Resumo: Este trabalho tem por fim analisar a natureza jurídica das criptomoedas frente a dificuldade em conceituá-las para fins de incidência ou não do imposto de renda e proventos de qualquer natureza. Será abordado, também, a legalidade e constitucionalidade da Instrução Normativa n. 1888/2019 da Receita Federal que previu a tributação sobre as criptomoedas. Além disso, há a necessidade de compreender o funcionamento desse novo modelo de negócio que envolve diversas atividades o que nem sempre poderá configurar acréscimo patrimonial.
Palavras-chave: criptomoedas. natureza jurídica. critério material. imposto de renda. evolução da economia virtual.
Abstract: This work aims to analyze the legal nature of cryptocurrencies in view of the difficulty in conceptualizing them for purposes of incidence or not of income tax and earnings of any nature. The legality and constitutionality of Normative Instruction no. 1888/2019 of the Federal Revenue Service that provided for taxation on cryptocurrencies. In addition, there is a need to understand the operation of this new business model that involves several activities, which may not always be an asset increase.
Keywords: cryptocurrencies. legal nature. material criterion. income tax. evolution of the virtual economy.
SUMÁRIO::1.Origem, conceito e evolução das criptomoedas. 2.Tecnologias Disruptivas: a velocidade dos fatos jurídicos x a velocidade dos eventos. 3.Quantos lados possui uma moeda digital? Impasse na definição da natureza jurídica das criptomoedas no contexto nacional.4.Análise semiótica da incidência do constructivismo lógico- semântico. 5.O conceito ou tipo das criptomoedas?6. Conceito de rendas e proventos de qualquer natureza.7.Critério Material do Imposto de Renda e Proventos de qualquer natureza.8.Ilegalidade da IN1888/2019 RFB. 9. Conclusão.
A evolução da economia global é reflexo de uma comunidade internacional voltada para estudos que promovam novas opções de investimentos e pagamentos sem moeda física, de modo descentralizado, interligando pessoas em diferentes partes do mundo. Essa inovação na economia digital deu origem a entraves e conflitos causados pela ausência de leis internas e a dificuldade na conceituação das criptomoedas dentro do contexto nacional. A dificuldade está na forma como o direito tributário deve evoluir para abranger a tributação sobre essa “moeda virtual”, estabelecendo um diálogo entre o Direito e as Ciências Econômicas e Tecnológicas. Para isso, é necessário fazer um corte metodológico na tentativa de conhecer qual(is) são o(s) fato(s) jurídico(s) das criptomoedas para que ocorra a adequada subsunção aos critérios da hipótese de incidência do imposto de renda e proventos de qualquer natureza. Conhecer a natureza jurídica das criptomoedas irá possibilitar saber como será a incidência do imposto de renda e suas relações jurídico- tributárias.
É necessário compreender qual é o conceito das criptomoedas para saber como ocorrerá sua tributação. Mas antes, iremos abordar, de forma resumida, a evolução desse conceito passando pela sua origem até os dias atuais. Assim, a origem dessa “moeda virtual” adveio com o propósito de liberdade individual e de privacidade na internet defendida por um grupo de criptógrafos e hackers que estudavam criptografia e tecnologia na década de 90, nos Estados Unidos, conhecido como “ Cypherpunk”.Nesse grupo se destacaram: Hal Finney, primeiro a receber transação de Bictoin ( Rede de criptoativos) feita por um personagem que acredita ser fictício( Satoshi Nakamoto);Adam Back (criador do Hashcash); e por Bram Cohen( criador do BitTorrent). Mas, foi a partir do ano de 2008, após a grave crise do sistema financeiro que ultrapassou as fronteiras dos Estados Unidos e alcançou outros países, por meio do White Paper[1] publicado por Satoshi Nakamoto, que criou-se um sistema de dinheiro eletrônico peer-to-peer[2], que se utiliza da criptografia e do blockchain.
A expressão “bitcoin” tem mais de uma acepção, em alguns contextos é usada como criptomoeda e por vezes utiliza-se como blockchain, onde esta sediada a criptomoeda. Razão pela qual, se faz necessário definir Blockchain:
É uma rede de blocos de informações distribuída entre os diversos participantes, cuja validação de cada informação inserida precisa ser feita pelos participantes da rede, de forma que, ao final, forma-se uma rede de blocos entre os participantes sendo que uma cópia de todas as informações resta distribuída entre os usuários. Portanto, o bitcoin é um programa de computador que cria na internet uma rede global de notarização de transações entre partes distintas, com as seguintes propriedades: (i) descentralizada; (ii) de livre ingresso; (iii) transparente; e (iv) com auditoria automática e contínua.[3]
Para compreensão das relações, esclarece que os criptoativos são ativos digitais (podendo representar valores mobiliários, moedas, commodities etc) criados por meio da criptografia[4] e registrados em blockchain ou em Distributed Ledger Technologies (DLTs)[5].
No Brasil, a Receita Federal já se posicionou sobre o conceito de criptoativos, no artigo 5º, do inciso I, da Instrução Normativa nº 1888, de 03 de maio de 2019:
Criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuidos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal.
Emília Malgueiro define os Criptoativos como : “ativos ou tokens digitais para possibilitar transação de valores, funcionando como meio de pagamento e/ ou reserva de valor, utilizando criptografia como base de segurança das transações e controle de sua emissão”.[6]
Já, as criptomoedas são dinheiros digitais, conhecidas como “moedas virtuais”, espécie de criptoativos. A bitcoin, em uma de suas acepções é tida como a mais conhecida das criptomoedas, ou seja ela é espécie de criptomoeda.
Para entendermos como funciona esse sistema de transações com moedas virtuais, precisaremos conhecer, também, o conceito da Rede Bitcoin e sua diferença em relação as blockchains. Assim,como ensina a autora Emília Malgueiro, o Bitcoin, com letra maiúscula se refere a uma Rede descentralizada, pois possibilita que transações financeiras sejam feitas diretamente entre pessoas através de um mecanismo descentralizado e matemático de emissão de moeda. Já o bitcoin, com letra minúscula, é a “moeda virtual” que se encontra no seu token digital. A diferença entre Bitcoin e Blockchain é que este é um livro contábil virtual onde são registradas todas as transações feitas no Bitcoin que é token nativo da Rede. Além disso, cada criptoativo possui sua Blockchain que, também, pode registrar outras informações como a data e a hora das transações.[7]
Com o passar dos anos, essa rede veio ganhando adeptos, em diferentes países, nas transações com a “moeda virtual” e possibilitando seu uso de diversas maneiras, tais como, investimentos ou pagamento de serviços e bens. Estimam que mais de 20 milhões de pessoas usaram Bitcoin em 2018 e o Brasil é um dos cinco países com maior quantidade de usuários de Bitcoin e criptomoedas do mundo. Segundo a Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), as transações no país variam em torno de 5 bilhões de reais no primeiro semestre de 2019.Já mundialmente, nesse mesmo período, esse número alcança mais de 170 bilhões de dólares em transações com bitcoins.[8]
Devemos refletir o que é uma tecnologia disruptiva e qual a sua importância para o cenário nacional no tratamento jurídico das “moedas virtuais”. Assim, tecnologia disruptiva é um termo onde promove inovações tecnológicas que provocam uma ruptura com os modelos e padrões estabelecidos pelo mercado. A característica disruptiva se refere a constante evolução da Ciência ensejando mudanças tecnológicas voláteis.
As criptomoedas[9] e o Blockchain romperam com os padrões das relações financeiras entre as pessoas. O dinheiro passa a ter uma representação virtual (token digital), com características transnacionais (seu controle é descentralizado e feito pelas Blockchains espalhadas pelos países), envolvendo transações diretas (sem intermediação das instituições financeiras).
Ainda que, no Brasil, o interesse em criptoativos tenha aumentado 12 pontos percentuais, tendo como comparação junho de 2018 à junho de 2019[10], sendo parte deste crescimento dado às criptomoedas, no país não há lei que trate sobre a matéria.
O ambiente institucional se apresenta em dois projetos de lei, quais sejam: PL 2303/2015[11] e PL 3825/2019[12], em trâmite, respectivamente, na Câmara Legislativa e no Senado Federal.
Além disto, alguns órgãos do Brasil já se posicionaram,de forma infralegal.E vem se manifestando, como ocorreu nos Comunicados do Banco Central de nº 25306, de 19/02/2014 e de nº 31379, de 16/11/2017, este que não afasta a obrigatoriedade de observar normas cambiais, bem como no Oficio Circular da CVM nº 11/2018/CVM/SIN[13], que trata do investimento indireto em criptoativos pelos fundos de investimento.
Diante disso, podemos observar que a velocidade na criação de uma norma[14]que regulamente as relações financeiras é mais lenta e complexa do que a velocidade dos acontecimentos sociais que irradiam efeitos indiretos para diversos setores jurídicos, tais como no direito tributário (insegurança jurídica por ausência de lei) e no direito penal (combate a crimes de lavagem de dinheiros ou pirâmide financeira se utilizando de criptoativos).
Desse modo, é de fundamental importância saber qual a diferença entre evento, fato e fato jurídico na construção da norma jurídica. O professor Paulo de Barros Carvalho esclarece essa diferença:
Chamamos de evento o acontecimento do mundo fenomênico despido de qualquer formação linguística. O fato, por sua vez é o relato do evento. Constitui-se num enunciado denotativo de uma situação delimitada no tempo e no espaço. E por fato jurídico entende-se o relato do evento em linguagem jurídica. A diferença entre evento e fato repousa no dado linguístico e, entre fato e fato jurídico, na competência da linguagem.[15]
Para o direito uma realidade só existe e pertence ao sistema jurídico após a sua conversão em uma linguagem jurídica competente. Assim, na visão do constructivismo lógico-semântico, para um fato gerar efeitos diretos na ordem jurídica deverá estar prescrito em uma linguagem competente, pois apenas a linguagem do direito construirá a realidade jurídica. Nesse raciocínio, a incidência da norma não se dá apenas com a ocorrência dos eventos. Desse modo, se nas transações com “moedas virtuais” não tem uma previsão legal que juridicize tal acontecimento como uma hipótese de incidência de um tributo, não poderá haver tal exação.
Se não existe uma lei ordinária, norma geral e abstrata, que introduza uma lei individual e concreta (exemplo, o lançamento), é impossível a incidência do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza sobre toda e qualquer transação envolvendo moeda virtual que não enseje aumento patrimonial, mas apenas “ meras transferências patrimoniais”. Uma vez que uma instrução normativa da Recita Federal não possui competência para tratar de uma nova hipótese de incidência.
Não tem como o fato ser jurídico tributário se não houver a incidência da lei no mundo fenomênico. Através de uma linguagem competente e em obediência aos critérios do direito positivo, o fato deixa de ser um fato qualquer e passa a existir no mundo jurídico, transformando-se num fato jurídico tributário. Como explica Aurora Tomazini:
...é a linguagem do direito, e somente ela, que constitui a realidade jurídica.A incidência normativa não se dá com a mera ocorrência do evento, sem que este adquira expressão em linguagem competente...a linguagem do direito não apenas noticia a ocorrência de um evento em conformidade com uma hipótese normativa, mas constitui o fato para o mundo jurídico, o introduz no sistema fazendo-o desencadear os efeitos que lhe são próprios. Antes dela, o fato não existe na ordem jurídica.[16]
Fabiana Del Padre explica a possibilidade de não ter evento, mas mesmo assim existir um fato jurídico:" conquanto a linguagem fale em nome de um evento, dado a sua autossuficiência, é possível que mesmo não tendo ocorrido certo acontecimento, este venha a ser reconhecido pela linguagem."[17] .Como dissera Vilém Flusser: "o fato jurídico é a tradução do fato social em linguagem jurídica”.[18]
Partindo-se do pressuposto de que as criptomoedas são sinônimo de criptoativos e estes são definidos como ativos ou tokens digitais, sendo utilizados como meio de pagamento e/ou reserva de valor através de transações criptografadas. Então, resta saber se a criptomoeda é um pagamento ou se é um investimento. Nesse aspecto, pairam grandes discussões acerca da natureza jurídica desse criptoativo que serão abordadas a seguir.
Os órgãos reguladores financeiros e fiscais tais como Bacen (Banco Central do Brasil), CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e a Receita Federal já se manifestaram de forma divergentes na definição dos criptoativos para efeitos de tributação.
O Bacen afirmou que juridicamente, as criptomoedas não são moedas, uma vez que elas não possuem lastro. Assim, no Brasil só se considera moeda a que possui curso forçado e emitida pela autoridade brasileira, é o caso do Real. De acordo com o site Infomoney, em agosto desse ano, o Bacen classificou os criptoativos, dentre eles o bitcoin, como “ativos-financeiros não produzidos”. Além disso, considerou que nas compras e vendas dessa “moeda virtual”, feitas por brasileiros residentes no Brasil, serão consideradas como contrato de câmbio, apesar das “moedas virtuais” não terem registro aduaneiro.
A CVM já expôs sua orientação no sentido de que as criptomoedas não são ativos financeiros, não sendo permitida a aquisição direta dessas moedas pelos fundos de investimento, indo na contramão da orientação de muitos países desenvolvidos. Entretanto, na instrução normativa 555 em novembro de 2018, a CVM permitiu que fundos investissem, de forma indireta, em criptoativos desde que no exterior. Nesse ano de 2019, muitas denúncias já foram feitas na autarquia em relação as criptomoedas, por estarem sendo suspeitas de crimes envolvendo pirâmide financeira. Essa autarquia possui uma cartilha que adverte dos riscos de se utilizar das criptomoedas e os casos de criminalização, mas não define a natureza jurídica dessa “moeda”.
A Receita Federal afirmou que as criptomoedas se equiparam a ativos financeiros e sem definir sua natureza jurídica, disse apenas que a tributação do Imposto de Renda incidirá conforme a utilização da “moeda”. Dessa forma, conceituou o que são os criptoativos e as exchanges nos termos da Instrução Normativa RFB 1.888/2019:
“Art. 5º Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se:
I - criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e
II - exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.
Parágrafo único. Incluem-se no conceito de intermediação de operações realizadas com criptoativos, a disponibilização de ambientes para a realização das operações de compra e venda de criptoativo realizadas entre os próprios usuários de seus serviços.”
Com viés pragmático, a autora Emília Malgueiro Campos afirma que: “... a natureza jurídica dos criptoativos é hibrída, pois varia de acordo com sua utilização, já que acarreta efeitos e características jurídicas diferentes, a depender de como é usado”[19]. Para essa autora deve-se aplicar o princípio da fungibilidade para a natureza jurídica dos criptoativos. Ela cita exemplos dos quais os criptoativos podem ser investimento, ou ganho de capital, ou pagamento de mercadorias, conforme muda o modo de utilização irá gerar uma diversidade de efeitos em âmbito tributário.
Assim, a semântica das “criptomoedas” muda conforme seu uso e está, diretamente, interligada aos seus efeitos tributários. É oportuno citar a professora Clarice Von Oertzen:“a busca de significado de uma palavra implica saber quais usos são feitos dela em um específico contexto ou forma de vida, razão pela qual é impossível determinar a priori quais seriam os usos correspondentes aos significados de base.”[20]
Aqui está o cerne da problemática na aplicação do direito, pois a indefinição da natureza jurídica das criptomoedas gera uma insegurança jurídica, uma vez que essa palavra (signo) possui vários sentidos que mudam conforme quem a interpreta e o modo como se utiliza para efeitos de tributação. Afirmar que a definição da natureza jurídica das “moedas virtuais” será encontrada na prática, com seu uso, gera um sistema aberto e perigoso permeado por incertezas. Devido a sua complexidade, esse assunto será explicado mais adiante através do estudo da semiótica no Direito.
Apenas o legislador poderá solucionar esse impasse se criar uma norma que defina tal natureza jurídica e prescreva a hipótese normativa de determinado tributo. Para delimitar nosso objeto de estudo, faremos um corte metodológico quanto a natureza das “moedas virtuais” para fins de subsunção dos fatos à norma do imposto de renda e proventos de qualquer natureza.
Devemos partir de suposições (hipóteses) que caso ocorram deverá incidir o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, nos termos do condicional deôntico convertido em linguagem prescritiva e pautados pelos axiomas (permitido, proibido e obrigatório).
A semiótica é a Ciência que estuda os signos na relação comunicacional, ou seja, é a técnica de investigação da formação do direito positivo através das unidades representativas da comunicação jurídica. Para Peirce, a semiótica é definida como “a doutrina quase - necessária ou formal dos signos”.
Assim, surgem três planos na investigação dos sistemas sígnicos: 1) plano sintático; 2) plano semântico e 3) plano pragmático. No plano sintático, temos a estrutura das palavras ou signos que se relacionam entre si; no plano semântico é onde o intérprete constrói o conteúdo (significação) quando entra em contato com o texto( suporte físico),por fim no plano pragmático é o modo como o intérprete se relaciona com o signo dentro de um contexto comunicacional.
Na visão do Constructivismo Lógico-Semântico, haverá modificações nesses planos na aplicação dessa técnica ao direito positivado. Dessa forma, explica a professora Aurora Tomazini:
... o estudo de seu plano sintático, que tem a Lógica como forte instrumento, permite conhecer as relações estruturais do sistema e de sua unidade, a norma jurídica. O ingresso no seu plano semântico possibilita a análise dos seus conteúdos significativos atribuídos aos símbolos positivados. É nele que lhe damos com os problemas da vaguidade, ambiguidade e carga valorativa das palavras, e onde estabelecemos a ponte que liga a linguagem normativa à conduta intersubjetiva que ela regula. E as investidas de ordem pragmática permitem observar o modo como os sujeitos utilizam – se da linguagem jurídica para implantar certos valores almejados socialmente. É nele que se investiga o manuseio dos textos pelos tribunais, bem como questões de criação e aplicação de normas jurídicas.[21]
Nesse aspecto, o direito como fenômeno comunicacional, deve ser instrumento de intervenção social e não de intervenção no mundo físico, pois há uma separação entre o direito positivo (plano do dever-ser) e a realidade social (plano do ser), sendo que esta é objeto da linguagem prescritiva do direito. Assim, a definição da natureza jurídica das criptomoedas (fato social – ser) para gerar efeitos tributários necessita estar convertida em linguagem competente, ou seja, uma norma jurídica (dever ser). Não podendo, assim, ser sintaticamente aberta como falado acima, pela autora Emília, ao citar a fungibilidade da natureza jurídica do dinheiro virtual.
O professor Paulo de Barros explica a incidência da norma através da semiótica: “O direito utiliza-se semântica e pragmaticamente da linguagem social, para delimitar as classes da hipótese e do consequente e definir o conteúdo do fato jurídico, mas sintaticamente o sistema é fechado”[22].
Como já abordado linhas acima, o direito é aberto semântica e pragmaticamente e fechado no plano sintático, pois todo fato jurídico só pertence ao sistema jurídico após ser convertido em linguagem competente. Porém, há controvérsias em relação ao plano sintático quando estamos diante de termos técnicos típicos da tecnologia. Havendo uma dificuldade em fechar o plano sintático devido as variações provocadas pelo avanço da tecnologia. Nesse capítulo será abordado a importância da semântica e sintaxe desses termos em relação ao seu ingresso no sistema jurídico.
Segundo a professora Clarice há uma diferença entre tipo e conceitos, mas como o Direito é autopoiético, os fatos tecnológicos só adentram no direito depois daqueles serem convertidos em fatos jurídicos através de uma norma competente. Nesse sentido:
“A abertura do sistema diz respeito à sua natureza semiótica [...]Trata-se da abertura que se verifica na estrutura sintática das hipóteses legais, enunciados prescritivos e hipotéticos que contêm conceitos gerais ou tipos normativos.[...]Não é a totalidade do contexto social que será traduzida para o interior da ordem jurídica, mas apenas os aspectos selecionados pelos conceitos normativos.” A conversão dos fatos sociais em linguagem jurídica, resulta na introdução de conceitos normativos no ordenamento jurídico, conforme explica o ilustre professor Lourival Vilanova: “O sistema jurídico é aberto aos suportes fácticos, que nele ingressam, muitas vezes, já normativamente configurados sobre os quais retrooperam as regras sintáticas do próprio sistema, que os recolhem como dados-da-experiência, e os reformam ou transformam: é assim como o direito do costume se faz direito dos códigos.” [23]
A doutrinadora Misabel Derzi fez um estudo que consistiu na diferença entre tipos e conceitos e sua correlação com o direito. Assim, o conceito é fechado por delimitar certas características as quais são mais abstratas e, muitas vezes, não correspondem a realidade. Já o tipo, é mais concreto, aberto e, por essa razão, se aproxima mais da realidade, principalmente dos termos tecnológicos. Após fazer considerações sobre cada um, a doutrinadora chegou a conclusão de que o conceito ou tipo não se manifestam de maneira pura, o que há na verdade, é que o conceito prevalece sobre o tipo por uma questão de escolha de princípios intangíveis elencados pelo Constituinte, como o princípio da Segurança Jurídica. Assim, por uma questão de praticabilidade ou segurança jurídica, prefere-se que a forma sintática do direito tributário seja fechada, mesmo que seus enunciados não correspondam a seu real conteúdo. Nesse raciocínio segue explicação da professora:
Têm razão aqueles que afirmam ser a distinção entre o tipo e o conceito classificatório uma questão de grau. “...mesmo quando a Ciência do Direito cria apenas conceitos abstratos, fechados, fracassa na prática e só obtém conceitos que brigam com a realidade jurídica. Não se pode falar em exclusividade de um ou outro modo de pensar, mas de prevalência de um sobre o outro, especialmente dos conceitos fechados sobre os tipos. [...]Indagar se o Direito Tributário contém tipos ou conceitos fechados, como alternativas que se excluem, parece-nos inadequado. O certo será indagar pela predominância de uma ou outra forma de pensamento. Tipo e conceito do ordenamento, mas que, na realidade, correspondem a tensões internas mais profundas. Essas tensões encontram-se nas relações de interdependência entre os valores jurídicos básicos que se manifestam, concretamente, em bens e interesses juridicamente protegidos ou direitos fundamentais e complexo de garantias que os assegurem.[...] Ora, o que prevalece no Direito Tributário não é a tipologia mas a classificação, não é o tipo mas o conceito. A legalidade estrita, a segurança jurídica, a uniformidade, a praticabilidade e a rigidez da discriminação constitucional de competência determinam a tendência conceitual classificatória prevalente no Direito Tributário.[24]
Já para o autor Lucas Galvão de Brito, ao tratar das normas técnicas, aborda que a principal diferença entre essas e as normas jurídicas se localiza no plano pragmático:
[...] analisadas as mensagens normativas pelos planos da semiótica, percebe- se que a diferença relevante entre uma norma técnica e outra jurídica não se dá no plano estrutural (lógico, sintático) ou mesmo no semântico: ela se estabelece no plano das funções de linguagem, no campo da pragmática. Enquanto uma opera a prescrição para fins de padronização técnica, em prol da objetividade científica, a outra o faz para prescrever condutas intersubjetivas com o auxílio do aparato estatal.[25]
Em que pese as palavras do autor, percebe-se que ao tratar das normas técnicas, as agências reguladoras, tais como a CVM- Comissão de Valores Mobiliários, e o órgão executivo de fiscalização como a RFB- Receita Federal do Brasil, acabam modificando aspectos da regra-matriz de incidência tributária através da estrutura sintática das suas normas. Dessa forma, esses órgãos terminam usurpando a competência do legislador já desenhada constitucionalmente, criando novas hipóteses de incidência, ao conceituar termos novos, através de instruções normativas ou regulamentos.
O surgimento de novos conceitos ou tipos jurídicos se dá como resultado da dinâmica e da intertextualidade que ocorre no diálogo do Direito com outras Ciências. Entretanto, o fato jurídico só nasce através da jurisdicização dos fatos sociais convertendo-os através da linguagem competente. Mas o que ocorre na realidade é que tais órgãos administrativos ultrapassam seus poderes gerando efeitos indesejados no direito tributário através dos seus enunciados, modificando, assim, conceitos jurídicos. Como assevera a professora Misabel Derzi: “E exige-se, então, não só que a lei tipifique os fatos jurígenos e seus efeitos, mas que ela delimite, tanto quanto possível, a imprecisão conceitual, transformando-os em conceitos fechados.”[26]
Portanto, adotamos por premissa que o fato jurídico é constituído pela linguagem prescritiva do direito positivo e tem por efeito a construção de normas. Isto porque, “as normas não são dadas, de antemão, no ordenamento [27], mas dependem de uma atividade construtiva, em que se atribui sentido ao texto de lei.”[28]
Conhecer os conceitos irá direcionar tanto o Fisco quanto o contribuinte nas condutas estabelecidas pela relação jurídico - tributária. O ato de conceituar implica uma delimitação do objeto e demarca seus efeitos no mundo jurídico. Dessa forma, o professor Charles William Mcnaughton enfatiza a diferença entre conceito e tipo, e sua relação com a Constituição e com as normas infraconstitucionais:
Dialogando com a ideia de dicotomia entre “tipo” e “ conceito”, se se concebe que a Constituição lida com “tipos” – elementos indeterminados – mas outros campos do direito estabelecem “conceitos”- elementos determinados – a ideia de dialogia poderia sugerir que ao empregar um termo que já era, de antemão, transformando em “ conceito”, pela legislação infraconstitucional que historicamente antecede o Texto Constitucional, é possível inferir que a própria Constituição o utiliza em uma relação dialógica com o texto anterior de concordância,de recepção. [29]
Assim, os tipos previstos na Constituição são delimitados pelos conceitos previstos na lei infraconstitucional.
Na jurisprudência encontramos a importância do papel do legislador na conceituação da renda sem desrespeitar os limites semânticos desse signo de riqueza. Temos no RE 117.887-6/SP, o voto do Ministro Oswaldo Trigueiro que diz :
Quaisquer que sejam as nuances doutrinárias sobre o conceito de renda, parece-me acima de toda dúvida razoável que, legalmente, a renda pressupõe ganho, lucro, receita, crédito, acréscimo patrimonial, ou como diz o preceito transcrito, aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica. Concordo que a lei pode, casuisticamente, dizer o que é e o que não é renda tributável. Mas não pode ir além dos limites semânticos, que são intransponíveis.[30]
Diante disso, qual é o alcance semântico do signo “renda e proventos de qualquer natureza”?De acordo com o art.43 do CTN, o signo “renda” é produto do capital, já a acepção da palavra “proventos de qualquer natureza” é qualquer acréscimo patrimonial. Então, “renda e proventos de qualquer natureza” irá demarcar riqueza nova que é obtida pelo sujeito passivo em determinado período de apuração, isto é, o acréscimo patrimonial identificado em determinado período de tempo. Mas o que é acréscimo patrimonial?Isso será indispensável para saber a materialidade do Imposto de Renda e Proventos de qualquer natureza que será visto no próximo tópico.
O critério material é formado pelo verbo mais o seu complemento, como por exemplo: auferir renda. Esse critério é o enunciado que delimita o núcleo do acontecimento e está no antecedente da norma jurídica tributário em sentido estrito (regra-matriz de incidência), conhecido como hipótese de incidência. Esta por sua vez, não contém o evento, nem o fato jurídico, ela descreve uma situação futura a partir de critérios mínimos necessários (ação, tempo e espaço) para identificar um fato jurídico.
O art. 43 do CTN prescreve o fato gerador do IR e sua materialidade:
Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:
I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;
II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
§ 1o A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)
§ 2o Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001).
Como apresentado no dispositivo acima, renda e proventos de qualquer natureza constituem o acréscimo patrimonial, e o conceito de acréscimo patrimonial é relevante na materialidade do tributo. Assim, segundo Charles William Mcnaughton :
Só há acréscimo patrimonial com o advento de novas relações jurídicas, porque o patrimônio não é uma quantia pecuniária, mas um conjunto de direitos e deveres. Acréscimo patrimonial é o aumento do valor de acervo em virtude de direitos e obrigações que surgiram ou se extinguiram ao longo de tempo. O bem pode se valorizar ou desvalorizar e o patrimônio – conjunto de relações de direitos e deveres – é exatamente o mesmo.[31]
Diante do exposto, devemos observar que a tributação das criptomoedas pela Receita Federal que está prevista na IN 1888/2019 , aborda os seguintes pontos:
1) Pessoas físicas que negociam entre si no Brasil
Quem negocia sem intermediação de corretoras terá de prestar contas mensalmente quando houver movimentações acima de R$ 30 mil.
A tributação dos ganhos varia entre 15% (sobre a parcela de ganhos que não ultrapassar R$ 5 mil) e 22,5% (sobre a parcela de ganhos que ultrapassar R$ 30 mil).
Pelas regras, as informações deverão ser transmitidas à Receita Federal até as 23h59, horário de Brasília, do último dia útil do mês subsequente àquele em que ocorreu o conjunto de operações realizadas com criptoativos. Ou seja, as informações do mês de agosto serão prestadas até o último dia útil de setembro e assim sucessivamente.
O atraso na entrega gera multa de R$ 100 por mês, que sobe para R$ 500 por mês caso o contribuinte seja intimado pela Receita a prestar as informações. Se alguma operação estiver incorreta, incompleta ou for omitida, há ainda a cobrança de multa de 1,5% sobre o valor da operação.
2) Pessoas físicas que negociam via corretoras brasileiras
Quem usa o CPF para compra e venda de criptomoedas através de corretoras brasileiras terá de declarar na declaração anual do Imposto de Renda, em geral no início do ano;
3) Pessoas físicas que negociam via corretoras estrangeiras
Quem usar corretora estrangeira para as operações deverá declarar mensalmente, quando o valor das operações ultrapassar R$ 30 mil. As regras são semelhantes ao primeiro caso.
Com essa Instrução Normativa, a Receita Federal ampliou a base de cálculo do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza e abrangeu o critério material do IR ao considerar que qualquer transação com criptomoedas, tais como: investimento, pagamento, compra de bens e serviços será tributada pelo IR.
A autora Emília Malgueiros Campos cita o exemplo em que há a cobrança do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza na troca entre diferentes criptomoedas em operações de compra e venda. Pois, o Fisco considerou que houve ganho de capital sem ter havido a realização efetiva do acréscimo patrimonial e sem o comprador/vendedor ter obtido a disponibilidade econômica ou jurídica elencados como requisitos do fato gerador desse imposto no art. 43 do CTN.
Nesse aspecto, convém analisar se haverá ou não incidência do Imposto de Renda sobre os bitcoins decorrentes da “mineração” feita por pessoas fisicas ou jurídicas. De acordo com o raciocinio desenvolvido pelos autores Eduardo e Daniel Paiva[32] em relação aos bitcoins recebidos pelos mineradores, de forma originária, após a validação da transação entre pessoas que trocam criptomoedas, não deverá incidir imposto de renda no momento da aquisição da moeda virtual. Isso se deve ao fato de que nesse momento, os bitcoins recebidos não se configuram nem como acréscimo patrimonial( renda-acréscimo) nem como produto do trabalho ( renda-produto), uma vez que não há pagamento de serviço por não existir relação entre os mineradores e os usuários que trocam criptomoedas, pois os bitcoins recebidos pelos mineradores são entregues pelo próprio protocolo de funcionamento, chamado Bitcoin-Core, como se fosse uma “recompensa” pela validação das trocas de moeda virtual feita pela disponibilização do hardware do minerador.
A Receita Federal não possui competência para estabelecer, através de instrução normativa, qual a hipótese de incidência e a base de cálculo do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza, pois as obrigações nela elencadas atinge a” riqueza” de outros impostos, ocasionando a bitributação .Com isso ela violou o artigo 146,III da Constituição Federal que alberga a lei complementar o papel de tratar sobre fatos geradores e a base de cálculo dos impostos.
A utilização do critério da fungibilidade das criptomoedas enseja a ampliação do critério material e da base de cálculo do Imposto de Renda, correndo o risco da União tributar fatos geradores de outros impostos que não são de sua competência, violando o art. 145,I da Constituição Federal. Em que pese a Instrução Normativa violar dispositivo constitucional e a lei infraconstitucional quanto ao critério da materialidade da Regra-Matriz de Incidência Tributária, ela continua gerando efeitos por simplesmente pertencer ao sistema jurídico, pois na teoria do emérito professor, uma norma é válida quando passa a existir. Dessa maneira, a norma continua incidindo e gerando efeitos até que venha outra norma que a retire do sistema ou declare sua inconstitucionalidade. Divergindo de Pontes de Miranda, o professor Paulo de Barros assevera que :
Há certa confusão na doutrina jurídica entre “critérios de validade” da norma ( requisitos de pertencialidade) e seu “fundamento de validade” (fundamentação jurídica), principalmente entre aqueles que trabalham a validade como sinônimo de existência.[...] uma coisa é a validade da norma jurídica e outra a adequação de sua fundamentação jurídica às normas que disciplinam sua produção. Uma norma pode pertencer ao sistema jurídico sem, no entanto, estar de acordo com as regras que disciplinam sua produção ou a sua materialidade. A validade é aferida com a relação de pertencialidade da norma para com o sistema e não com sua adequação às demais normas existentes neste sistema. Tal averiguação é feita num momento posterior, pressupõe a sua validade e permite-nos dizer se a norma permanecerá, ou não, no sistema.[33]
Essa Instrução Normativa também é eivada de ilegalidade, pois nem toda transação com criptomoedas enseja acréscimo patrimonial, como é o caso de tributar como ganho de capital a operação de trocas entre diferentes criptomoedas(permuta). É oportuno abordar a usurpação das normas técnicas em matérias jurídicas tributária citada pelo professora Misabel Derzi:
“Somente a lei, formalmente compreendida, vale dizer como ato oriundo do Poder Legislativo, é ato normativo próprio à criação dos fatos jurígenos, deveres e sanções tributárias .Não se deve reduzir a extensão do princípio às atribuições de regulamentar as leis, inerentes às funções do Poder Executivo, constitucionalmente conferidas.[...] No caso do Direito Tributário, a lei tornou-se instrumento raro de veiculação das normas, recorrendo-se, ordinária e abusivamente, aos decretos-leis para a criação e regulação dos tributos federais.[34]
E, para compreender a construção de normas, necessário o estudo das fontes do direito, uma vez que é por meio do estudo da enunciação que se verificará a validade da produção formal do direito. Contribuindo para a compreensão, expõe com clareza Lourival Vilanova que:
As normas de organização (e de competência), e as normas do "processo legislativo", constitucionalmente postas, incidem em fatos e os fatos se tornam jurígenos. O que denominamos "fontes do direito" são fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia.[35]
Com a precisão de sempre, Paulo de Barros Carvalho explica :
A validação da produção formal do direito se realiza por meio da fiscalização da sua enunciação, possível em face da enunciação (= produção). A enunciação jurídica deixa marcas no texto produzido que permitem a sindicância de seu processo de produção. Os dêiticos de pessoa, espaço e tempo remetem para a enunciação, permitindo a sua reconstrução. Ao tempo que significam o desaparecimento do processo, retratam a produção jurídica por meio dos rastros do processo no produto. Consiste numa metalinguagem que relata a enunciação.[36]
Desta feita, o exame do processo de enunciação se dará pelas marcas deixadas na descrição normativa, e onde se verificará se o processo de produção dos enunciados foi realizado por autoridade competente, se foi utilizado procedimento próprio, ou seja, se houve vício na produção dos enunciados.
No que tange a competência legislativa, debruçar-se-á sobre os seus limites, quais sejam: se a pessoa política é apta para expedir normas que introduza outras normas no sistema do direito positivo, o espaço e tempo para a realização da conduta e se a conduta era própria do sujeito.
Com mestria defende Tácio Lacerda Gama que, “investigar regime jurídico de certa norma tributária é o mesmo que investigar a competência para a sua criação. E, mais. Cada uma das proposições que delimitam a competência serve, simultaneamente, como critério para aferição de validade.”[37] No mesmo sentido esse autor analisa essa relação entre a competência e o processo de criação da norma:
Cabe à chamada norma de competência indicar o sujeito da enunciação. É ele que deve desempenhar o ato ou conjunto de atos necessários à produção válida de normas no sistema jurídico. É também essa norma que vincula, por meio de uma relação jurídica, o sujeito competente e os demais sujeitos de direito. No cerne desse vínculo se encontra a possibilidade de editar normas sobre uma matéria qualquer. Mais uma vez, as respostas sobre quem, como e a respeito do que se devem versar as normas para serem jurídicas se encontram nas normas de competência.[38]
O instrumento introdutor da norma, que no caso é a instrução normativa, tem que ter por fundamento de validade a relação de compatibilidade que esta (norma criada) estabelece com a norma de competência. Isto porque, no sistema jurídico há a hierarquia das normas, cujas normas de competência estabelece como a norma inferior deve ser criada. Portanto, há hierarquia entre elementos normativos, isto é, quando uma norma é fundamento de validade da outra.
Norberto Bobbio esclarece a possibilidade de delegação a órgãos inferiores o poder de produzir normas jurídicas, senão vejamos:
Fala-se de poder regulamentar, de poder negocial para indicar o poder normativo atribuído aos órgãos executivos e aos privados. (...)
Típico exemplo de fonte delegada é o regulamento em relação à lei.
Os regulamentos são, como as leis, normas gerais e abstratas; no entanto, diferentemente das leis, a sua produção é habitualmente confiada ao Poder Executivo por delegação do Poder Legislativo, e uma das suas funções é aquela de integrar leis demasiado genéricas, que contêm apenas diretrizes de máxima e não poderiam ser aplicadas sem que fossem ulteriormente especificadas.[39]
A Instrução Normativa não pode ampliar, alterar ou modificar o critério material da regra-matriz de incidência tributária, visto a necessidade de tal matéria ser estrita a lei, consoante artigo 97 do CTN. Cabe apenas a instrução normativa completar, regular e estabelecer regras processuais e orgânicas para a implementação da lei, e este ato administrativo deve estar em consonância com o ordenamento jurídico
E, “ao qualificar sujeito, matéria e finalidade, os enunciados de autorização delimitam a natureza jurídica da norma que será criada. Natureza jurídica é sinônimo de conceito jurídico”[40]. Sendo assim, a Instrução Normativa da Receita Federal não tem competência para alterar o critério material da regra-matriz tributária, e sequer esta instrução normativa é fundamento de validade na norma de competência para tratar de tal matéria.Além de violar o princípio da estrita legalidade tributária, estabelecida no artigo 150, inciso I da Constituição Federal.
Num cenário onde crescem os avanços das tecnologias disruptivas no modo de se relacionar com o dinheiro, substituindo este por uma moeda virtual, traz diversas consequências nas relações jurídicas - tributárias. Por vezes, a dinâmica dos acontecimentos econômicos e sociais são mais voláteis que dinâmica jurídica. Havendo uma dificuldade na conceituação de alguns institutos e na sua regulamentação. Em que pese tais entraves, jamais poderemos admitir a deturpação do direito com práticas administrativas que fogem da sua competência. Se a ausência de regulamentação na definição da natureza jurídica das criptomoedas e o modo como deve ocorrer sua tributação é grave e gera insegurança jurídica, de maior gravidade é a sua má regulamentação, feita por órgãos administrativos que usurpam a competência do legislador e não respeitam os requisitos exigidos por lei. A inércia legislativa em tratar sobre assuntos econômicos, financeiros e tributários gera uma cultura pragmaticista em que muitas vezes levam os tribunais ou autarquias a criar o direito sem possuir competência e técnica para tal mister.
É necessário respeitar o processo de formação das normas e a sua semântica nas relações jurídicas por ela estabelecidas. Dessa forma, o critério material do Imposto de Renda e proventos de qualquer natureza deve estar de acordo com seus limites legais e constitucionais, não podendo, assim, ser alterados pela prática administrativa ou financeira. Se nem o legislador poderá desrespeitar a semântica do signo “renda e proventos de qualquer natureza”, menos ainda poderá as autoridades administrativas.
Nem toda operação com “moedas virtuais” ensejará o acréscimo patrimonial que demarca a materialidade do IR. Com isso, não poderá o Fisco abranger o núcleo da hipótese de incidência e por consequência a sua base de cálculo sem observar os planos sintáticos, semânticos e pragmáticos da norma jurídica.
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[1] NAKAMOTO, Satoshi. Bitcoin – A peer-to-peer eletronic cash system. https://bitcoin.org/bitcoin.pdf. Acessado em: 02 de março de 2020.
[2] Peer-to-peer: ponto-a-ponto, permite que cada individuo interaja diretamente com o outro, sem necessidade de intermediários das transações.
[3] MELLO, José Luiz Homem de. GUAZZELLI, Tatiana Mello. MARTINS, Alessandra Carolina Rossi. GRUPENMACHER, Giovana Treiger. Desafios regulatórios em torno da emissão e negociação de criptoativos e o sandbox como uma possível solução. CVM: 21 de agosto de 2019. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/noticias/anexos/2019/20190821_Desafios_regulatorios_em_torno_da_emissao_negociacao_criptoativos_e_sandbox_possivel_solucao.pdf. Acesso em: 01 de março de 2020.
6 Utiliza-se da matemática para assegurar segurança e validade dos ativos, bem como ter o controle da emissão destes.
[6] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain – O direito no Mundo Digital.2ª tiragem. Lumen Juris.2018, p. 25.
[7] CAMPOS, Emília Malgueiro. Criptomoedas e Blockchain – O Direito no Mundo Digital. Lumen Juris,2ª titagem. Rio de Janeiro. 2018, p. 19/20.
[8]Disponível em site: https://exame.abril.com.br/mercados/primeira-regulacao-para-criptomoedas-comeca-hoje-no-brasil/. Acessado em: 02 de março de 2020.
[9] “As criptomoedas são uma espécie de moeda virtual universal, descentralizada, criptografada, de fluxo aberto e conversibilidade bidirecional. Trata-se, portanto, de bem móvel e intangível, nos termos do artigo 83, III, do Código Civil”. GOMES, Daniel de Paiva. GOMES, Eduardo de Paiva. “A incidência de imposto de renda sobre a aquisição originária de criptomoedas: a tributação da mineração de bitcoins”. PISCITELLI, Tathiane, LARA, Daniela,coordenação, 2ªed.rev.atual. e ampl. Tributação da economia digital. São Paulo. Thomson Reuters, 2020. p. 330
[10] De acordo com a Plataforma de busca e comparação de investimentos Yubb, disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2019/07/31/busca-por-criptoativos-cresce-12-pontos-percentuais-em-junho-de-2019.ghtml. Acessado em: 02 de março de 2020.
[11] Projeto de Lei n° 2303/2015, que dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de "arranjos de pagamento" sob a supervisão do Banco Central. O objetivo é alterar as Leis nº 12.865, de 2013 e 9613, de 1988. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1555470. Acessado em 02 de março de 2020.
[12] Projeto de Lei nº 3825/2019 que “propõe a regulamentação do mercado de criptoativos no país, mediante a definição de conceitos; diretrizes; sistema de licenciamento de Exchanges; supervisão e fiscalização pelo Banco Central e CVM; medidas de combate à lavagem de dinheiro e outras práticas ilícitas; e penalidades aplicadas à gestão fraudulenta ou temerária de Exchanges de criptoativos.” Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137644. Acessado em 02 de março de 2020. O Senador Styvenson Valentim solicitou que este projeto tramite em conjunto com o Projeto de Lei nº 3949/2019.
[13] Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/oficios-circulares/sin/anexos/oc-sin-1118.pdf. Acessado em: 02 de março de 2020
[15] CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito.O Constructivismo Lógico- Semântico. 6ªedição. São Paulo: Noeses, 2019 p. 540.
[16] Carvalho, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito.O Constructivismo Lógico-Semântico. 6ª Edição. São Paulo: Noeses, 2019.p.543.
[17] Carvalho, Aurora Tomazini. O Constructivismo Lógico-Semântico.6ª Edição. São Paulo: Noeses, 2019.p.561
[18] Carvalho, Aurora Tomazini. O Constructivismo Lógico- Semântico.6ª Edição.Noeses.São Paulo.2019.p. 562
[19] CAMPOS, Emília Malgueiro.Criptomoedas e Blockchain. O Direito no Mundo Digital.2ªTiragem.Lumen Juris.Rio de Janeiro. 2018. p.27
[20] ARAÚJO, Clarice Von Oertzen, A função dominante na linguagem do Direito Positivo. Brasilia: Revista do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília, 2018, Vol. 12, p.99.
[21] CARVALHO, Aurora Tomazini.Curso de Teoria Geral do Direito.O Constructivismo Lógico- Semântico.6ª edição.Noeses.São Paulo.2019.p. 185
[22] CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. O Constructivismo Lógico-Semântico. 6ªedição. São Paulo: Noeses, 2019.
[23] ARAÚJO,Clarice Von Oertzen.Incidência Jurídica – Teoria e Crítica.São Paulo: Noeses, 2011. p 53/54.
[24] DERZI,Misabel Tipo ou conceito no Direito Tributário? Revista. Faculdade de direito da UFMG.Belo Horizonte. 1987/1988. p.233/259.
[25] GALVÃO, Lucas de Britto. Tributar na era da Técnica: Como as Definições Feitas Pelas Agências Reguladoras Vêm Influenciando a Interpretação das Normas Tributárias. São Paulo: Noeses, 2018. p.50.
[26] DERZI, Misabel. Tipo ou conceito no Direito Tributário? Revista. Faculdade de direito da UFMG. Belo Horizonte. 1987/1988, p.258.
28 No curso deste trabalho, entende-se que ordenamento jurídico brasileiro e sistema do direito positivo são sinônimos.
29TOMÉ, Fabiana Del Padre. Vilém Flusser e juristas: comemoração dos 25 anos do grupo de estudos Paulo de Barros Carvalho / Florence Haret; Jerson Carneiro. São Paulo: Noeses, 2009, p. 324.
[32] GOMES, Daniel de Paiva. GOMES, Eduardo de Paiva. “A incidência de imposto de renda sobre a aquisição originária de criptomoedas: a tributação da mineração de bitcoins”. PISCITELLI, Tathiane, LARA, Daniela,coordenação, 2ªed.rev.atual. e ampl. Tributação da economia digital. São Paulo. Thomson Reuters, 2020. pps. 329 – 350.
[34] DERZI, Misabel. Tipo ou conceito no Direito Tributário? Revista. Faculdade de direito da UFMG. Belo Horizonte. 1987/1988, p. 220/225.
[37] GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária, São Paulo: Noeses, 3ª ed., 2019, nota de rodapé da p. 248.
[38] GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária, São Paulo: Noeses, 3ª ed., 2019, nota de rodapé da p. 160.
[39] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico.; tradução de Ari Marcelo Solon; prefácio de Celso Lafer; apresentação de Tercio Sampaio Ferraz Junior. São Pauloo: EDIPRO, 2 ed., 2014, p.51.
[40] GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária, São Paulo: Noeses, 3ª ed., 2019, nota de rodapé da p. 261.
Artigo publicado em 06/07/2021 e republicado em 19/08/2024
Mestranda em Direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP , no programa de Direito que tem como linha de pesquisa: A efetividade do Direito Público e Limitações da Intervenção Estatal. Especialização em Direito tributário pelo IBET. Advogada. São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, JÉSSYCA VERUCY RIBEIRO. Critério material do imposto de renda e proventos de qualquer natureza na tributação das criptomoedas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2024, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/56948/critrio-material-do-imposto-de-renda-e-proventos-de-qualquer-natureza-na-tributao-das-criptomoedas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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