Resumo: O artigo analisa a inclusão da cobertura do procedimento de fertilização in vitro nos planos básicos de saúde. Preliminarmente, serão expostos os entendimentos sobre a competência jurisdicional para as ações envolvendo os planos de saúde. Posteriormente, serão examinados os precedentes judiciais sobre a matéria. O trabalho adotou o método hipotético-dedutivo, com pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.
Palavras-chaves: Planos de saúde. Competência jurisdicional. Inseminação artificial. Fertilização in vitro. ANS. STJ. Contratos securitários. Equilíbrio financeiro. Atuária.
Abstract: The article analyzes the inclusion of coverage of the in vitro fertilization procedure in basic health plans. Preliminarily, the understandings on jurisdictional competence for actions involving health plans will be exposed. Subsequently, the judicial precedents on the matter will be examined. The work adopted the hypothetical-deductive method, with bibliographic and jurisprudential research.
Keywords: Health insurance. Jurisdictional competence. Artificial insemination. In vitro fertilization. ANS. STJ. Insurance contracts. Financial balance. actuary.
Sumário: 1.Introdução. 2.Competência Jurisdicional para litígios entre usuários e operadoras de planos de saúde. 3.Inseminação artificial e Fertilização in vitro. 4. Inclusão na cobertura dos planos de saúde na visão do STJ. 5. Conclusão.
1-Introdução
O presente trabalho analisa o entendimento jurisprudencial acerca da inclusão da técnica de fertilização in vitro na cobertura dos planos de saúde. Inicialmente, será analisada a competência jurisdicional para as ações envolvendo os planos de saúde. Em seguida, o artigo adentra na extensão da cobertura dos seguros saúde para procedimentos não previstos expressamente em suas cláusulas. Para tanto, serão examinados com profundidade julgados oriundos dos tribunais superiores sobre a fertilização in vitro, expondo as diferentes visões que cercam o tema.
2-A Competência Jurisdicional para os litígios entre usuários e operadoras.
Os seguros saúde no Brasil são bastante demandados judicialmente, exigindo investimentos maciços na estruturação de seus departamentos jurídicos. Como regra, a competência entre usuários e operadoras é da justiça comum estadual, com a regência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, por se qualificar como atividade securitária prevista no seu artigo 3º, §2º.
No entanto, uma quantidade considerável de planos de saúde são operados pelas empresas para servirem seus empregados. Nessa situação, é relevante definir qual a justiça competente para as ações judiciais. Os tribunais do trabalho, sempre ávidos por estenderem sua competência, consideravam de sua alçada decidir tais litígios. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça fixou balizas objetivas para a divisão da competência nesses casos.
No julgamento do conflito de competência nº 165.863/SP, da relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, o STJ decidiu pela competência da justiça comum para as demandas entre usuário e operadora, exceto quando o plano é organizado na modalidade de autogestão empresarial, sendo operado pela própria empresa contratante do trabalhador, hipótese em que a competência é da justiça do trabalho.
A modalidade de autogestão retira o plano de saúde do raio de incidência do CDC, já que não possui finalidade lucrativa e não é ofertado no mercado de serviços. Ele é regulamentado pela Resolução Normativa nº 137/2006 da ANS.
Antes de iniciar o julgamento, a Ministra Nancy Andrigui sugeriu a afetação de processos da classe dos conflitos de competência, pois, nessa classe originária, a cognição do STJ não fica limitada ao conhecimento de uma questão federal infraconstitucional, como ocorre na competência recursal do art. 105, inciso III, da CF, relativa ao recurso especial.
A sugestão da Min. Nancy Andrigui foi acolhida, tendo sido afetado o conflito de competência, de modo a permitir o enfrentamento da controvérsia sob o aspecto constitucional.
Assim, a afetação de um recurso especial em conflito de competência permitiu à corte se debruçar sobre as questões constitucionais envolvidas, especialmente as disposições do art. 114 da CF/88. O caso foi julgado na sistemática do Incidente de Assunção de Competência nº 5, fixando-se tese para os efeitos do art. 947, §3º, do Código de Processo Civil, a fim de vincular todos os juízes e órgãos fracionários, ressalvada a revisão de tese.
A jurisprudência do STJ, com fundamento na autonomia do contrato de plano de saúde em relação ao contrato de trabalho, passou a manifestar o entendimento de que a competência seria da Justiça comum, mesmo na hipótese de autogestão empresarial, modalidade em que a operação do plano de saúde é realizada pelo departamento de recurso humanos da própria empresa que contratou o trabalhador, nos moldes do art. 2º, inciso I, da Resolução Normativa 137/2006 da ANS.
Após o surgimento da Lei nº 9.656/1998, que regulamentou os planos de saúde, da Lei nº 9.961/2000, que criou a ANS, e da Lei nº 10.243/2001, que conferiu nova redação ao § 2º do art. 458 da CLT, a Saúde Suplementar, incluídas as autogestões, adquiriu autonomia em relação ao Direito do Trabalho, visto possuir campo temático, teorias e princípios específicos.
O art. 458, § 2º, IV, da CLT, incluído pela Lei nº 10.243/2001, é expresso em dispor que a assistência médica, hospitalar e odontológica concedida pelo empregador, seja diretamente ou mediante seguro-saúde, não será considerada salário.
Conforme ponderou o relator do CC 165.863/SP, Min. Paulo de Tarso:
“Em virtude da autonomia jurídica, as ações originadas de controvérsias entre usuário de plano de saúde coletivo e entidade de autogestão (empresarial, instituída ou associativa) não se adéquam ao ramo do Direito do Trabalho, tampouco podem ser inseridas em outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, previstas no art. 114, IX, da CF, sendo, pois, predominante o caráter civil da relação entre os litigantes, mesmo porque a assistência médica não integra o contrato de trabalho.
A demanda de ex-trabalhador que discute a conduta da ex-empresa empregadora, na qualidade de operadora de plano de saúde (modalidade autogestão), como a negativa de mantê-lo no plano coletivo original, deverá tramitar na Justiça Comum estadual (e não na Justiça do Trabalho) em razão da autonomia da Saúde Suplementar, da não integração da referida utilidade no contrato de trabalho, do término da relação de emprego e do caráter cível do tema.”
Após a formação desse precedente, a única hipótese em que a competência foi mantida na Justiça do Trabalho são as ações em face de planos de saúde na modalidade de autogestão, com regras previstas em contrato de trabalho, acordo ou convenção coletiva.
É o caso, por exemplo, do Programa de Assistência Multidisciplinar de Saúde - AMS, operado pela Petrobras e disciplinado em acordo coletivo de trabalho, caso em o STJ decidiu pela competência da Justiça do Trabalho,
Observa-se nesse precedente que a jurisprudência não tem feito distinção quanto ao fato de figurar na demanda trabalhador ativo, inativo ou dependente do trabalhador.
Fazendo um paralelo com a previdência complementar, consta precedente do STF, onde prevaleceu a posição da Min. Ellen Gracie no sentido de se firmar um critério objetivo para fixação da competência da Justiça comum, independentemente da existência da norma no contrato de trabalho acerca do plano de previdência complementar. Reafirmou-se a autonomia do Direito Previdenciário em relação ao Direito do Trabalho. (RE 586453, julgado em 2013).
O STF chegou à compreensão de que a competência para o processamento de ações ajuizadas contra entidades privadas de previdência complementar é da Justiça comum, dada a autonomia do Direito Previdenciário em relação ao Direito do Trabalho e a inteligência do art. 202, § 2º, da Constituição Federal, que excepciona, na análise desse tipo de matéria, a norma do art. 114, inciso IX, da CF.
Conforme o Min. Paulo de Tarso assentou em seu voto no CC nº 165.863/SP:
“Ora, se a finalidade de um precedente qualificado é justamente produzir fácil ressonância, isto é, ser replicado em outros casos concretos, um critério excessivamente subjetivo não atende a essa finalidade, não merecendo ser adotado.”
O STF adotou o critério objetivo da autonomia da previdência complementar em relação ao contrato de trabalho, com base no art. 202, § 2º, da Constituição, fixando-se a competência na Justiça comum, ainda que o contrato de trabalho disponha sobre previdência complementar.
O art. 202, § 2°, da CF assim dispõe:
“As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes”.
Desta forma, conforme o entendimento do relator do CC nº 165.863/SP:
“Porém, à falta de uma norma constitucional análoga à regra do art. 202, § 2º, da Constituição, versando sobre saúde suplementar, não me parece viável excepcionar as regras de competência enunciadas no art. 114 da Constituição. A solução, portanto, é buscar um outro critério objetivo.
A ex-empregadora não figura na relação contratual como mera estipulante, que contrata através de terceiro (operadora de plano de saúde) benefício em favor dos seus empregados. Em verdade, a recorrente mantém o próprio plano de saúde em favor de seus empregados (modalidade de autogestão), razão pela qual a discussão acerca do direito do recorrido de ser mantido no plano de saúde possui relação direta com o contrato de trabalho extinto, impondo-se a competência da Justiça do Trabalho.”
Por sua vez, a cognição da Justiça do Trabalho não é limitada à aplicação da legislação trabalhista, podendo abranger também a aplicação legislação comum, inclusive as normas de regulação dos planos de saúde, desde que a demanda seja decorrente da relação de trabalho.
O relator pontuou:
“Observe-se, porém, que o fato de a assistência à saúde não integrar o salário não implica, necessariamente, que ela não integre o contrato de trabalho, pois o objeto deste não se limita à mera fixação do salário do trabalhador.”
Nesse sentido, assim dispõe o art. 444 da CLT:
“Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.”
Em conclusão, o Min. Paulo de Tarso Sanseverino assentou em seu voto no CC nº 165.863/SP:
“Ora, sendo livre a estipulação do conteúdo do contrato de trabalho, o fato de a assistência à saúde não ser considerada salário indireto não impede que ela integre, expressa ou tacitamente, o contrato de trabalho. Aliás, esse é o caso do já mencionado plano da Petrobras e da CEF, ambos previstos em acordo coletivo de trabalho.
Em conclusão, com esses fundamentos, propõe-se retomar o entendimento jurisprudencial que há pouco tempo prevalecia nesta Corte Superior, conforme julgados citados na parte inicial deste voto, primando assim pela segurança jurídica na definição da competência. Estando definida a competência da Justiça do Trabalho, a competência da Justiça comum se estabelece naturalmente a contrario sensu, por se tratar de competência residual.”
Assim, à unanimidade, foi fixada a tese de que compete à justiça comum julgar as demandas relativas a plano de saúde de autogestão empresarial, exceto quando o benefício for regulado em contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo, hipótese em que a competência será da Justiça do Trabalho, ainda que figure como parte trabalhador aposentado ou dependente do trabalhador. Como visto, a tese se aplica às causas em que o trabalhador aposentado busca manter-se filiado ao plano de saúde da empresa.
O precedente vinculante do STJ consubstanciado no IAC nº 05 foi julgado em junho de 2020. Contudo, até dezembro de 2021 os tribunais trabalhistas mantiveram a competência da justiça especializada na matéria, conforme os precedentes colacionados abaixo:
“Nos termos do art. 114, I, da Constituição da República, compete à Justiça do Trabalho apreciar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho. No caso em análise, a demanda versa sobre as condições de prestação de plano de saúde contratado pelo empregador, que decorre da relação de emprego que existiu entre empregado e seu ex-empregador, sendo incontroversa a competência desta Especializada para apreciação e julgamento do feito. O direito à manutenção do plano de saúde nas mesmas condições de cobertura assistencial de que a empregada gozava quando da vigência do contrato de trabalho, atribuindo à obreira apenas o pagamento integral do valor da mensalidade após o término da relação empregatícia, atende ao comando sentencial, já transitado em julgado, assim como as disposições insertas no art. 30 e 31 da Lei 9.656/98. (TRT-7 - Agravo de Petição nº 00007166020175070018. DJ de 23/06/2021).”
“Resta pacífico o entendimento de que esta Justiça é competente para o julgamento de demandas decorrentes de contrato de trabalho, em que se reclama a prestação de plano de saúde contratado pelo empregador, mormente quando a demandada reconhece que o referido plano é oferecido aos empregados, ativos e inativos, além de seus dependentes, nos termos do regulamento empresarial, na modalidade de Autogestão por RH. Recurso não provido. (TRT-13 - Recurso Ordinário Trabalhista nº 00001210520215130002. DJ de 10/12/2021.)”
No mesmo sentido, há precedentes do TRT de MG nos anos de 2020 e 2021. No entanto, a partir de dezembro de 2021, o tribunal passou a adequar-se ao novo entendimento do STJ, conforme decisão no processo nº 0010103-83.2021.5.03.0111 publicada em 06/12/2021 em seu website:
“Justiça do Trabalho remete à Justiça Federal processo sobre manutenção de plano de saúde não regulado por contrato de trabalho ou norma coletiva.
A decisão se baseou em tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) proposto no Recurso Especial n° 1799343/SP, o qual resultou no Tema – IAC nº 5, nos seguintes termos: "Compete à Justiça comum julgar as demandas relativas a plano de saúde de autogestão empresarial, exceto quando o benefício for regulado em contrato de trabalho, convenção ou acordo coletivo, hipótese em que a competência será da Justiça do Trabalho, ainda que figure como parte trabalhador aposentado ou dependente do trabalhador”.
Pende no Tribunal Superior do Trabalho recursos para análise do mesmo tema. Caso o TST entenda por manter a competência na justiça especializada, divergindo do STJ, a questão deverá ser dirimida pelo STF, nos moldes do art. art. 102, I, “o”, da CF/88.
3-Inseminação Artificial e Fertilização in vitro.
O STJ decidiu que a vedação à inseminação artificial estende-se igualmente à fertilização in vitro, não havendo necessidade de que essa proibição conste expressamente no contrato. Subjacente a este entendimento estão as consequências de uma decisão em sentido contrário, estando essencialmente calcado nos custos dos procedimentos. De fato, o preço médio da inseminação artificial é de R$ 2.500,00, afora os medicamentos. Por outro lado, a fertilização in vitro custa em média R$ 25.000,00.
Para o melhor entendimento dos argumentos jurídicos e bioéticos travados nos julgados, serão expostas as principais diferenças das duas técnicas reprodutivas, além de outras técnicas de reprodução assistida.
Em 25 de julho de 1978, nasceu na Inglaterra Louise Brown, o primeiro bebê concebido por inseminação artificial. O feito rendeu ao fisiologista Robert Edwards o Prêmio Nobel de Medicina em 2010, 32 anos após o procedimento.
Por sua vez, o primeiro parto bem sucedido por injeção intracitoplasmática de esperma, também conhecida como fertilização in vitro, ocorreu em 14 de janeiro de 1992. A técnica foi desenvolvida por Gianpiero Palermo, no Centro de Medicina Reprodutiva em Bruxelas. A descoberta foi feita por engano quando um espermatozóide foi colocado no interior do citoplasma.
Na inseminação artificial o processo de ovulação e gestação é inteiramente natural, havendo apenas um auxílio externo para o percurso do espermatozoide. O esperma pode ser inserido diretamente no útero (inseminação intrauterina-IIU), assim como no colo do útero ou nas trompas de falópio.
A infertilidade pode advir da obstrução na passagem do esperma pelo muco cervical, bem como pelo baixo número de espermatozoides, ou ainda pela incapacidade dos espermatozoides de nadarem através do colo do útero e subirem nas trompas de falópio.
A inseminação artificial deve ser precedida de abstinência sexual nos dias que a antecedem, a fim de garantir uma contagem segura de espermatozoides na ocasião do procedimento. O esperma também é lavado, separando-se a parte mais ativa por meio de uma centrífuga. Em seguida, um cateter introduz o esperma através do colo do útero. A mulher deve permanecer deitada por alguns minutos para a eficácia do procedimento.
Segundo a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, o Brasil pode ter até 8 milhões de inférteis. A endometriose é umas das principais doenças que impedem a reprodução natural. Ela pode dificultar também a técnica de inseminação artificial, fazendo os casais recorrerem à fertilização in vitro. Esta última técnica reprodutiva é efetivamente artificial, já que a fertilização dos oócitos é feita em laboratório, processo conhecido como bebê de proveta. É utilizado um único espermatozóide para cada óvulo, ao invés de 100.000 no processo natural. O esperma e o óvulo utilizados podem ser do próprio casal ou de doadores, resultando daí os termos homólogo ou heterólogo.
A fertilização in vitro pode ser complementada com a estimulação induzida por medicamentos, como o citrato de clomifeno e tratamento hormonal, que aumentam a fertilidade, ajudando o corpo da mulher a ovular mais óvulos e levando ao desenvolvimento dos folículos ovarianos.
A depender das contingências, outras técnicas podem ser utilizadas para a reprodução assistida, como a cocultura endometrial autóloga, transferência intrafalópica de zigoto e o transplante de útero. Em teoria, o transplante é possível em transgêneros, porém não há casos relatados de sucesso neste procedimento. Já a Eclosão Assistida da Zona é realizada por meio de uma pequena abertura feita na camada externa ao redor do ovo para ajudar a eclodir o embrião.
Cocultura endometrial autóloga é um tratamento possível para pacientes que falharam em tentativas anteriores de fertilização in vitro ou que têm baixa qualidade embrionária. Os óvulos fertilizados da paciente são colocados em cima de uma camada de células do próprio revestimento uterino da paciente, criando um ambiente mais natural para o desenvolvimento do embrião.
Na transferência intrafalópica de zigoto, os óvulos são removidos dos ovários da mulher e fertilizados em laboratório. O zigoto resultante é então colocado na trompa de falópio.
Em muitos casos é necessário um diagnóstico genético antes da implantação, a fim de identificar embriões geneticamente anormais e melhorar os resultados saudáveis. Esse diagnóstico é feito por técnicas de triagem genética, como hibridização fluorescente e comparativa. Esse diagnóstico também detecta a gravidez multifetal, devendo ser seguida da redução seletiva do número de embriões implantados.
A doação mitocondrial é uma forma especial de fertilização in vitro na qual parte do DNA mitocondrial do futuro bebê vem de terceiros. Essa técnica é usada nos casos em que as mães carregam genes para doenças mitocondriais.
Existem ainda técnicas cirúrgicas, como a coleta de esperma diretamente do testículo em um curto procedimento ambulatorial.
Em geral, o termo reprodução assistida não inclui as técnicas de estímulo por medicamentos e a inseminação artificial. Porém, o termo abrange a fertilização in vitro e a injeção intracitoplasmática de espermatozoides. Esta última consiste em uma técnica na qual o conteúdo de um óvulo fértil de um doador é injetado no óvulo infértil do paciente junto com o esperma.
Por sua vez, a fertilização in vitro pode ser usada para tratar a infertilidade devido a oligospermia, anticorpos espermáticos, disfunção tubária ou endometriose, bem como infertilidade inexplicada. Neste caso, os oócitos são cultivados por até cinco dias. O uso dessa técnica para mulheres na menopausa ou com parceiros mais velhos é desaconselhado, apesar de não haver consenso no meio científico.
O procedimento de fertilização in vitro tem um custo de mercado até dez vezes superior ao da inseminação artificial. Isso porque ele exige a realização de exames, aplicação de hormônios para estimular os ovários, utilização de ultrassom, análise de qualidade dos ovários, transferência de embriões, preparo do útero e, em alguns casos, congelamento dos embriões excedentes, para criopreservação. A chance de engravidar na fertilização in vitro é de 50%, enquanto a inseminação artificial é de 20%.
As técnicas de reprodução assistida não estão imunes a riscos. São relatados aumentos nos partos prematuros, com problemas de deficiência visual e paralisia cerebral. Já as pacientes podem desenvolver pré-eclâmpsia, com aumento da pressão arterial durante a gestação.
A doação de esperma é uma exceção, com uma taxa de defeitos congênitos de quase um quinto em comparação com a população em geral. Isso pode ser explicado porque os bancos de esperma aceitam apenas pessoas com alta contagem de esperma.
Por outro lado, não existe diferença significativa na frequência de mutações entre fetos concebidos naturalmente e fetos de concepção assistida. Isso sugere que, com relação à manutenção da integridade genética, a concepção assistida é segura.
Em termos de oferta das técnicas de reprodução assistida, a lei assegura a todos o seu acesso no âmbito do sistema público de saúde. No entanto, a espera nos hospitais públicos é longa, fazendo com que os casais recorram ao sistema complementar, por meio de planos de saúde. No entanto, muitos planos não oferecem as técnicas reprodutivas, em especial suas modalidades básicas.
A realidade brasileira é semelhante a de muitos países. No Estados Unidos, muitos habitantes não têm cobertura de seguro para investigações e tratamentos de fertilidade. Alguns estados americanos passaram a exigir a cobertura. A taxa de uso é três vezes maior nos estados que oferecem cobertura completa. Em geral, as companhias de seguro de saúde cobrem apenas o diagnóstico de infertilidade, mas não o custo de tratamento. O procedimento de fertilização in vitro nos EUA custa em torno de 40 mil dólares.
O seguro nacional de saúde de Israel, obrigatório para todos os cidadãos israelenses, cobre quase todos os tratamentos de fertilidade. Os custos de fertilização in vitro são totalmente subsidiados até o nascimento de dois filhos para todas as mulheres israelenses, incluindo mulheres solteiras e casais de lésbicas. As transferências de embriões para barrigas de aluguel também são cobertas.
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha decidiu que é inconstitucional que as seguradoras de saúde tenham que arcar com apenas metade dos custos da fertilização in vitro. Há ainda um subsídio do governo de 25% do valor do tratamento, restando aos pais suportar apenas uma parcela de 25% do custo.
Tanto na Alemanha como na França, o procedimento foi estendido para mulheres solteiras e casais de lésbicas em recentes alterações legislativas.
4- Inclusão na cobertura dos planos de saúde na visão do STJ.
No Brasil, o tema foi objeto de intenso debate por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.794.629/SP em 2020. Nele, o STJ debateu se o art. 10, III, da Lei 9.656⁄98, ao excluir a inseminação artificial do plano-referência, também deve ser estendido à técnica de fertilização in vitro.
A terceira turma concluiu por maioria de 3 x 2 que inseminação artificial compreende a fertilização in vitro, além das demais técnicas médico-científicas de reprodução assistida, sejam elas realizadas dentro ou fora do corpo feminino. Apesar de constar na ementa do acórdão alusão ao corpo feminino, existem técnicas reprodutivas que se aplicam ao corpo masculino. Contudo, considerando a fundamentação do voto condutor, extrai-se que o termo foi utilizado em um contexto abrangente. Restaram vencidos o relator, Ministro Moura Ribeiro, e o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que o acompanhou.
Preliminarmente, é necessário diferenciar infertilidade de esterilidade. Infertilidade traduz-se na diminuição da capacidade de ter filhos devido a alterações no sistema reprodutor masculino ou feminino. Um casal é considerado infértil quando não consegue conceber num período de 12 a 18 meses, sem uso de métodos anticoncepcionais, mantendo relações sexuais frequentes. Já a esterilidade constitui a incapacidade absoluta de fertilização natural. Diz-se que um casal é estéril quando a capacidade natural de gerar filhos é nula.
Para a corrente vencida, encabeçada pelo relator, a interpretação da norma deve ser estrita. Mesmo que exista no contrato de prestação de serviços uma cláusula determinando a exclusão de cobertura do plano para inseminação artificial e outras técnicas de reprodução, o Código de Defesa do Consumidor estabelece a nulidade de cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
O relator fundamentou seu entendimento nas disposições do art. 47 do CDC (as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor) e do art. 423 do CC⁄02 (quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente).
O art. 35-C da Lei nº 9.656⁄98 prevê a cobertura obrigatória dos planos de saúde nos casos de planejamento familiar. O planejamento familiar é previsto no art. 226, §7º, da CF/88. Por sua vez, o art. 3º, parágrafo único, I, da Lei nº 9.263/96, que regulamentou esse dispositivo constitucional, prevê a assistência à concepção e contracepção. Já o art. 9º da lei sobredita dispõe que:
“Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção.”
Essas normas são de incidência obrigatória no âmbito do sistema público de saúde, considerando que a saúde é um direito fundamental previsto constitucionalmente. No entanto, a eficácia horizontal no âmbito dos seguros privados colide com outros princípios constitucionais aplicáveis aos seguros privados.
O planejamento familiar tem enforque no controle de natalidade, com o fornecimento no sistema público de saúde de meios contraceptivos.
O art. 20, §1º, III, da Resolução Normativa nº 387/2015 da ANS estendeu a disposição do art. 10, III, da Lei 9.656⁄98 para os demais métodos reprodutivas, nos termos seguintes:
“III - inseminação artificial, entendida como técnica de reprodução assistida que inclui a manipulação de oócitos e esperma para alcançar a fertilização, por meio de injeções de esperma intracitoplasmáticas, transferência intrafalopiana de gameta, doação de o ócitos, indução da ovulação, concepção póstuma, recuperação espermática ou transferência intratubária do zigoto, entre outras técnicas.”
Considerando que a infertilidade é uma doença com código CID, a corrente vencida no STJ entendeu que o contrato padrão de assistência à saúde não poderá excluir da cobertura nenhuma das doenças previstas na classificação internacional da OMS, inclusive câncer, AIDS e qualquer outra doença infecto-contagiosa, na forma do art. 10 da Lei dos Planos de Saúde.
Nas palavras do relator, Min. Moura Ribeiro:
“Chega-se, naturalmente, a essa conclusão porque aquele inciso da LPS diz expressamente inseminação artificial, e tão somente inseminação, nada dizendo acerca de outras técnicas de Reprodução Assistida. Como visto, é conhecida a distinção conceitual de diversos métodos de reprodução assistida. Todavia, referida diversificação de técnicas não importa redução do núcleo interpretativo do disposto no art. 10, III, da Lei dos Planos de Saúde, ao autorizar a exclusão do plano-referência da inseminação artificial.”
Este entendimento conflita com o enunciado nº 20 do CNJ, aprovado na 1ª Jornada de Direito da Saúde, que assim dispõe:
“A inseminação artificial e a fertilização in vitro não são procedimentos de cobertura obrigatória pelas empresas operadoras de planos de saúde, salvo por expressa iniciativa prevista no contrato de assistência à saúde.”
Conforme Vanessa e Mayara:
“A atual Carta se distinguiu das anteriores ao avançar sobre a mera distribuição de competências executivas e legislativas e apresentar ao mundo jurídico a saúde enquanto direito, entendido na esteira da proposta da Organização Mundial de Saúde, como congruente com a noção de estado de completo bem-estar físico, mental e social, com superação de um restritivo viés curativo e inclusão de aspectos protetivos e promocionais ao direito fundamental.” (Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões nº 11, março/abril de 2016).
Inaugurando a divergência, que foi seguida pelos Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze, a Ministra Nancy Andrigui pontuou em seu voto condutor:
“Acaso acolhida a linha de interpretação eleita pelo voto do I. Relator, a cada novo procedimento científico associado à denominada procriação artificial, então mais uma vez seria compelida a operadora de plano de saúde a dar a respectiva cobertura. Esta não parece ser a solução exegética mais consonante com a Lei dos Planos de Saúde, conforme sua análise sistemática e também com suporte na Agência Nacional de Saúde Suplementar e na Jornada de Direito da Saúde do CNJ.
Não por outra razão que a Resolução Normativa 387⁄2015 da ANS, que incide na hipótese dos autos, menciona outras técnicas porventura associadas à ideia de inseminação artificial. Não é possível limitar a proibição exclusivamente à inseminação artificial e não a outros métodos artificiais, levando em conta a frágil distinção se a fecundação ocorre intracorpórea ou extracorpórea.”
Em seguida, a Ministra Nancy Andrigui asseverou:
“Respeitosamente, este não parece o critério relevante a definir a interpretação do dispositivo da lei. Vale ainda dizer que relegar a outras áreas do conhecimento a interpretação que deve prevalecer sobre a legislação federal infraconstitucional pode vir a confundir os jogos de linguagem de cada campo científico e, eventualmente, restringir esta Corte Superior na interpretação humanizada e de justiça que resolve conflitos de direito material na sociedade brasileira.”
Aderindo a uma visão consequencialista do tema, a Min. Nancy Andrigui concluiu seu voto nestes termos:
“Vale também ponderar as consequências de uma interpretação como a emprestada pelo I. Relator ao dispositivo legal. Afinal, se a inseminação artificial for vedada e a fertilização in vitro autorizada, quais seriam as razões para os beneficiários de planos de saúde se utilizarem de um procedimento e não de outro, diante do fim último esperado com ambas técnicas científicas (gravidez⁄fertilidade). Sem ignorar as peculiaridades casuísticas a serem resolvidas pela indicação do profissional médico assistente, quer parecer que o próprio conteúdo da norma estaria esvaziado pelo excesso da restrição interpretativa sugerida pelo voto de relatoria. Isto é, a pretexto de se interpretar restritivamente o rol taxativo o resultado desta exegese seria o próprio estrangulamento da norma ante a hiperespecificação da sua hipótese de incidência. Com todas as vênias, esta também não parece ser a melhor exegese do dispositivo legal.”
Este voto divergente demarcou as balizas que diferenciam a perspectiva do tema nos sistemas público e privado de saúde, uma vez que possuem princípios próprios, conforme assentou a Ministra Nancy Andrigui:
“Por fim, em respeito à judiciosa posição do Ministro Relator, rememoro que, a propósito da Lei 9.236⁄96, em todos os precedentes desta Turma, foi definido que seu conteúdo normativo diz respeito ao Estado e à prestação do serviço público de saúde. Por essa razão, a disponibilização pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de auxílio referente à reprodução assistida na modalidade fertilização in vitro constitui política pública que não se confunde nem é capaz de alterar a relação contratual-privada própria dos planos de saúde regulados pela LPS. Esta é a fundamentação de todos os precedentes sobre a matéria.”
Como visto, no julgamento foi exposta a tese de que a infertilidade é uma doença com código CID, e portanto, deve o plano custear a fertilização in vitro, conforme preceituado no art. 10 da LPS, que prevê a cobertura das enfermidades indicada na referida classificação da OMS. No entanto, chegou-se à compreensão de que essa técnica não constitui tratamento, quer para os problemas de saúde, quer contra a infertilidade deles decorrente. Trata-se, isto sim, de alternativa para conseguir engravidar, em que a causa da infertilidade propriamente dita não é enfrentada ou tratada. Por isso mesmo, a Lei n° 9.656⁄98 exclui expressamente a inseminação artificial do rol dos procedimentos de cobertura obrigatória, nos termos do artigo 10, inciso III.
Contudo, prevaleceu a interpretação sistemática da Lei dos Planos de Saúde, em consonância com os atos administrativos produzidos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, não cabendo a aplicação isolada do art. 47 do CDC.
O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, seguindo a divergência inaugurada pela Ministra Nancy Andrigui, asseverou em seu voto:
“A interpretação restritiva que se propõe ao art. 10, III, da LPS, no sentido de que o legislador permitiu a exclusão apenas da inseminação artificial, não se coaduna com a realidade e com os avanços no âmbito da medicina. Do contrário, a cada novo procedimento desenvolvido para a reprodução humana, teríamos duas possibilidades: a) a alteração legislativa para excluir o procedimento do rol de cobertura mínima obrigatória a ser observado pelo plano de saúde ou b) a obrigação da operadora de custear procedimentos cada vez mais complexos e custosos.
Acerca do poder normativo das agências reguladoras, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva ponderou:
“Entendo que o Poder Judiciário deve observar o dever de deferência às normas expedidas pelas agências reguladoras, em especial pela Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Esse dever encontra respaldo na separação dos poderes, no fato de que incumbe ao Poder Executivo tomar decisões na esfera administrativa, de maneira geral, e às agências reguladoras, de modo mais específico, visto que dotadas de expertise técnica para a produção de atos administrativos. Com efeito, no âmbito da saúde suplementar, o Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar os dispositivos legais da Lei dos Planos de Saúde, tem exercido o controle judicial dos atos administrativos produzidos pela ANS em consonância com o dever de deferência.”
Sobre o diálogo com as normas da ANS, o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva ponderou em seu voto-vista:
“O diálogo com as normas da ANS é fundamental para o ordenamento jurídico e, no caso, não vislumbro ilegalidade que justifique o afastamento dos atos normativos supracitados expedidos pela Agência. Na verdade, entendo que ambas as Resoluções (nº 428⁄ANS e nº 192⁄ANS) buscam definir termos amplos e utilizados sem rigor técnico pelo legislador ("inseminação artificial" e "planejamento familiar"), justamente com o intuito de evitar interpretações que coloquem o consumidor ou a operadora do plano de saúde em posição extremamente desvantajosa.”
Esse poder normativo da ANS está em consonância com o entendimento do STF exarado na ADI 4874, julgada em 2018, acerca do poder normativo conferido à ANVISA.
Como visto, a 3º turma do STJ promoveu uma interpretação sistemática e teleológica da Lei dos Planos de Saúde, refutando o simples formalismo da interpretação literal. Prevaleceu no exame da questão a perspectiva relacionada aos custos financeiros decorrentes de um entendimento contrário.
No julgamento seguinte, o STJ aprofundou ainda mais a questão, numa gradação da aplicação da Análise Econômica do Direito. O primeiro julgado analisado ventilou as consequências da decisão. No próximo julgamento, como será visto, preponderou uma análise mais detida dos custos para as operadoras, e consequentemente, para a própria viabilidade do serviço no mercado de consumo, na linha da doutrina de Cass Sunstein.
O REsp. 1.794.629/SP, comentado acima, foi julgado pela 3º turma do STJ em 18/02/2020. Dois dias depois, em 20/02/2020, a 4º turma também ocupou-se do tema, no julgamento do Recurso Especial nº 1.823.077/SP. Neste último julgado, houve um aprofundamento da visão consequencialista, minudenciando os critérios atuariais do equilíbrio econômico dos contratos de seguro saúde. Diferentemente do julgamento da 3º turma, o da 4ª turma foi unânime, não havendo divergência.
O relator na 4º turma, Min. Marco Buzzi, asseverou em seu voto condutor:
“A interpretação de controvérsias deste jaez deve ter como norte, além da estrita observância aos dispositivos legais aplicáveis, o objetivo de contemplar, da melhor forma possível, tanto o efetivo atendimento às necessidades clínicas dos pacientes⁄contratantes, quanto o respeito ao equilíbrio atuarial dos custos financeiros a serem realizados pelas instituições de saúde suplementar.”
O Min. Marco Buzzi afirmou em seguida:
“A interpretação deve ocorrer de maneira sistemática e teleológica, de modo a conferir exegese que garanta o equilíbrio atuarial do sistema de suplementação privada de assistência à saúde, não podendo as operadoras de planos de saúde serem obrigadas ao custeio de procedimento que são, segundo a lei de regência e a própria regulamentação da ANS, de natureza facultativa salvo expressa previsão contratual.”
O caso objeto do recurso dizia respeito a um diagnóstico de endometriose (CID Nº 10-N80.0). Trata-se de enfermidade que atinge de 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva, e dentro desse percentual, aproximadamente 30% tem chances reais de desenvolverem infertilidade.
Sobre essa doença, a Resolução nº 1931/2019 do Conselho Federal de Medicina expõe:
“O endométrio - tecido que reveste o interior do útero - nos períodos menstruais da mulher fica mais espesso para que um óvulo fecundado possa se implantar nele. Quando não há gravidez, esse endométrio que aumentou descama e é expelido na menstruação. Em alguns casos, um pouco desse sangue migra e atinge os ovários ou a cavidade abdominal, causando a lesão endometriótica."
O Ministério da Saúde, no protocolo clínico e nas diretrizes terapêuticas de tratamento da endometriose, apresenta extensa lista de terapias médicas de enfrentamento da doença, tais como: tratamento clínico com uso de anticoncepcionais orais e tratamento cirúrgico, indicado quando os sintomas são graves, incapacitantes, quando não houver melhora com tratamento empírico com contraceptivos orais ou progestágenos, em casos de endometriomas, de distorção da anatomia das estruturas pélvicas, de aderências, de obstrução do trato intestinal ou urinário.
A Resolução Normativa nº 192/2009 da ANS estabeleceu a cobertura obrigatória dos seguintes procedimentos no planejamento familiar: consulta de aconselhamento para planejamento familiar, atividade educacional para planejamento familiar e implante de dispositivo intra-uterino -DIU. Não há referências à inseminação artificial e fertilização in vitro.
Logo, o planejamento familiar, como indicado acima, possui nítido cariz de controle de natalidade. Nada impede, contudo, que seu escopo seja estendido para a reprodução natural ou assistida. No entanto, não se extrai essa perspectiva das normas atualmente aplicáveis. Interligar a obrigação de custeio da fertilização in vitro quando relacionada ao planejamento familiar, com base no art. 35-C, III, da Lei de Planos de Saúde, não se coaduna à configuração atual da norma.
Sobre esse assunto, o Min. Marco Buzzi pontuou em seu voto:
“Assentado no binômio concernente à necessidade de preservação da saúde do paciente, e a possibilidade de custeio de tratamento médico, respeitando-se, obviamente, os princípios da boa-fé objetiva e probidade na formação e execução dos contratos, encontrar-se-á o atendimento à legítima expectativa do consumidor ao celebrar o ajuste, bem como a gestão equilibrada dos custos operacionais e financeiros, por parte das entidades de assistência à saúde.”
A propósito, não se olvida do recentíssimo julgamento finalizado no último dia 18/02/2020, proferido nos autos do REsp. nº 1.794.629/SP, redator para acórdão Min. Nancy Andrigui, em que a eg. 3º turma, por maioria de votos, vencidos os e. Ministros Moura Ribeiro e Min. Paulo de Tarso Sanseverino, conferiu provimento ao apelo recursal da instituição de saúde a fim de desobrigá-la ao custeio do tratamento ora questionado. De fato, não há, pois, renovadas venias, lógica que o procedimento médico de inseminação artificial seja, por um lado, de cobertura facultativa - consoante a regra do art. 10, III, da lei de regência - e, por outro, a fertilização in vitro, que possui característica complexa e onerosa - consoante examinamos alhures - tenha cobertura obrigatória.
Permitir interpretação absolutamente abrangente, tal como consignado pelo eg. TJ⁄SP - acerca do alcance do termo "planejamento familiar", de modo a determinar cobertura obrigatória da fertilização in vitro, acarretará, inegavelmente, direta e indesejável repercussão no equilíbrio econômico-financeiro do plano, a prejudicar, sem dúvida, os segurados e a própria higidez do sistema de suplementação privada de assistência à saúde. Além disso, o exame de controvérsias deste jaez exige que a interpretação deve ocorrer de maneira sistemática e teleológica, de modo a conferir exegese que garanta o equilíbrio atuarial do sistema de suplementação privada de assistência à saúde, não podendo as operadoras de planos de saúde serem obrigadas ao custeio de procedimento que são, segundo a lei de regência e a própria regulamentação da ANS, de natureza facultativa, salvo, evidentemente, se estiver previsto contratualmente, circunstância inexistência na hipótese dos autos.”
Por fim, o Min. Marco Buzzi assentou em conclusão de voto:
“A interpretação sistemática e teleológica do art. 35-C, inciso III, da Lei n. 9.656⁄1998, somado à necessidade de se buscar sempre a exegese que garanta o equilíbrio econômico-financeiro do sistema de suplementação privada de assistência à saúde, impõe a conclusão no sentido de que os casos de atendimento de planejamento familiar que possuem cobertura obrigatória, nos termos do referido dispositivo legal, são aqueles disciplinados nas respectivas resoluções da ANS, não podendo as operadoras de planos de saúde serem obrigadas ao custeio de todo e qualquer procedimento correlato, salvo se estiver previsto contratualmente.”
Este julgamento da quarta turma foi categórico na análise das consequências da decisão judicial, em detrimento da interpretação meramente literal do texto de lei. Ilustrativamente, veja-se um contrato de seguro saúde com cláusula de cobertura expressa para a fertilização in vitro, silenciando quanto à técnica de inseminação artificial. Neste caso específico, as regras hermenêuticas conduzem à inclusão da inseminação artificial na cobertura, mesmo que ela não conste expressamente no contrato. A interpretação extensiva se baseia nos custos desta técnica, que é 90% menor que a fertilização in vitro.
Por outro lado, o inverso não é verdadeiro. Se o plano cobrir apenas a inseminação artificial, em cláusula objetiva e expressa, sendo silente quanto à fertilização in vitro, não será possível sua extensão hermenêutica para cobrir também este último procedimento, que custa dez vez mais. Como visto acima, as diferentes técnicas reprodutivas possuem custos diferenciados. Além do CDC, a exegese dos contratos de seguro saúde deve buscar subsídios no art. 421-A do NCC.
Este último julgado da 4ª turma fundamentou-se nos critérios atuariais dos seguros saúde. O estudo da atuária possui métodos matemáticos e estatísticos que transformam incertezas em riscos mensuráveis.
Após a mensuração dos riscos, são estipulados os prêmios a cargo dos segurados para a cobertura dos sinistros. Logo, a extensão judicial para eventos não considerados na previsão de cálculo fará com que os planos entrem em colapso. A saída encontrada para manter o negócio viável será reajustar o valor dos prêmios, fazendo com que os segurados de menor renda desistam da contratação e, consequentemente, pressionem o sistema público de saúde.
Semanas antes dos dois julgados comentados, o STJ havia autorizado os planos de saúde individuais e familiares a reajustarem suas mensalidades em decorrência da mudança de faixa etária dos segurados, inclusive dos idosos. Alguns precedentes confirmaram reajustes de até 130% para segurados que completassem 59 anos de idade, bastando a demonstração da viabilidade atuarial. O mesmo entendimento tende a ser aplicado aos planos coletivos de saúde.
Este raciocínio tem como premissa a elevação dos custos dos segurados idosos. A prática revela que nesta faixa etária há um crescimento na demanda pelos serviços de saúde. Logo, mesmo considerando o reajuste nos valores dos prêmios, a elevação nos custos resulta em desproporção entre as mensalidades recolhidas e os desembolsos efetuados pelo plano de saúde. Assim, inverte-se a lógica dos seguros convencionais, onde o cálculo do prêmio é proporcional ao incremento do risco, tais como nos seguros de vida e automotivo.
O Superior Tribunal de Justiça fundamenta essa desproporção entre prêmio e sinistralidade no mutualismo e na solidariedade intergeracional, mantendo-se o descompasso entre a reserva matemática formada pelos segurados idosos e os custos dos serviços de saúde por eles exigidos. Se assim não fosse, o acesso aos planos de saúde dessa camada da população estaria inviabilizado, já que nos últimos dois anos houve redução média de 50% no valor das aposentadorias.
Essa desproporção, no entanto, não pode onerar demasiadamente as camadas mais jovens de segurados, sob pena de a debandada dos planos ocasionar a seleção adversa, tornando o negócio inviável atuarialmente.
A comprovação de conformidade do reajuste por faixa etária com a norma da ANS é feita de forma prévia, por meio da Nota Técnica de Registro de Produtos (NTRP), a cargo de um atuário, com as premissas técnicas do cálculo. A ANS certifica o reajuste por meio deste documento.
Historicamente, a atuária foi desenvolvida de forma paulatina, juntamente com outras áreas da matemática. No século XVIII, o matemático suíço Jacques Bernoulli elaborou a Lei do Acaso, depois denominada Lei dos Grandes Números, uma área da estatística empírica. Em 1816, o matemático francês Pierre Simon Laplace estudou os fenômenos aleatórios.
O progresso estatísticos foi conjugado com as ferramentas da atuária, a exemplo da tábua de vida do astrônomo Edmond Halley. Os cálculos atuariais passaram a contar com modelos preditivos avançados. Antes tidos como imprevisíveis, as doenças e acidentes de uma amostra de segurados passaram a ter previsibilidade tanto na sua ocorrência quanto nos seus custos.
Os cálculos atuariais dos seguros saúde utilizam provisões mensais, mensalidades estocásticas e postecipadas, frequência de utilização (divisão do número de sinistros pelo número de expostos), carregamentos, média de severidade dos sinistros, desvio padrão da frequência e agrupamento dos eventos e serviços ofertados (consultas, internações, diagnoses), além de técnicas de regressão linear. Estes dados visam calcular a Margem de Segurança Estatística aplicada ao plano de saúde, conferindo-lhe sustentabilidade financeira a longo prazo.
Essa aderência à previsibilidade levou as ferramentas da atuária para distintos campos do saber, como a previsão da reincidência de criminosos, em especial em crimes sexuais.
A atuária não se aplica apenas aos seguros privados de saúde. O sistema público igualmente utiliza essa técnica para a alocação eficiente de recursos orçamentários. No âmbito do SUS, no entanto, outros desafios se fazem presentes, como a cobertura do déficit nominal por meio da emissão de títulos públicos.
O Banco Mundial e o TCU apontam que o princípio da universalidade previsto no sistema público não possui sustentabilidade atuarial, por conta do crescimento dos gastos de saúde acima do produto interno bruto no período de 2003 a 2017. Referidas instituições recomendam a implantação de redes integradas de atenção à saúde e de fortalecimento da atenção básica. A PEC 45/2021 busca ainda desjudicializar a saúde pública, tornando obrigatória a análise técnica prévia para a incorporação de remédios e procedimentos no âmbito do SUS.
De outro giro, há uma vasta literatura demonstrando o impacto positivo no PIB em decorrência dos investimentos em saúde. No entanto, esses investimentos devem ser sustentáveis, a fim de perdurarem no tempo.
O entendimento do STJ foi reafirmado no mês de outubro de 2020, com o julgamento conjunto pela 2ª Seção dos Recursos Especiais 1.822.420, 1.822.818 e 1.851.062, por meio da sistemática dos recursos repetitivos. Neste julgamento, os argumentos foram repisados, não havendo alteração de entendimento por parte dos ministros integrantes, resultando em apenas dois votos divergentes.
5-Conclusão
O artigo expões as premissas pelas quais o Superior Tribunal de Justiça, inicialmente pelas 3ª e 4ª turmas, e posteriormente pela 2ª Seção reunida, decidiu pela inviabilidade de estender a cobertura dos planos básicos de saúde para os procedimentos de inseminação artificial e fertilização in vitro.
Preambularmente, o trabalho expôs a competência jurisdicional para a matéria. Em seguida, foi analisada a decisão da terceira turma, que entendeu por maioria pela inviabilidade de obrigar o plano de saúde a cobrir os procedimentos mencionados, com base nas consequências da decisão para o mercado securitário. Em seguida, a quarta turma aprofundou o tema, em julgamento unânime, minudenciando os critérios atuariais que dão sustentabilidade aos seguros saúde. Entendimento similar havia sido tomado semanas antes, no caso do reajuste dos planos de saúde na última faixa etária. Por fim, a 2ª Seção retomou o tema, repisando os mesmos argumentos em precedente qualificado.
Desta forma, foi possível vislumbrar o liame lógico-dedutivo que perfilhou o raciocínio dos integrantes da corte, esteados na viabilidade atuarial dos planos de saúde no mercado de seguros. Pesou igualmente a visão consequencialista da interpretação dos contratos, já que a cada nova técnica de reprodução assistida que despontasse na área médica, haveria impacto imediato nos planos de saúde, prejudicando a segurança jurídica, a previsibilidade econômica e a própria viabilidade deste modelo de negócio.
Referências
Ejan Mackaay e Stephane Rousseau. Análise Econômica do Direito. Editora Atlas. 2ª Edição. 2015.
Gustavo Henrique Wanderley de Azevedo. Seguros, Matemática Atuarial e Financeira. Saraiva. 1ª edição. 2017.
Julio César Ballerini Silva. Direito à Saúde na Justiça – Teoria e Prática. Editora Imperium. 2020.
Luciana Gaspar Melquíades Duarte e Víctor Luna Vidal. Direito à Saúde. Revista dos Tribunais. 2020.
Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza e Mayara Saldanha Cesar Guimarães Caldas. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões nº 11, março/abril de 2016.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A cobertura da fertilização in vitro pelos planos de saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2022, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58163/a-cobertura-da-fertilizao-in-vitro-pelos-planos-de-sade. Acesso em: 23 dez 2024.
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