Resumo: A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem como dever conjunto da família, da sociedade e do Estado, assegurar às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à saúde, colocando-os a salvo de toda forma de negligência e garantindo-lhes, simultaneamente, o direito à convivência familiar. Entretanto, com as medidas restritivas em decorrência da COVID-19, aparentemente, esses dois direitos fundamentais foram colocados em rota de colisão. Se, de um lado, a criança e o adolescente têm assegurado constitucionalmente o direito à convivência familiar, especialmente com seus genitores, por outro, cabe a ambos os pais, ao Estado e à sociedade, preservar sua saúde e sua vida. Considerando que as medidas de isolamento decretadas como forma de contenção ao vírus trouxeram diversas implicações, incluindo na relação entre pais e filhos, incutindo em riscos associados à manutenção da segurança e o desenvolvimento das crianças, emerge, a necessidade de compreender como tem funcionado a guarda compartilhada em tempos de pandemia. Para tanto, empreendeu-se pesquisa bibliográfica e documental, analisando-se as principais decisões judiciais proferidas e os critérios utilizados pela autoridade judiciária para deferir ou denegar uma sentença, em favor de apenas um genitor, em detrimento da guarda compartilhada, durante os períodos de isolamento social.
Palavras-chave: Pandemia. Guarda compartilhada.
Abstract: The 1988 Federal Constitution and the Child and Adolescent Statute establish the joint duty of the family, society and the State to ensure children and adolescents, with absolute priority, the right to health, placing them safe in every way. negligence and, at the same time, guaranteeing them the right to family life. However, with the restrictive measures resulting from COVID-19, apparently, these two fundamental rights were placed on a collision course. If, on the one hand, children and adolescents have constitutionally guaranteed the right to family life, especially with their parents, on the other hand, it is up to both parents, the State and society to preserve their health and life. Considering that the isolation measures enacted as a means of containing the virus had several implications, including in the relationship between parents and children, instilling in risks associated with the maintenance of safety and the development of children, the need to understand how custody has worked emerges. shared in times of pandemic. To this end, a bibliographic and documentary research was undertaken, analyzing the main court decisions issued and the criteria used by the judicial authority to grant or deny a sentence, in favor of only one parent, to the detriment of shared custody, during periods of social isolation.
Keywords: Pandemic. Shared Guard.
Sumário: Introdução; 2 O direito de família e a Constituição Federal de 1988; 2.1 A guarda compartilhada no ordenamento jurídico pátrio; 3 O exercício da guarda compartilhada durante a pandemia; 3.1 Principais alterações na convivência em razão do isolamento social; 3.2 Reflexos da pandemia no exercício da guarda compartilhada; 3.3 Critérios aplicados às decisões judiciais atinentes à guarda compartilhada durante os períodos de isolamento social; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
O ano de 2020 começou seus dias em meio a boatos acerca de uma nova modalidade de vírus, altamente transmissível, de efeitos imprevisíveis no hospedeiro, que poderia provocar desde um simples resfriado, em alguns, até à morte repentina, em outros, sem qualquer possibilidade de resposta aos tratamentos disponíveis.
Não demorou muito e esses boatos foram confirmados pela Organização Mundial de Saúde – OMS, que classificou tais circunstâncias como uma pandemia, em março do mesmo ano, quando a doença provocada pelo vírus intitulado pelos pesquisadores como Sars-Cov-2, chegou ao ápice de sua atividade.
A partir de então, a referida organização estabeleceu uma série de diretrizes e medidas contenciosas à propagação desse vírus, que deveriam ser observadas por todos os estados soberanos sob sua égide. Consequentemente, o Brasil foi impulsionado a adotar tais medidas, na tentativa colaborar na redução das possibilidades de disseminação do vírus (SILVA, et. al., 2020).
Dentre as principais medidas adotadas para mitigar a transmissão do vírus, o isolamento social foi considerado, pelos estudiosos do tema, o meio mais eficaz de contenção. Sendo assim, o poder público elaborou um rol de resoluções e decretos, contendo medidas de prevenção e combate à disseminação do coronavírus. Com isso, eventos esportivos e culturais foram cancelados, áreas públicas abertas ao convício social foram restringidas, estabelecimentos comerciais foram fechados, empresas precisaram se adaptar ao trabalho remoto e as escolas passaram a contar com as ferramentas digitais parra realizar suas atividades, em decorrência da suspensão das aulas presenciais.
Frente a esse cenário incomum, muitos pais/mães, entendendo que as crianças não poderiam conviver com seus dois genitores e com suas famílias extensas, sem correr riscos, passaram a restringir o convívio dessas crianças com o outro genitor, sob o argumento de que a alternância de residências significaria uma maior exposição ao vírus.
Por serem, na maioria das vezes, decisões unilaterais, os genitores afastados do convívio presencial com os filhos, passaram a acionar o Poder Judiciário para garantir tal direito, especialmente nos casos de guarda compartilhada, em que a criança acabou ficando sob a égide de apenas um dos pais, por período indeterminado (GUARIENTE; SIMÕES, 2021).
Emerge, assim, o desafio de descobrir como manter a saúde e a incolumidade do menor sem comprometer a convivência paterna/materna, haja vista que, muitos pais, assustados com a possibilidade de contágio, passaram a proibir o contato físico com o outro genitor. Outros, ainda, resolveram tirar proveito dessa nova condição social, para praticar a chamada alienação parental, se utilizando da pandemia como desculpa para impedir o convívio com o outro guardião (SILVA, et al., 2020).
Diante do exposto acima, o presente estudo teve por objetivo responder à seguinte pergunta norteadora: “Como conciliar os direitos e obrigações dos genitores com relação à guarda compartilhada durante a pandemia do novo coronavírus?”. Subsequentemente, procurou-se identificar as principais alterações e impasses trazidos pela pandemia quanto ao exercício da guarda compartilhada, considerando que as relações jurídicas que permeiam as questões intrafamiliares não são mais as mesmas, e o cenário pandêmico não tem prazo de validade.
Para tanto, utilizou-se de pesquisa bibliográfica e documental, a fim de mapear os direitos de convivência da criança e do adolescente, na legislação vigente, discorrendo sobre as problemáticas trazidas por esse novo contexto histórico-social, tendo em mente as decisões mais favoráveis aos interesses relacionados à formação dos tutelados.
2 O direito de família e a Constituição Federal de 1988
A promulgação da Constituição Federal de 1988, amplamente fundamentada na prevalência e observância dos direitos humanos, foi responsável por introduzir, no ordenamento jurídico brasileiro, uma série de direitos e garantias fundamentais voltados, principalmente, para a preservação da dignidade humana. De fato, no âmbito das garantias sociais, foram introduzidas novas possibilidades de conformações familiares além da tradicional, suscitando, assim, uma série de alterações no Direito de Família, no sentido de melhor adequar o princípio da proteção à família.
Nesse sentido, os novos preceitos constitucionais vieram realinhar os laços de afeto e de solidariedade na estrutura familiar, tendo em vista a plena satisfação do cidadão, incluindo sua autonomia e desenvolvimento no seio familiar, tendo em vista a sua satisfação pessoal, o que, por sua vez, acabou motivando um segundo momento, caracterizado pela facilitação das dissoluções das uniões estáveis e separações conjugais, justificadas pela observância de garantias fundamentais como o direito à liberdade, à vida e à dignidade humana. Conforme leciona Barroso (2015, p. 493): “A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira”.
Consequentemente, a evolução social e as transformações advindas com a Constituição de 1988 serviram de respaldo para a mudança na legislação, possibilitando a promulgação do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais vieram complementar os direitos já existentes no âmbito do direito de família.
Abandonando os moldes patriarcais das legislações anteriores, o Código Civil nasceu trazendo outra remessa de inovações no âmbito do direito familiar, como, por exemplo, o conteúdo disposto em seu artigo 1.639, fixando o princípio da autonomia privada como reitor das relações patrimoniais no casamento (COUTINHO, 2020).
Tais modificações, por sua vez, culminaram em outras medidas legislativas proferidas na seara nos divórcios e das dissoluções conjugais, como a Lei Nº 11.441/2007 e a EC Nº 66/2010, que passaram a ser facilitar o processo de separação, e, por consequência, o arranjo de novas entidades familiares (COUTINHO, 2020).
Se dantes, em caso de separação do casal, os filhos ficavam exclusivamente sob a guarda da mãe, cabendo ao pai, apenas, a obrigação de sustento e visitação quinzenal, com as várias mudanças sofridas no conceito de família brasileira, ao longo dos anos, verificou-se uma grande evolução dos costumes presentes na referida instituição, passando a ser frequente a estipulação da guarda compartilhada, ou ainda, a concessão da guarda exclusiva ao pai ou avós da criança ou adolescente.
Com as facilidades de separação conjugal, o Pátrio Poder, que, antes, se baseava na figura paterna como o chefe da família, passou a receber a denominação de Poder Familiar, em consonância com o previsto no §5º do art. 226, da Constituição de 1988, onde prevê-se que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
De igual modo, a responsabilidade de prover o sustento dos filhos passou a ser comum de ambos os genitores, conforme previsto no artigo 227 da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (BRASIL, 1988)
Assim, constitui-se dever do Estado, concomitantemente com a família e a sociedade, assegurar à criança e ao adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, ao respeito e a uma convivência familiar e sadia. Consequentemente, por se tratar de disposição trazida pela Lei Máxima do nosso ordenamento jurídico, as legislações infraconstitucionais ulteriores deveriam observar tais determinações em sua composição.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por exemplo, trazia em sua redação inicial que:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (BRASIL, 1990, p. 05)
Todavia, tal previsão normativa foi, por muito tempo, utilizada equivocadamente, para justificar o afastamento sistemático de crianças (não raro recém-nascidas) e adolescentes do convívio de sua família de origem, dando margem a inúmeras distorções na interpretação e aplicação do dispositivo. Isso posto aprouve à Lei Nº 13.257, de 2016 alterar a parte final de seu art. 19, que passou a contar com a seguinte redação:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. (Redação dada pela Lei Nº 13.257, de 2016)
(BRASIL, 1990, p. 05, grifos do autor)
Essa foi uma das principais alterações trazidas para o ECA, tendo em vista melhor atender aos interesses da criança, considerando que a retirada do incapaz do seio de sua família, com colocação em abrigo ou em eventual lar substituto, só seria cabível nas ocasiões em que se revele mais prejudicial e mais danoso à sua personalidade do que a permanência entre seus entes queridos.
Outra importante alteração trazida pela Lei Nº 13.257/2016, refere-se à reafirmação, em diversas passagens, a necessidade de priorizar a manutenção da criança/adolescente em sua família de origem, reafirmando o “princípio da prevalência da família”, expressamente relacionado no art. 100, parágrafo único, inciso X, do ECA, segundo o qual:
X - prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isso não for possível, que promovam a sua integração em família adotiva; (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017) (BRASIL, 1990, p. 27).
Destarte, na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente, deve ser concedida prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta.
2.1 A guarda compartilhada no ordenamento jurídico pátrio
A guarda compartilhada só foi regulamentada, legalmente, na legislação brasileira, em 2014, quando Lei Nº 13.085/2014, também conhecida pela Lei da Guarda Compartilhada, que trouxe as seguintes disposições:
Art. 1º Esta Lei estabelece o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispõe sobre sua aplicação, para o que modifica os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Art. 2º A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 1.583. (...)
§ 2º Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos (BRASIL, 2014, p. 01).
Assim, tem-se que a guarda compartilhada refere-se da divisão igualitária da responsabilidade dos filhos e na participação do desenvolvimento da vida do menor de forma equilibrada. Podendo ser requerida por consenso dos genitores, sendo que a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.
Pode verificar-se, ainda, que a aludida lei foi criada justamente por conta da preocupação com o desenvolvimento do menor, a fim de garantir que os dois genitores participem ativamente na educação, formação social e afetiva, e demais decisões que possam causar impactos na vida da criança.
Os critérios para instituição da guarda compartilhada, por sua vez, estão dispostas no § 2º do Art. 1.584, do Código Civil, de 2002:
Art. 1.584 Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor. (BRASIL, 2002)
Nesta senda, a guarda compartilhada somente deveria ser desconsiderada em casos extremos, a exemplo de uma ação de divórcio litigioso, onde, dificilmente, vai ser possível trazer, para o menor, uma convivência harmoniosa entre os progenitores. Se não há diálogo entre os pais, havendo dissenso em relação às necessidades dos filhos, a forma de educar, não há que se fixar a guarda compartilhada.
Nas palavras de Madaleno e Madaleno, a guarda exclusiva só deve ser considerada em condições verdadeiramente inviáveis e em favor do melhor interesse do menor, conforme exposto a seguir:
[...] A guarda exclusiva, atribuída pelo juiz em virtude de desacordo entre os pais, só se verificaria na inviabilidade da guarda compartilhada, mas sempre respeitando o melhor interesse do menor a partir da identificação do genitor que apresentar melhores aptidões para o cuidado diário e efetivo do filho. Em 2014, a Lei 13.058 torna esta modalidade obrigatória. (MADALENO; MADALENO, 2018, p. 36).
Na mesma direção, Maria Berenice Dias, assevera que:
A participação no processo de desenvolvimento integral dos filhos leva a pluralização das responsabilidades, estabelecendo uma verdadeira democratização de sentimentos. A proposta é manter os laços de afetividade, minorando os efeitos que a separação sempre acarreta nos filhos e conferindo aos pais o exercício da função parental de forma igualitária. A finalidade é consagrar o direito da criança e de seus dois genitores, colocando um freio na irresponsabilidade provocada pela guarda individual (DIAS, 2010, p. 432).
Não há razão, portanto, para se priorizar um guardião em detrimento do outro, no que se refere à convivência parental, uma vez que, para o menor, a guarda compartilhada é o modelo ideal de guarda, já que possibilita a continuidade da convivência com ambos os genitores, exceto nos casos em que há desarmonia ou disputa entre os pais.
3 O exercício da guarda compartilhada durante a pandemia
3.1 Principais alterações na convivência em razão do isolamento social
Desde 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a doença causada pelo novo coronavírus como uma pandemia, o mundo ingressou em uma imensa crise holística, nas suas mais diversas dimensões. Os impactos foram sentidos nas mais diversas áreas, afetando as relações de ordem sanitária e social, econômica e fiscal, jurídica e política (ALVES, 2021).
Trata-se, portanto, de uma crise sem precedentes, em território nacional, que culminou em diversas medidas de isolamento social, incluindo fechamento de escolas, restrições de viagens intermunicipais, interestaduais e internacionais, implantação do home-office, além de reduções de jornada e suspensões e restrições de contrato de trabalho, trazendo inúmeras dificuldades no que se refere ao cumprimento dos regimes de convivência estabelecidos (SILVA, 2020).
Sob a ameaça constante da contaminação iminente, as famílias se isolaram em pequenos núcleos para proteção de seus membros. No entanto, se por um lado as medidas de distanciamento social são recomendadas para reduzir a velocidade de propagação do vírus, por outro, inviabilizaram, muitas vezes, a convivência parental entre as crianças e adolescentes com sua família, modificando, drasticamente, o direito de convivência parental e familiar (NAHAS; ANTUNES, 2020).
Assim, com a chegada da pandemia, entretanto, muitas foram as modificações em torno das possíveis modificações das visitas e da guarda dos filhos, principalmente, nos casos em que o pai ou a mãe estavam expostos a atividades de risco ou que, por algum outro fator, poderiam oferecer risco substancial de contaminação aos dependentes.
Nesse quesito, inúmeras vidas foram afetadas pela nova rotina imposta pelo confinamento, fazendo com que o poder jurisdicional fosse compelido a encontrar alternativas rápidas, para solucionar as inúmeras questões relacionadas ao direito de convivência e, assim, responder aos anseios das famílias separadas em virtude das medidas protetivas contra o coronavírus.
3.2 Reflexos da pandemia no exercício da guarda compartilhada
Em tempos de normalidade, as crianças e adolescentes em situação de guarda compartilhada, se revezam entre a casa do pai e da mãe, alternando determinados períodos com cada um, de acordo com o previamente acordado, em juízo ou não. Contudo, essas determinações não contemplam momentos de situação extrema, como é o caso de uma pandemia, nos moldes da que estamos presenciando, na atualidade.
Apesar de essa faixa etária, que vai da primeira infância até o fim da adolescência, não estar no grupo de risco até agora divulgado, essa alternância entre a casa dos pais, seja pela guarda compartilhada, seja pelo direito de visitas a ser exercido, tem sido considerada um veículo de transmissão entre uma casa e outra, especialmente, nos lares em que residem idosos ou pessoas com comorbidades (MARQUES; SILVA, 2021).
Em razão dessa possibilidade, logo nos primeiros meses de pandemia, diversas decisões judiciais foram proferidas privilegiando apenas um dos guardiões e suspendendo, provisoriamente, o direito de visitas. Entretanto, dadas as circunstâncias imprecisas, perante a alta demanda pandêmica de pedidos, o Poder Judiciário precisou refletir acerca de qual a melhor saída para a preservação dos vínculos afetivos familiares, sem prejudicar a formação do menor nem a sua saúde e, tampouco, a saúde daqueles que estão em volta (GUARIENTE, SIMOES, 2021).
Uma vez que não existe, ainda, no Brasil, uma previsão legal específica que defina como os pais separados devem agir em cenários atípicos, inicialmente, a maioria das decisões liminares foram concedidas mantendo o status quo da criança antes da pandemia. No entanto, há de se destacar que o direito de convivência é, principalmente, da criança ou do adolescente, e não apenas dos genitores, de modo que as decisões precisam sempre levar em conta o interesse do menor, de forma prioritária e superior à conveniência dos pais (SILVA, MARQUES, 2021).
Em seu turno, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, expediu recomendação traçando critérios para a solução dos conflitos de convivência paterno-filial, recomendando que, crianças e adolescentes, filhos de casais com guarda compartilhada ou unilateral, nas hipóteses em que não haja riscos à sua saúde nem à saúde da coletividade, em razão da altercação do período de convivência.
Assim, os pais da criança precisam tomar suas decisões com cautela e equilíbrio, pensando no melhor para o menor, com vistas à preservação de seu direito à vida e à saúde, mas sem negligenciar a preservação dos vínculos familiares, podendo ser consideradas, em último caso, estratégias de comunicação, como videochamadas e telefonemas, para que o contato seja mantido, mesmo à distância.
Finalmente, impende ressaltar que, proibir a convivência da criança, sem justificativa plausível, pode ser configurada como alienação parental. O ‘excesso de zelo’, por si só, não deve justificar o rompimento da convivência de uma criança com um de seus pais. Assim, não verificados fatores de risco aos menores, as visitas e manutenção da guarda compartilhada devem permanecer inalterados durante o período em que perdurar o isolamento social.
3.3 Critérios aplicados às decisões judiciais atinentes à guarda compartilhada durante os períodos de isolamento social
Conforme mencionado anteriormente, a legislação específica não contempla cenários inusitados, como o de agora. Contudo, existem algumas definições que podem ser aplicadas, como é o caso do disposto no art. 1583, do Código Civil, que institui que: “Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.” (BRASIL, 2002)
Também pode ser empregado, nesse contexto, o disposto no art. 1.586, do Código Civil, que prevê a intervenção do juiz em casos graves excepcionais, ao trazer que: “Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais” (BRASIL, 2002). Porém, essa premissa não costuma ser empregada, rotineiramente, sob o argumento de que a guarda compartilhada é sempre preferível, quando possível.
Na esfera doutrinária, foram estabelecidas duas correntes, relativas à adoção e apreciação de medidas legais excepcionais e transitórias, considerando o período de isolamento social. A primeira delas enxerga a necessidade de medidas drásticas quanto do regime de convivência familiar, proclamando a devida intervenção do Estado para determinar a imediata suspensão da convivência familiar presencial, em prol da saúde da criança e do adolescente.
Nesse sentido, Gisele Leite afirma que:
É razoável entender que se deve suspender, ao menos provisoriamente, o deslocamento de crianças e adolescentes durante a pandemia, prevalecendo pelo menos uma guarda unilateral fática. A fim de atender e proteger os filhos. Mas, essa redução pode ser amenizada com o convívio virtual. Podendo, até, em outra ocasião, o ente afastado passar ficar mais tempo, como forma de compensação e recuperação do tempo de convívio perdido (LEITE, 2020, p. 01)
Existe ainda, um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Nº 1646/21, cujo qual determina que, enquanto perdurar a pandemia causada pelo novo coronavírus, as visitas e os períodos de convivência no caso de guarda compartilhada ou unilateral poderão ser substituídos por outras formas de contato, mediante prévia autorização judicial. Se for comprovado que um dos pais não está cumprindo regras de distanciamento social ou de higiene na pandemia, este poderá ter o direito de visitação e/ou convivência, suspenso temporariamente.
Em contrapartida, a segunda corrente vigente, pondera que deve haver um equilíbrio entre o bom senso e os riscos envolvendo a saúde da família, possibilitando, portanto, a flexibilização da suspensão drástica da convivência, devendo, pois, ser analisado cada caso, de acordo com as circunstâncias concretas, ressalvadas as condições de preservação da incolumidade da criança (OLIVEIRA, 2020).
Em recente artigo escrito, Sílvia Marzagão assevera que:
[...] o mais importante, a nosso ver, é que, garantida a incolumidade física da criança, se mantenha intacto o convívio e o equilíbrio nas funções parentais. Assim, sendo possível o convívio físico com segurança, que seja ele mantido. Isso, inclusive, viabiliza que os pais cuidem da prole de maneira equilibrada, sem sobrecarregar nenhum deles. Estando os genitores em isolamento social e garantido o trânsito seguro da criança, não há razão para suspensão do convívio (MARZAGÃO, 2020, s/p).
Assim, sendo possível o convívio físico com segurança, que seja ele mantido. Isso, inclusive, viabiliza que os pais cuidem da prole de maneira equilibrada, sem sobrecarregar nenhum deles. Estando os genitores em isolamento social e garantido o trânsito seguro da criança, não há razão para suspensão do convívio. Na mesma linha de raciocínio, pontuam Moura e Colombo:
A técnica da ponderação dos direitos fundamentais surge como instrumento útil para a solução concreta de divergências acerca das novas dinâmicas necessárias para a garantia do convívio familiar, sendo possível, embora excepcionalíssima, a suspensão do contato presencial, somente quando houver circunstâncias fáticas que agravam o risco à saúde de pessoas vulneráveis, seja a própria criança ou adolescente, seus pais, responsáveis ou demais familiares (MOURA; COLOMBO, 2020, p. 210).
Desse modo, essa segunda corrente doutrinária manifesta o entendimento de que, entre a suspensão e a manutenção da convivência presencial, existem soluções intermediárias, como, por exemplo, prolongando os períodos de permanência com cada genitor, mas sem privar os filhos desse contato presencial indefinidamente.
Em casos excepcionais, em que o contato físico seja arriscado, graças a uma maior exposição do genitor ao vírus por razões profissionais, a convivência presencial pode vir a ser suspensa, eventualmente, sem significar, todavia, ruptura substancial dos laços afetivos. Assim, ao menos de maneira virtual, a convivência e o cuidado devem ser mantidos.
A propósito, essa foi considerada, frequentemente, a melhor modalidade por tratar os pais igualitariamente, mantendo a corresponsabilidade e a coparentalidade, além de ser uma tentativa de amenizar a ruptura do eventual vínculo anteriormente existente entre os genitores e, provavelmente, se tornará uma realidade mais evidente, especialmente nos casos daqueles que residem em locais distantes e preservam os laços, amenizando os efeitos de uma eventual alienação parental.
Considerações finais
A guarda compartilhada é considerada pela jurisprudência e pela corrente doutrinária, uma das modalidades mais benéficas aos menores, filhos de pais separados, estabelecendo, de forma igualitária, as responsabilidades e a execução de direitos e deveres mais favoráveis ao desenvolvimento da criança ou do adolescente.
Em tempos de normalidade, esse direito de convivência da criança com ambos os genitores se efetua perante revezamento entre as casas do pai e da mãe, alternando determinados períodos com cada um, de acordo com o previamente acordado, em juízo ou não, de acordo com o que for melhor para os interesses e direitos do menor, conforme assegurado na legislação vigente.
No entanto, em decorrência da chegada da pandemia causada pelo novo coronavírus, esse instituto foi ameaçado, em virtude da necessidade de isolamento social para diminuir as chances de contágio, fazendo com que muitos pais optasses por manter o filho alheio ao contato presencial com a outra parte.
Passando-se os meses, ao constatar-se que a pandemia não parecia ter data certa para terminar, esses períodos começaram a ser considerados infundados, já que o vírus continuou se proliferando e se disseminando. Assim, tornou-se evidente não se poderia impedir o contato da criança com o pai, ou a mãe, indeterminadamente, sob o pretexto do risco de contaminação.
Embora as decisões proferidas pelo Judiciário tenham acatado esse tipo de medida restritiva, nos primeiros momentos de pandemia, com o avançar dos dias, outros elementos começaram a ser sopesados, tendo em vista os prejuízos que esse afastamento poderia trazer, sem qualquer garantia factual de que permanecer com um dos pais, exclusivamente, seria suficiente para manter o menor em segurança em termos de saúde física e mental.
Sendo assim, foram vislumbradas estratégias para a manutenção do vínculo entre pais e filhos, como o uso das redes sociais e videochamadas, além de determinadas as ocasiões em que não seria necessário interromper o convívio, quando não houvesse maior risco de exposição da criança ou adolescente, ao vírus, por transladar entre a residência de seus genitores.
Portanto, o direito à convivência familiar e a guarda compartilhada só devem ser suspensos quando um dos genitores, em decorrência de sua profissão ou demais atividades, incidirem em risco substancial à saúde da criança e do adolescente, ou ainda, quando estes, por conviverem com pessoas inseridas nos grupos de risco, essas possam contribuir como veículos transmissores do vírus, já que essa faixa etária não costuma sofrer graves efeitos da doença, podendo, muitas vezes, estarem assintomáticos, mas em fase de transmissão.
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NAHAS, Luciana Faísca; ANTUNES, Ana Paula de Oliveira. Pandemia, fraternidade e família: a convivência e a importância da manutenção dos laços familiares. Disponível em: http://repositorio.asces.edu.br/handle/123456789/2619. Acesso em: 10 jun. 2021.
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Graduado do Curso Superior de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Paulo Amarildo de. O exercício da guarda compartilhada em tempos de pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57122/o-exerccio-da-guarda-compartilhada-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 23 dez 2024.
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