Resumo: O presente trabalho busca examinar de maneira descritiva e prescritiva a política pública de fomento público adotada pelo Estado do Rio de Janeiro nos últimos anos, consistente na concessão de benefícios fiscais de ICMS. Para tanto, faz-se uma exposição do estado da arte do fomento na literatura jurídica brasileira, bem como das diversas concepções a respeito do papel do Estado na ordem econômica à luz da doutrina contemporânea de direito administrativo. Em seguida, passa-se a examinar os aportes da ciência política e da teoria da captura estadunidense com o escopo de averiguar sua possível contribuição para a governança do fomento público. Por fim, aborda-se a prática adotada pelo Estado do Rio de Janeiro na sua política de fomento público à luz da atuação correspondente dos órgãos de controle e dos standards oferecidos ao longo do artigo.
Palavras-chave: fomento público; Estado promocional; capitalismo de laços
Abstract: The present work seeks to analyze the Rio de Janeiro State’s public policy of conceding ICMS tax benefits as public grants. For this purpose, it is shown the state of art of public grants in Brazilian legal literature, as well as the different conceptions regarding the role of the State in the economy under the lights of the contemporary administrative legal doctrine. Thereafter, it aims to examine the inputs of political science and the theory of capture so that it contributes to public grant’s governance. At last, it seeks to investigate the approach adopted by Rio de Janeiro States on its public grants through the corresponding controlling actions of independent audit institutions and the standards offered along this work.
Keywords: public grants; promotional State; crony capitalism
Sumário: 1 – Introdução: o fomento público entre a subteorização e a sobreaplicação; 2 – O ethos da subsidiariedade e o fomento como alternativa – heurísticas do mainstream do direito administrativo; 3 – Capitalismo de Laços e Teoria da Captura – por um Fomento Público realista; 4 – A experiência do Estado do Rio de Janeiro na concessão dos incentivos fiscais à luz do critério formal da transparência; 5 – Notas conclusivas; 6 - Referências
1 – Introdução: o fomento público entre a subteorização e a sobreaplicação
As técnicas de Estado de intervenção no domínio econômico, mormente as ferramentas postas à disposição pelo direito administrativo, são muitas vezes estereotipadas ao sabor ideológico do jurista. Neste sentido, a preferência pela intervenção direta do Estado na economia, por meio de empresas estatais, é tida como prática menos liberal, daí porque a doutrina majoritária do direito administrativo fixou standard não-escrito da ‘subsidiariedade’ no art. 173 da Constituição da República[1] como condição para a postura mais intervencionista.
Por outro lado, o dogma do livre-mercado há muito caiu em desuso, seja pela clássica formulação a respeito do papel do Estado para corrigir as falhas de mercado,[2] seja pela promoção de fins estabelecidos pelo poder constituinte originário e derivado,[3] seja pela constatação de que a parceria entre o Estado e a iniciativa privada pode lograr obter dividendos socioeconômicos que não conseguiriam alcançar separadamente.[4]
O cenário se mostra propício, portanto, para instrumentos que buscam uma sintonia fina entre o dinamismo da iniciativa privada e o robusto aparato estatal: entra em cena o fomento público com a promessa de aparar as arestas de pontos cegos recíprocos.[5] A dogmática do direito administrativo, composta muitas vezes por manuais que irão moldar a formação generalista do futuro servidor público, enaltece a figura do fomento, inserido no paradigma do Estado promocional, que reconhece suas limitações de atuação direta, ao mesmo tempo em que valoriza a sistemática de metas e incentivos para a iniciativa privada.
O mesmo pode ser dito para monografias específicas a respeito da intervenção do Estado na economia. Com efeito, o fomento público tem presença garantida na caixa de ferramentas do publicista contemporâneo. Há pouca atenção para as pré-condições econômicas e institucionais do seu sucesso prático, bem como para a constante necessidade de seu monitoramento efetivo: é como se o “nome da coisa”, encantado por um feitiço, pudesse produzir os resultados prometidos pela sua mera exortação.
O presente artigo buscará lançar luzes sobre a aparente contradição entre teoria e prática do fomento. Num primeiro momento, mostrar-se-á necessária a exposição da dogmática tradicional a respeito do tema. Isto porque, como já dito, a formação generalista do servidor público se louva nesta literatura inicial e, muitas vezes, o apelo retórico que o fomento possui afasta a necessidade de recurso a materiais específicos, mormente no dia a dia do varejo do controle interno de legalidade da burocracia estatal.
Assim, embora carecermos de pesquisas empíricas específicas para confirmar esta impressão, não é leviano afirmar que o servidor público, permeado por incentivos externos da iniciativa privada e internos da agenda política do gestor público – interessados por razões nem sempre republicanas na concessão do fomento -, não encontra nesta literatura razões jurídicas para aprofundar seu controle de legalidade.[6]
Na sequência, apresentaremos um contraponto a este ethos jurídico dominante. Embora a crítica central no âmbito jurídico venha da obra de José Vicente Santos de Mendonça, há elementos a serem agregados da teoria da captura de viés estadunidense, bem como percepções socioinstitucionais oferecidas pelo conceito de crony capitalism, importado no Brasil na ideia de capitalismo de laços.
Uma vez feita a leitura crítica do fomento, buscaremos trazer alguns elementos constitutivos materiais, formais e procedimentais que devem estar presentes na sua concessão. Como se verá, a observância destes requisitos é essencial para a preservação do interesse público, na medida em que o fomento concedido de forma onerosa e por prazo determinado se incorpora no patrimônio jurídico do particular, não podendo ser revogado, de sorte que o planejamento na sua concessão é cabal para reduzir eventuais prejuízos.
As impressões esboçadas na análise teórica do fomento serão postas a teste no exame dos benefícios fiscais concedidos pelo Estado do Rio de Janeiro. Com isso, faz-se recortes espaciais – Estado do Rio de Janeiro – e materiais – na categoria do fomento público, serão analisados somente benefícios fiscais.
A narrativa dos fatos não será unidirecional. A despeito de o fio condutor exposto pelos veículos de comunicação endossar a visão dos órgãos de controle – Tribunal de Contas e Ministério Público – e do Judiciário, traremos igualmente os argumentos de órgãos do Poder Executivo estadual para fundamentar a concessão dos malfadados benefícios.
Na mesma toada, numa necessária aproximação entre teoria e prática, empreenderemos uma análise corretiva dos benefícios fiscais concedidos no Estado do Rio de Janeiro, com especial atenção à transparência e accountability republicana.
Por fim, algumas notas conclusivas serão esboçadas, ainda que em tons impressionistas, com o escopo de traçar algumas lições para a governança pública do futuro.
2 – O ethos da subsidiariedade e o fomento como alternativa – heurísticas do mainstream do direito administrativo
Não há como pautar o ufanismo do fomento público na literatura convencional sem antes abordar sua premissa teórica – e, ao fim e ao cabo, ideológica -, calcado na ideia de subsidiariedade.
O princípio da subsidiariedade possui raiz teológica, tendo sido suscitado pela primeira vez na Encíclica Papal Centesimus Anno, com o nobre propósito de apresentar um contraponto à ascensão de Estados fascistas totalitários, articulando a ideia de descentralização como a ratio subjacente para a solução dos conflitos sociais.
Não obstante a origem bíblica, a subsidiariedade teve aderência no direito público ao se articular com algumas noções da filosofia política contemporânea, notadamente com o pluralismo social endossado pelo libertarianismo e pelo liberalismo político, em combate a visões organicistas de Estado.[7]
Aqui podemos constatar duas inconsistências. Em primeiro lugar, a subsidiariedade tal como idealizada em sua origem pretende combater uma visão política de Estado. É evidente, por um lado, que os sistemas econômicos e políticos não são herméticos,[8] sendo possível conjecturar que uma pauta autoritária no âmbito político irá refletir uma tendência centralizadora e planificadora no domínio econômico. Por outro, a realidade política vem mostrando que tal correlação nem sempre se concretiza, podendo haver governos de tendências autoritárias no domínio político e que apoiam o livre mercado.
Para além deste salto epistêmico, e como consectário da observação anterior, uma subsidiariedade estatal na economia muitas vezes sequer pode afetar o autoritarismo e a formação de Estados totalitários. Ao revés, a atuação direta do Estado na economia para fomentar, por exemplo, o pluralismo cultural pode ser um antídoto para a formação de Estados autoritários, ao construir cidadãos abertos e bem informados.[9]
Desta forma, e de modo a buscar uma justificativa sincera para a subsidiariedade na economia, cabe ao acadêmico desvincular seu desiderato daquele da sua origem - combate ao autoritarismo político -, amoldando-o a uma visão ideológica neoliberal. Com efeito, defender a subsidiariedade nos termos do combate ao autoritarismo político estatal revela miopia argumentativa, pois a chave da política não é a mesma da economia.
Por outro lado, a assunção da defesa da subsidiariedade como forma de combater a ascensão de um Estado socialista – i.e que possui o controle total sobre os meios de produção – igualmente denota uma falácia argumentativa: a famosa slippery slope.[10] Há verdadeiro gradiente entre o livre-mercado – o qual depende do Estado para operar em condições ideais – e o socialismo, de modo que vem se cunhando a expressão “capitalismo de Estado” para designar a organização econômica adotada nos países latino-americanos e asiáticos.[11]
Feitas estas ressalvas conceituais quanto ao princípio da subsidiariedade, há que se destacar que o contexto histórico em que este ingressou no domínio jurídico e econômico brasileiro foi propício para a aderência do conceito.
No curso da década de 1990, o contexto pós-redemocratização brasileiro, aliado com a queda do bloco soviético – que congregava autoritarismo político e planificação estatal da economia -, foi rapidamente seguido de mudanças estruturais que buscaram desestatizar e privatizar a economia.[12] Para um observador distante, parecia que o tom sonhado choque do liberalismo do qual o país carecia finalmente havia chegado.[13]
Diante deste cenário institucional, muitos juristas defenderam, em solo normativo, a existência de um princípio da subsidiariedade na Ordem Econômica constitucional,[14] senão com base nos arts. 170 e 173 da Constituição da República, ao menos por meio de uma interpretação sistemática e teleológica à luz das reformas constitucionais efetuadas desde a sua promulgação. Por todos, confiram-se os argumentos de Marcelo Zenni Travassos[15]:
Em sequência, foi exposto que o modelo histórico estatal contemporâneo é marcado pelo princípio da subsidiariedade e pela primazia do princípio da livre iniciativa. Em relação ao modelo estatal anterior (Estado Social), o modelo estatal contemporâneo se apresenta como um Estado Subsidiário Regulador e de Fomento. Há uma redução da atuação do Poder Público sobre as ordens econômica e social através da exploração estatal direta de serviços públicos e de atividades econômicas em sentido estrito. Tal não significa, entretanto, a retirada do Poder Público das ordens econômica e social, mas tão somente uma redefinição de seu papel e instrumentos primordiais de atuação. O Estado passa a atuar sobre as ordens econômica e social eminentemente através da regulação estatal, disciplinando e fomentando a prestação de atividades pela livre iniciativa privada.
Ainda no Item 2, foi afirmado que tal modelo estatal contemporâneo, marcado pelo princípio da subsidiariedade e pela primazia do princípio da livre iniciativa, foi consagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A leitura dos arts. 1°, 170 e 173 não deixa dúvidas a esse respeito. Via de regra, a exploração de atividades deve ser deixada à primazia da livre iniciativa, sem que seja exigida qualquer autorização estatal para tanto. Somente em casos excepcionais a exploração de atividades pela livre iniciativa privada pode estar condicionada à exigência de autorizações estatais. Da mesma forma, via de regra, não deve o Poder Público explorar diretamente atividades econômicas. Somente em casos excepcionais (imperativo de segurança nacional ou por relevante interesse coletivo) tal exploração estatal de atividade econômica deve ser permitida.
(...) Ou seja, posicionou-se o presente estudo, ainda em um plano teórico e aplicável a toda e qualquer constituição, no sentido de que não necessariamente o conteúdo constitucional deve se restringir ao consenso sobreposto, não necessariamente devendo uma constituição ser politicamente neutra. Pelo contrário, posicionou-se o presente estudo, ainda em um plano teórico e aplicável a toda e qualquer constituição, no sentido de ser possível que as constituições já realizem opções políticas, desde que as mesmas, sendo razoáveis, não violem o consenso sobreposto pré-político e pré-constitucional.
Por fim, ainda que não fosse suficiente a argumentação desenvolvida em um plano teórico e aplicável a toda e qualquer constituição, restou claro no Item 3 que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não deixa qualquer dúvida acerca de a mesma já ter realizado opções políticas. A Lei Maior de 1988 definitivamente não é um documento politicamente neutro. Caso assim fosse quando de sua promulgação em 1988, certamente deixou de ser ao longo das significativas alterações que sofreu através do exercício do Poder Constituinte Derivado. Mais particularmente no que diz respeito à atuação do Poder Público nas ordens econômica e social, a Carta de 1988 claramente adota um Estado Subsidiário Regulador e de Fomento, marcado pelo princípio da subsidiariedade e pela primazia do princípio da livre iniciativa.
A crítica a esta concepção escapa a alçada do presente trabalho.[16] Faz-se oportuno, entretanto, frisar a relevância que o fomento público adquire no âmbito teórico ao congregar, de um lado, o princípio da subsidiariedade, e, do outro, a ascensão do neoconstitucionalismo – ou constitucionalismo democrático – e sua ênfase na proteção aos direitos fundamentais. Eis a premissa e o ethos jurídico subjacente aos manuais de direito administrativo que tratam do tema.
Adentrando neste domínio, cumpre trazer as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[17], que traz definição de fomento com o esforço analítico[18] que lhe é peculiar:
Em suma, pode-se conceituar a função administrativa de fomento público como o estímulo oferecido direta, imediata e concretamente pela Administração, na forma da lei, a iniciativas da sociedade que sejam de reconhecido interesse público.
(...) Considerados esses elementos e na linha da sistemática adotada, oferece-se o seguinte conceito de fomento público: função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados ou de entidades públicas e privadas, para desempenharem atividades que a lei haja destacado como de especial interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.
Dada a amplitude que, acompanhando irreversível tendência universal, essa função administrativa vem cobrando na ordem constitucional vigente, este Capítulo se dividirá em quatro Seções: 1 – o planejamento estatal, nele compreendendo as atividades de desenvolvimento regional e as atividades supletivas do Estado; 2 – o fomento social; 3 – o fomento econômico e 4 – o fomento institucional.
Destas considerações, extraem-se alguns elementos constitutivos do fomento público: (i) trata-se de técnica indutora, pertencente à Administração Pública consensual que realiza ordenação da economia por meio do manejo de sanções premiais;[19] (ii) possui como premissa o planejamento estatal, calcado no artigo 174 da Constituição da República; e (iii) pode ser veiculado por uma pluralidade de meios, já que seu compromisso final é com os fins que devem ser alcançados.[20]
Há debate doutrinário a respeito do caráter discricionário ou vinculado do fomento público. A nosso ver, a espécie de fomento adotada, o setor econômico contemplado e – em até certo ponto – o critério empregado para selecionar os beneficiários guardam características discricionárias, em deferência ao princípio democrático.
No entanto, isto não significa deixar de conhecer zonas de sindicabilidade judicial clara. Aliás, a política de fomento bem delineada normativamente é aquela que traz parâmetros objetivos, dando pouca margem para discricionariedade do administrador uma vez exteriorizada no mundo jurídico.[21] O ponto carece de tratamento no âmbito da dogmática administrativa tradicional, o que será melhor aprofundado na seção seguinte.
Outra questão polêmica diz respeito à revogabilidade do fomento público. Pela sua natureza prima facie discricionária, uma análise açodada poderia levar a conclusão pela sua plena revogabilidade. Nada mais equivocado. A política de fomento público, quando bem delineada, pode ensejar diversas posturas de planejamento do particular, que se mostra obrigado a atender às exigências de enquadramento no benefício – seja ele de crédito ou fiscal -, bem como a alinhar-se ao fim público colimado. Nestes casos, o princípio da segurança jurídica, na faceta subjetiva da proteção à confiança legítima, tutela o particular, de sorte que se pode cogitar, numa ponderação com o princípio democrático e a proteção do interesse público, de ressarcimento do lesado em perdas e danos.
Noutros casos, sequer a conversão em perdas e danos seria possível, pois o fomento ganha feições vinculadas na medida em que eivado de onerosidade, garantido por prazo determinado e consagrado em instrumentos jurídicos que geram direitos adquiridos integrantes da esfera jurídica do particular (i.e. oriundos tanto de instrumentos contratuais – como termo de fomento da Lei n° 13.019/14 –, quanto concedidos em processos administrativos com fundamento em instrumentos normativos – como Leis ou Decretos).
Quanto ao ponto, no que diz respeito aos benefícios fiscais onerosos – espécie de fomento público -, há entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal limitando sua revogabilidade.[22]
Nas hipóteses de fomento público oneroso e por prazo determinado, a Administração Pública pode tão somente lançar mão da revogação motivada: o desatendimento dos pressupostos de enquadramento pelo particular durante o prazo previsto para concessão do benefício autoriza, desde que observadas às garantias processuais constitucionais, o seu cancelamento.
Não é demais frisar que a concessão do benefício por determinado prazo não garante a sua prorrogação, pois aqui há ampla discricionariedade da Administração Pública.
Dito isto, é sintomático que a mesma literatura que enaltece o uso do fomento como técnica primordial da Administração Pública contemporânea, parceira do agente privado e que atua pela lógica de incentivos, não avance para enfrentar ou, ao menos, para destacar as dificuldades do dia a dia do gestor público. É possível cogitar de duas razões para isso.
Em primeiro lugar, a própria pluralidade de formas que o fomento pode adquirir, as quais ensejam os mais diversos tipos de classificação a sabor do autor, torna difícil delimitar e elencar zonas de certeza positivas e negativas de legalidade. De acordo com esse raciocínio, a concessão de benefícios fiscais traria problemas distintos dos verificados no tratamento favorável ao acesso ao crédito.
Por outro lado, entende-se que a escolha da modalidade de fomento público envolve juízo técnico a respeito da suscetibilidade daquele setor a determinado incentivo para atingimento da finalidade pública, bem como uma análise da conveniência política de se priorizar determinado interesse público em detrimento de outro.
Estas ressalvas a uma teoria do fomento com claros limites de juridicidade não merecem prosperar: a uma, os problemas práticos engendrados pelo fomento oscilam pouco em razão do meio adotado, geralmente gravitando sobre questões de isonomia, impessoalidade, transparência e análise de custo-benefício; e, a duas, nenhum instituto de direito administrativo possui elementos unicamente discricionários – nem mesmo por isso são menos controláveis nos seus aspectos jurídicos.
Quanto ao ponto, não se pode olvidar que há manuais que abordam estes limites, ainda que não os elaborem. Neste sentido, Rafael Oliveira destaca a exigência de critérios objetivos para uma escolha impessoal do beneficiário do fomento, tudo feito com ampla transparência e publicidade dos atos praticados.[23] Marçal Justen Filho, louvando-se das lições de Bobbio, denota o paradigma do papel promocional do direito[24] no instituto do fomento, mas não aborda seus limites jurídicos.[25]
A seu turno, Diogo de Figueiredo, a despeito de classificar os diversos âmbitos de aplicação do fomento público e salientar o papel do planejamento, não desenvolve limites jurídicos para sua atuação. Celso Antônio Bandeira de Mello faz coro à preocupação da subteorização do fomento público, mas não desenvolve balizas jurídicas para o seu exercício.[26] Maria Sylvia Zanella di Pietro confere maior atenção aos termos de fomento da Lei das Parcerias.[27] Já Alexandre Aragão, Diógenes Gasparini e José dos Santos Carvalho Filho sequer abordam o fenômeno ao tratar da intervenção do Estado na ordem econômica.[28]
3 – Capitalismo de Laços e Teoria da Captura – por um Fomento Público realista
A quadra atual é de sensação de ineficiência e corrupção generalizada no setor público. Esta inquietação também afeta o fomento público, o qual supostamente facilitaria o acesso à crédito e concederia tratamento fiscal mais benéfico apenas aos amigos do rei.[29]
O mal-estar presente na opinião pública possui expressão teórica na ideia de capitalismo de laços. A expressão crony capitalism, utilizada por acadêmicos ao descrever a relação entre governo e empresas na América Latina e em parte da Ásia, foi desenvolvida na realidade brasileira por Sérgio Lazzarini[30] na noção de capitalismo de laços, ao analisar os processos de privatização e de acesso às políticas de crédito do BNDES e da CEF.
De acordo com o autor, há elementos do capitalismo de laços nas obras de grandes ensaístas brasileiros como Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Hollanda, bem como na análise do antropólogo Roberto DaMatta. Com efeito, informalidade, corporativismo, personalismo, patrimonialismo, estatismo e clientelismo[31] são traços marcantes desta estratégia de governança, cabendo, para maior clareza, reproduzir ipsis litteris os termos de Lazzarini[32]:
Esse emaranhado de contatos, alianças e estratégias de apoio gravitando em torno de interesses políticos e econômicos é o que eu denomino capitalismo de laços. Trata-se de um modelo assentado no uso de relações para explorar oportunidades de mercado ou para influenciar determinadas decisões de interesse. Essas relações podem ocorrer somente entre atores privados, muito embora grande parte da movimentação corporativa envolva, também, governos e demais atores na esfera pública.
(...) À primeira vista, o termo “laços” pode denotar relações próximas, íntimas, duradouras. Aqui, entretanto, o significado é mais no sentido de relações sociais valiosas: um contato pessoal que é estabelecido para obter algum benefício particular ou, ainda, um gesto de apoio visando algo em troca no futuro. Evidentemente, essas relações recíprocas são favorecidas por laços pessoais fortes. Contatos familiares, por exemplo, têm elevada saliência em diversos contextos econômicos: ouvimos frequentemente casos de pessoas indicadas a determinados postos porque são parentes de pessoas de influência. Entretanto, uma relação pode ser construída entre estranhos que trocam favores ou que se aproximam por meio de um conhecido em comum. “Laço”, neste livro, é algo que deve ser entendido de forma mais genérica como “relação entre atores sociais para fins econômicos”.
Ao se valer da moderna teoria das redes sociais, Lazzarini destaca – ainda no cenário das privatizações – a existência de redes de propriedade e aglomerações – i.e proprietários que participam das mesmas empresas -, tendo por padrão atores de ligação – i.e conectores de aglomerações distintas – pertences da estrutura da Administração Pública, tais como Previ e BNDES.
No âmbito do fomento público, o capitalismo de laços destaca outro padrão de disfuncionalidade: em média, empresas com maior facilidade de acesso a crédito foram também as maiores doadoras de campanha empresarial e, igualmente, tendem a ser as menos eficientes sob a perspectiva do mercado – e, logo, mais dependentes das medidas clientelistas.
Embora a ideia de capitalismo de laços tenha sido articulada recentemente, a literatura norte-americana sobre falhas de governo,[33] por meio da teoria da captura, descreve com acurácia a corrupção na concessão de fomento público.
Mesmo a sua formulação inaugural – em que se discutia a existência de barreiras regulatórias para novos entrantes, financiadas por lobby de empresas já estabelecidas no mercado – é plenamente aplicável ao caso do fomento: a facilitação de acesso ao crédito e a concessão de benefícios fiscais indiscriminadamente pode moldar mercados, de modo que seu impacto pode gerar o mesmo efeito prático de uma barreira de entrada.
Na mesma linha, o fenômeno da captura cultural, embora de alta porosidade, possui importante eficácia, na medida em que não há regras de disclosure para lobistas, nem períodos de quarentena que evitem o fenômeno da “porta giratória” entre o setor público e privado.[34] Assim, a sedimentação silenciosa da inevitabilidade do fomento público tal como já desenhado impede que se pense em alternativas mais republicanas.
Aliás, uma rara – em verdade, única – exceção ao rol de manuais citados no item anterior vem na obra de Lucas Rocha Furtado,[35] que sintetiza bem o Zeitgeist acima apontado:
É imperioso que a concessão de benefícios observe critérios de impessoalidade e de moralidade.
(...) Em nenhuma outra área da Administração Pública a discricionariedade administrativa deve ser repelida com tanta ênfase. Se não for estabelecido, de forma prévia e objetiva, como será feita a distribuição desses benefícios, o resultado será um só: corrupção.
A distribuição dos incentivos ou benefícios públicos deve ainda observar regras de publicidade, de modo a garantir a competitividade entre os possíveis interessados.
A necessidade de observância desses e de outros princípios do Direito Administrativo sujeita a atividade de fomento à procedimentalização administrativa, que deve observar diferentes etapas.
A primeira etapa consiste no planejamento dos incentivos ou benefícios a serem concedidos. Devem ser definidas as áreas prioritárias e identificados os possíveis beneficiários, bem como o exame acerca dos resultados que poderão advir da concessão dos benefícios. Definidos esses parâmetros, devem ser estabelecidos os requisitos a serem preenchidos pelos eventuais pretendentes. Se houver concorrência, isto é, se o número de interessados em obter os benefícios for superior ao volume de benefícios disponibilizados, devem ser indicados os critérios para deferimento e indeferimento dos pedidos. Concedidos os benefícios, devem ser fortalecidas as atividades de acompanhamento e de fiscalização da utilização dessas ajudas públicas.
É de se ressaltar que deve haver a necessária segregação de funções públicas: o agente público encarregado da escolha dos beneficiários não pode participar do processo de prestação de contas da aplicação dos recursos, por exemplo”.
É possível intuir que o tom do autor decorra de certo desolamento ao exercer, na vida profissional, a função de controle do uso de recursos públicos federais. Em todo caso, a preocupação deveria ser endossada nos demais manuais mencionados na seção anterior, tendo em vista – repisa-se – constituírem a formação do imaginário jurídico do servidor público.
Na linha da necessidade de reinvenção da doutrina administrativista sobre fomento público, José Vicente Santos de Mendonça, embora em obra que não se pretende propedêutica, estabelece critérios para classificar o fomento constitucionalmente adequado, os quais podemos subdividir em três grandes grupos – (i) formais; (ii) materiais; e (iii) procedimentais.[36] Passamos, pois, a desenvolvê-los.
Dentre os pré-requisitos formais, a transparência ou ampla publicidade é o primeiro que se destaca. Além de estar inscrito no caput do artigo 37, da Carta Magna como dever fundamental a ser observado pela Administração Pública, trata-se de corolário do princípio republicano.
Não poderia ser de outra forma. O fomento envolve repasse de recursos públicos[37] – ainda que de forma indireta pela renúncia de receita -, bens que dizem respeito a toda coletividade.[38] Por esta razão, a transparência deve ser a regra nas quatro etapas principais da concessão do fomento público: (i) no âmbito do planejamento das finalidades de Estado e nos meios para sua consecução; (ii) na ampla divulgação, uma vez selecionada a modalidade de fomento público, dos critérios de seleção dos beneficiários; (iii) na fiscalização pari passu à execução pelos beneficiários da finalidade que se busca incentivar; e (iv) na prestação de contas final do beneficiário, bem como da Administração Pública ao cotejar as metas idealizadas e aquelas efetivamente realizadas. No mais, é cediço que estes postulados servem não só ao controle institucional pelos órgãos que detêm esse mister constitucional, mas também para viabilizar o controle social, o que põe ainda mais à evidência a imperatividade de se priorizar a transparência ativa.[39]e[40]
Esse critério pode parecer banal à primeira vista, mas se trata de um dos parâmetros mais eficazes e inexplorados para juridicizar o fomento público. Desta forma, não obstante a discricionariedade no conteúdo material do planejamento da ajuda pública, bem como o teor técnico de seu produto, caso não tenha sido acompanhado da devida transparência e procedimentalização nas quatro etapas acima elencadas,[41] o órgão de controle estará legitimado a realizar uma análise mais forte, podendo considerá-la prima facie suspeita.
Aqui, duas ressalvas. Há certa fetichização do controle na realidade jurídica brasileira, o que deve ser evitado a todo custo sob pena de o próprio desiderato da ajuda pública não conseguir ser realizado. É dizer: ao realizar o controle por meio da inobservância da regra da transparência, não pode o órgão sugerir a suspensão liminar de sua concessão, hipótese em que, caso comprovada mais adiante a higidez do benefício, o ambiente econômico e institucional pode não ser mais propício para que a ajuda seja eficaz. Assim, a melhor forma de se enfrentar a não existência de um processo administrativo burocrático ou da não publicização ampla de determinados atos é oportunizar a oitiva da Administração Pública e dos interessados para após – se for o caso – num juízo exauriente sugerir a adoção de medidas corretivas materiais.
Especial atenção deve ser dada às hipóteses de sigilo constitucional. Com efeito, algumas informações específicas do particular ou da Administração Pública podem não ter sido publicizadas não por conta de uma cultura arraigada do sigilo, mas sim por interesses contrapostos constitucionalmente tutelados e que deram ensejo a uma postura mais prudencial. Tal ponderação torna ainda mais nítido o dever de se ouvir as partes antes de se suspender liminarmente o benefício.
Outro aspecto formal digno de nota é a competitividade. A competitividade traz ínsita a noção de objetividade na concessão do fomento público, mas deve ser interpretada de modo distinto daquela competitividade do certame licitatório. Isto porque o fomento se dá muitas vezes para permitir que o beneficiário se torne competitivo no mercado e não para que ele seja selecionado por ser a priori o mais competitivo. A Administração Pública deve, portanto, fazer um juízo prognóstico com o pool de informações que detém, o que gera, evidentemente, margem de discricionariedade técnica.
Um adendo merece ser feito: a calibragem da ajuda pública à luz da competitividade envolve uma combinação entre as condições econômicas do interessado e o grau prévio de competitividade dos atores atuante no setor fomentado. No entanto, diferentemente do que se tem observado na concessão de acesso ao crédito, não se deve buscar tornar o beneficiário absolutamente dominante no mercado com uso da ajuda pública. Em outras palavras, a concentração econômica por meio do fomento público vai de encontro à ideia republicana de liberdade como não-dominação.[42]
Ademais, entendemos que a isonomia mínima presente no postulado formal da competitividade veda, quando haja manifestação de mais interessados do que o erário público tenha planejado, a adoção do critério cronológico como forma de escolha. Embora num primeiro olhar, de fato, pareça um referencial objetivo e neutro, caso o processo de planejamento tenha sido capturado por atores privados, estes terão mais subsídios para se favorecer, em detrimento da competitividade e da isonomia. Mais: o objetivo, em geral, do fomento público é ajudar aqueles que ainda não são competitivos e muitas vezes se situam em contexto de hipossuficiência epistêmica, de modo que levarão mais tempo para se informar do programa de incentivo.
Desta forma, como a captura regulatória é difícil de se comprovar em termos concretos, o melhor é se precaver e não adotar critérios – como o cronológico - os quais facilitarão os grupos de interesse bem mobilizados.[43]
Outra regra formal a se observar diz respeito à objetividade. Intimamente ligada à noção de competitividade, a objetividade tem preferência por critérios técnicos precisos, evitando, ao máximo, o uso de conceitos indeterminados. José Vicente dos Santos Mendonça, reconhecendo a inevitabilidade da discricionariedade da própria linguagem, estabelece duas regras procedimentais com o intuito de fortalecer a objetividade: a decisão deve ser tomada por órgão colegiado, o que dificulta os custos da captura, além de cancelar vieses individuais;[44] e este órgão deve ser composto por indivíduos de background distintos, de modo a evitar a captura cultural.
Na linha da tentativa de evitar a captura, podemos acrescentar a recomendação, feita por Lucas Rocha Furtado, de que as diferentes etapas do fomento público – planejamento, concessão, fiscalização e prestação de contas – sejam delegadas a órgãos ou pessoas diferentes no âmbito da Administração Pública.[45]
Passando aos critérios materiais, temos, primeiramente, a não-lucratividade. A ratio subjacente a esta regra decorre do próprio conceito de ajuda pública, a qual deve ser feita na exata medida em que necessária para atingir os fins pretendidos. Caso contrário, o fomento público perde sua alardeada vantagem em relação às modalidades de intervenção direta do Estado na economia: ao se tornar excessiva, é como se o Estado estivesse moldando aquele mercado diretamente e de forma determinante, distorcendo a própria finalidade do fomento público.
Tal como a noção de competitividade, a não-lucratividade também se vincula à ideia de liberdade republicana como não-dominação, na medida em que seu consectário é a preferência a priori de pulverização da ajuda pública entre diversos atores, ao invés da sua concentração num grupo reservado de agentes. É patente, entretanto, que tal consideração irá variar à luz dos recursos públicos disponíveis, assim como da necessidade de ajuda para se tornar competitivo em determinado mercado ou para atingir o fim social almejado.
José Vicente dos Santos Mendonça propõe importante medida jurídica que, se explorada, pode gerar incentivos para que haja observância da não-lucratividade quando do planejamento do fomento: caso a fonte do lucro advenha do fomento público, há legitimidade para a Administração Pública pleitear o ressarcimento da parcela respectiva, por se tratar de enriquecimento indevido do particular ante a ausência de causa legítima,[46] nos termos do artigo 884 do Código Civil.[47]
Em seguida, o administrativista traz duas premissas de filosofia política basilares na sua interpretação da ordem econômica constitucional que, a seu ver, devem igualmente nortear o fomento público: o pragmatismo e a razão pública.
O primeiro vem na forma da eficiência no gasto com o fomento público, no sentido de que o beneficiário deve possuir condições para produzir o resultado esperado – neste sentido, se assemelha ao critério formal da competitividade. Outra faceta da eficiência se dirige ao planejamento e à escolha do setor fomentado - neste sentido, não poderia o ente público ajudar área já madura ou, ao revés, fadada ao fracasso[48]; ademais, finalidades supérfluas e contrárias ao bem comum devem ser evitadas.
Esta última exigência pode ser reformulada em termos republicanos, na medida em que haveria um filtro material – ainda que amplo - daquilo que poderia ser fomentado com recursos da res publica.[49]
Já a razão pública segue a lógica de uma regra material negativa: não se deve fomentar aquilo que não pode ser universalizável à luz da razão pública. Dito de outro modo, a razão pública não pode ser critério de inserção, mas de exclusão.
Aqui, cabe-nos fazer uma ressalva. Embora José Vicente Santos de Mendonça frise não se tratar da nova cara do “politicamente correto”[50], é de se ponderar se a razão pública, por demasiado ampla, não acaba servindo como cortina de fumaça, oferecendo uma gramática possível para impulsos autoritários.[51]e[52]
Sob uma ótica pragmática, é de se questionar a utilidade desse filtro material negativo à luz dos custos e benefícios que pode trazer – o consenso estável pode ser facilmente manipulado e há outros critérios que podem promover a filtragem desejada no fomento sem adotar explicitamente a razão pública.
Além disso, tendo em vista a grande variedade de ferramentas que pode ser utilizada pelo fomento público para promover, igualmente, os mais diversos fins constitucionalmente tutelados, o risco de a razão pública operar como válvula de escape argumentativa para abafar o pluralismo é real. De fato, não se trata de mera especulação acadêmica: a cultura e a expressão artística são setores amplamente dependentes do fomento, o que resulta num constante perigo de as narrativas contra-hegemônicas deixarem de angariar ajuda pública.[53]e[54]
Por fim, Mendonça destaca dois critérios de desenho e planejamento do fomento: submeter o plano de fomento ao debate público e a compatibilidade entre os requisitos de acesso ao fomento e o direito fundamental que se pretende incentivar.[55] Na nossa visão, não são critérios per se sindicáveis judicialmente, tendo como premissa, apenas, o bom uso da técnica.[56]
A submissão do plano de fomento ao debate decorre da ideia de dispersão e assimetria informacional do Poder Público e do setor que se pretende fomentar, bem como na necessidade de se ouvir o setor econômico como um todo, na medida em que mesmo os agentes não fomentados serão influenciados reflexamente pela ajuda pública.
A burocratização do procedimento também não pode ser excessiva: algumas vezes o tempo político não se adéqua à realização de debates públicos. Em todo caso, a ampla publicidade e a transparência devem ser observadas em todas as etapas do fomento público.
No mais, é evidente que a abertura ao debate público pode ensejar captura por grupo de interesses bem articulados, intensificando a assimetria. Ao fim e ao cabo, caberá ao agente responsável por nortear o debate se pautar por espírito público e se valer das ferramentas institucionais para filtrar esses interesses.
Já a compatibilidade entre os requisitos de acesso ao fomento busca não só evitar restringir acesso àqueles que de fato necessitam da ajuda pública, mas também trazer exigências estritamente vinculadas à viabilização do fim público a contento. Com efeito, embora haja razoável receio – inclusive justificado à luz da ótica republicana – com a ausência de retorno esperado da ajuda pública pelo agente fomentado, o controle não deve ser relegado tão somente aos critérios de acesso.
Assim, todas as etapas do fomento devem ser escrutinizadas pelos órgãos de controle interno e externo, bem como pela sociedade como um todo, devendo seu descumprimento ensejar a revogação motivada do benefício. Não pode o gestor, sob o viés de inércia, estabelecer requisitos de acesso desarrazoados no ponto de partida tão somente em razão da dificuldade prática de se efetivar seu mister de diuturna fiscalização.
4 – A experiência do Estado do Rio de Janeiro na concessão dos incentivos fiscais à luz do critério formal da transparência
Feitas estas considerações a respeito dos cuidados e dos limites que uma teoria adequada do fomento público deve observar na sua aplicação prática, cabe-nos avançar ao estudo do fomento público fiscal realizado no Estado do Rio de Janeiro.
Preliminarmente, contudo, uma ressalva metodológica se faz prudente: tendo em vista termo-nos valido da obra de Mendonça como grande referencial crítico à literatura convencional do fomento, cumpre frisar que na sua teoria os incentivos ficais são enquadrados em política econômica, em vez de serem classificados como ajuda pública.
Não é nossa proposta explorar essa categorização a fundo. É verdade que os benefícios fiscais se submetem a regras constitucionais específicas de observância à legalidade estrita, bem como a requisitos materiais da Lei n° 4.320/64 e procedimentais da Lei de Responsabilidade Fiscal, aos quais o fomento creditício não se subsome num primeiro momento.
Ocorre que, observadas estas diferenças, os benefícios fiscais se inserem na definição que trouxemos de fomento público e, também, a todos os limites e critérios que exploramos anteriormente. Não por outra razão, a despeito de a questão ser controversa, a maior parte dos administrativistas enquadra os benefícios fiscais em fomento público, de modo que reputamos possível prosseguir no estudo de caso com essa mesma categorização.
Dito isto, a concessão dos benefícios fiscais no Estado do Rio de Janeiro sempre foram objeto de controvérsia. Por conta da recente e mais aguda crise financeira que o Estado presenciou, grandes narrativas monocromáticas com seus respectivos bodes expiatórios começaram a surgir na opinião pública e pautar a agenda dos órgãos de controle, muito embora crises desta monta surjam por questões multifatoriais, tanto estruturais quanto conjunturais.
Assim, a concessão de benefícios fiscais chegou à ordem do dia no final de 2016. Em auditoria governamental realizada pelo TCE/RJ, no âmbito do processo n° 108.773-3/16, que buscava realizar um cotejo entre os benefícios tributários de ICMS concedidos e os requisitos do artigo 14 da LRF, foi constatada, num primeiro momento, a ausência de planejamento na elaboração do incentivo fiscal – seu potencial impacto na renúncia de receita, os requisitos de enquadramento do beneficiário, dentre outros déficits -, a inexistência de fiscalização do cumprimento dos requisitos pelo beneficiário e a ausência de transparência em todo este processo.
Antes de avançar na resposta do Estado, cabe esclarecer que, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro,[57] vigorava até meados de 2019 regra que dispunha que todos os benefícios fiscais de ICMS deveriam ser concedidos por Chefe do Poder Executivo e ter prazo determinado – art. 3° da Lei estadual n° 4.321/04.
Desta forma, o procedimento ideal e transparente de formulação de políticas públicas de incentivos fiscais seria por meio da instauração de processos administrativos específicos para cada setor econômico ou social que se buscasse fomentar, com ampla participação dos potenciais afetados, o qual culminaria na edição de Decreto com todos os requisitos estritamente necessários para consecução do fim almejado e com a previsão de benefícios projetados a médio prazo passíveis de revisão contínua – v.g. de dois em dois anos - a fim de calibrar a própria moldura do benefício fiscal – por meio da edição de novo Decreto ou de alteração daquele pré-existente.
Uma vez delineado o benefício fiscal, a Administração Pública emite Carta Consulta aos potenciais interessados na participação e, após processo seletivo objetivo e imparcial, no qual se avaliaria o potencial do beneficiário de cumprir as metas traçadas pela política do incentivo respectivo, o órgão colegiado do Estado deferiria o enquadramento aos que se encaixarem no perfil. Neste ponto, a fase de fiscalização se inicia no âmbito dos processos relativos aos pedidos individuais deferidos, por meio dos quais os órgãos competentes da Administração Pública devem acompanhar a manutenção das condições de enquadramento, bem como as metas traçadas vis-à-vis o exercício da atividade econômica.
Pois bem, a auditoria do TCE verificou ausência de transparência nas atas dos órgãos colegiados responsáveis por deferirem os pedidos de enquadramento, além de não haver sequer estudo quanto ao potencial impacto da vinda da empresa respectiva ao território fluminense, tendo sido tão somente avaliadas as suas credenciais por meio de relatório unilateral de empresa a respeito de quantos empregos geraria uma vez em atividade.[58] Ademais, alguns processos eram imediatamente arquivados após a concessão do benefício, o que gera fortes indícios de que não houve fiscalização efetiva.
A nosso ver, o cenário relatado na auditoria do TCE retrata inegáveis problemas de coordenação entre órgãos da Administração Pública: à primeira vista, a integração de órgãos da CODIN,[59] da então SEDEIS e da SEFAZ poderia colmatar miopias institucionais, mas o resultado, possivelmente oriundo de fricções no livre trânsito informacional, é uma regulação ineficiente e surda. À época, no tocante à transparência, o TCE elaborou as seguintes determinações à CODIN no que tange a sua esfera de atribuição:
2. Proceda, quando da análise de processos de concessão de benefícios fiscais, obrigatoriamente, à verificação dos pontos abaixo, assinalando as manifestações dos representantes dos órgãos competentes para tratar de cada questão, reduzindo-as a termo nas respectivas Atas de Reunião (Achado de Auditoria 5):
a) Impacto econômico decorrente da concessão do benefício (investimentos previstos, cenário macroeconômico, aumento esperado de arrecadação, outros);
b) Quantidade de empresas que atuam no setor beneficiado, apontando as consequências do benefício para a livre concorrência, em especial no que se refere às empresas de menor porte;
c) Impacto social decorrente da concessão do benefício (quantidade de novos empregos, qualificação de mão de obra, outros);
d) Impacto ambiental decorrente da atração de novas empresas para atuarem no local.
Ademais, formulou os seguintes quesitos ao então Governador do Estado:
1. Encaminhe, doravante, todo processo administrativo que trate de concessão de benefícios fiscais para realização de estudo de impacto orçamentário-financeiro pela atual Secretaria de Estado de Fazenda e Planejamento (Achado de Auditoria 1);
2. Promova a revisão, mediante Decreto, de todos os benefícios concedidos que não tenham observado o disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal no que tange à mensuração do impacto orçamentário-financeiro e à previsão de medidas de compensação (Achado de Auditoria 1);
(...) 4. Estabeleça procedimento estruturado e sistemático de controle de concessão e acompanhamento dos benefícios fiscais, definindo claramente as atribuições de cada um dos órgãos envolvidos, de maneira que os requisitos de fruição e as contrapartidas previstos na legislação sejam avaliados no momento do enquadramento e periodicamente, enquanto perdurar o benefício (Achado de Auditoria 3);
(...) 6. Promova a revisão dos demais benefícios fiscais concedidos, a fim de identificar a real motivação para o tratamento diferenciado e reunir elementos que comprovem as alegações das empresas beneficiadas, especialmente quando alicerçadas na realização de concorrência predatória (guerra fiscal), com vistas a (Achado de Auditoria 4):
a) Cancelar os benefícios cuja motivação explicitada não tenha sido comprovada (por exemplo, o lucro da empresa não ter diminuído no período alegado);
(...) 7. Estabeleça critérios objetivos de análise para fins de concessão de benefícios fiscais, de maneira que as seguintes questões básicas, transcritas do Relatório de Auditoria, sejam claramente respondidas (Achado 4):
(...) f) O benefício fiscal é simples, transparente e administrável?
Os contribuintes compreendem o funcionamento do benefício fiscal? Um efeito potencial do aumento do custo de conformidade (obrigações de caráter formal a serem observadas pelo contribuinte) é a redução no total de interessados no benefício.
Quais os custos envolvidos para o Estado e terceiros na administração do benefício fiscal?
g) Alguma alternativa ao benefício fiscal atingiria de modo mais efetivo a meta almejada?
Outro modelo de benefício é preferível?
O gasto direto ou outra política não fiscal é preferível à concessão do benefício?
Como se percebe, na melhor das hipóteses, o Estado do Rio de Janeiro não vem dando transparência e publicidade ao planejamento dos seus benefícios fiscais, nem à sua respectiva fiscalização. Em resposta ao voto, o então Governador do Estado se limitou a traçar considerações a respeito do Sistema de Governança dos Incentivos Fiscais e Transparência - SISGFT, instituído pelo Decreto estadual n° 45.976/17, o qual supostamente realizaria revisão de todos os benefícios instituídos a partir do critério de aferição de impacto econômico e social, tudo isso observando a máxima transparência e publicidade.[60]
Na sequência, em auditoria extraordinária realizada em 13 de fevereiro de 2019, o TCE/RJ se debruçou sobre as informações prestadas pelo Estado do Rio de Janeiro e lançou mais questões a respeito da falta de transparência do ente público, mormente na necessidade de que as atas de reunião da CPPDE, criada pelo Decreto estadual n° 34.784/04, façam constar análise pormenorizada do impacto da concessão de benefício fiscal; na ausência de demonstração até o momento dos resultados efetivos do SISGFT; e na imperatividade de que seja aperfeiçoado o formulário da Carta Consulta, de modo a subsidiar o critério de escolha do beneficiário.[61]
Cabe ressaltar que, na mesma linha do TCE/RJ, veio a decisão liminar proferida nos autos da ação civil pública n° 0334903.24.2016.8.19.0001, ajuizada pelo Ministério Público do Estado,[62] que determinou encaminhamento de todos os processos administrativos de concessão de benefício fiscal, além da realização de estudo de impacto orçamentário-financeiro. Cumpre transcrever trecho do julgado alusivo ao requisito da transparência:
Entretanto, tal instrumento de dirigismo econômico não pode ser livremente manejado pelos Poderes Executivo e Legislativo, até porque a renúncia de receita, em face do ônus que acarreta ao ente federativo, não difere em essência da despesa pública. Foi RICARDO LOBO TORRES quem primeiro abordou, entre nós, o conceito de “gasto tributário”, cunhado pela doutrina fiscal norteamericana (“tax expenditure”).
(...) E como “gastos públicos”, as diversas formas de renúncia de receita encontram disciplina e limites na Constituição e nas leis, seja como uma espécie de reação à potencialização da estratégia de concessão de incentivos pelos Estados nas últimas décadas – o que ficou conhecido como “guerra fiscal” –, seja em função da imperiosa necessidade de dotar os mecanismos de concessão de incentivos fiscais de instrumentos de transparência e accountability, de modo a obstar a distribuição indiscriminada e atrabiliária de benefícios fiscais.
Na primeira vertente, exsurge fundamental a conjugação do disposto nos artigos 150, § 6º e 155, § 2º, XII, g da CRFB com a disciplina da Lei Complementar nº 24/1975, a exigir a prévia aprovação de um convênio entre os Estados como única forma regular de concessão de incentivos fiscais relativos ao ICMS.
No tocante aos instrumentos de transparência e accountability, merece especial destaque a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000). Tal diploma legal, não exatamente com o objetivo de impedir a concessão dos incentivos, mas com o salutar propósito de dotá-los de maior racionalidade e transparência, passou a estabelecer uma série de requisitos para que os entes federados pudessem abdicar de receitas mediante incentivos fiscais.
O processo em questão ainda não chegou à fase de sentença, tendo sido a liminar reformada em sede de agravo tão somente no que diz respeito à determinação de suspensão de concessão de novos incentivos fiscais até a apresentação dos estudos técnicos supramencionados, além de ter consignado que esses estudos poderão ser feitos mediante perícia judicial, visto se tratar de medida imparcial vis-à-vis a unilateralidade de eventuais laudos apresentados pela Secretaria de Estado de Fazenda.[63]
Por sua vez, o Estado do Rio de Janeiro desde sua adesão ao Regime de Recuperação Fiscal, disciplinado pela Lei Complementar n° 159/17, se encontra não só limitado à concessão de novos benefícios, por força das vedações do art. 8° daquele diploma normativo, mas também teve que submeter ao Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal um Plano de Recuperação Fiscal no qual, dentre outras coisas, consta meta de redução de benefícios fiscais.
Neste ponto, cabe destacar que o Anexo 18 do Plano de Recuperação Fiscal, o qual diz respeito exatamente ao impacto da redução de incentivo fiscais, encontra-se inteiramente coberto de sigilo, o que dificulta o controle social do cumprimento das metas do Plano de Recuperação Fiscal e vai de encontro às decisões do TCE/RJ e do Poder Judiciário.
A justificativa para o sigilo vem no sentido de afirmar que a disponibilização das informações poderia impactar o sucesso no Plano de Recuperação Fiscal.[64] Embora questionável, na medida em que outros dados não foram classificados como reservados, pode ser que realmente haja informações cobertas pelo sigilo constitucional ou legal. Neste caso, dever-se-ia segregar referidas informações das demais publicizáveis, sob pena de chancelar a regra do sigilo, o que é incompatível com o princípio republicano.
Nada obstante, a ausência de transparência persiste inclusive para o órgão responsável por efetuar o controle do cumprimento do Plano de Recuperação Fiscal. Com efeito, o CSRRF, em seus relatórios mensais, frisa reiteradamente a dificuldade de obtenção de informações acerca do cumprimento da meta redução de incentivos fiscais. Eis, por todos, trecho do relatório do mês de julho de 2019:
Cumpre ressaltar que não foi informado a este Conselho o impacto da medida do Anexo 18 de Revisão de Incentivos Fiscais referente ao mês de dezembro/2018, o que prejudica a análise da evolução do impacto desta medida. No mês de julho foi enviada nova metodologia que altera valores anteriores da medida de Revisão de Incentivos Fiscais, o que somente será considerado após sua análise pelo Conselho.
(...) 1.Revisão dos Incentivos Fiscais (Anexo 18 do PRF-RJ RESERVADO) Descrição: Redução dos incentivos fiscais.
Histórico: Medida de caráter estruturante elaborada a partir de estudo conjunto realizado pelas então Secretarias de Estado da Casa Civil e Desenvolvimento Econômico e de Fazenda e Planejamento por meio do qual se avaliaram os incentivos fiscais passíveis de serem alterados. Após a aprovação da medida, foi constituído Grupo de Trabalho, encarregado do seu acompanhamento, por meio da Resolução Conjunta SEFAZ/Casa Civil nº 35, de 7/12/2017. Em 28/12/2017, foram publicados os Decretos Estaduais nº 46.207 e nº 46.208, que revogaram e alteraram isenções concedidas, com efeitos financeiros a contar de 1/1/2018. Observa-se que para a estimativa realizada no Anexo18 do PRF foram utilizados os valores obtidos segundo o regime de competência. Em outubro/2018 foi recebida resposta ao Ofício SEI nº 32/2018/CSRRF-MF, que não abordou a questão levantada pelo CSRRF sobre a identificação, pelo grupo de trabalho, de medidas que não foram executadas, e que geraram necessidade de compensação no montante de R$ 341 milhões. Embora os relatórios dos meses de dezembro de 2018 e janeiro de 2019 não tenham sido enviados para acompanhamento do CSRRF, foi possível inferir o valor correspondente a janeiro/2019 (R$ 337,89 milhões), com base no valor acumulado no ano de 2019, apresentado no relatório referente ao mês de fevereiro/2019. Em 3/5/2019, foi publicada a Resolução Conjunta SEFAZ/SECCG nº 20, que fixou nova composição do grupo de trabalho para execução e acompanhamento das metas estabelecidas no Anexo 18. O grupo tem representantes da SEFAZ, SECCG, CODIN e SEDEGER.
Previsão de Impacto: A medida foi planejada para ter impacto anual de R$ 1,005 bilhão no exercício de 2018, R$ 1,34 bilhão em 2019 e R$ 1,34 bilhão em 2020
Realizado no mês: O valor realizado no mês de julho foi de R$ 138,11 milhões, totalizando R$ 2,69 bilhões acumulados desde o início de vigência do PRF-RJ. A área responsável alertou ao CSRRF que a metodologia de cálculo foi revista e que os valores realizados anteriores sofrerão significativa alteração. O CSRRF analisará a nova metodologia para se entender necessário corrigir os valores.
Apreciação: O Conselho recebeu o Ofício GG nº 236/2019, de 26/6/2019, com a proposta de Revisão do Plano de Recuperação Fiscal do Estado, do qual consta proposta de revisão dessa medida, que se encontra em análise.
Por outro lado, o Estado do Rio de Janeiro se manifestou logo no início da auditoria do TCE/RJ e da ação civil pública supramencionada - ambas instauradas em 2016 - por meio de Relatório elaborado pela Comissão Mista do Sis-GIFT em dezembro de 2016. As justificativas técnicas lá apresentadas para a concessão dos incentivos fiscais foram reproduzidas no âmbito da auditoria e do processo judicial.
Em apertada síntese, a Comissão alega inevitabilidade da concessão de benefícios de ICMS em virtude da malfadada “guerra fiscal”, a qual supostamente justificaria em certa medida até alguma falta de transparência como estratégia de competitividade em face de outros entes federativos, embora afirme que o Estado do Rio de Janeiro “tem buscado formas de modificar essa cultura, aprimorando os mecanismos de governança”.
De acordo com a Comissão, a alegação dos órgãos de controle de que o Estado deixou de arrecadar montante elevado de recursos com os incentivos fiscais seria uma falácia na medida em que, caso não fosse oferecido o benefício, a empresa se instalaria em outro Estado, havendo sequer receita arrecadada de ICMS. Além disso, a oferta de empregos no Estado do Rio de Janeiro se reduziria, o que consequentemente geraria uma queda no consumo, causando um efeito cascata de redução de receita para o ente federativo.
Embora a narrativa faça sentido em alguma proporção, a realidade é sempre mais complexa. Não se nega que o ambiente federativo estratégico desenhado pela Constituição de 1988 incentive posturas concessivas de benefícios fiscais com o intuito de atrair empresas.[65] Ocorre que isso não diz nada a respeito de quais setores serão privilegiados e quais empresas serão selecionadas mediante determinados critérios. Ao revés, os vetores norteadores da concessão de benefícios aludidos pela Comissão – “atração de investimentos; incremento da competitividade e defesa do ambiente econômico interno; regularização de atividades e redução das desigualdades regionais” – são genéricos ao ponto de poderem orientar qualquer política de fomento de sucesso, mas não possuindo uma correlação direta entre os incentivos de fato concedidos e os setores priorizados.[66]
A Comissão traz dados a respeito da redução de desigualdades regionais implementada pela concessão de benefícios, bem como de determinados setores que se aprimoraram – v.g siderúrgico, informática, farmacêutico, têxtil, dentre outros -, mas cabe frisar que esses dados vieram a público por conta da pressão dos órgãos de controle, não havendo que se falar na hipótese em transparência ativa por parte do Estado. Com efeito, pode-se dizer que a publicidade, in casu, se deu a posteriori, ao invés de ser efetivada a cada etapa do processo de concessão de fomento público.
Ademais, a Comissão afirma que os benefícios fiscais constam na Lei Orçamentária Anual, o que supostamente denotaria o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e compromisso com a transparência. Quanto ao ponto, frisa-se que não se trata, propriamente, de transparência, mas sim de observância aos princípios da universalidade e do orçamento-bruto que regem a LOA: toda receita e despesa do ente federativo deve constar neste diploma normativo.
No mais, apesar de a Comissão afirmar que há fiscalização dos órgãos da SEFAZ e da SEDEIS, a assertiva destoa dos achados da auditoria do TCE/RJ e da ação civil pública em curso, de modo que se trata, no mínimo, de questão controversa.
Desde então, e ressalvada a questão do sigilo do Anexo 18 do Plano de Recuperação Fiscal, o Estado do Rio de Janeiro vem caminhando no sentido de buscar uma governança mais transparente. Neste sentido, veio a Lei estadual n° 8.445/19, que confere à SEFAZ[67] competência exclusiva de fiscalizar os benefícios ficais e – mais importante – impõe a elaboração de relatório metas fiscais anuais de desempenho, devendo encaminhá-lo ao TCE/RJ e à Comissão de Tributação da ALERJ. Demais disso, há importante obrigação ao Poder Executivo de manter portal de transparência aberto à consulta da sociedade com informações a respeito dos incentivos concedidos e das empresas beneficiadas, salvo aquelas acobertadas pelo sigilo fiscal.[68]
No mais, ressalte-se que os relatórios de metas fiscais tratam tão somente da etapa posterior à fixação da política de fomento que o Estado pretende adotar, não cobrindo, portanto, o período anterior de planejamento, ao qual deve ser conferida igual publicidade e oportunização de participação democrática.
Esta nova repartição de competências trazida pela Lei estadual n° 8.445/19 gera razões para otimismo, mas com ressalvas: como se percebe do histórico retratado pela auditoria do TCE/RJ e pela ação civil pública, há verdadeiro caos institucional no âmbito do Poder Executivo,[69] havendo vários diplomas normativos e órgãos com atribuição de monitoramento, e nenhum que de fato os exerça.[70] Trata-se, em síntese, de uma mistura de conflitos negativos e positivos de competência, em que vigora a assimetria informacional e a falta de compromisso com a eficiência pragmática do gasto público.
Assim, só o tempo dirá se esta simplificação e centralização na SEFAZ trará melhor governança na concessão de incentivos fiscais no Estado do Rio de Janeiro: para além de boas Leis, há que se ter verdadeira “vontade de fomento” pelo gestor público no seu cumprimento e planejamento.
5 – Notas conclusivas
O presente artigo buscou trazer o estado da arte da dogmática do fomento público no Brasil, o qual, embora enaltecido diante de alternativas mais intervencionistas, não conta com a teorização adequada. Aliás, por demais abrangente, a dogmática do fomento público não se mostra capaz de orientar os problemas do dia a dia da gestão pública.
Após destacar a correlação entre uma boa cultura de fomento público e o seu adequado manejo na prática, elencamos alguns elementos socioculturais brasileiros que podem desvirtuar o fomento de sua finalidade democrática – a permeabilidade da captura regulatória, o patrimonialismo e o capitalismo de laços se revelaram conceitos centrais nesta etapa.
Na sequência, procuramos desenvolver uma releitura da ajuda pública com esteio, principalmente, na obra de José Vicente dos Santos Mendonça, que traça diversos limites formais, materiais e procedimentais.
Por fim, fizemos um estudo de caso que se tornou emblemático na opinião pública recentemente: a concessão de incentivos fiscais de ICMS no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. A enorme complexidade que envolve a questão nos obrigou a enfocar um aspecto específico: a ausência de transparência, que corrói a possibilidade de controle social das políticas públicas de fomento.
Com isso, esperamos ter lançado luzes para o papel que a incorporação de uma leitura crítica do fomento público na dogmática tradicional pode exercer na governança concreta.
Em tempos nos quais muito se fala de crise democrática, transformar a concessão de ajudas públicas em ferramenta republicana e aberta da qual todos podem participar em condições de igualdade, embora não figure nem de longe como a panaceia de todos os problemas, certamente tem uma função a cumprir na maior identificação do cidadão com a res publica.[71]
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STANLEY, Jason. How fascism works: the politics of us and them. Random House, New York. 2018.
STEARNS, Maxwell; ZYWICKI, Todd. Public Choice concepts and applications in law. West Academic Publishing, 2009.
STIGLER, George. Theory of Economic Regulation. In: Bell Journal of Economics, 1971.
SUNSTEIN, Cass. Beyond the Republican Revival. University of Chicago Law School, 1988.
TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Renovar, 2001.
TRAVASSOS, Marcelo Zenni. O Estado subsidiário regulador e de fomento na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: Revista: CCCSS Contribuciones a la Ciencias Sociales, 2015.
[1] Art. 173 – Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
[2] A literatura é cambiante no que tange à classificação das falhas de mercado, sendo as mais relevantes delas a assimetria informacional, as externalidades, a concentração predatória de poder de mercado e as práticas anti-concorrenciais, os bens públicos, e os problemas de coordenação. Sobre falhas de mercado, desenvolver em BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding Regulation: Theory, Strategy and Practice. Oxford University Press. Second Edition, 2012. pp. 15-25; e em BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: Transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Fórum. 2ª edição, 2017. pp. 160-179.
[3] Quanto ao ponto, endossamos a tese de que a Ordem Econômica da Constituição não é neutra, não sendo a intervenção do Estado na economia – seja ela direta ou indireta – fundamentada tão somente na regulação das falhas de mercado, mas também na promoção dos direitos fundamentais e dos objetivos programáticos consagrados, dentre outros, nos arts. 1°, 3° e 170 da Carta Republicana.
[4] Sobre a atuação sinérgica da iniciativa privada e de entes públicos, consultar a instigante obra de MINOW, Martha. Partners, not Rivals: Privatization and the public good. Beacon Press, 2002.
[5] É o que se extrai, por exemplo, do Estado subsidiário defendido em: TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Renovar, 2001. Embora com maior rigor argumentativo, o modelo de Estado promocional defendido por Egon Bockmann Moreira também caminha no mesmo sentido. Ver: MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo contemporâneo e suas relações com a economia. Curitiba: Editora Virtual Gratuita – EVG, 2016.
[6] Há, ainda, vieses institucionais do serviço público brasileiro, como, por exemplo, o viés de inércia decorrente da estabilidade e dos poucos incentivos de promoção por desempenho, o que pode acarretar a ausência de análise crítica pormenorizada que o fomento requer.
[7] Para uma análise do fomento na ordem econômica constitucional que realiza este itinerário histórico, ver: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Edição n° 35, 1995. pp. 13-52.
[8] Uma acessível introdução à teoria dos sistemas pode ser encontrada em: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. Editora Saraiva, 2ª edição, 2011. pp. 15-46
[9] É o que defende, dentre outros, STANLEY, Jason. How fascism works: the politics of us and them. Random House, New York. 2018.
[10] É discutível se tal falácia é proposital, refletindo ilusionismo típico da captura cultural. Quanto ao conceito de captura cultural, ver: KWAK, James. Cultural Capture and the Financial Crisis. In: CARPENTER, Daniel; MOSS, David (Ed.). Preventing Regulatory Capture: Special Interest influence and how to limit it. Cambridge University Press, 2014. pp. 71-99. Neste sentido de busca por um meio termo entre socialismo e laissez-faire, ver: ACKERMAN, Bruce; ALSTOTT, Anne. Why Stakeholding?. In: ACKERMAN, Bruce; ALSTOTT, Anne; PARIJS, Philippe van. Redesigning Distribution: basic income and stakeholder grants as cornerstones for an egalitarian capitalism. Verso, 2006.
[11] Lazzarini e Musacchio falam, no Brasil, da oscilação entre um Leviatã como investidor minoritário e majoritário. Ver: LAZZARINI, Sergio; MUSACCHIO, Aldo. Reinventando o capitalismo de Estado: o Leviatã nos negócios: Brasil e outros países. 1ª Edição – São Paulo: Portfolio-Penguin, 2015. pp. 18-31.
[12] As Emendas Constitucionais n° 05, 08 e 09, todas de 1995, flexibilizaram alguns monopólios, conferindo abertura à iniciativa privada, ao passo que as Emendas n° 06 e 07 facilitaram a entrada de capital estrangeiro. Por fim, vigia desde 1990 o Programa Nacional de Desestatização – Lei n° 8.031/90.
[13] Como se verá na seção seguinte, até a privatização foi feita com grande participação estatal.
[14] A jurisprudência do STF segue esta orientação, como se extrai do seguinte trecho da ementa do acórdão da ADI 1.923, julgada em 16/04/2015: “6. A finalidade de fomento, in casu, é posta em prática pela cessão de recursos, bens e pessoal da Administração Pública para as entidades privadas, após a celebração de contrato de gestão, o que viabilizará o direcionamento, pelo Poder Público, da atuação do particular em consonância com o interesse público, através da inserção de metas e de resultados a serem alcançados, sem que isso configure qualquer forma de renúncia aos deveres constitucionais de atuação. 7. Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado. 8. Os arts. 18 a 22 da Lei n. 9.637/98 apenas concentram a decisão política, que poderia ser validamente feita no futuro, de afastar a atuação de entidades públicas através da intervenção direta para privilegiar a escolha pela busca dos mesmos fins através da indução e do fomento de atores privados, razão pela qual a extinção das entidades mencionadas nos dispositivos não afronta a Constituição, dada a irrelevância do fator tempo na opção pelo modelo de fomento se simultaneamente ou após a edição da Lei”.
[15] TRAVASSOS, Marcelo Zenni. O Estado subsidiário regulador e de fomento na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: Revista: CCCSS Contribuciones a la Ciencias Sociales, 2015.
[16] Recomenda-se aprofundar em: MENDONÇA, José Vicente Santos de; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Fundamentalização e fundamentalismo na interpretação do princípio constitucional da livre iniciativa. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Org.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações práticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[17] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 15ª Edição, Editora Forense, 2010.
[18] De todos os manuais consultados, o do Diogo de Figueiredo Moreira Neto é o que aborda o fomento público em maior detalhe à luz do direito constitucional econômico positivo.
[19] Elementos pertencentes à “moderna” Administração Pública.
[20] O fomento público mediante medidas fiscais deve, ainda, respeitar o princípio da legalidade orçamentária e os ditames do art. 14 da LRF.
[21] A ressalva é importante, pois não obstante o emprego de determinada técnica de fomento seja, em princípio, discricionário e esteja sujeito à conveniência e oportunidade do gestor, há, após sua concessão, vinculação da Administração Pública durante o prazo de vigência do benefício, ressalvada hipótese de revogação por descumprimento do beneficiário, como se verá a seguir.
[22] Súmula 544 – Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.
[23] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Curso de Direito Administrativo. 6ª edição, revista, atualizada e ampliada – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 564
[24] Com efeito, o papel promocional do Direito tem muita importância no estudo do fomento público. Para uma análise do direito e desenvolvimento, ver: COUTINHO, Diogo R. Direito, desigualdade e desenvolvimento. Editora Saraiva, 2013. pp. 83-109
[25] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 12ª Edição. São Paulo: Editora RT, 2016. pp. 857-868.
[26] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 29ª Edição, Malheiros, 2012. pp. 832-833.
[27] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 31ª Edição. Forense, 2018.
[28] Respectivamente: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 16ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2011. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 25ª Edição. Rio de Janeiro: Atlas, 2012.
[29] Para uma boa síntese desse modelo de governança, ver: LISBOA, Marcos. Prefácio. In: MELLO, Fernando; SELIGMAN, Milton. Lobby desvendado: democracia, políticas públicas e corrupção no Brasil Contemporâneo. 1ª Edição. Editora Record, 2018.
[30] LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de Laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
[31] Para uma leitura contemporânea dos traços da antropologia brasileira captados pelos grandes ensaístas do Brasil, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. Companhia das Letras, 2019.
[32] LAZZARINI, Sérgio. Op. Cit. pp. 25-26
[33] Sobre a literatura de falhas de governo, ver: STIGLER, George. Theory of Economic Regulation. In: Bell Journal of Economics, 1971. BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Op. Cit. pp. 43-49.
[34] Por todos, ver: KWAK, James. Op. Cit.
[35] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 5ª Edição. Fórum, 2016. pp. 644-645.
[36] Até o final desta seção, os apontamentos sobre os limites do fomento público se louvam da obra de: MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Constitucional Econômico: a intervenção do Estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. 2ª Edição, Fórum, 2018. pp. 307-359.
[37] O próprio STF possui entendimento consolidado no sentido de que a divulgação dos vencimentos dos servidores com sua respectiva identificação não viola direito à privacidade, por envolver, em última análise, responsividade com o uso do dinheiro público (ver por todos, Agravo em Recurso Extraordinário n° 652.777). O mesmo raciocínio pode ser empregado para a transparência no fomento público.
[38] Neste sentido, a exposição de motivos da Lei Geral de Subvenções espanhola é bastante enfática ao frisar a importância da transparência para a gestão pública.
[39] Aliás, a transparência gera incentivos de eficiência. Transcrevam-se, aqui, as lições de Brandeis “Publicidade é recomendada como remédio tanto para patologias sociais quanto econômicas. A luz solar é o melhor dos desinfetantes; a luz elétrica é o policial mais eficiente”. BRANDEIS, Louis. Other people’s Money and how the bankers use it. New York Publishers, 1914. p. 94.
[40] A transparência ativa, embora prevista no art. 8° da Lei de Acesso à Informação, ainda é parcamente aplicada, mormente nos rincões do país.
[41] Para os que entendem existir um direito fundamental à justificação, a transparência é medida necessária, mas não suficiente, para a sua observância. Desenvolver em: FORST, Rainer. The right to justification: elements of a constructivist theory of justice. Columbia University Press, 2011. BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração normativa. 2ª edição, Fórum: 2017.
[42] A leitura republicana da liberdade como não-dominação pode ser extraída de PETTIT, Phillip. Republicanism: a Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, 1996; RAHMAN, Sabeel. Democracy against Domination. New York: Oxford University Press, 2017. Para uma leitura contemporânea do republicanismo, ver, também: SARMENTO, Daniel. O princípio republicano nos 30 anos da Constituição de 88: por uma República Inclusiva. In: SARMENTO, Daniel. República, inclusão e constitucionalismo: Escritos Constitucionais. Lumen Juris, 2018. MICHELMAN, Frank. Law’s Republic. Yale Law Journal, 1998; SUNSTEIN, Cass. Beyond the Republican Revival. University of Chicago Law School, 1988.
[43] Sobre a teoria dos grupos de interesse, conferir: STEARNS, Maxwell; ZYWICKI, Todd. Public Choice concepts and applications in law. West Academic Publishing, 2009. FARBER, Daniel; FRICKEY, Philip. Law and Public Choice: a critical introduction. University of Chicago Press, 1991.
[44] Por outro lado, intensificam-se os vieses de órgãos coletivos, tais como a busca por consenso e certa pausterização argumentativa. Em todo caso, o trade-off se mostra legítimo não só por razões de eficiência, mas também de legitimidade democrática.
[45] O que deve ser evitado a todo custo, por refletir verdadeira burla à própria razão de ser de órgãos coletivos distintos, é a formação de órgãos diferentes com as mesmas pessoas. Trata-se, infelizmente, de postura muito adotada no cenário fluminense, como se verá adiante.
[46] Cabe ressalvar aqui que tal tese é mais fácil de se aplicar em políticas de fomento bem desenhadas. Consideremos, por outro lado, os aportes robustos da política do BNDES de construção de campeões nacionais: neste caso, é até possível cogitar que a lucratividade tenha sido a intenção da política de fomento. Para uma leitura crítica do que foram os campeões nacionais, à luz das doações de campanha e do capitalismo de laços, ver: LAZZARINI, Sérgio; MUSACCHIO, Aldo. O Leviatã nos negócios no Brasil: práticas passadas, mudanças futuras. In: MELLO, Fernando; SELIGMAN, Milton. Op. Cit.
[47] Art. 884 – Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
[48] No caso, se configurados os requisitos para intervenção direta previstos no art. 173 da Constituição, bem como demonstrada a possibilidade de atendimento aos fins constitucionais mediante a intervenção direta, entendemos ser possível seu manejo pelo Estado.
[49] A própria eficiência pragmática pode ser entendida como uma exigência republicana.
[50] Mendonça destaca o compromisso da razão pública com a promoção de ambiente plural e aberto ao dissenso, de modo a não propiciar uma eficácia silenciadora do discurso.
[51] Com traços de perfeccionismo moral tal como um humanismo cívico aristotélico.
[52] Essa possibilidade não é banal: recentemente a ANCINE voltou atrás em incentivos concedidos à temática artística avessa à pauta de costumes do governo recém-eleito. Embora a razão pública não tenha sido usada como fundamento, há risco de que ela seja invocada em casos futuros como uma reinvenção da “razão de Estado”.
[53] Neste sentido, o exemplo do requisito trazido por Mendonça - de que o beneficiário promova a “arte popular contemporânea de alta qualidade” - não passa pelo critério material de objetividade, não necessitando do uso da razão pública para ser afastado.
[54] Dito de outra forma, a razão pública, na prática, pode acabar conferindo margem a discricionariedade – rectius: arbitrariedade – que os demais critérios pretendem excluir.
[55] Há grande semelhança com o primeiro subprincípio da proporcionalidade: a adequação. Sobre o princípio da proporcionalidade, ver: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª Edição, Malheiros, 2010.
[56] Além disso, servem para orientar a eficiência pragmática do gasto.
[57] Além disso, o recorte feito no presente artigo torna impraticável o exame do arcabouço normativo prévio para a concessão de benefícios fiscais de ICMS no âmbito dos Estados – i.e. autorização do CONFAZ por unanimidade -, bem como o não menos importante contexto de “guerra fiscal”. A questão será abordada incidentalmente ao tratarmos dos argumentos do Estado do Rio de Janeiro para a concessão dos benefícios.
[58] Destaco, aqui, trecho do voto “Depreende-se das Atas de Reunião da Comissão Permanente de Políticas para o Desenvolvimento Econômico (CPPDE) do período que, em diversas oportunidades, a análise para a concessão dos benefícios não adentrou questões relevantes, como o impacto que a vinda de determinada empresa pode causar na economia da região. (...) O Relatório de Auditoria é enfático ao afirmar que as Atas de Reunião em que são discutidos e decididos assuntos de extrema relevância e impacto direto nas finanças estaduais deveriam ser mais transparentes, apresentando o teor de toda a discussão que antecede o deferimento e/ou indeferimento dos pedidos. Segundo o Corpo Técnico, trata-se, em última análise, da aplicação do princípio da motivação dos atos administrativos. Neste sentido, torna-se imperiosa a adoção de medidas que garantam a transparência das decisões adotadas, razão pela qual acolho o encaminhamento sugerido pelo Corpo Instrutivo (...)”.
[59] Há divisão funcional, alguns pedidos de enquadramento em benefícios fiscais eram submetidos ao monitoramento da CODIN – v.g o setor de joias - e outros da SEFAZ.
[60] Houve, também, resposta quanto à convalidação de benefícios anteriormente concedidos sem a autorização do CONFAZ, na forma regulamentada pelo Convênio ICMS n° 190/17 e pela Lei Complementar n° 160/17. Como dito anteriormente, o exame dos requisitos formais específicos dos benefícios de ICMS escapa a alçada do presente trabalho.
[61] Frisa-se, aqui, importante determinação do TCE/RJ que denota uma tentativa de coordenação entre órgãos de controle: em face da propositura da ação civil pública movida pelo MPE com objeto análogo ao da auditoria, o Parquet estadual foi oficiado para tomar ciência da decisão da Corte de Contas.
[62] O Ministério Público do Estado, por meio do Grupo de Atuação Especializada em Combate à Sonegação Fiscal e aos Ilícitos contra a Ordem Tributária – GAESF/MPRJ, instaura inquéritos para apurar a concessão individuais de benefícios fiscais, tendo movido alguns Mandados de Segurança em caso de negativa ou inércia do Poder Executivo em fornecer as informações pertinentes. A ação civil pública em comento possui a peculiaridade de ter por objeto todos os benefícios fiscais concedidos pelo Estado, sob uma ótica republicana de moralidade e eficiência pragmática do gasto.
[63] Confira-se trecho do acórdão que denota a centralidade da transparência e do republicanismo na ação civil pública: “O que se busca com a propositura da ação é se aferir a transparência e legalidade de benefícios fiscais, pois nem mesmo o próprio agravante parece conhecer quais as empresas são beneficiárias e de que forma foram concedidas as isenções. Dessa forma, não há como saber quais seriam as demais empresas que supostamente estariam sendo prejudicadas pela política estatal de concessão de benefícios”.
[64] A fundamentação é excessivamente lacônica e afirma tão somente que “a divulgação prévia das informações contidas nesta nota técnica poderá impactar o andamento dos procedimentos administrativos e legais necessários a sua implementação”, sendo, pois, contrária ao paradigma da publicidade.
[65] Para uma densa análise institucionalista da Constituição econômica, ver: COOTER, Robert. The Strategic Constitution. Princeton University Press, 2000.
[66] Por exemplo, não há como extrair das diretivas acima elencadas a polêmica priorização do setor de joalheria, tal como foi adotado nos últimos anos pelo Estado. Em contraponto, a Comissão alega que a alta portabilidade e o risco elevado de evasão fiscal justificam a concessão de incentivos ao setor.
[67] Contudo, a SEFAZ pode solicitar apoio de qualquer outro órgão do Poder Executivo – em especial a CODIN e a AGERIO - para fins de cumprimento de sua atribuição de fiscalização, nos termos do art. 3°, §1° daquele diploma normativo.
[68] Aliás, é de se consignar que esta postura, prevista no art. 6°, deveria ter sido adotada pelo Poder Executivo na divulgação das informações do Anexo 18 do Plano de Recuperação Fiscal.
[69] Neste sentido, é sintomático que, no acórdão que cassou a liminar da ação civil pública, o relator afirmou que nem o próprio Governador tem ciência de todos os benefícios fiscais (v. nota 60 supra).
[70] A CAF – Comissão de Avaliação Fiscal -, prevista no art. 7°, em muito se assemelha à COPOF – Comissão de Planejamento Orçamentário e Financeiro, instituída pelo Decreto estadual n° 45.108/15, tanto em termos de atribuição quanto de composição. Assim, deve-se ter especial atenção para não haver meramente mudança de fachada, sem resultados positivos efetivos de governança.
[71] Sobre o papel integrativo das coisas públicas – nas quais se insere o fomento – na constituição do sujeito democrático, pautado nas lições de Arendt e Winnicott, ver: HONIG, Bonnie. Public Things: democracy in disrepair. Fordham University Press, 2017.
mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Assessor Jurídico Especial na Secretaria de Estado da Casa Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Rafael Cascardo Cardoso dos. O fomento público no Estado promocional: um estudo a partir da experiência do Estado do Rio de Janeiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57301/o-fomento-pblico-no-estado-promocional-um-estudo-a-partir-da-experincia-do-estado-do-rio-de-janeiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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