MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO OLIVEIRA DE SOUZA
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo examinar de forma aprofundada o direito à vida e até onde esse direito deve ser compreendido como inviolável e sagrado, bem como ser aplicado na atual sociedade, que de forma constante passa por mudanças e o direito, por ser um sistema de normas que regula a conduta da sociedade, deve se adequar a essas constantes mudanças, levando em consideração o avanço da regulamentação por parte de alguns países pelo mundo. Nesse sentido há uma colisão no texto constitucional e na legislação penal, que deve haver uma equidade, para que se preserve a dignidade da pessoa humana e regular o exercício punitivo estatal, para que não haja injustiças no regime democrático brasileiro. Diante dos argumentos expostos, busca-se a análise da atual legislação pátria e a necessidade de modificar alguns dispositivos, afim de que, a eutanásia deixe de ser vista como um crime contra a vida.
PALAVRA-CHAVE: Direito à vida. Dignidade da pessoa humana. Aplicabilidade.
ABSTRACT: This article aims to examine in depth the right to life and to what extent this right should be understood as inviolable and sacred, as well as being applied in today's society that is constantly undergoing changes and the right as a system of norms that regulates the conduct of society must adapt to these constant changes. In this sense there is a collision in the constitutional text and penal legislation that there must be equity to preserve the dignity of the human person and regulate the state punitive exercise so that there are no injustices in the democratic regime in which Brazil currently lives. Given the above arguments, the aim is to analyze the current Brazilian legislation and the need to modify the device so that the applicability of euthanasia is no longer seen as a crime against life.
KEYWORDS: Right to life. Dignity of the human person. Applicability.
Inicialmente há de se destacar que o tema faz referência à liberdades individuais, e em especial o direito a saúde, e tratando-se da saúde as atenções tendem a não ser coletivas em sua totalidade. A saúde é um direito básico e existem inúmeras doenças com diversas formas de se manifestarem, sendo estas singulares, ou seja, cada uma externa de forma única, o que leva as pessoas que estão acometidas de enfermidades a sofrerem de forma particular, tendo dores específicas, e como dito alhures é algo que deve ser enfrentado por meio da liberdade individual, onde cada pessoa deve ter seu direito de escolha preservada. A falta de uma opção de morte digna e a necessidade de prolongar a vida para que supostamente não respondam por um homicídio, traz dores que nenhum livro, por mais sensível e condolente que seja, saberá descrever como padecem os enfermos.
Portanto, a presente pesquisa tem como objetivo demonstrar que as liberdades individuais têm seus estorvos, que merecem ser sanadas independente da polarização que há de causar, pois o estado democrático de direito concede voz até mesmo as minorias, e há inúmeras pessoas que gritam, e esses gritos não são apenas exteriores de dores no corpo, mas também interior de dores na alma, o que se faz necessário a abertura da discussão acerca da eutanásia em nosso parlamento, para que seja normatizado tal garantia e evitar mais dores e mais desgastes, não só para pacientes, como também familiares e os profissionais da saúde que lidam diariamente com tamanha angústia.
1 CONCEITO SOBRE A EUTANÁSIA E SUAS CONJECTURAS
Inicialmente é preciso compreender o que é a eutanásia, palavra que não é nativa do Brasil, assim como inúmeras que são adequadas ao nosso idioma. Nas palavras de Francis Bacon, filósofo inglês que criou a palavra no século XVII quando a prescreveu pela primeira vez, fazendo com junção de duas palavras do grego sendo elas: EU, que significa bem ou boa, e THANASIA, que de modo geral significa morte, portanto a palavra “eutanásia” significa “boa morte” ou “morte digna”. De forma genérica, visa pôr fim ao sofrimento de alguém que, interpreta-se estar com saúde debilitada e com quadro clínico irreversível, ou seja, alguém que estar com uma doença incurável, sente dores não só físicas, como também psicológica e entende que já está na hora de deixar essa vida.
O tema não é algo que tenha surgido de supetão, pois era um método muito comum em tempos passados, sendo bem nítida na Grécia antiga, onde foi muito usado tendo em vista que, desde os tempos antigos já se falavam em enfermidades incuráveis, e os médicos da época eram relutantes quando se tratava em deixar pessoas sentirem dores que pareciam não ter fim.
No período da antiguidade, muito antes do cristianismo, era comum permitirem o que sempre entenderam como “morte digna” ou até mesmo como forma de não ter para si e para os povos da época um certo trabalho, sendo algo muito comum sacrificar crianças que nasciam com anomalias e até mesmo filhos que matavam seus pais quando estes eram de idade bem avançada, era algo bem corriqueiro, e nos tempos que muito antecederam nossa atual sociedade, o que se seguia era crenças e costumes, havia inclusive na época de Atenas, um parlamento como o nosso atual Senado Federal, que decidiam sobre como se daria a morte de idosos com doenças incuráveis, com o pretexto de que os mesmos em nada contribuíam para a economia. Na própria idade média, guerreiros que vinham de batalhas com ferimentos ou mutilações recebiam um punhal para que tirassem a própria vida.
De modo geral, a eutanásia não é novidade, pois sua origem como discussão e aplicação inicia ainda na Grécia Antiga, e historicamente é aplicada de forma ampla ao longo da história. É certo que na atual sociedade a discussão da eutanásia é algo de valor relevantemente moral com anuência da vítima, deixando então de ser considerado homicídio, como muito descrito nos tempos antigos, e ainda descrito atualmente, pois a mesma e vista como “tabu”, e mal recebida por pessoas que não tem determinada compreensão e vê o ordenamento jurídico como absolutamente correto, imputando um fato definido como crime a profissionais que apenas tentam trazer dignidade para seus pacientes em estado muita das vezes terminal, sem nenhum tratamento que reverta a condição do enfermo.
1.1 Sua aplicação no ponto de vista da medicina
A aplicação da eutanásia é algo que historicamente é debatido, vez que sempre houve resistência por parte dos médicos em deixar alguém enfermo em condições de sofrimento, e não é uma questão restrita a médicos, é até mesmo uma questão de humanidade, empatia, de se colocar no lugar daquele que sente intensa dor e não enxerga esperança para sua atual condição. E então do ponto de vista médico, em geral, é atenuar o sofrimento das pessoas, há claro, divergências sobre a questão da eutanásia, pois muitos enxergam como simplesmente se livrar de um problema, pondo fim a vida de alguém, sem se esforça minimamente pelo tratamento, entretanto, não há cura para todas as enfermidades existentes, são séculos de constante estudo, mas não há cura absoluta para tudo.
No Brasil foi criado em 1951 o Conselho Federal de Medicina, que é responsável por regular normas e condutas dos profissionais da área de medicina, assim como existe a nossa Constituição como norteadora das condutas e regras que os cidadãos devem seguir, o conselho é representado de forma democrática os médicos inscritos neles, devendo seguir normas e dentre elas há a Resolução 1995/2012, que dispões sobre as diretrizes antecipadas de vontade dos pacientes:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
Como se pode analisar, da Resolução do Conselho de Medicina, os médicos devem estar cientes da vontade que o paciente tem na questão do tratamento, dando-lhes a faculdade de escolher qual tratamento querem ou não, ou seja, a medicina brasileira, de modo geral, deixa o livre arbítrio do paciente escolher o tratamento adequado ou não, e essa resolução foi criada pela deliberação da maioria dos médicos que atuam no país, tendo como base códigos de éticas de outros países, a exemplo da Itália, que diz em seu código, no Artigo 34, in verbis:
Art. 34: “Il médico, se il paziente non è in grado di esprimere la propria volontà in caso di grave pericolo di vita, non può non tener conto di quanto precedentemente manifestato dallo stesso” (O médico, se o paciente não está em condições de manifestar sua própria vontade em caso de grave risco de vida, não pode deixar de levar em conta aquilo que foi previamente manifestado pelo mesmo - traduzido).
Prosseguindo o entendimento da resolução do Conselho de Medicina, é de se pontuar ainda o entendimento de Diniz (2011, pag. 438):
“[...] deliberação de antecipar a morte de doente irreversível ou terminal, a pedido seu ou de seus familiares, ante o fato da incurabilidade de sua moléstia, da insuportabilidade de seu sofrimento e da inutilidade de seu tratamento[...]”,
Sendo este do Conselho de Medicina e de uma grande parte da doutrina brasileira que é manifestadamente claro deixar a cargo do paciente qual tratamento o mesmo gostaria de levar por diante, após um diagnóstico de enfermidade. Existem muitos pacientes que preferem não fazer tratamento, pois este traz mais sofrimento, entretanto, optam por simplesmente deixar a enfermidade tomá-los o que também causa intenso sofrimento, caso a eutanásia fosse disponível, os pacientes escolheriam objetivando sua morte de forma digna, evitando assim qualquer sofrimento. Conforme entendimento explanado pelo Conselho Federal de Medicina, é um direito do paciente escolher qual seu destino, Martin (2008, p. 6) deixa explícito que:
O direito de saber e o direito de decidir não são direitos absolutos, mas o respeito por eles no contexto de parceria entre o doente e a equipe médica certamente é elemento fundamental na promoção do bem-estar global do paciente em fase avançada ou terminal de sua doença.
Imperioso destacar que, é fundamental a opção de alguém acometido de enfermidade decidir pelo seu bem estar e, isso também é a opinião daqueles que lidam diariamente com enfermidades, levando para o lado do direito, as pessoas são livres para suas escolhas, não devendo ser julgadas nem privadas de seu direito, nem mesmo por questões religiosas, políticas ou filosóficas, conforme preceitua a Carta Magna em seu Art. 5º, VIII, portanto, a aplicação da eutanásia, do ponto de vista dos médicos, é uma questão humanitária, que além do bom senso, é se colocar no lugar do enfermo, e como quem calça o sapato sabe onde aperta, de igual modo, os médicos que lidam diariamente com tamanha dor, podem, melhor do que ninguém esclarecer que a aplicação da eutanásia é necessária e merece ser discutida.
1.2 Possibilidades e necessidades de sua aplicação na atual sociedade
Oriundo de uma esperança que pode ocorrer sendo uma possibilidade volátil, a aplicação da eutanásia, é vista como uma situação possível na atual sociedade, onde o conceito de necessidade se aplica em algo indispensável, que não se pode deixar de ter ou até mesmo ser útil, e sua possibilidade e necessidade é corroborado pela mudança da sociedade, uma vez que os tempos mudam, a tecnologia muda, e claramente o direito também deve acompanhar essas mudanças, segundo Martins (2016, p. 2) destaca:
No primeiro momento, o direito surge como mudança social institucionalizada e planejada, verdadeiro instrumento de desenvolvimento social, posto em prática por um ato normativo formal. No segundo momento, resulta a necessidade de a ordem jurídica ser flexível ao clamor dos fatos, absorvendo-os, sob pena de conduzir à falta de controle social e à desarmonia.
Nesse sentido, é necessário considerar que aquele que se encontra enfermo, está em estado de constante sofrimento, e esse sentimento passa para seus familiares, amigos, e até a equipe médica que acompanha o enfermo e, de acordo com o entendimento do autor citado acima, é necessário a ordem jurídica ser flexível aos fatos, em especial ao clamor daqueles que buscam no Estado um guardião de seus direitos e, ao menos viver ou ter a opção digna de decidir pela própria vida não deveria nem ser clamado uma modificação, e sim prontamente ouvido e debatido no momento em que se suplica por ajuda.
Outro ponto acerca da participação social é que, de certa forma isso causa um estímulo para que haja pressões, e ignorar o clamor dos fatos pode conduzir a desarmonia e descontrole social, nesse sentido Miranda Rosa (1989, p. 58-59) destaca:
que os estímulos sociais à modificação da ordem jurídica assumem formas variadas, seja pelo crescimento lento da pressão dos padrões e normas alterados da vida social, criando uma distância cada vez maior entre os fatos da vida e o Direito, seja pela súbita e imperiosa exigência de certas emergências nacionais, visando a uma redistribuição dos recursos naturais ou novos paradigmas de justiça social, ou seja ainda pelos novos desenvolvimentos científicos.
Note-se que a ordem jurídica, segundo entendimento de Miranda Rosa, tem formas variadas a aplicação da justiça social em face dos movimentos sociais, uma vez que aguarda por nortes da parte científica ou senso de justiça. Imperioso destacar que o entendimento da autora, por mais que ultrapasse mais de 3 décadas, é possível visualizar esses estímulos na atualidade. A exemplo de modificação das leis, temos o caso da Lei da Ficha Limpa, oriunda de forte apoio da sociedade, sendo protocolada como Projeto Popular 518/09, onde colheu 1.3 milhão de assinaturas (1% dos eleitores da época) e com apoio da internet rendeu mais de 1,6 milhão de assinantes, enfrentou críticas e grandes chances de não ser validada pela Suprema Corte brasileira, mas o apoio da sociedade foi fator preponderante para a aprovação da lei, ainda que com resistência de muitos juristas brasileiros.
Como se pode analisar, de modo igual a Lei da Ficha Limpa se tornou-se uma necessidade, ante uma sociedade castigada pela corrupção, a eutanásia também com aprovação de leis favoráveis, ainda que atinja apenas uma minoria, mas é de se pontuar que todos estamos sujeitos a ficar enfermos, e o mínimo que se quer é um tratamento digno, ou dias com dignidade. Assim como a lei da ficha limpa era apenas uma possibilidade, mas com apoio da sociedade e principalmente por ser uma necessidade por busca de mudanças, a mesma é aplicada até os dias atuais.
Por todo exposto, diante de um olhar atento aos doentes que na maioria das vezes são esquecidos pela sociedade, e diante de suas necessidades, em não permanecer apenas à mercê de esperar com intenso sofrimento a hora da morte, haja vista isso trazer custos altos à família e, a sociedade de forma indireta, é necessário, como medida de humanidade, empatia, e senso, a permissão da eutanásia para os que não querem permanecer em intenso estado de dor, pois além de ter direito a vida, é necessário enquanto vivo, viver dignamente.
2 NECESSÁRIA ADEQUAÇÃO DA EUTANÁSIA AO DISPOTIVO LEGAL E SUA APLICABILIDADE EM OUTROS PAÍSES
A eutanásia é aplicada em diversos países, e a ascensão da sociedade permitiram tal possibilidade em razão da medicina não ser tão avançada na época, e ainda que se tenha progredido e muito no último século, há ainda determinas enfermidades que são incuráveis, segundo a medicina, e adiar tal fim a tamanha dor é aumentar o sofrimento, e em razão da necessidade de olhar com o lado humano, muitos países permitem, ou simplesmente não punem a prática de quem presta auxílio a quem quer pôr fim a vida, em razão de enfermidade incurável, ou seja, é visto como crime contra vida, mas não se aplica nenhum tipo de punibilidade, um exemplo é o Paraguai, país da América do Sul e inclusive vizinho nosso, onde desde 1934 em seu Código Penal tornou uma faculdade ao magistrado penalizar ou não quem pratica a eutanásia, mas somente nesses casos.
Eutanásia é nos demais países a legalização se deu com o passar dos anos, e atualmente permitida na Holanda, Bélgica, Suíça, Alemanha, França, Itália, Japão, Argentina, Canadá, legalizações essas que são aplicadas somente em casos de doença terminal, devidamente comprovada. No caso dos Estados Unidos, essa prática continua proibida, mas alguns estados como Oregon, Washington, Vermont, Novo México e a Califórnia permitem o suicídio assistido, sendo, portanto, a prática cada vez mais comum em países desenvolvidos. Neste ano de 2021, a Espanha aprovou a lei que regulamenta o uso da eutanásia, e em novembro deste ano a Nova Zelândia irá permitir a eutanásia, estando o tema avançando em todo o mundo iniciando nos países acima destacados.
Tratando da América do Sul, outro país que também permite a eutanásia é a Colômbia, permissão essa concedida pela Suprema Corte do país desde 1997, e nesse ano de 2021 o país iria realizar a eutanásia em uma paciente que foi diagnosticada com ELA (esclerose lateral amiotrófica), enfermidade esta degenerativa, optou a paciente pela eutanásia e, foi autorizada pela justiça do país, conforme reportagem mostrada pela Band TV. Entretanto acabou sendo alvo de inúmeros protestos, em especial pela comunidade religiosa, o que levou a suspensão do procedimento por parte da clínica, que iria ocorrer em 10 de outubro do ano corrente. Portanto, pode-se extrair que é uma discussão bastante atual, tanto que foi realizada ainda em 2021. Assim sendo, há de se ponderar a força expressiva da igreja e a real necessidade dos cidadãos que estão sob o rigor da lei do estado soberano, nesse sentido entende Diniz (2018, p. 2):
A eutanásia é um assunto polêmico devido ao fato de envolver diversas ordens, como a cultural, religiosa, ética, jurídica e social, sendo um fenômeno permitido em alguns países, extremamente proibido em outros, e gerador de discussões entre a comunidade médica, jurídica e a igreja, principalmente a católica. Para se adentrar no assunto, se faz necessária o entendimento inicial do surgimento da prática da eutanásia e sobre a evolução histórica da ideia de tirar a vida de um ser humano, com intuito de cessar o sofrimento insuportável, em virtude de o indivíduo não ter perspectiva de cura e recuperação, o que se entende por “boa morte”.
Nesse sentido, sendo imprescindível sua normatização, é momento do Brasil debater sua legalização, pois conforme citado anteriormente, há países que optam em punir quem auxilia ou possuem permissão por parte da justiça, e há ainda de se ponderar que a religião deve ser mantida com determinada neutralidade acerca do tema, para que não haja injustiças, em especial quando se trata de países democráticos, não podendo os mesmos serem semelhantes a uma teocracia, especialmente um país como o nosso, onde se faz necessário essa neutralidade, consoante direitos fundamentais explícitos na Constituição Federal que tem como cláusula pétrea a liberdade de convicções religiosas. Assim sendo, deve o Brasil assim como em outros países, adotar normas concorrentes a eutanásia especialmente.
2.1 A interpretação jurídica e os sujeitos beneficiados com a mudança na lei
Atualmente o Brasil não tem uma normatização e sendo ela omissa pode ser interpretada com previsão no Art. 121 ou 122 do CPB, sendo estes correspondentes a homicídio ou induzimento, e até mesmo prestar auxílio para o suicídio. Acerca do homicídio estabelece o Código Penal: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Como pode-se extrair, a interpretação acerca desse dispositivo, é matar alguém, ou tirar a vida. Neste caso, seria imputado ao médico o crime de homicídio por tirar a vida de alguém, podendo este sofrer penalização de seis a vinte anos de reclusão. Noutro giro pode-se interpretar como auxiliar em suicídio, nesse sentido, preconiza o Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar- lhe auxílio material para que o faça: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Além do homicídio, a conduta de quem induz quem presta auxílio a alguém que opta em pôr fim a vida responde pela infração do Art. 122 do Código Penal Brasileiro, e como mencionado no primeiro parágrafo sendo a Lei omissa, ocorre a aplicação dos dois dispositivos vigentes para o médico, sendo essa a interpretação disponível para os profissionais da saúde que podem sofrer penalização, ainda que a prevista no 122 que possui uma pena até dois anos.
Nesse sentido, e não havendo normatização ou regulamentação sobre a eutanásia, está exposto a conduta do médico e fica o paciente enfermo sujeito a não ter nem uma vida digna e nem mesmo uma morte digna, o Brasil já teve um projeto de lei para regulamentar a eutanásia o Projeto de Lei 125/96 apresentado pelo então senador Gilam Borges do Partido Movimento Democrático Brasileiro, hoje Movimento Democrático Brasileiro, projeto este que acabou arquivado em 2013 sem ao menos ter sido votado.
Noutro giro, desconsiderando a interpretação jurídica negativa por parte da legislação brasileira, há de se considerar os beneficiados com a mudança da lei, em primeiro lugar as pessoas que veem a eutanásia como alternativa para cessar o sofrimento da enfermidade incurável, tendo como base o princípio da autonomia da vontade, Almeida (2019, p. 1) explicita:
O princípio da autonomia da vontade é utilizado em defesa da legalização da eutanásia e se baseia na liberdade que cada indivíduo possui para livremente tomar suas próprias decisões. Dentro do campo da eutanásia é defendido que cada pessoa deve ter o direito de decidir diante de situações de doenças incuráveis sobre continuar ou não a conviver com dores e sofrimentos que não serão cessados, nesse sentido se discute que o Estado já não podendo garantir uma vida digna não pode exigir sua continuidade. A eutanásia amparada pelo princípio da autonomia da vontade defende, o respeito ao exercício da liberdade individual do próprio indivíduo.
Diante deste entendimento, é possível concluir que os principais beneficiados serão aqueles que são merecedores do direito de decidir sobre si mesmo, manifestando assim sua vontade com base tanto na Carta Magna, quanto na legislação civil.
Outro grande beneficiado serão os profissionais da área da saúde que não serão mais responsabilizados penalmente por apresentarem uma solução que cesse o sofrimento alheio, ou quando os pacientes, por vontade própria, decidem acerca do que fazer diante de um quadro irreversível, e assim os profissionais da medicina não serem marginalizados, mais do que acabam sendo, inicialmente pela família, segundo pela religião que consegue facilmente induzir a opinião da sociedade, e por fim, sendo marginalizados perante um tribunal, acusados de delitos que não fizeram por querer e, sim por ser uma solução mais viável.
2.2 Cooperação e prática para perscrutar o direito constitucional
Evidentemente há divergências de interpretações acerca do que é a eutanásia, mas já há de se destacar que existe a eutanásia e o suicídio assistido, e existe um abismo de diferença entre os dois, tendo eles conceitos distintos, como dito alhures, a eutanásia visa cessar o período ruim de alguém que está com enfermidade incurável, pessoa essa que não decidiu estar enfermo, foi circunstância alheia a sua vontade, o que é oposto do suicídio assistido, ou suicídio genérico, que é a ocasião que alguém decide dar fim a própria vida, ou seja, de forma intencional causar a própria morte, seja por perturbações mentais ou psicológicas advindas de estresse extremo, insatisfação ou motivos até então considerado pessoais.
A discussão sobre a eutanásia é extremamente sensível em razão da polarização que a mesma causa, que envolve além da saúde, o direito e a religião, por isso é visto como tabu para a atual sociedade, não só brasileira como também de inúmeros países no mundo, é tanto que são poucos os países que permitem a sua aplicação com respaldo em lei. Na América do Sul, continente onde se encontra o Brasil, há discussões jurídicas acerca de sua legalização, mas somente o Uruguai e Colômbia permitem, sendo o Uruguai com um dispositivo legal que isenta quem permite a eutanásia ser aplicada, e a Colômbia com entendimento firmado pela Corte Suprema, que permite essa prática, que na visão genérica se chama “homicídio piedoso”, ou seja, há uma brecha na legislação desses países que isentam médicos que usem a eutanásia, mas não há lei que regulamente tal prática.
Já no Brasil, a discussão é vista como tabu, ou seja, algo que é proibido moralmente, em razão das questões religiosas e, em razão de o direito à vida ser consagrado pela nossa Carta Magna. Ocorre que questões religiosas não podem se sobressair de temas que são inerentes a decisão individual, vez que a própria religião preponderante concede o livre arbítrio para tomada de decisões.
Não se pode deixar de destacar que a questão constitucional de fato preserva a vida, mas que não há hierarquia entre os direitos fundamentais, o direito à vida não é o mais sagrado de nosso ordenamento, se assim fosse, deveríamos pensar no direito à dignidade, direito esse que preenche o direito à vida em sua extensão, e o direito à vida é tema de grande complexidade, conforme leciona BARROSO (2018, p. 153), vejamos:
Direito à vida: todos os ordenamentos jurídicos protegem o direito à vida. Como consequência, o homicídio é tratado em todos eles como crime. A dignidade preenche, em quase toda sua extensão, o conteúdo desse direito. Não obstante isso, em torno do direito à vida se travam debates de grande complexidade moral e jurídica, como a pena de morte, o aborto e a eutanásia.
Nesse sentido, o destaque se volta para a análise contundente de que não se deve haver hierarquia entre as normas, vez que eventualmente elas colidem umas com as outras, até mesmo, em casos extremos, a eutanásia faz parte dos embates, referente a complexidade do tema, especialmente pelas questões morais que também é garantido pela Carta Magna, mas acerca disto ainda na obra do direito contemporâneo do Ministro do Supremo Tribunal Federal cita essa inexistência de hierarquia, conforme diz Barroso (2018, p. 184), vejamos:
Em primeiro lugar, e acima de tudo, porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais. Embora se possa cogitar de certa hierarquia axiológica, tendo em vista determinados valores que seriam, em tese, mais elevados – como a dignidade da pessoa humana ou o direito à vida – a Constituição contém previsões de privação de liberdade (art. 5º, XLVI, a) e até de pena de morte (art. 5º, XLVII, a). Não é possível, no entanto, afirmar a inconstitucionalidade dessas disposições, frutos da mesma vontade constituinte originária. Por essa razão, uma norma constitucional não pode ser inconstitucional em face de outra.
Imperioso destacar que muito além de não haver hierarquia entre os direitos fundamentais, há também o direito de decisão de cada um de manter-se vivo, vez que muito se fala em direito à vida, mas além disto, deve-se ter uma vida digna, tratando ainda do evento em que a eutanásia pode ser aplicada. É importante ressaltar que esse direito é inerente à pessoa, ou, de quem por ela está respondendo, mas em especial da pessoa onde a mesma ainda possa manifestar suas vontades, conforme entendimento do saudoso doutor Gonçalves (2011, p. 287) em sua obra acerca do direito constitucional:
No plano da Biologia, vida é aquela condição na qual um determinado organismo seja capaz de manter suas funções de modo contínuo, como metabolismo, crescimento, reação a estímulos provindos do ambiente, reprodução etc. Porém, temos que a vida, enquanto direito fundamental básico, não pode e não deve ser analisada apenas pela ótica biológica.[845] Daí a atual concepção de que o direito à vida deve ser analisado sob um duplo enfoque, qual seja: o direito da vida em si mesma (direito de estar vivo) e o direito à vida digna (com condições mínimas de existência).
Conforme está sobrepujado, há necessidade de uma análise de duplo enfoque acerca do direito de estar vivo com condições mínimas de existência, razão esta que é predominante sobre da dignidade a pessoa acerca da condição em que alguém tem em não querer mais estar vivo diante de um diagnóstico incurável, que mais cedo ou mais tarde irá levar essa pessoa a um sofrimento.
E por mais pesado que seja a palavra eutanásia, é um sofrimento para aqueles que estão em leitos de hospital aguardando a morte natural ou sob intensa dor. Neste sentido é mais do que necessário levar em consideração a decisão de pôr fim a situação que a pessoa enferma se encontra, estando a mesma com grande amparo da equipe médica e da equipe psicológica que pode explicar e levar o paciente a um estado de profunda reflexão antes de tomar tão extrema decisão.
Mas para que se possa abordar o assunto precisa-se debruçar sobre o tema e sua relevância e, especialmente o impacto positivo que pode causar em inúmeras pessoas que estão com enfermidades incuráveis, para então, por intermédio das instituições legitimadas pelo poder constituinte, poder se discutir e adequar o tema a nossa legislação, considerando que este evento será impactante para a sociedade civil como um todo, para a área do direito e principalmente para a área da saúde, que muitas vezes é sempre esquecida e desvalorizada pelas autoridades.
CONCLUSÃO
O presente estudo buscou evidenciar o outro lado das liberdades individuais que muitas vezes é ignorado em razão de barreiras religiosas, barreiras estas que estão previstas em Lei, e as razões pela qual ela merece ser adequada a realidade social que o país e o mundo vivenciam atualmente.
Constatou-se que o tema não é uma inovação, visto que nos tempos antigos era possível a aplicação da mesma, vale frisar que o direito não é absoluto, e nem podemos equipará-lo a visão religiosa, ainda que a religiosidade seja preponderante, a exemplo disto, o casamento era cessado com a morte de um dos cônjuges, fator este influenciado pela religião, entretanto em razão da realidade social o direito teve de se adequar para que tal prática não fosse vista como fato antijurídico, de igual modo a eutanásia também é considerada até mesmo um crime contra a vida, mas de fato é absoluto tal direito? ou será que a interpretação da garantia de tal direito está equivocada, tanto é verdade que vários países adotam a eutanásia como direito fundamental a pessoa humana, e mais uma vez reiterando que, é diferente do suicídio assistido, a América do Sul, país onde o Brasil está estabelecido tem países que adotam em sua legislação, ou por permissão da suprema corte, seja de forma para legalizar ou não punir aquele que presta auxílio ou oferece a eutanásia, que muitas das vezes tem os profissionais da área da saúde como alvos.
Nesse sentido ficou também bastante evidente que existem princípios no nosso país que dão espaço para que seja debatido o tema de forma bastante debruçada, destacando o direito à vida que não pode ser entendido como um direito absoluto e muito menos que se sobressaia sobre os demais direitos, pois entre eles não há hierarquia e, temos também a legislação que trata da autonomia da vontade, onde fica bastante evidente que as vontades próprias merecem respeito, pois não está de forma alguma influenciando ou prejudicando direitos alheios e muito menos da coletividade.
Paralelo a este entendimento fica evidente que os cidadãos são muito amarrados as omissões da lei, e essa omissão acaba não sanada por conta da pressão religiosa que a nação possui, em razão de sua grande influência, portanto deve-se afastar a religião das leis pois não somos uma teocracia, e em especial suprir as omissões e permitir que de forma integral as garantias individuais sejam respeitadas, como dito alhures, não prejudica o direito alheio, nem mesmo a coletividade, pois trata das necessidades individuais, decisões individuais, livre pensamento e decisão acerca de si mesmo que não pode ser limitado pelo Estado, nem religião, daí a razão do estudo em ter como alvo principal o estudo da legislação, da interpretação, dos beneficiados e em especial do quanto esse estudo pode trazer esclarecimentos da necessidade de se debater o tema, e esclarecer as garantias fundamentais do direito constitucional brasileiro.
Por fim, é de extrema importância o Congresso Nacional iniciar um debate em torno de uma permissão para que as pessoas tenham de fato direito à liberdade, bem como esteja claro que não se deve haver hierarquias entre direitos, onde um sobressai sobre o outro, pois de certa forma muitos acabam prejudicados por conta da pressão que não somente os pacientes passam, mas outros que compõe a sociedade como familiares, médicos, psicólogos e entre outros, e com o debate do tema não seja algo político, religioso, ideológico, ou que causa qualquer tipo de polarização, mas que o direito à vida tenha como complemento, direito a viver de forma digna, ou ter uma morte digna pelo bem da geração atual.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA. Januzia. A eutanásia à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus.com, 2018. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/73146/a-eutanasia-a- luz-do-ordenamento-juridico-brasileiro>. Acesso em 12 de outubro de 2021.
BARROSO, Luís Roberto Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. - 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018; p 153 e 184.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 07 de outubro de 2021.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/del2848compilado.htm >. Acesso em 12 de outubro de 2021.
CODICE DI DEONTOLOGIA MÉDICA. MÉDICA. Disponível em: < https://www.omceo.me.it/ordine/cod_deo/commentario.pdf>. Acesso em 28 de setembro de 2021.
Código de ética médica: resolução CFM nº 1.995, de 09 de agosto de 2012 (versão de bolso) / Conselho Federal de Medicina - Brasília: Conselho Federal de Medicina,2012.Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar /resolucoes/BR/2012/1995>. Acesso em 28 de setembro de 2021.
DINIZ, Ana Clara. A EUTANÁSIA NO ÂMBITO INTERNACIONAL: a aplicabilidade no Direito Constitucional Português. V. 9. N 1. Revista das Faculdades Integradas Vianna Junior. 2018. DOI: 10.31994/rvs. v9i1.373. - . Disponível em:< https://orcid. org/0000-0002-4117-4643>. Acesso em 10 de outubro de 2021.
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 8.ed. São Paulo. Editora Saraiva. 2011. ISBN: 9788502108226.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves Curso de direito constitucional / Bernardo Gonçalves Fernandes. - 3.ed. - Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; p 287.
MARTIN, Leonardo M. Eutanásia e Distanásia. Revista Portal Médico. Disponível em: <http://bio-neuro-psicologia.usuarios.rdc.pucrio.br/assets/02bioetica(distanasia).pdf>. Acesso em 30 de setembro de 2021.
MARTINS, Leonardo Resende. Operadores do Direito e Mudanças Sociais. Disponível em: <http://revistathemis.tjce.jus.br/index.php/THEMIS/article/viewFile/315/296#:~:text=No%20primeiro%20momento%2C%20o%20direito,por%20um%20ato%20normativo%20formal.&text=Constata%2Dse%2C%20pois%2C%20que,contr%C3%A1rias%2C%20mas%20complemEntares%20e%20interdependentes>. Acesso em 08 de outubro de 2021.
MIRANDA, Rosa. Sociologia do Direito, 7a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1989, pp. 58-59.
Artigo publicado em 17/11/2021 e republicado em 07/05/2024
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Ademar de Andrade Mourão. Eutanásia e os aspectos jurídicos relevantes e a possibilidade de sua normatização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2024, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57477/eutansia-e-os-aspectos-jurdicos-relevantes-e-a-possibilidade-de-sua-normatizao. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Precisa estar logado para fazer comentários.