RESUMO: O presente artigo objetiva a discussão da aplicabilidade do Princípio da Insignificância no crime de furto previsto no Art. 240, do Código Penal Militar. Não se pretende com esse estudo esgotarmos o assunto, a literatura é escassa, o tema é controverso e até certo ponto polêmico, por se tratar em determinados casos, de colisão de princípios. O posicionamento do STF ainda é divergente nesse sentido. Nas turmas do STF, há precedentes favoráveis e contrários no que diz respeito aos julgamentos dos casos em concreto sobre a aplicação do Princípio da insignificância no crime de furto na seara militar. A proposta do estudo é responder a seguinte indagação: é possível aplicar o princípio da insignificância ao crime de furto previsto no artigo 240 do CPM?
Palavras-chave: princípio, insignificância, direito penal, militar, furto.
ABSTRACT: This article aims to discuss the applicability of the principle of insignificance in the crime of theft provided for in article 240 of the Military Penal Code. This study does not intend to exhaust the subject, the subject is scarce, controversial and to some extent controversial, as it is, in certain cases, a collision of principles. The STF position is still divergent in this regard. In the STF groups, there are favorable and contrary precedents with regard to the judgment of specific cases on the application of the principle of insignificance in the crime of theft. The purpose of the study is to answer the following question: is it possible to apply the principle of insignificance to the crime of theft provided for in article 240 of the CPM?
Keywords: principle, insignificance, criminal law, military, theft
Sumário: Introdução. 1. Natureza Jurídica do Princípio da insignificância no Direito Penal. 1.1 Do conceito do Princípio da Insignificância, Princípios x Regras 2. Princípios norteadores basilares do princípio da insignificância. 2.1 Do Princípio da Intervenção Mínima 2.2 Do Princípio da Subsidiariedade 2.3 Do Princípio da Fragmentariedade 2.4 Do Princípio da Dignidade Humana 3. A Tipicidade Penal e o Princípio da insignificância. 4. O furto praticado por autor militar 4.1 A definição de Crime Militar 4.2 O furto no Código Penal Militar 5. A jurisprudência dos tribunais superiores e o Princípio da Insignificância 6. Princípio da insignificância aplicado ao crime de furto do código penal militar 7. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar o Princípio da Insignificância aplicado ao crime de furto na legislação penal militar. Tal crime é citado no Código Penal Militar (CPM) (Decreto Lei nº1001, de 21 de outubro de 1969) disciplina in verbis no art.240 “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”.
Observa-se que nas diversas áreas do Direito sejam elas, civil, administrativo, tributário, penal, dentre outras áreas, atuam de forma a proteger um bem tutelado. Essa proteção é amparada por lei, e encontra-se vinculada sob um ordenamento jurídico previsto na Constituição Federal de 1988.
Os princípios penais constitucionais integram a base jurídica do ordenamento jurídico-penal, e têm como finalidade precípua, a garantia de direitos fundamentais, exteriorizados pelo poder punitivo do Estado.
O Direito Penal é considerado a “ultima ratio”, a última razão, o último recurso. Significa dizer que a legislação penal deve atingir os bens tutelados que não foram alcançados por outras áreas do Direito, como forma subsidiária de proteger os bens essenciais. Daí a abordagem do estudo sobre o Princípio da Insignificância que visa afastar as condutas típicas que não sejam relevantes ao Direito Penal, e que por este motivo não merecem uma adequação ao modelo legal punitivo.
Dessa forma, o Princípio da Insignificância será abordado como causa supralegal de excludente de tipicidade. O referido princípio é fundamentado por outros princípios do Direito Penal, como o da intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade e a da dignidade humana.
O estudo objetivou compreender a legislação especial do Código Penal Militar, a doutrina e a jurisprudência sob a ótica de apontar teses que poderiam ser aprofundadas para o debate no sentido de aplicabilidade do Princípio da Insignificância ao crime de furto previsto no Art. 240 do código penal militar.
A pesquisa será de natureza qualitativa, quanto aos objetivos exploratória, e com relação ao procedimento de coleta, a bibliográfica.
1. NATUREZA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL
Para a compreensão do tema do estudo, têm-se como critério a seleção de obras contemporâneas no sentido de realizar um debate sobre a questão e apresentar um enfoque atual sobre o tema. Por isso, inicialmente, seleciona-se para o embasamento teórico as obras de Gomes (2005), Pamplona (2008), Souza Nucci (2017), Reale (2006) e Almeida (2013).
1.1 Do conceito do Princípio da insignificância, Princípios x Regras
O conceito do Princípio da Insignificância foi previsto por Claus Roxin em 1964, cujo intuito era afastar das figuras típicas penais, àquelas que ensejassem em insignificante ofensa ao bem jurídico.
No Brasil, o referido princípio foi empregado em 1988, em uma condenação de lesão corporal, cujo resultado do julgamento teria acarretado inexpressividade da lesão (BRASIL. STF. RHC 66.869/PR. Relator: Min Aldir Passarinho. Brasília, 06.12.88)
Também considerado um princípio jurídico-penal implícito, tem o respaldo constitucional, como cláusula de reserva, do texto constitucional prevista no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Antes de adentrar ao tema da pesquisa sobre o princípio da Insignificância aplicado ao crime de furto previsto no Art. 240 Código Penal Militar ( CPM) é importante conceituar a definição de princípios e regras dentro do ordenamento jurídico.
O Direito é exteriorizado por meio das normas que são constituídas das regras e princípios. Deste modo, afirma GOMES (2005):
[...] o Direito se expressa por meio de normas. As normas se exprimem por meio de regras ou princípios. As regras disciplinam uma determinada situação; quando ocorre essa situação, a norma tem incidência; quando não ocorre, não tem incidência. Para as regras vale a lógica do tudo ou nada (Dworkin). Quando duas regras colidem, fala-se em "conflito"; ao caso concreto uma só será aplicável (uma afasta a aplicação da outra). O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a anterior etc. Princípios são as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico (ou de parte dele). Seu espectro de incidência é muito mais amplo que o das regras. Entre eles pode haver "colisão", não conflito. Quando colidem, não se excluem. Como "mandados de otimização" que são (Alexy), sempre podem ter incidência em casos concretos (às vezes, concomitantemente dois ou mais deles).
Portanto, convém destacar que na colisão de princípios haverá um prevalente entre os princípios em conflito, devendo-se adotar no caso em concreto um juízo de ponderação, não há uma exclusão, como ocorre no conflito entre regras.
Isto posto, percebe-se que há uma distinção de princípio versus regras para a aplicação do Direito. No princípio, há uma abrangência maior do que as regras, que implicitamente detêm um caráter de obrigatoriedade e normatividade. Segundo Reale, citado por Almeida (2013):
Os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.
Logo, o contexto histórico do Princípio da Insignificância remonta ao direito romano, segundo o doutrinador Diomar Ackel Filho, com a máxima minimis non curar praetor , ou seja , o pretor não cuida de coisas pequenas. (PERISSOLI, 2015).
Introduzido por Claus Roxin no Direito Penal, embora não tendo previsão normativa, a doutrina entende que o Princípio da Insignificância procura afastar a tipicidade de condutas consideradas irrelevantes, e que por este motivo não merecem um enquadramento legal punitivo.
2. PRINCÍPIOS NORTEADORES BASILARES DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Dentre os princípios que se adequam como basilares do Princípio da Insignificância para a efetivação do direito penal em um Estado Democrático de Direito, destacamos o princípio da Intervenção Mínima, o da Subsidiariedade , o da Fragmentariedade e o da Dignidade Humana, aplicados pela jurisprudência e doutrina para a caracterização do Princípio da Insignificância.
2.1 Do Princípio da Intervenção Mínima
O princípio da intervenção mínima consiste em dizer que o Direito Penal em sua aplicação só poderá atuar quando as outras ramificações do direito se tornarem insuficientes, razão pela qual é o instituto penal chamado a ultima “ratio”.
Corrobora nesse sentido Nucci , conforme citado por Andraus (2014):
[...] A lei penal não deve ser vista como a primeira opção( prima ratio) do legislador para compor os conflitos existentes em sociedade, e que, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade , sempre estarão presentes. Há outros ramos do direito preparados a solucionar desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores consequências. O direito penal é considerado a ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende por outra solução não pode haver senão a criação da lei penal incriminadora, impondo sanção ao infrator (ANDRAUS, 2014).
2.2 Do Princípio da Subsidiariedade
Conforme afirma Pamplona, citado por Ervilha Júnior (2014), explícita a natureza subsidiária do direito penal:
O Direito Penal é de natureza subsidiária. Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se. (...) consequentemente, e por ser a reação mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar (ERVILHA JUNIOR, 2014).
Dessa maneira, se revela o princípio da subsidiariedade do direito penal. Por ser a liberdade um bem tutelado prevalente sobre outros pretensos direitos de natureza cível, só pode valer-se desse ramo jurídico quando outros meios menos lesivos não bastarem à tutela dos bens jurídicos.
2.3 Do Princípio da Fragmentariedade
Correlato ao princípio da intervenção mínima, o princípio da fragmentariedade rege que mesmo na esfera penal , somente pode recorrer a punição estatal quando os bens jurídicos tutelados, ou seja, os bens protegidos pela lei , foram ofendidos de forma gravosa. Não importa ao direito penal, a atuação em ofensas que de fato não são relevantes. Daí se abstrai o seu caráter fragmentário.
É o que afirma Bittencourt (2014), ao dizer que: “ o direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí seu caráter fragmentário [...]”.
2.4 Princípio da Dignidade Humana
É a dignidade da pessoa humana, o pilar para a concretude dos demais princípios relacionados ao da Insignificância previsto na constituição como cláusula pétrea, ou seja, direitos que não podem ser suprimidos. Alicerçados nas ideias iluministas, arcabouço da declaração universal dos direitos humanos de 1948. A aplicação prática do Princípio da Insignificância, perpassa os fundamentos da pessoa humana, como sujeito de direitos e constitui como essência dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal.
3. A Tipicidade Penal e o Princípio da Insignificância
Existem várias teorias sobre o crime, e uma delas refere-se ao seu conceito analítico. Esta visão tripartida do crime, somente existiria quando estivessem presentes seus três elementos fundamentais: fato típico, ilicitude e culpabilidade.
Segundo Guilherme de Souza Nucci (2017, p.76):
analítico: é a concepção da ciência do direito, que não difere, na essência, do conceito formal. Trata-se de uma conduta típica, antijurídica e culpável, vale dizer, uma ação ou omissão ajustada a um modelo legal de conduta proibida (tipicidade), contrária ao direito (antijuridicidade) e sujeita a um juízo de reprovação social incidente sobre o fato e seu autor, desde que existam imputabilidade, consciência potencial de ilicitude e exigibilidade e possibilidade de agir conforme o direito (culpabilidade). Justamente quanto ao conceito analítico é que se podem encontrar as maiores divergências doutrinárias. Há quem entenda ser o crime, do ponto de vista analítico: a) um fato típico e antijurídico, sendo a culpabilidade apenas um pressuposto de aplicação da pena (RENÉ ARIEL DOTTI, DAMÁSIO DE JESUS, JULIO FABBRINI MIRABETE, CELSO DELMANTO, FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS, entre outros); b) um fato típico, antijurídico, culpável e punível (BASILEU GARCIA, MUÑOZ CONDE, HASSEMER, BATTAGLINI, JIMENEZ DE ASÚA, ANTÓN ONECA, GIMBERNAT ORDEIG, GIORGIO MARINUCCI e EMILIO DOLCINI, entre outros); c) um fato típico e culpável, estando a antijuridicidade ínsita ao próprio tipo (MIGUEL REALE JÚNIOR [...] ( SOUZA NUCCI, 2017).
O fato típico por sua vez é composto pelos requisitos: conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade.
Destarte, o Princípio da Insignificância constitui uma excludente do fato típico, na esfera da tipicidade. Neste sentido, Rogério Greco apud Severian Koniuchowicz afirma:
A tipicidade penal seria a resultante, portanto, da conjugação da tipicidade formal com a tipicidade conglobante (antinormatividade + atividades não fomentadas + tipicidade material). Elaborando um raciocínio lógico, chegaríamos à seguinte conclusão: se não há tipicidade material, não há tipicidade conglobante; por conseguinte, se não há tipicidade penal, não haverá fato típico; e, como consequência lógica, se não há o fato típico, não haverá crime ( GRECO, 2013) .
Neste contexto, a tipicidade formal seria a adequação da conduta à norma incriminadora. Já a concepção material da tipicidade, é considerada efetivamente à lesão ao bem jurídico tutelado. Isto posto, a natureza jurídica- penal da Insignificância é a exclusão da tipicidade material.
À vista disso, à luz do STF, o princípio da insignificância deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado, pois em matéria penal tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material (BRASIL. STF. HC 92.493/RS. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 16/10/2007).
Assim sendo, não obstante o fato típico, afastada a tipicidade material, é considerada atípica a conduta, se houver irrisória lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
Por conseguinte, não há justa causa para abertura de inquérito penal ou processo, podendo tais discussões serem objeto de Habeas Corpus para eventual trancamento do Inquérito ou Processo.
4. O furto praticado por autor militar
O termo militar está amparado pelo artigo 144 da CF, compreendendo os integrantes das forças armadas:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988).
É oportuno ressaltar que são também considerados militares, os integrantes das Polícias Militares, conforme previsão no Art. 42 da CF: “Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. “
4.1 A DEFINIÇÃO DE CRIME MILITAR
Os crimes militares são os que estão tipificados no decreto- lei Nr 1.001, de 21 de Outubro de 1969. No artigo 9 º , há a definição dos crimes militares em tempo de paz.
O crime militar, subdividem-se em crimes militares próprios e impróprios. Os próprios são aqueles que podem ser praticados apenas por militares, previstos exclusivamente no Código Penal Militar, excetuando o crime de insubmissão previsto no artigo 183 do CPM em que o agente é obrigatoriamente civil.
Já os crimes militares impróprios são aqueles cujas incidências podem ser aduzidas no código penal militar ou no código penal comum e podem ser praticados por militares ou civis.
4.2 O furto no Código Penal Militar ( CPM ) :
O furto no CPM tem a previsão contida no art. 240 do referido diploma “ Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, até seis anos.” No parágrafo § 1º, traz a previsão do furto atenuado mediante condições de primariedade, e sendo de pequeno valor a coisa furtada.
§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar. Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país. § 2º A atenuação do parágrafo anterior é igualmente aplicável no caso em que o criminoso, sendo primário, restitui a coisa ao seu dono ou repara o dano causado, antes de instaurada a ação penal. ( BRASIL,1940).
5. A jurisprudência dos tribunais superiores e o Princípio da Insignificância
O tema da pesquisa encontra-se revestido de embasamento jurídico, pois as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, vêm entendendo que o princípio da Insignificância seria aplicável em sede de crimes militares.
Ao relatar o recurso de Habeas Corpus n. 89.624-3/RS, a Ministra Carmen Lúcia (STF), decidiu em não dar provimento a uma propositura de ação penal militar de furto reconhecendo a incidência do Princípio da Insignificância.
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. PROCESSUAL PENAL MILITAR. FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL MILITAR. 1. Os bens subtraídos pelo Paciente não resultaram em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da Insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequência, torna atípico o fato denunciado. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Recorrente. Não há que subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 2. Recurso provido.
Ao corroborar com os requisitos do Princípio da Insignificância, outro Habeas Corpus, o de Nr 145.406 , cujo relator foi o Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, afirma que é essencial a existência de vetores para a incidência do princípio da Insignificância, cuja constatação mostra-se essencial à descaracterização material da tipicidade penal da conduta imputada ao agente, de tal maneira que a ausência de qualquer desses vetores tornará inaplicável o postulado da Insignificância.
O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL– O princípio da Insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. (HC 145.506).
De forma geral, a suprema corte indica 04 (quatro) características para a aferição do referido princípio:
a) Mínima ofensividade da conduta do agente,
b) Nenhuma periculosidade social da ação
c) Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento
d) Inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Ao contrário, nos julgados onde se constatou a habitualidade delitiva, o furto qualificado, os crimes de drogas e a reincidência específica foram circunstâncias judiciais que ensejaram a inaplicabilidade do Princípio da Insignificância.
6. O Princípio da Insignificância aplicado ao crime de furto do Código Penal Militar
Segundo narra o histórico de uma ocorrência policial, conforme reportagem abaixo , em um quartel da PMMG, um policial militar foi preso por ter bebido refrigerante de um colega. A conduta resultou em sua prisão pelo crime de furto.
Um policial militar foi preso após beber o refrigerante de uma colega de trabalho na 9ª Região Integrada de Segurança Pública, em Uberlândia. Segundo a Polícia Militar, a vítima chegou para trabalhar e guardou a bebida na geladeira da cozinha de uso comum. Ela almoçou, tomou o refrigerante e o que restou deixou para tomar mais tarde com um lanche que havia levado. Quando retornou para o horário de lanchar, alguém havia bebido o refrigerante e jogado a embalagem no lixo. Ela, então, avisou ao superior responsável pelo videomonitoramento da unidade. O policial foi questionado pelos superiores e ele informou que sempre deixa comidas e bebidas também na geladeira e nunca se importou de que outros bebessem. Disse ainda que antes de folgar na quinta e sexta, deixou um refrigerante igual ao da colega na geladeira e que acredita ter tomado o da vítima achando que seria o dele. Ao militar foi dada a ordem de prisão em flagrante delito. Os fatos foram apurados e confirmados por uma câmera de monitoramento instalada na cozinha. ( Estado de Minas, 2018)
Conforme explicitado na ocorrência acima que resultou na prisão do policial militar, poderia no caso concreto, ter sido aplicado o princípio da Insignificância?
O que se percebe, é que cada fato ensejará uma análise ao caso concreto, e a questão ainda é controversa junto aos tribunais superiores.
É o que afirma a ementa:
EM SE TRATANDO DE CRIME DE FURTO, A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA DEVE SER CASUÍSTICA, INCUMBINDO AO JUÍZO DE ORIGEM AVALIAR, NO CASO CONCRETO, A MELHOR FORMA DE ASSEGURAR A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA, EXAMINANDO A POSSIBILIDADE DA INCIDÊNCIA DO PRIVILÉGIO PREVISTO NO ARTIGO 155, & 2º, DO CÓDIGO PENAL, OU DO RECONHECIMENTO DA ATIPICIDADE DA CONDUTA, COM FUNDAMENTO NO PRINCÍPIO DA BAGATELA ( HC 123.734) . ( BRASIL. STF. HC 119844 AgR/G. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, 29.06.2018) .
No caso acima descrito, embora de pequeno valor o bem, não ensejou na insignificância, pois afrontou os pilares da disciplina inerente à atividade policial militar. Portanto, o crime ocorrido no interior do aquartelamento, foi considerado como alto grau de reprovabilidade, contrariando um dos vetores elencados pelo STF para a incidência do Princípio da Insignificância.
Ementa: Furto de celular de militar por colega no interior do alojamento de batalhão.
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. CRIME PRATICADO NO INTERIOR DE ORGANIZAÇÃO MILITAR. ELEVADO GRAU DE REPROVABILIDADE DA CONDUTA. O elevado grau de reprovabilidade de conduta criminosa praticada por militar no interior de organização militar impede a aplicação do princípio da insignificância. (BRASIL. STF. HC 135674/PE. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, 27.09.16)
Peculato-furto de gêneros alimentícios, avaliados em R$215,22, dentro de unidade de organização militar: aplicabilidade do princípio da insignificância.
CRIME MILITAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RECONHECIMENTO NA INSTÂNCIA CASTRENSE. POSSIBILIDADE. DIREITO PENAL. ÚLTIMA RATIO. CONDUTA MANIFESTAMENTE ATÍPICA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ORDEM CONCEDIDA. [...] O Supremo Tribunal admite a aplicação dos Princípios da Insignificância na instância castrense, desde que, reunidos os pressupostos comuns a todos os delitos, não sejam comprometidas a hierarquia e a disciplina exigidas dos integrantes das forças públicas e exista uma solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito. Precedentes. (BRASIL. STF.HC 108168/PE. Relatora: Min. Cármen Lúcia. Brasília, 13.05.14).
É importante destacar que os pilares das instituições militares são a hierarquia e a disciplina. Esses fundamentos são o que permeiam a ética, a moral e a vida castrense que são levados em consideração quando do julgamento do delito.
É entendimento ainda não expressamente consolidado na Jurisprudência, que para o crime de furto aplicado no interior das Organizações Militares Estaduais, não se aplica o Princípio da Insignificância.
6.1 o furto atenuado no CPM:
Por outro lado, há condutas que podem incidir na aplicação do Princípio da Insignificância, conforme previsão legal no Art. 240, &1 do CPM:
§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar. Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da quantia mensal do mais alto salário-mínimo do país.
É o que corrobora o julgado do STF:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. PROCESSUAL PENAL MILITAR. FURTO. INEXISTÊNCIA DE LESÃO A BEM JURIDICAMENTE PROTEGIDO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PENAL MILITAR. 1. Os bens subtraídos pelo Paciente não resultaram em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por conseqüência, torna atípico o fato denunciado. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Recorrente. Não há que se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos. 2. Recurso provido”. (RHC 89624 RS, Min Cármen Lúcia, julgado em 09 Out 06).
Dessa maneira, se o magistrado entende que a infração pode ser considerada como disciplinar, incidirá na atuação do Princípio da Fragmentariedade, ou seja, outros ramos do direito, no caso o administrativo irá adotar as providências decorrentes daquela conduta. Não obstante, em termos penais, a conduta será considerada atípica, caracterizando assim no Princípio da Insignificância.
Neste sentido, dentro de uma interpretação normativa, os crimes de furto ocorridos fora do ambiente castrense, cujas características incidam na :
a) Mínima ofensividade da conduta do agente,
b) Nenhuma periculosidade social da ação
c) Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento
d) Inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Assim sendo, devem ser submetidos sob a apreciação do Princípio da Insignificância, pois ainda que haja a incidência do referido princípio, não significa que ocorrerá a impunidade da conduta, pois atendendo ao princípio da fragmentariedade, a conduta será considerada atípica para o Direito Penal, contudo subsistirá a infração disciplinar norteada por outro ramo do Direito , nesse caso, o Direito Administrativo.
CONCLUSÃO
O princípio da insignificância tem os seus fundamentos alicerçados em princípios constitucionais, dentre os quais destacamos, o princípio da dignidade humana.
A proposta do artigo era responder a seguinte indagação: se era possível aplicar o princípio da insignificância ao crime de furto previsto no Art. 240 do Código Penal Militar.
O militar é um ser sujeito de direitos e deveres perante a sociedade, que não obstante cumprir um juramento de defesa da Pátria ou da sociedade, não se pode imaginar em pleno Estado de Direito, o desrespeito a sua dignidade humana.
Todos devemos ser iguais perante a lei, essa é uma premissa constitucional que não pode ser ignorada. Neste sentido, ao militar no cometimento do crime de furto também deve ser aplicada a incidência do Princípio da Insignificância.
Embora a aplicabilidade do princípio da insignificância na seara militar junto aos tribunais superiores ainda seja controversa, tem sido pacifico o entendimento de que o crime cometido no interior do aquartelamento enseja em elevado grau de reprovabilidade. Destarte, posto que viola um dos requisitos analisados pela suprema corte, enseja a inaplicabilidade do referido instituto.
Contudo, os delitos de furtos que forem cometidos extramuros, ou seja, fora do ambiente castrense, que tiverem os requisitos previstos pela jurisprudência do STF, devem ser aplicados atendidos ao requisitos do princípio da insignificância.
Isso não significa dizer que a conduta cometida pelo militar não terá consequências. É possível que na esfera militar haja a atipicidade da conduta em razão da aplicabilidade do princípio da insignificância, tendo-se em vista que o direito penal é a última “ratio”. Porém, atendendo ao princípio da fragmentariedade, na esfera administrativa, a conduta será apurada através de procedimento disciplinar que poderá acarretar até a demissão do militar das fileiras da corporação.
Assim sendo, atendendo aos requisitos elencados pelo STF, há a possibilidade de incidência do Princípio da Insignificância no crime de furto, desde que avaliado o caso em concreto, e não ofendam aos pilares da hierarquia e da disciplina.
REFERÊNCIAS
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Artigo publicado nesse veículo em 21/12/2021 e republicado em 14/03/2024.
Graduou-se em Direito pela Centro Universitário Una. É pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Major da Polícia Militar de Minas Gerais, tem especialização em segurança pública pela fundação Guimarães Rosa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Danteskan Serra. Aplicabilidade do princípio da insignificância no crime de furto previsto no Código Penal Militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 mar 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/57928/aplicabilidade-do-princpio-da-insignificncia-no-crime-de-furto-previsto-no-cdigo-penal-militar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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