Resumo: Neste estudo, busca-se destacar as vantagens da abordagem da tradição republicana para o enfrentamento dos problemas das sociedades contemporâneas. Num primeiro passo, procura-se expor em detalhes a evolução histórica da filosofia republicana, em suas diversas manifestações ao longo do tempo, buscando traçar pontos comuns em diferentes civilizações. Este primeiro passo, eminentemente descritivo, servirá de base para o desenvolvimento da segunda etapa, que consiste na elaboração crítico-analítica dos problemas sociais, políticos e econômicos contemporâneos a partir das lentes republicanas. À guisa de conclusão, o trabalho elabora uma síntese das duas etapas, visando à orientação de pesquisas futuras.
Palavras-chave: republicanismo; tradição filosófica; res publica; neoliberalismo
Abstract: This study aims to highlight the benefits of adopting the republican philosophical tradition to deal with the issues of contemporary societies. Firstly, it is explained in detail the historical evolution of the republican tradition on its various manifestations throughout time, as well as describing the common aspects across different civilizations. This first step, principally descriptive, will function as a groundwork to the second step, which consists of the development of a critical regard of social, political and economic contemporary problems under republican lights. At last, the work offers an orientation to future researches by means of consolidation of the two steps aforementioned.
Keywords: republicanism; philosophical tradition; res publica; neoliberalism
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – As matrizes republicanas; 2.1 – A matriz romana; 2.2 - A matriz italiana; 2.3 - A matriz inglesa; 2.4 - A matriz norte-americana; 2.5 - A matriz francesa; 2.6 - A matriz contemporânea; 3 - A importância do Republicanismo para o século XXI; 4 – Conclusão; 5 - Referências
1 – Introdução
O propósito deste trabalho consiste em trazer ao centro do debate público a centralidade da filosofia republicana para os nossos tempos. Tal como o fizeram outros filósofos contemporâneos adeptos desta tradição, acredita-se que há vantagens significativas numa sociedade que se norteia pelos valores normativos republicanos. Sem embargo, o grande diferencial do presente estudo consiste na apresentação destes aspectos positivos em termos práticos – i.e para a resolução de patologias sociais de fato verificadas na contemporaneidade -, em vez de contrapor, apenas no plano normativo, os valores republicanos aos da filosofia liberal e socialista.
Para tanto, o estudo detalhará o percurso histórico da filosofia republicana por meio da metodologia de Schwarcz e Starling,[1] que dividem as suas diferentes matrizes em romana – da Antiguidade -, italiana – do Renascimento -, inglesa – do século XVII, norte-americana – do século XVIII, francesa – do século XVIII e XIX – e contemporânea – da segunda metade do século XX.
Na sequência, faz-se uma síntese dos principais aspectos desta tradição política para, então, voltar-se à análise dos problemas sociais, políticos e econômicos verificados na contemporaneidade. Tais questões se pautam, em sua grande maioria, pelo risco de retrocesso autoritário na política – o que a tradição republicana denominaria tirania – e pelas consequências nefastas da política econômica neoliberal sobre a desigualdade – encarada pela filosofia republicana como uma corrupção do tecido social.
Finalmente, o último passo procura trazer uma síntese do exposto nas duas seções, fixando a importância do desenvolvimento futuro de estudos voltados ao enfrentamento de problemas práticos e específicos com base nas premissas aqui sedimentadas.
2 – As matrizes republicanas
2.1 – A matriz romana
O republicanismo surgiu na história das ideias nos escritos de Aristóteles a respeito da politeia – termo traduzido modernamente como “Constituição”, mas sem o sentido técnico-jurídico desta última. A politeia designava a forma de ordenação social e política da cidade, estando os escritos do filósofo grego preocupados em desenvolver o modelo ideal, porém com vistas à sua exequibilidade no mundo dos fatos.
Com esse intuito eminentemente prático, Aristóteles propõe um regime misto entre duas formas desviantes de governo: a oligarquia – governo dos ricos - e a democracia – governo dos pobres. O arranjo busca, desta forma, integrar e contrapor interesses com a finalidade de produzir acordos que atendam à coletividade.[2]Aristóteles destaca, contudo, que a polis ideal é aquela composta por cidadãos de classe média, na medida em que desigualdades extremas desagregam a comunidade, gerando dominação privada – dominium -, bem como formas desviantes e autointeressadas de governo – imperium.[3]
O termo República surge apenas séculos depois, em Roma, com a recepção do termo grego politeia como res publica – traduzida na sua literalidade como “coisa do povo”. Políbio, historiador Grego exilado por 17 anos em Roma, é responsável por esta migração de ideias, mas foi Cícero quem melhor desenvolveu a noção de República como o melhor regime possível. Cícero entendia como República o grupo de pessoas agregado em razão da mesma lei e comunhão de interesses – consensus iuris.[4]
A noção de República, portanto, já se dividia em dois elementos que irão marcar de uma ou outra maneira o republicanismo nos séculos vindouros: de um lado, uma acepção institucional, mas nem por isso formal, no sentido de que a República deve possuir instituições, leis e tradições legais que devem ser respeitadas por todos, principalmente os detentores de poder político e econômico; já a concepção de cultura comunitária visa à conservação de interesses comuns, que devem estar refletidos no conteúdo das leis e das instituições, denotando a capacidade do povo de identificar seus interesses individuais num referencial coletivo.[5] A reprodução desses elementos no seio social constitui aprendizado coletivo que agrega e comunidade e aperfeiçoa a República.
O fundamento último da República é a liberdade – libertas – do indivíduo, uma vez que o respeito à lei garante uma esfera de proteção da pessoa contra o arbítrio daqueles que detêm o poder político e econômico.
Assim, o republicanismo nasceu como uma proposta de organização ideal da sociedade – com viés primariamente político, mas também social, econômico e cultural -, indo muito além de leituras contemporâneas que o identificam meramente como uma forma específica de governo que se contrapõe à monarquia.
Aliás, a antítese da República na antiguidade era, na verdade, a tirania, que consistia na tomada do governo por um tirano, que subjugava a comunidade e as instituições a seus interesses particulares, em detrimento do respeito às leis que caracteriza a República. Além disso, a tirania corroía o referencial de interesse da coletividade, desagregando o povo pela ausência de horizonte normativo que o mantém unido.
Com o passar dos séculos, a tirania passou a ser considerada a partir de práticas políticas desviantes específicas, em vez de denominar uma ordenação institucional radical. Essas práticas, contudo, continuam a constituir a antípoda do regime republicano, eis que colocam os interesses particulares no centro de determinada ação política. Snyder critica as narrativas que surgiram após a Guerra Fria, no sentido de que a democracia liberal teria se provado a única forma de organização política possível e que a história política não poderia regredir para os regimes autoritários da primeira metade do século XX – o que ele denominou tese da inevitabilidade.[6]
De acordo com o historiador, nada seria mais equivocado. A percepção coletiva de que estamos blindados ao retrocesso criou cidadãos desatentos aos sinais de que as coisas não vão tão bem assim. Com isso, Snyder delineia algumas práticas que corroem as democracias atuais ao fazê-las perderem seus referenciais, descrevendo tal processo como tirania.[7]
Já o pensamento republicano, embora tenha resguardado seu núcleo central de proteção à liberdade, passou por diversas mutações a partir do seu contato com sociedades específicas. O processo de experimentação ao longo da história deu azo não a uma tradição republicana única, mas a diversas tradições, isto é, diferentes formas de pensar e traduzir os elementos e valores centrais do republicanismo tal como ele surgiu na antiguidade.
2.2 - A matriz italiana
A matriz italiana nasceu da necessidade de se pensar as Repúblicas italianas em sua autonomia perante o Sacro Império Romano-Germânico e o papado. A reflexão foi feita à luz do pensamento greco-romano e gerou duas correntes distintas. Num primeiro momento, surgiu o humanismo cívico, capitaneado por Leonardo Bruni, que tinha como eixo central o amor à liberdade articulado com as noções de República e de virtude cívica: a República é a única forma institucional que permite o florescimento da virtude, entendida aqui como a vida ativa – em contraposição à vida contemplativa da Idade Média – e constante engajamento nos assuntos públicos, o que preserva e nutre a liberdade num regime de adesão às leis que contaram com a participação efetiva de todos os afetados. Além disso, para Bruni, os conflitos facciosos na República são sinais de corrupção – perda de referencial normativo comum – e presságio de tirania, o que deve ser evitado a partir da busca pelo consenso e controle do exercício do poder por meio da reafirmação do império da lei.[8]
Maquiavel, a seu turno, fez uma leitura crítica de seus antecessores humanistas, buscando reafirmar alguns aspectos específicos da tradição romana. O pensador florentino, inspirado na República de Veneza e na Roma antiga, defende um modelo de governo misto, que contará com inputs de setores distintos da sociedade. Sua premissa antropológica parte da inevitabilidade do conflito social, diferentemente dos humanistas, devendo este ser absorvido e incorporado nas instituições e nas leis de forma positiva. Com efeito, a divisão de funções em instituições distintas e calcadas em lei constituiriam o único escudo do povo contra a opressão dos poderosos, sendo um embrião da moderna teoria de separação de poderes. Assim, a fricção interinstitucional constituiria a grande virtude da cidade.
O conflito social pode, entretanto, ganhar ares perniciosos quando as instituições não mais conseguem processá-lo. Neste momento, as facções se sobrepõem às instituições e buscam controlá-las em prol de interesses privados, excluindo parte do povo da vida política e subvertendo o conceito de liberdade. Para Maquiavel, a última etapa desse processo de corrupção seria a instauração de uma tirania.[9]
Por fim, a participação política em Maquiavel ganha caráter instrumental, na medida em que necessária para promoção do desejo de liberdade dos cidadãos de não serem dominados pela vontade arbitrária dos detentores de capital político e econômico.[10]
Um adendo quanto às Repúblicas italianas se faz necessário: embora os humanistas e os republicanos clássicos da época enaltecessem o regime político vigente, eles também se mostraram críticos à influência excessiva do poder econômico das famílias e oligarquias ricas da cidade. Esta concentração de poder, contudo, não infirma o caráter extraordinário do engajamento popular na governança política para os padrões daquele período histórico.[11]
2.3 - A matriz inglesa
No período da revolução inglesa do século XVII, alguns pensadores da época buscaram alicerces no republicanismo clássico para criticar o regime monárquico. A tradição constitucional inglesa acoplada ao pensamento clássico originou a matriz inglesa do republicanismo, que tem em James Harrington seu maior expoente. Em importante passagem de seu debate com Hobbes a respeito da liberdade no regime do sultão de Constantinopla vis-à-vis a República de Lucca, Harrington afirma que os cidadãos de Lucca são livres por conta das leis que regem a comunidade e limitam a todos, inclusive os governantes;[12] por outro lado, o sultão em Constantinopla está acima da lei, o que transforma os seus cidadãos em servos em completa dependência e sem liberdade, ainda que o déspota não exerça, de fato, o seu arbítrio.[13]
Semelhante à Maquiavel, Harrington via a instalação do governo misto como solução para a acomodação dos diversos interesses particulares na República. O arranjo institucional de separação de funções no Senado – composto pelos mais experientes – e na Assembleia do Povo seria capaz de evitar a proliferação de facções e interesses corporativos, alcançando, em suma, o interesse da coletividade. Além disso, Harrington era favorável à intervenção estatal da propriedade, reivindicando a aprovação de uma lei de terras, de modo a evitar a acumulação de riqueza que permitisse os mais abastados a corromper agentes públicos e dominasse os demais.[14] Quanto aos agentes públicos, Harrington defendia um sistema de rotatividade – rota - de cargos, de modo a evitar a concentração do poder político.[15]
No entanto, a Commonwealth – Estado Livre – inglesa refletiu pouco as aspirações dos seus defensores republicanos, trazendo forte concentração de poderes no Protetorado de Cromwell, com ares despóticos. Ao final de um período de pouco menos de 20 anos, o Parlamento decidiu restaurar a monarquia com o apoio do exército, encerrando o projeto político republicano. O legado de Harrington, contudo, estará muito presente nas obras neorrepublicanas da matriz contemporânea.[16]
2.4 - A matriz norte-americana
A experiência inglesa republicana, somada aos eventos da Revolução Gloriosa, inspirou o processo de independência e o surgimento da matriz norte-americana de republicanismo. De início, os founding fathers tinham que enfrentar um problema identificado por Montesquieu anos antes: o ideal de liberdade republicano era mais adequado para pequenos territórios, já que a coesão social ficaria cada vez mais instável na proporção em que a comunidade crescesse.
Este obstáculo foi superado pelos norte-americanos por meio de uma engenhosa combinação institucional: de um lado, conforme destacado no Federalista n° 9, a República não seria grande demais, pois constituiria uma Confederação, isto é, uma grande República composta por diversas Repúblicas menores.[17] Esta organização federativa iria se acoplar ao sistema de democracia representativa, que, de acordo com o Federalista n° 10, supriria a impossibilidade fática de se adotar a democracia direta em um vasto território.[18]
A razão subjacente à escolha da democracia representativa decorre da premissa antropológica pessimista e individualista dos norte-americanos à época. Para eles, quanto maior o número de pessoas num órgão deliberativo, maior a chance de corrupção da política por interesses facciosos e pela contaminação das paixões. Assim, a filtragem da representação, de acordo com o Federalista n° 57, levaria à promoção da liberdade e do bem comum, na medida em que os mais sábios seriam eleitos.[19]
Outro ponto importante do arranjo institucional norte-americano é a dispersão do poder, delineada no Federalista n° 47, em Executivo, Legislativo e Judiciário, de modo a evitar concentração que pudesse degenerar o regime político em tirania. Por outro lado, a justificativa no Federalista n° 51 para a instituição de mecanismos de freios e contrapesos segue a mesma premissa antropológica, na medida em que os considera imprescindíveis para “contrapor ambição a ambição”. De acordo com Sandel, diferentemente dos adeptos do pluralismo de grupos de interesse, os federalistas acreditavam que haveria um cancelamento recíproco dos interesses das facções, de modo que os estadistas mais sábios e virtuosos, selecionados na forma do Federalista n° 57, seriam capazes de promover o bem comum.[20]
Ademais, deve se ter em mente a reflexão dos federalistas, análoga aos demais adeptos da tradição republicana,[21] de que estas escolhas institucionais não são inerentes ao republicanismo, constituindo, tão somente, ferramentas contextuais para promover a liberdade como não dominação. Aliás, os anti-federalistas, perdedores no embate institucional,[22] também eram republicanos, mas previam outras formas de freios e contrapesos, dando maior relevância à participação democrática.[23]
Há, ainda, uma preocupação que unia federalistas e anti-federalistas: a economia política da República. Thomas Jefferson foi, decerto, o mais preocupado com o impacto da industrialização nas virtudes dos cidadãos, defendendo uma economia eminentemente agrária, austera, com pouca intervenção bancária e de crédito,[24] acreditando que o comércio de manufaturas da época poderia atiçar os vícios da avareza e da ambição, gerando desigualdade e corroendo os laços da comunidade política.[25]
A polêmica matriz francesa, que deita raízes em Montesquieu, teve Rousseau como expoente mais característico, extremamente mal interpretado pelos protagonistas da revolução francesa.
Montesquieu, que também influenciou bastante a matriz norte-americana, não só elaborou a moderna da teoria da separação dos poderes, mas também possuía uma versão peculiar de virtude. Segundo ele, a virtude, entendida como o amor à lei e à pátria, era o espírito da República e deveria ser a paixão dominante dos seus cidadãos para que este regime não se degenerasse. Contudo, os cidadãos modernos teriam dificuldade de alcançar essa virtude em seus corações, pois tal forma de renúncia e abnegação dificilmente seria implementada em sociedades mais desenvolvidas e complexas. Para ele, portanto, o ideal republicano se daria pela condução de um modo de vida austero, num Estado pequeno, com a economia igualmente simples, sem gerar ambição e ganância em seus cidadãos.[26]
Por sua vez, o pensamento de Rousseau apresentava algumas rupturas com as matrizes precedentes, na medida em que conferia à participação política importância nuclear na sua teoria,[27] além de enfatizar ainda mais os atributos da virtude republicana. De acordo com ele, o povo é o único detentor do poder legítimo, devendo os cidadãos ocupar o Poder Legislativo para a produção das leis básicas, rechaçando a ideia de representação.[28]
Essa associação voluntária dos cidadãos na política geraria uma entidade qualitativamente distinta e artificial, uma “pessoa pública” coletiva, cuja expressão seria a “vontade geral”. Para se manter enquanto tal, o ente coletivo dependia dos seus componentes – os cidadãos -, que deveriam reafirmá-lo por meio de intensa participação na esfera pública, sem intermediação alguma. A comunidade que conseguisse manter este compromisso contínuo viveria uma verdadeira democracia, que, para Rousseau, equivale à República.[29]
Neste ponto, mostra-se importante afastar um equívoco comum: a associação de Rousseau com a democracia direta. Embora a inferência soe plausível à primeira vista, é necessário trazermos a distinção entre soberania e governo no léxico rousseauniano: o povo é o único ente soberano - não podendo ser representado para fins de exercício dessa soberania - e suas decisões enquanto tal se tornam a “vontade geral”, cujos únicos temas devem ser de interesse geral e abstrato. A única exceção a esta última regra seria a eleição de membros do governo – o povo soberano tomaria decisões para eleger representantes para compor a máquina administrativa. Assim, os governantes atuariam por delegação do povo na execução das decisões políticas fundamentais – estas, sim, indelegáveis.[30]
O grande problema surgiu com a absorção dos ensinamentos de Rousseau pelos protagonistas da revolução francesa - seus admiradores confessos -, que, no entanto, exerceram a soberania por representação. No período do terror revolucionário, o conceito de virtude foi radicalizado, interpretado de forma rígida e particularista, resultando no denominado jacobinismo republicano, que ceifou a vida de milhares de pessoas em nome do regime.[31]
Não obstante esta primeira recepção desastrosa, os ensinamentos de Rousseau foram decisivos na formação de movimentos emancipatórios na América Latina no século XVIII e XIX. Muitos deles, inclusive, equipararam República com democracia, no intuito tão somente de extirpar o status de colônia.[32]
Por outro lado, no meio acadêmico, Benjamin Constant foi crítico contumaz de Rousseau e das atrocidades da revolução – que debita na conta da soberania popular.[33] Constant, que não se filia à tradição republicana, foi forte defensor da monarquia constitucional, com a figura do rei detendo o poder moderador.
No que tange ao pensamento de Rousseau, Constant lhe imputou o equívoco de defender, na modernidade, a soberania popular irrestrita. Ao estabelecer a dicotomia entre a liberdade dos antigos – que consistiria na vida ativa e sem intermediação dos cidadãos na atividade política – e a liberdade dos modernos – que estabelece direitos individuais a serem exercidos na vida privada ou, ao menos, sem uma ligação direta com os assuntos públicos -, Constant delineou as bases do pensamento liberal dos anos que se seguiriam.[34]
Do final do século XIX até primeira metade do século XX, houve certo arrefecimento da teoria republicana, que deu lugar à ascensão da ideologia liberal e de seus adversários, notadamente o socialismo e o fascismo.[35]
O republicanismo apenas voltou ao centro dos debates acadêmicos na década de 1970 com importantes obras de John Pocock e Gordon Wood, historiadores do pensamento político que buscaram retratar o elo do pensamento republicano presente nas matrizes inglesas e norte-americanas dos séculos XVII e XVIII.[36]
No âmbito da filosofia política, os maiores expoentes do que se convencionou chamar neorrepublicanismo foram Phillip Pettit e Maurizio Viroli, que propuseram uma teoria para o século XX, ancoradas em bases milenares. Como a teoria política, moral e institucional de Pettit se tornou o paradigma na contemporaneidade para se pensar o republicanismo, muitas das considerações desenvolvidas a seguir terão por base o itinerário lógico da obra daquele filósofo.
Para entendermos Pettit, temos que voltar para 1958, ano do estudo paradigmático feito por Isaiah Berlin sobre a ideia de liberdade. Berlin, louvando-se na dicotomia entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos de Benjamin Constant, delineou os conceitos de liberdade negativa – a margem de atuação que o indivíduo possui sem interferência ou coerção estatal ou de terceiros, preservando sua capacidade de escolha – e liberdade positiva – a capacidade de autodomínio e de o indivíduo ser mestre de si e de seu destino. De acordo com sua exposição, que muito reflete o pensamento liberal no contexto do pós-guerra, a liberdade negativa, cuja tradição remonta à Hobbes, seria mais desejável frente à liberdade positiva, à qual apresenta sérias ressalvas em razão de propiciar o autoritarismo estatal, seja ele de viés perfeccionista ou paternalista.[37]
Com o passar do tempo, os filósofos políticos afiliados à corrente republicana apresentaram duras críticas[38] à classificação dicotômica de Berlin e Constant, que era predominante no imaginário acadêmico e político. Com efeito, Pettit, Viroli e Skinner, cada um à sua maneira, destacam o reducionismo científico de Berlin e Constant, o qual não resiste a uma cuidadosa análise da historiografia ocidental. Isto porque a liberdade republicana constituiria uma terceira modalidade, que não se confunde com as demais, com raízes longínquas, e cujo enfoque é a não dominação como condição necessária à autonomia individual.[39]
Segundo Pettit, a liberdade negativa consiste na não interferência de outrem, seja ele um agente privado ou estatal, sendo que esta liberdade de ação sempre seria restringida com a intervenção de terceiros, qualquer que fosse seu fundamento. Já a liberdade republicana envolveria a não dominação, que é violada toda vez que um terceiro – seja ele o Estado ou um indivíduo – interfira ou tenha capacidade de interferir de modo arbitrário na esfera de liberdade do agente.[40]
A concepção republicana de liberdade gera duas consequências importantes se comparada com a liberdade negativa: ela é mais difícil de se perder, na medida em que permite interferências não arbitrárias, como a atuação coercitiva do Estado com base numa lei aprovada regularmente. Por outro lado, a liberdade como não dominação será violada ainda que não haja interferência, mas o indivíduo se encontre em estado de sujeição ou dependência, caracterizado na constante possibilidade de o Estado ou outro sujeito interferir arbitrariamente na sua conduta. Em outras palavras, um escravo, mesmo diante de um mestre que respeitasse todos os seus desejos, não seria livre, de acordo com a liberdade republicana.[41]
A ideia de arbitrariedade é, pois, central à liberdade como não dominação, decorrendo da impossibilidade de reconduzir as razões de determinada conduta aos interesses dos potencialmente afetados, mas sim ao mero capricho de determinado grupo ou pessoa.[42] Como dito, a conduta arbitrária pode decorrer tanto de uma ação estatal – necessitando de mecanismos institucionais de freios e contrapesos, bem como de accountability social e participação democrática para redução de concentração de poder -, quanto de um ato privado da dominação – ensejando intervenções coercitivas estatais, ainda que não arbitrárias, em relações sociais com o intuito de reduzir as assimetrias de poder entre agentes privados.
Destas características centrais à liberdade republicana, decorre outro aspecto diferenciador central à autonomia liberal: a sua sociabilidade. A liberdade republicana pressupõe a alteridade e a existência em sociedade, não podendo ser interpretada como uma liberdade do indivíduo de forma atomizada. Por esta razão, o republicanismo é capaz de incorporar na ideia de dominação as estruturas de poder enraizadas na sociedade que interferem tanto na relação entre agentes privados, quanto entre o indivíduo e o Estado.
Neste ponto, a subjetividade republicana consegue captar os efeitos perniciosos da mera possibilidade de coerção arbitrária na esfera individual, podendo ir além da interferência perpetrada por uma pessoa específica. Dito de outra forma, estruturas ideológicas de poder reproduzidas no seio social com tamanha capilaridade ao ponto de o indivíduo naturalizar determinado status de sujeição são igualmente consideradas violações à liberdade como não dominação.
Outro ponto frisado pelos neorrepublicanos é o seu caráter contextual. As tradições estão unidas por um fio condutor histórico cujo elemento comum consiste em evitar a dominação política e privada, guardando entre si certa dose de pragmatismo na engenharia institucional.[43] Como bem pontua Viroli, o republicanismo, diferentemente do liberalismo, não concebe os direitos como universais e inatos ao indivíduo, conferindo, em seu lugar, espaço para a constante luta política por não dominação, manutenção e ampliação dos direitos duramente conquistados.[44]
De acordo com Pettit e Viroli, o fato de o republicanismo acentuar a necessidade de luta para manutenção de direitos e instituições não tolhe a condição negativa da liberdade republicana. Neste aspecto, a matriz contemporânea se afasta do humanismo cívico, aproximando-se da corrente romana – daí a liberdade republicana também ser denominada neorromana por Skinner – na medida em que a participação política ocorre de maneira instrumental à promoção da não dominação.[45] Com isso, os neorrepublicanos afastam a crítica de que a liberdade republicana seria inatingível na atualidade por demandar excessivamente do indivíduo na esfera pública.
Para os neorrepublicanos, a corrente cívico-humanista não é a melhor tradição a se cultivar nos dias de hoje, por acarretar perfeccionismo moral indesejável da perspectiva normativa e impraticável no plano descritivo. De um lado, seu apego à virtude na participação política e como um valor comunitário pode levar a autoritarismos, tais como os observados nos períodos de jacobinismo radical ou em algumas manifestações xenófobas na França contemporânea. Por outro lado, numa sociedade hipercomplexa, erigir a participação na esfera pública como a mais nobre das aspirações ressoa como atavismo caricatural impossível de se reproduzir na contemporaneidade.
Para cumprir tal desiderato, os neorrepublicanos endossam a percepção de que a existência de pontos de veto institucionais, calibrados por uma composição plural, relativamente autônoma a ingerências externas extraoficiais e dotados de capacidade deliberativa e normativa, é essencial à manutenção da liberdade individual na sociedade.
Nada obstante, isto não significa desprezo à virtude na matriz contemporânea. Ao revés, os neorrepublicanos rememoram que, para Maquiavel, a virtude da República consistia exatamente na capacidade de processar os seus conflitos mediante os embates institucionais. Assim, eles se afastam apenas da concepção do humanismo cívico e da orientação francesa, segundo a qual a virtude demandaria uma grande renúncia dos interesses privados por parte do indivíduo.
Aliás, de acordo com a matriz contemporânea, em momento algum o republicanismo demanda uma visão transcendental e homogênea de virtude e de interesse público. Tal perspectiva é comum em regimes totalitários e fascistas que representam a negação da República, na medida em que esmagam o indivíduo, colocando-o a serviço do Estado, que toma proporções gigantescas no campo ético e moral da sociedade. Lado outro, a comunidade política contemporânea, imersa no fato do pluralismo, contempla várias visões possíveis de vida boa.[46]
Quem melhor esclarece a questão, dentro da tradição republicana, é Hannah Arendt[47], ao afirmar que o totalitarismo não estabelece, tal como Cícero prescreveria, seu próprio consensus iuris, mas, ao mesmo tempo, não se identifica com a tirania, já que não advoga pela ausência das leis e a arbitrariedade. O totalitarismo alude à uma lei transcendental,[48] que busca uniformizar os indivíduos, tornando-os a imagem e semelhança da lei. Com isso, há uma desertificação do espaço público, já que o indivíduo se homogeneíza e se torna um só com o Estado: é o homem gigantesco arendtiano. Esta inversão axiológica e abafamento do pluralismo é a negação do republicanismo.[49]
Assim, é possível concluir que o republicanismo – seja qual for sua matriz - é pluralista, pois se pauta, em última análise, na liberdade como não dominação do indivíduo, concebida no seu contexto histórico e social, não possuindo pretensões homogeneizantes de regimes autoritários.
3 - A importância do Republicanismo para o século XXI
Após narrar a ubiquidade do pensamento republicano na história das ideias, fica evidente que qualquer esforço de delimitação conceitual ganhará contornos abstratos e impressionistas.
Feita esta ressalva, o núcleo central do republicanismo não mudou muito desde Cícero, de modo que podemos formulá-lo da seguinte forma: a República é a comunidade política[50], formada mediante laços de interesse comum, na qual cada cidadão desfruta da liberdade como não dominação.
Deste conceito, extraímos condições políticas, econômicas, institucionais, sociais e psicossociais da República, que estão intimamente relacionadas entre si. A subjetividade republicana pressupõe que o cidadão perceba a política não como um esquema que serve para atender e perpetuar os poderosos no poder, mas como uma empreitada coletiva aberta a todos. Para isso, é necessário, sob a perspectiva institucional, que os representantes eleitos reflitam, na sua composição, o tecido social, bem como, sob uma lógica mais difusa, que as demandas formuladas por movimentos sociais tenham a devida capilaridade na arena política, isto é, que os representantes se pautem pela responsividade. Em outras palavras, é preciso garantir uma composição inclusiva nas instituições e que estas pautem sua conduta por meio de procedimentos abertos, transparentes e participativos.
Ainda que estes mecanismos sejam condições necessárias para conter o arbítrio estatal, é preciso que haja outros canais para contestar determinada decisão política, tal como não poderia deixar de ser numa sociedade democrática pautada pela provisoriedade e reversibilidade das decisões políticas. Disto se extrai a importância de que o arcabouço estatal conte com um concerto institucional de freios e contrapesos, garantindo que a contestação ocorrerá dentro das regras pré-estabelecidas.
Todas as condições delineadas até aqui atenderiam a um paradigma liberal. Com efeito, o liberalismo foi muito bem-sucedido em propor uma ideologia de não interferência que contenha o imperium, isto é, o poder arbitrário do Estado. Na sua gênese, vinculada a ascensão da burguesia, a formulação de direitos individuais inatos e universais não era nociva ao seu projeto de poder, na medida em que se encaixava perfeitamente no modelo de Estado liberal que atua tão somente para proteger esses direitos individuais, numa feição eminentemente negativa. Como o direito de propriedade – o mais prestigiado à época – só atendia àqueles que a detinham da intervenção arbitrária do Estado e de terceiros, não havia óbices em formulá-lo em termos gerais e abstratos.[51]
Ocorre que a gramática liberal na sua pretensa universalidade trazia imanente a si o potencial para sua superação. A ideia de liberdade e igualdade garantida pelo liberalismo, como bem destaca Peces-Barba, não correspondia à realidade, o que fomentou a luta política pela generalização de direitos aos excluídos sociais: primeiro pelos direitos políticos de participação, depois por meio de direitos sociais e econômicos a uma prestação estatal.[52]
Com isso, houve uma cisão no liberalismo no século XX. De um lado, temos os libertários, representados por Hayek, Friedman e Nozick, adeptos de uma visão de liberdade como não interferência e que negam um papel prestacional do Estado.[53] Já os que buscaram incorporar a justiça social defendem um liberalismo igualitário, tal como proposto por Rawls, segundo o qual a liberdade possui prioridade léxica, mas que deve ser modulada mediante aplicação do princípio da diferença.[54]
Entendemos, contudo, com Viroli, que não é necessário suavizar o liberalismo mediante predicados que salientam outros valores sociais desejáveis além da liberdade como não interferência. Ao revés, há uma tradição antiga que não só é incompatível com o libertarianismo, como também não necessita desapegar de uma teoria unitária de valor: trata-se do republicanismo.[55]
O conceito republicano de liberdade como não dominação não é direcionado tão somente à estrutura básica da sociedade, entendida esta como sinônimo de instituições básicas do Estado. Pelo contrário, desde Aristóteles já se via preocupação do efeito corrosivo na unidade da pólis que a desigualdade econômica pode acarretar, violando, na gramática republicana, a própria liberdade.
Chegamos aqui às condições econômicas da República – evitar o dominium, isto é, a dependência econômica e a concentração de poder privado. A desigualdade econômica tem sérias repercussões no aspecto psicossocial, degenerando o convívio comunitário: Maquiavel, Harrington e Jefferson destacavam que a opulência econômica de uns cria facções, gerando ambição e arrogância nos mais abastados, ao passo que os dominados nutrem ressentimento e raiva.[56]
Na contemporaneidade, houve alguns cientistas políticos e filósofos que se debruçaram sobre a questão numa ótica republicana. Até mesmo Pettit, que pautou seus trabalhos na construção de um arcabouço teórico do republicanismo, quando convidado para avaliar as políticas públicas espanholas, considerou o aspecto mais delicado no mercado de trabalho a precariedade e a transitoriedade dos empregos.[57]
Outros tentaram abordar a questão da desigualdade na República de modo mais direto. Spitz procurou enfrentar a compatibilidade do livre mercado com a liberdade como não dominação, concluindo que a inexistência de mecanismos de correção dos efeitos dos mercados expõe os mais fragilizados nas relações econômicas ao risco constante de perder tudo e de não dispor de meios para fazer valer os seus direitos.[58]
A assertiva pode soar extremada, mas faz sentido sob uma ótica republicana: num cenário hipotético, a escolha em trabalhar em condições precárias sem leis trabalhistas nem cobertura para eventual desemprego revela verdadeiro estado de sujeição.
Dagger, em caráter propositivo, traz a ideia de uma economia cívica – tributar herança e consumo progressivamente, criar uma espécie de renda mínima e reformar o ambiente de trabalho, de modo a torná-los menos verticalizados e promover um senso de pertencimento à comunidade. O mais interessante na proposta, ainda que não desenvolvida completamente, é a pretensão de modular a lógica de eficiência do mercado para outros fins públicos – o que ocorreria, por exemplo, com a maior horizontalização das relações de trabalho.[59]
Sandel, a seu turno, já percebia em 1996 que as coisas não iam bem. Após constatar que a desigualdade norte-americana de 1970 a 1990 atingiu patamares semelhantes aos dos anos 1920, o professor de Harvard formulou um argumento tipicamente republicano contra a desigualdade extrema: a corrupção gerada no caráter dos ricos e dos pobres destrói a união do tecido social responsável pelo autogoverno, já que uma sociedade de extremos não possui o espírito de amizade republicano.[60]
Além disso, espaços públicos comuns ficam sucateados, na medida em que os ricos passam a frequentar clubes, escolas e condomínios privados, formando mini-enclaves homogêneos e atomizados. Neste sentido, o processo de gentrificação das cidades, que passam a ser organizadas em grandes feudos de segregação racial e econômica com condomínios fechados no lugar de parques públicos, contribui para o processo de desagregação social.[61]
A diminuição da desigualdade, para Sandel, viria com maior investimento público em educação e retreinamento profissional. Diante do gap econômico, contudo, os ricos não se veem compartilhando um futuro comum com seus concidadãos, o que torna dificultoso o financiamento de investimentos mediante maior taxação.[62]
No tocante ao crescimento de espaços privados paralelamente ao sucateamento do público, alguns filósofos políticos frisam a importância de retomarmos a coisa pública – com ênfase no “res” da res publica - para sustentação da subjetividade republicana. Para Honnig, as coisas públicas não só enriquecem, mas tornam indispensáveis a vida democrática, pois sem elas a democracia se reduz a procedimentos repetitivos, desprovidos da eficácia integrativa da identidade comum.[63]
Tais coisas públicas não são, necessariamente, propriedades estatais: podem ser geridas de forma híbrida ou privada, desde que com abertura ao público. O importante é a capacidade de construir e contestar estes símbolos da vida democrática, tais como parques nacionais, escolas públicas e cemitérios públicos. Assim, caso diminuamos o caráter político das coisas públicas em prol de uma lógica economicista, perde-se, também, uma parte da identidade do cidadão, na medida em que a prática diária de preservar, aumentar e contestar as coisas públicas compõe o que nos une, divide e, enfim, traz uma noção de self político compartilhado.[64]
Como descrito na introdução, o cenário é de tempestade perfeita para a retomada da tradição republicana: não apenas a desigualdade econômica chegou a patamares insustentáveis, como também temos, em muitos casos, uma relação parasitária entre dominium e imperium, extremamente nociva à liberdade como não dominação. É dizer: se muitos republicanos se ocuparam do risco de o combate da dominação privada pelo Estado acarretar a dominação pública, nesta quadra histórica temos os agentes econômicos e políticos cooperando para se perpetuar no poder.
No mundo, o fenômeno vem sendo estudado como fruto da implantação da ideologia neoliberal na década de 1980, consagrada nas dez regras do Consenso de Washington,[65] mas cujos pais intelectuais são Hayek e Friedman – defensores do Estado mínimo e da liberdade como não intervenção. O produto desse conjunto de políticas adotadas há 40 anos gerou sérias desigualdades econômicas e a percepção pelos indivíduos de que as instituições de seus países não estão servindo ao povo, mas sim às elites. Assim, o aprofundamento do neoliberalismo – com elevação da desigualdade num patamar insustentável – vem dando azo à ascensão de demagogos oportunistas com discursos anti-establishment, mas que, em verdade, nada mais são do que a consagração da plutocracia no poder, por meio de governos de caráter altamente autoritário e repressor.[66]
A eleição de demagogos e a implantação de suas políticas autoritárias e desrespeitosas às instituições vêm sendo tratadas por uma vasta literatura de crise e retrocesso democrático, denominando essas posturas anti-institucionais – mas não contrárias às leis vigentes – de constitucionalismo abusivo. Embora seja importante entender esse processo e buscar mecanismos para evitar que os regimes políticos se degenerem em tiranias ou totalitarismos, é ainda mais necessário atacar as condições materiais e ideológicas que nos fizeram chegar até aqui.
Neste sentido, é preciso enfrentar as peças-chaves do neoliberalismo econômico que se entrincheiraram na política, tais como a austeridade, a privatização, a desregulamentação e a liberalização total da economia.[67] O resultado tem sido maior precarização dos vulneráveis, maior concentração de poder nas elites econômicas e aumento de desigualdades. É chegado o momento, portanto, de se recorrer à lei como uma ferramenta de libertação diante do poder econômico concentrado, tal como o faz o pensamento republicano, por meio de seu léxico de liberdade e de sua forma de enxergar a sociabilidade ideal.
4 - Conclusão
Neste estudo, buscou-se expor as matrizes republicanas através do tempo a partir da explicitação dos seus traços característicos. Tal metodologia teve propósito claro: apresentar as vantagens comparativas da teoria republicana face, principalmente, a tradição liberal.
Ao tratar em linhas gerais dos principais problemas que afligem as sociedades contemporâneas, restou evidente a pertinência de sua leitura sob a chave republicana da liberdade como não dominação. Em outras palavras, a concentração do poder econômico e sua perpetuação mediante laços com o poder político é o elo comum destas questões, sendo certo que a filosofia republicana possui o léxico e o horizonte normativo adequado para enfrentá-las.
Diante deste patente potencial prescritivo, estão lançadas as bases para uma fecunda agenda de pesquisa na teoria do direito, mormente no direito público, qual seja, a abordagem dos mecanismos institucionais específicos que sustentam referido estado de coisas nocivo à emancipação republicana.
5 - Referências
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[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Introdução. In: ________ (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. pp. 12-13
[2] CARDOSO, Sérgio. Origens: Politeia. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p 265
[3] DAGGER, Richard. Republicanism. In: KLOSKO, George [ed]. The Oxford Handbook of the History of Political Philosophy. Oxford University Press, 2011. p. 705. LABORDE, Cécile. Republicanism. In: FREEDEN, Michael; SARGENT, Lyman Tower; MARC STEARS. The Oxford Handbook of Political Ideologies. Oxford University Press, 2015. pp. 616-620.
[4] SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Introdução. In: ________ (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 12
[5] BIGNOTTO, Newton. Tirania e República. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p 409.
[6] SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania: Vinte Lições do século XX para o presente. Companhia das Letras, 2017. pp. 73-77.
[7] Ibid.
[8] PANCERA, Gabriel. Matriz Italiana. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. pp. 238-240.
[9] Ibid. pp. 242-243.
[10] Ibid. p. 241. VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002, pp. 04-06.
[11] Ibid. pp. 22-23
[12] Harrington definia seu modelo ideal a partir da famosa expressão “governo de leis, e não de homens”, ao passo que reservava à governança hobbesiana o “governo de homens, e não de leis”. Ver: DAGGER, Richard. Republicanism. In: KLOSKO, George [ed]. The Oxford Handbook of the History of Political Philosophy. Oxford University Press, 2011. p. 707.
[13] VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002. p. 50-51
[14] PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. pp. 32 e 162-163
[15] DAGGER, Richard. Republicanism. In: KLOSKO, George [ed]. The Oxford Handbook of the History of Political Philosophy. Oxford University Press, 2011. p.707
[16] BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Matriz inglesa. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. pp. 234 e 236.
[17] DAGGER, Richard. Republicanism. In: KLOSKO, George [ed]. The Oxford Handbook of the History of Political Philosophy. Oxford University Press, 2011. p. 707.
[18] Ibidem. p. 702
[19] PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. p. 221
[20] SANDEL, Michael J. Democracy’s Discontent: America in search of a public philosophy. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. p 131.
[21] PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. p. 240
[22] John Adams, republicano e anti-federalista, era fervoroso defensor do modelo de constituição mista. Ver: PAIXÃO, Cristiano; BIGLIAZZI, Renato. Matriz norte-americana. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 247
[23] Esta era a grande cisão entre os dois grupos: os federalistas prestigiavam meios endógenos, ao passo que os anti-federalistas defendiam um controle exógeno. GARGARELLA, Roberto. Latin American Constitutionalism 1810-2010: the engine room of the Constitution. Oxford University Press, New York, 2013. p. 59
[24] Jefferson comparava as condições de sujeição dos empregados à discrição dos empregadores tal como aquela dos escravos aos seus patrões, na medida em que não possuíam autonomia em recusar os seus comandos face a gravidade das consequências em suas vidas. cf. PETTIT Just Freedom: a moral compass for a complex word. W.W. Norton & Company, 2014. pp. 19-20. Na linha da busca por igualdade, a retórica republicana exerceu importante influência nos movimentos socialistas do século XIX, cf. PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. pp. 140-143.
[25] SANDEL, Michael J. Democracy’s Discontent: America in search of a public philosophy. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. pp. 124, 133-167
[26] VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002. pp 69-71.
[27] Pettit entende que a relação do republicanismo com a democracia é instrumental, na medida em que este regime se mantém como o mais apto a promover a liberdade como não dominação. Em virtude da centralidade que Rousseau confere à participação democrática, Pettit prefere inseri-lo na chave da teoria democrática. cf. PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. p. 19 e 30
[28] NASCIMENTO, Milton Meira do. Matriz francesa. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 215.
[29] Ibid. p. 216.
[30] Ibid. pp. 217-218.
[31] Ibid. p. 218.
[32] Para um levantamento histórico dos movimentos brasileiros no Rio de Janeiro e na Bahia que se apropriaram do léxico rousseauniano em busca da emancipação. Ver: STARLING, Heloisa. Ser Republicano no Brasil colônia: a história de uma tradição esquecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. pp. 177-239.
[33] NASCIMENTO, Milton Meira do. Matriz francesa. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 218.
[34] Ibid. p. 219.
[35] No entanto, é curioso notar que no período anterior à crise de 1929, um grupo de intelectuais norte-americanos, notadamente John Dewey e Louis Brandeis, formulou críticas ao poder econômico numa gramática tipicamente republicana de promoção da autonomia individual como não dominação. Sobre o ponto, cf: RAHMAN, K. Sabeel. Democracy against domination. Oxford University Press, New York, 2016. pp. 11-13 e 92-96.
[36] LABORDE, Cécile. Republicanism. In: FREEDEN, Michael; SARGENT, Lyman Tower; MARC STEARS. The Oxford Handbook of Political Ideologies. Oxford University Press, 2015. pp. 602-607. MAIA, Antonio Cavalcanti; MENEZES, Tarcísio. Republicanismo contemporâneo, Constituição e política. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009. p. 41
[37] Ibid. pp. 32-36.
[38] Pettit e Viroli entendem que a noção de liberdade negativa, na sua pretensa abstração, serviria para legitimar um projeto de poder e desmobilizar politicamente os que quisessem questionar o seu status quo. Ver: PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. pp. 30-50. VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002. pp. 40-43.
[39] MAIA, Antonio Cavalcanti; MENEZES, Tarcísio. Republicanismo contemporâneo, Constituição e política. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009. pp. 34-35
[40] PETTIT, Philip. The Republican idea of freedom. In: MILLER, David. The liberty reader. Routledge, 2001. pp. 224-227.
[41] Ibid. pp. 227-231.
[42] PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. pp. 55-61.
[43] Aliás, na matriz contemporânea, há uma grande diferença entre a aceitabilidade da teoria normativa substantiva do republicanismo – a liberdade como não dominação – e da teoria normativa institucional apta a maximizar a promoção da liberdade republicana. Embora a maior parte dos filósofos republicanos endossem o monismo valorativo da liberdade como não dominação proposto por Pettit, a modelagem institucional por ele aventada é bastante questionada. A distinção entre as duas dimensões de implementação da teoria republicana pode ser aprofundada em: WATKINS, David. Institutionalizing freedom as nondomination: Democracy and the role of the state. Political Science Faculty Publications. n° 50. pp. 2-5 e 24-30. Para um importante trabalho que demonstra tal falta de consenso a partir da exposição das diferentes propostas institucionais dos maiores expoentes contemporâneos do republicanismo – Pettit, Pocock e Bellamy –, cf: SILVA, Ricardo. Non-domination and Political Institutions: the contested concept of Republican Democracy. Brazilian Political Science Review, n° 09, 2015, pp. 3-38. pp. 32-35
[44] VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002. pp. 7, 60-61
[45] Ibid. pp. 45-49. PETTIT, Phillip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford University Press, Oxford, 2002. p. 27
[46] MAIA, Antonio Cavalcanti; MENEZES, Tarcísio. Republicanismo contemporâneo, Constituição e política. In: SARMENTO, Daniel. Filosofia e Teoria Constitucional Contemporânea. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2009. pp. 41 e 49-52
[47] Hannah Arendt é filósofa republicana, mas não se encontra na mesma linha dos demais da matriz contemporânea, aproximando-se de uma visão agonística de republicanismo, defendendo um humanismo cívico. Ibid. pp. 41-42.
[48] Arendt se refere à lei da história, invocada pelo regime comunista, e a lei da natureza, avançada pelo regime nazista. Quanto ao ponto, ver: ADVERSE, Helton. Totalitarismo e República. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Orgs.). Dicionário da República: 51 Textos Críticos. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2019. pp. 417-418.
[49] Ibid. pp. 419-420.
[50] Como ficou evidente a partir da leitura histórica, a República é mais do que uma forma de governo, sendo, em verdade, um modus vivendi de dada sociedade, englobando as relações entre Estado-cidadão e destes entre si no âmbito privado.
[51] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 80-86
[52] PECES-BARBA, Gregorio. Curso de derechos fundamentales: teoría general. Madrid: Universidad Carlos III de Madrid, 1995-I. pp. 154-173.
[53] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 214-216.
[54] Ibid. pp. 206-210.
[55] VIROLI, Maurizio. Republicanism. Farrar, Strauss and Giroux. New York, 2002. pp. 35-43.
[56] Ibid. pp. 66-67 e 75-78. SITARAMAN, Ganesh. The Crisis of the middle-class Constitution. Knopf, New York. 2017. pp. 53-76
[57] MARTÍ, José Luis; PETTIT, Philip. A political philosophy in public life: civic republicanism in Zapatero’s Spain. Princeton University Press, Princeton, 2010. pp. 75-81.
[58] SPITZ, Jean-Fabien. Le marché est-il une institution républicaine? In: Revista do Centro de Estudos Humanísticos, n° 24/2, 2010. pp. 185-186
[59] DAGGER Richard. Neo-republicanism and the civic economy. In: Politics, Philosophy & Economics. 5(2), 2006. pp. 165-170.
[60] SANDEL, Michael J. Democracy’s Discontent: America in search of a public philosophy. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. pp. 330
[61] Ibid. pp. 334-336.
[62] Ibid.
[63] HONIG, Bonnie. Public Things: democracy in disrepair. Fordham University Press. New York, 2017. Pp. 90-91
[64] Ibid. pp. 4-5 e 13-36.
[65] De acordo com Sitaraman, o Consenso de Washington consistiu em diretrizes de redução do Estado na economia direcionadas inicialmente a países da América Latina na década de 1980, que depois se expandiu por instituições como Banco Mundial e FMI com o intuito de impor regras estritas para realização de empréstimos internacionais, regras estas que impunham uma verdadeira camisa de força na capacidade estatal de promover qualquer transformação social significativa. SITARAMAN, Ganesh. The Great Democracy: how to fix our politics, unrig the economy, and Unite America. Kindle ed. Hachette Book Group, New York 2019. Posições 355-441.
[66] BROWN, Wendy. In the Ruins of Neoliberalism. Columbia University Press. New York, 2019. pp. 2-22.
[67] SITARAMAN, Ganesh. The Great Democracy: how to fix our politics, unrig the economy, and Unite America. Kindle ed. Hachette Book Group, New York 2019. Posição 435.
mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Assessor Jurídico Especial na Secretaria de Estado da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Rafael Cascardo Cardoso dos. A tradição republicana e seu potencial emancipatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57291/a-tradio-republicana-e-seu-potencial-emancipatrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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