.
6. CONCLUSÃO
Em face das reflexões apresentadas opinamos que a liberdade de expressão e o discurso de ódio caminham juntos, visto que entrelaçados, como o segundo sendo consequência direta do primeiro, mas subvertido por atributos negativos tais como preconceito, discriminação e intolerância.
Dessa forma, o poder da palavra (escrita ou falada) conferido ao ser humano constitucionalmente, desde sempre e provavelmente para sempre, segue sendo usado para promoção de progressos e retrocessos, influindo diretamente naqueles que a professam e nos destinatários, minorias/grupos/classes, a que se dirige.
Resguardamos aqui o Estado Democrático de Direito e os elementos que o compõe, mas não sem a ilusão de que ser livre significa ser justo, ético ou moral. E que quando essa liberdade se mostra mal utilizada, a ponto de ferir os ditames constitucionais e os direitos fundamentais por eles assegurados a terceiros, é permitido o afastamento de um direito fundamental invocado que possa servir como excludente de tipicidade.
De tal maneira, aproveitamo-nos da metáfora da Hidra de Lerna, como criatura mitológica com corpo de mulher e cabeças de serpentes, a qual possuía a capacidade de regeneração das cabeças acaso fossem cortadas, para afirmar que o discurso de ódio não tem meios para acabar, mesmo quando silenciada a voz de um líder religioso fanático ou a escrita de um autor antissemita, outros emergirão.
No entanto, nada impede que utilizemos nesse contexto, a cada nascedouro de um discurso de ódio, uma nova oportunidade de promover a evolução dos seres humanos.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Hannah Arendt: tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.513 e 514.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de Outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18/03/2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.424. Relator: Min. Moreira Alves. Data do Julgamento: 17 de Setembro de 2003. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2052452. Acesso em: 18/03/2021.
______________________________. Recurso Ordinário em Habeas Corpus 134.682. Relator: Min. Edson Fachin. Data de Julgamento: 29/11/2016. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4988091. Acesso em: 18/03/2021.
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[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;(...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
[2] “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;”.
Mestra em Direito e Políticas Públicas pela UNIRIO, Pós Graduada pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Especialista em Direito Civil pela PUC-MG, Especialista em Direito Administrativo pela UCAM, Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Sarah Lopes de Araújo. A Criação Literária e o Discurso De Ódio: Uma Hidra De Lerna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2021, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56870/a-criao-literria-e-o-discurso-de-dio-uma-hidra-de-lerna. Acesso em: 23 dez 2024.
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